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O futebol de rendimento: indústria de lazer e entretenimento

Durante o fim de semana a repercussão em cima do preço médio dos ingressos do futebol foi bastante grande. Mais do que antes, porque é tema delicado e ficou ainda mais após a construção dos estádios que receberam o mundial de futebol masculino, há cinco anos. Sem dúvida alguma que os preços dos ingressos aumentaram de maneira considerável, no entanto é preciso ao mesmo tempo compreender o porquê deste aumento.

Longe de defender esta alta, que afasta boa parte do público do futebol, muita coisa mudou nas últimas décadas em termos de padrões de segurança, acomodação, acesso e operação de um evento esportivo, que também nestes casos também são de entretenimento. Há muito mais pessoas envolvidas e complexas operações que exigem tempo e profissionalismo. Ao mesmo tempo, a indústria do lazer cresceu sobremaneira e, com isso, a concorrência. Em outras palavras, a disputa pelo mercado consumidor. Não há muito tempo as pessoas se lembram de como era antigamente chegar ao estádio, escolher (ou não) um lugar, tomar chuva ou ‘aquele’ sol bem ‘na cara’. Se houver outra opção, mesmo mais cara, mas que o torcedor não passe por isso, a paixão fica de lado na maioria dos casos.

Simultaneamente, temos uma economia em que a concorrência não é grande e a competitividade baixa em comparação com os grandes centros econômicos do mundo, nomeadamente América do Norte, Europa e Ásia. Soma-se isso à paridade do poder de compra da nossa moeda, os preços acabam ficando mesmo caros. Exemplo: uma partida de futebol da primeira divisão de um importante centro na Europa a 40 euros, comparado ao salário mínimo daquele país, é preço relativamente acessível e as operações do estádio ou do clube são pagas. Não é o que acontece no Brasil, com o ingresso a 40 reais e nem fazendo o câmbio exato de euros para reais.

É uma sequência em cadeia.

Ademais, o futebol de rendimento está caro. Os futebolistas de ponta ganham cada vez mais, com inúmeras pessoas envolvidas no processo de preparação, formação e contratação do atleta. Há muito mais partes interessadas que operam em um mercado de baixíssima regulamentação e fiscalização. Isso permite pensar que a barganha política que existe é muito grande. Um setor regulamentado e fiscalizado sugere sustentabilidade. É por isso que, volto a dizer, sou fã da política de teto salarial e normatização para agentes de atletas nas ligas norte-americanas.
 

(Foto: Divulgação)

 

Com tudo isso, parte desta grande alta dos preços dos ingressos tem como origem toda esta gama de transformações da indústria do entretenimento, em também como a sociedade e o conceito de lazer mudaram, somada à complexidade do modelo econômico e uma ausência de regulamentação do mercado.

Mais uma vez: longe de querer justificar a alta dos preços, mas mais perto de querer compreendê-la.

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 Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Desporto é a expressão corporal do progresso sócio-econômico de um povo.
Prof. Dr. Manuel Sérgio, filósofo português (1933-)

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Bom futebol se joga com boas ideias

Sou muito crítico a tudo o que acontece no futebol brasileiro. Tenho claro que o 7 a 1 na Copa do Mundo de 2014 não foi acaso. Nem culpa do Felipão. Eu, como imprensa, perdi de 7 naquele dia também. Todos que de alguma forma estão envolvidos na indústria do futebol foram derrotados pelos alemães. A partir dessa pancada, fiz minha parte e comecei a estudar. A fundo mesmo, tudo que rola dentro e fora de campo. Quanto mais aprendo mais quero continuar aprendendo. E passei a ser mais duro com o nosso atraso. Por outro lado, quando vejo coisa boa me sinto obrigado a também registrar. E aqui vai o elogio para uma das classes mais atrasadas da nossa cadeia: a de treinadores.
Consigo enxergar hoje o que no passado não existia em Campeonatos Brasileiros: muitos técnicos com ideias claras de futebol. Uma intencionalidade treinada para cada fase do jogo. É claro que só isso não basta para termos uma qualidade semelhante as principais ligas europeias, por exemplo. Mas já é um avanço, visto que antes a aleatoriedade e o caos prevaleciam. Inclusive na primeira divisão tupiniquim.
Vamos aos fatos: consigo ver uma ideia clara, tendo a posse como meio para dominar o adversário, nos sistemas propostos por Eduardo Barroca no Botafogo, Fernando Diniz no Fluminense, Rogério Ceni no Fortaleza, Renato Gaúcho no Grêmio, Jorge Sampaoli (argentino!) no Santos e Thiago Nunes no Atlético-PR. E se o início de tudo é ter ideia, e não julgo o que é bom ou ruim até porque isso é relativo, sendo que a eficiência é a marca de vitórias no futebol, também temos ideias que privilegiam a defesa, com ataques rápidos e diretos, como Mano Menezes no Cruzeiro, Fábio Carille no Corinthians, Felipão no Palmeiras e até Róger Machado no Bahia.
Não aceito a falta de tempo para treinar como desculpa para um jogo mal feito. Até porque um dos problemas da nossa cultura sempre foi o famoso ‘migué’ em treinamentos. Inclusive dos técnicos, por incrível que pareça. De uma maneira geral, ainda treinamos mal aqui no Brasil. Tem pouco tempo? Como otimizar as atividades para rapidamente criar comportamentos e padrões de resposta? Mas quero salientar que a troca constante no comando das equipes faz com que trabalhos sejam remendados e quem chega sempre tenha que lidar com uma herança do ex-treinador.
Porém, se o um mau futebol é com jogada más ideias ou sem ideia e um bom futebol é jogado a partir de boas ideias consigo ver uma luz no fim do túnel baseado nessas rodadas iniciais do Brasileirão. Falta muito para termos uma competição do nível top mundial. Porém, ter técnicos com intencionalidades claras para desenhar uma equipe já é um grande avanço.
 

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Sobre os sentidos do futebol

Klopp e os jogadores do Liverpool comemoram: sinais de caminho, significado e afetos. (Reprodução: RTE)

 
Há algum tempo, por ocasião do meu trabalho de mestrado, tenho me dedicado um pouco mais às palavras, ao peso que as palavras têm e também aos significados que as palavras podem trazer. No futebol, como em qualquer outro lugar, precisamos das palavras mais do que elas precisam de nós.
Nesta semana, gostaria de refletir um pouco sobre a palavra sentido. A partir dela, podemos falar sobre treinamento, formação, modelos, estratégias, táticas e etc. Divido este texto em três partes. Em cada uma delas, apresento um olhar diferente do sentido e como cada um desses olhares se realiza pelo futebol.
Vejamos.

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Em primeiro lugar, acho possível olhar para o sentido no futebol a partir do caminho. O que é um modelo de jogo, por exemplo? O modelo de jogo é um caminho. Um caminho diferente da estratégia, porque o modelo é maior, resiste ao tempo, enquanto que a estratégia é mais pontual, sofre alterações sutis, de acordo com o adversário, de acordo com nós mesmos, de acordo com o modelo. Mas, nos dois casos, estamos falando de caminhos.
Dar sentido ao nosso trabalho (para além de uma direção) é sinônimo de dar um caminho. Nessas horas, não me esqueço daquela passagem de Alice nos País das Maravilhas, quando Alice diz não saber para onde vai, ao que o Gato Louco responde algo do tipo: ‘para quem não sabe onde vai, qualquer caminho serve’. Traçar um sentido é traçar um caminho, um caminho específico, um caminho que nos agrada, um caminho que gostaríamos de fazer. Se você preferir, traçar um sentido é traçar um caminho ideal. Ou seja, de certa forma, o sentido é idealista. Mas o jogo não é ideal, o jogo é real.
Este é o motivo por que vários colegas, dentre os quais eu me incluo, defendem metodologias de treinamento baseadas no jogo – não nos recortes do jogo. Um garoto que dribla cones estará cada vez melhor na arte de driblar cones, mas não necessariamente na arte de jogar futebol. Para tornar-se artista no futebol, este garoto precisa jogar. Isso não significa jogar apenas o jogo formal, mas significa jogar jogos, com oponentes reais, em espaços diferentes, com objetivos diferentes, com regras diferentes, não para fazer repetições quaisquer, para fazer repetições inteligentes, mas precisa jogar. Se formamos nossos jogadores para driblar cones, escolhemos um sentido. Se formamos jogadores para jogar, escolhemos outro.
Por isso, pensar no sentido como caminho faz tanta diferença.

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Mas também é possível olhar para o sentido no futebol a partir do significado. Por exemplo: pense na organização dos nossos treinamentos. Quando organizamos um treino, fazemos isso de qualquer jeito? Bom, espero que não. Cada exercício (ou cada jogo) tem a ver com o sentido da sessão, que por sua vez se encaixa no sentido do microciclo, que por sua vez é uma parte do mesociclo (assim sucessivamente) e todos eles conversam com o modelo, com aquele caminho que estabelecemos lá em cima. Ou seja, talvez exista um sentido anterior ao treino (caminho), mas também existe um sentido posterior ao treino – o significado.
Encontrar um significado quer dizer, no mínimo, duas coisas: primeiro, que aquele jogo, aquela sessão, aquela semana de treinamentos, tudo aquilo significa alguma coisa para alguém. Quando uma parte deste ato de treinar, por menor que seja, não significa nada para alguém (ou pior, quando não significa nada para ninguém) é sinal claro de que erramos a mão. Depois, se o significado deve ser encontrado, então ele não existe em si, ele não foi determinado, ele nasce da busca e, portanto, ele é subjetivo, é único e intransferível. A isso, aliás, nós podemos chamar de experiência. Um mesmo treinamento tem significados completamente diferentes para cada pessoa envolvida no processo.
Para um treinador ou treinadora, não basta que o treinamento (para ficar neste exemplo), faça sentido apenas para si. É preciso, ao mesmo tempo, que o treinamento faça sentido (tenha significado) para um atleta, para todos os atletas, para toda a comissão, para o clube. O significado precisa ser o mesmo para todos os atletas? Claro que não! Como dissemos acima, os significados são subjetivos – e discordo frontalmente daqueles que pensam que, para formarmos uma equipe, os atletas devem pensar a mesma coisa ao mesmo tempo. Os atletas devem pensar diferente, devem tornar-se quem são, e a formação como equipe não acontecerá porque todos os pensamentos têm a mesma cor, mas sim porque todas as cores dialogam entre si. Tudo é um.
Se quisermos que nosso trabalho tenha um sentido, um significado, é preciso então que nossos colegas tenham as devidas ferramentas para fazê-lo. Quanto menor for a capacidade de reflexão dos nossos atletas, menores serão as possibilidades de atribuição de sentido. E educar o pensamento dos atletas (junto do nosso próprio pensamento) também é parte da nossa profissão.

***

Por fim, também é possível olhar para o sentido no futebol a partir do afeto. O que isso quer dizer? Quer dizer que nossos treinamentos e nossas atitudes, como treinadores e treinadoras, não devem apenas estimular o pensamento dos nossos atletas. Devem também fazer com que eles sintam coisas.
Quanto mais indiferentes nossos atletas forem aos nossos treinamentos, à nossa fala, às nossas ideias (ou quanto menos chegarmos aos afetos), maiores serão as nossas barreiras, menores serão nossas possibilidades de construirmos laços humanos, maiores serão as distâncias entre todos nós, envolvidos no processo. Por isso, na nossa formação como treinadores e treinadoras (formação que não termina), não basta nos dedicarmos aos conhecimentos ou às competências, como se os cursos de formação fossem um grande supermercado, onde recolhemos nas gôndolas as competências que gostaríamos e julgamos não ter. Tornar-se treinador ou treinadora é principalmente um caso de sentir, de fazer sentir, de fazer sentir ao longo do tempo, de educar os afetos, de deixar-se educar pelos afetos.
Mas então tornar-se treinador ou treinadora é deixar-se levar. Quando os afetos nos atingem, é porque nos deixamos atingir, é porque estamos abertos, é porque mostramos nossas fraquezas e, exatamente por isso, nos damos o direito de sermos humanos. Nossa humanidade não se faz apenas na força, amigos e amigas, se faz nas fraquezas. Por mais contraditório que pareça, olhar apenas para cima pode ser uma grande fragilidade, assim como admitir e compartilhar nossas fraquezas pode tornar-se, às vezes de imediato, uma força irresistível.
Mas é preciso estarmos abertos. Estando abertos, encontramos sentido.
E pelo sentido, sentimos.
 

 

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As mulheres da seleção brasileira: trabalho, método e mérito

No último domingo tivemos as duas seleções principais de futebol do Brasil em campo. As mulheres fizeram a estreia na Copa do Mundo e os homens, amistoso preparatório para a Copa América. A repercussão foi imensa e a mobilização da torcida pela equipe feminina é algo que deixa qualquer um emocionado. A identificação do público com elas, também. Oxalá não seja temporária, que perdure e aumente mais e mais.

Sobre a identificação, ela não surpreende. É cada vez maior a distância da seleção masculina com o público. O popular, “muito mimimi”. E é isso mesmo. A sociedade confere tanto retorno  aos ídolos no esporte, faz tanto por eles – não apenas o reconhecimento pelas habilidades profissionais -, são referências estéticas e éticas a ponto de precisarem retribuir, quer seja por uma visita a um hospital até a criação de uma fundação assistencial. Em uma sociedade acostumada à indicação, ao nepotismo, influências e interesses, quase sempre os que ocupam cargos de comando  – sobretudo públicos – a meritocracia é rara e o esporte um dos poucos setores em que ela é escancarada.

Em outras palavras, que resumem o parágrafo acima, aquele que é referência tem que dar o exemplo. Dentro e fora de campo. Ultimamente não é isso que se percebe de alguns expoentes da seleção masculina, pois não. 

Cansados de tanta “balbúrdia”, de péssimos ou de nenhum exemplo, as pessoas se lembram do passado e comparam com os tempos em que não havia tantos holofotes. Lembram-se de ser bem menor ou quase nula a presença dos esportes no noticiário policial ou no de fofoca. O “amor à camisa” era mais evidente, falava-se pouco e fazia-se muito. Trabalhava-se muito! 

E é isso que as mulheres fazem e sempre fizeram. Trabalharam e trabalham em um silêncio extremamente barulhento, que são os incontestáveis resultados. Chegam lá pelo esforço, com método e com mérito. De respeito ao passado, às futebolistas pioneiras no Brasil, que desafiaram uma legislação que as impedia de praticar a modalidade principal deste país, que se confunde com a formação da identidade nacional!

Ademais, a conduta diária de esforço contínuo, profissionalismo e empreendedorismo são os melhores exemplos que podem ser dados a um país para atingir os níveis mais altos de desenvolvimento humano, a romper com a cultura da indicação, do nepotismo, das influências e interesses alheios ao crescimento e desenvolvimento.
 

Brasil venceu a Jamaica na estreia da Copa do Mundo 2019 por 3 a 0. (Reprodução: CBF)

 

Diante disso, é absolutamente natural que, nos noticiários esportivos da noite do último domingo,  as manifestações de simpatia pelas mulheres da seleção brasileira tenham sido incontáveis. Principalmente pela maneira como elas têm trabalhado e subido passo a passo. Exemplos para todo um país.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Nunca foi. Ambição, desejo de se tornar herói nacional e ganhar mais dinheiro sempre foi mais forte.
Tostão,
campeão mundial de futebol em 1970, sobre em o alto-rendimento no esporte ser lugar para desenvolver valores morais e éticos

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Neymar: por que tudo isso, Neymar?!

Neymar é hoje o único jogador brasileiro com condições de um dia brigar para ser o melhor do mundo. Não há nenhum outro que reúna as habilidades técnicas, físicas e até cognitivas que ele tem. A capacidade que Neymar tem para resolver os problemas do jogo são extraordinárias. Porém, para ser o melhor do mundo “só” isso não basta. É preciso um pacote maior. Que vai incluir o comportamento. Até porque, de forma natural, a maneira com que o jogador lida com o que está fora vai influenciar o que acontece dentro de campo. E aí chegamos no ponto mais fraco de Neymar.
Não tenho condição alguma e nem quero julgar sobre a mais nova polêmica envolvendo esse termo tão pesado que é estupro. Porém, os problemas se acumulam. Se amontoam. E criam uma atmosfera negativa não só para ele como também para toda a equipe de trabalho do seu clube e da seleção brasileira.
O foco é fundamental para a alta performance de qualquer atividade humana. E focar significa abrir mão de uma série de coisas para conseguir uma outra em particular. Ou seja, Neymar teria que ter como principal e única fonte de motivação o futebol. Melhorar como jogador. Com e sem a bola. Desenvolver ainda mais suas aptidões técnicas. Ter o seu corpo como um equipamento para desempenhar suas funções em campo. Uma mente blindada contra distrações e sabotadores. O melhor do mundo tem que respirar futebol. Dia e noite. Se sacrificar. E não parece ser o caso do camisa dez da seleção brasileira.
Não estou defendendo que ele seja um robô. Mas o melhor em uma atividade tem que fazer o que outros não fazem. E Neymar indica a todo o momento que o foco dele não está cem por cento na bola. As polêmicas são consequências de um estilo de vida que não combina com o de um jogador acima de todos os outros.
Tudo na vida é questão de escolha. A carreira de um jogador é muito curta. A questão aqui não é ganhar mais dinheiro. É ser melhor que os outros. É merecer um posto de destaque sobre os demais. A continuar assim, Neymar continuará sendo um jogador extraordinário. Porém, não o melhor de todos. Acredite em mim: logo o argumento de que não há como competir com Messi e Cristiano Ronaldo vai passar. E haverá outro argumento traduzido pelo nome de outros jogadores. Tudo por culpa única e exclusiva do próprio Neymar.
 

 

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Liverpool v Tottenham – algumas notas

Henderson e o Liverpool comemoram o título: há conquistas sem cicatrizes? (Reprodução: Twitter da UEFA Champions League)

 
Reflexão exige tempo. Para refletir, é preciso ter tempo para pensar, tempo para sentir, tempo para mergulhar e também tempo para voltar à superfície. Sem opiniões imediatas, sem tempo real, sem nada dessas coisas que encurtam nossa relação com o tempo. No futebol e na vida vivida, o tempo deve jogar a nosso favor, não contra.
Passados alguns bons dias deste Tottenham x Liverpool, que consagrou o velho novo campeão da UEFA Champions League, sinto que agora consigo expressar, com mais calma, as minhas impressões deste jogo. Elas estão divididas em vários tópicos. Alguns maiores, outros não.
Vejamos.

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Sofrer um pênalti (questionável) aos vinte e dois segundos de jogo é um golpe enorme para qualquer equipe, e não seria diferente para este Tottenham. Mas havia algo ali, logo após o gol de Mohamed Salah e durante todo o jogo, que pareceu muito forte: este Tottenham demonstra, a olhos nus, uma enorme força de caráter. A impressão, mesmo no instante seguinte ao gol, era de aceitação do incerto, de cabeça erguida e confiança no modelo. Talvez isso aconteça por dois motivos: pelas experiências deste grupo (especialmente as recentes, basta lembrar-se do jogo contra o Ajax), como também pelas ideias e pelo trabalho deste exímio Mauricio Pochettino.
A linguagem corporal de Pochettino, logo após o gol, mostra um treinador evidentemente incomodado, mas ao mesmo tempo compreensivo, crente no seu trabalho e na incerteza do jogo. Soube outro dia, pelo colega Carlos Thiengo, que ele fala sobre algo parecido nesta entrevista, dada ao La Nación, publicada logo antes do jogo. Tendo a achar que Pochettino, com menos dinheiro e mais subestimado do que vários dos seus colegas, não construiu este trabalho a partir das suas forças, mas principalmente a partir das fraquezas, das fragilidades, das cicatrizes de uma equipe que, sofrendo, aprendeu a sofrer.
Não fosse isso e o resultado final, contra este Liverpool, poderia ser mais elástico.

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Que o Liverpool jogaria no 4-3-3 nós já sabíamos. Minha dúvida estava na formação inicial do Tottenham, cujas estruturas são mais flexíveis. Neste vídeo, gravado ao lado do amigo Luís Felipe Nogueira, sugeri que o Tottenham começasse o jogo com uma linha de cinco defensores. Pensei nisso muito em função do comportamento do trio de ataque do Liverpool (Mané – Firmino – Salah), especialmente dos dois pontas, que buscam as diagonais em demasia e poderiam, ao lado de Firmino, criar situações de 3 v 2 sobre Alderweireld e Vertonghen. Mas Pochettino partiu de uma linha de quatro, começou em um 4-2-3-1. Bom, vamos refletir um pouquinho sobre essa escolha.
Dois jogadores importantes, que não puderam jogar nas últimas semanas, agora estavam em condições: Harry Winks e Harry Kane. No caso do segundo, principalmente, repare que é impensável deixá-lo no banco em condições normais de temperatura e pressão. Este, aliás, é um ponto importante que separa o analista médio (não o analista de desempenho) do treinador, e aqui entendemos melhor os motivos que fizeram Lucas Moura começar no banco de reservas. Um treinador, em uma final, não escala apenas pela memória recente, escala pela temporada, pelos treinamentos, pelas relações, pelo adversário, pelos companheiros e por si mesmo. Mas este não é um cálculo matemático, é um cálculo humano. As contas humanas não se fazem nos números, se fazem nos afetos, nos sentidos, na intuição – são apostas! E apostar (também) é um ato de coragem.
É provável que Pochettino e a comissão tenham previsto que o Tottenham teria mais posse – como de fato teve. Por isso, a escolha por mais um jogador de meio-campo (ao invés de mais um defensor) é plenamente compreensível, como uma forma de conservar a posse e, de alguma forma, progredir ao gol. Com Winks, o Tottenham ganharia um passador de muito bom nível, superior aos colegas de posição, tendo ao lado Moussa Sissoko, este mais físico, mais forte em condução – embora não exatamente um driblador. Aqui (e veremos abaixo o porquê), gostaria de ver como poderia contribuir Moussa Dembèlè, até outro dia no Tottenham (hoje no Guangzhou R&F), desses ótimos jogadores em situações de 1 v 1 pelo centro do campo.

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Sobre o Liverpool, havia um aspecto particularmente interessante neste 4-3-3. Como sabemos, Klopp é um treinador mais apegado às estruturas do que Pochettino. É raro que haja alterações no sistema – ao menos quando comparado com outros treinadores do mesmo nível.
Mas neste jogo, houve uma repercussão interessante do ponto de vista defensivo. A marcação inicial, como esperado, era das mais altas, partia do campo ofensivo, pressionando a construção do Tottenham. Não era bem uma pressão comprometida com o desarme, mas mais próxima de induzir o erro de um dos cinco defensores (Lloris + linha de quatro) na primeira fase do ataque. Neste sentido, portanto, o Liverpool partia em uma leve inferioridade numérica, de 4 v 3 – que tentava compensar do ponto de vista posicional.
Mas se há inferioridade em algum lugar, há superioridade em outro, e a superioridade estava na segunda linha. Este, ao meu ver, foi um ponto chave. Com Fabinho – Henderson – Wijnaldum, o Liverpool mantinha situações de 3 v 2 sobre os volantes adversários (Winks – Sissoko), o que tinha claros reflexos na construção ofensiva do Tottenham. Sabendo das suas fortalezas, e provavelmente esperando que os Spurs realmente tivessem mais controle da bola, Klopp desenhou uma situação limitante para a construção ofensiva do adversário por dentro, forçando-o a buscar: I) os lados do campo (o que não era exatamente interessante para o Tottenham, veremos o porquê abaixo) ou, como aconteceu de fato, II) os ataques diretos.
Para além de um efeito tático, induzir o Tottenham à verticalidade tem uma repercussão mental importante, porque o próprio Liverpool faz isso muito bem – especialmente em transições. O trio de ataque já está suficientemente condicionado a buscar o espaço às costas dos laterais-zagueiros adversários tão logo a bola é recuperada, especialmente contra equipes que precisam das linhas altas – como é o caso do Tottenham. O lance do pênalti que origina o primeiro gol sai exatamente em um passe rápido, pelo alto, às costas de Trippier, em um espaço atacado por Mané, aproveitando-se exatamente da altura da linha-base do Tottenham. Induzir o adversário a fazer algo que não apenas é desconfortável, como é melhor feito pela equipe que induziu, é uma solução potencialmente terrível do ponto de vista psicológico.

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Mas o fator decisivo no primeiro tempo, ao meu ver, foi não apenas a escolha do Tottenham pela linha de três meias, como o comportamento de cada um deles. Chamo a atenção especialmente para as diferenças entre Heung-Min Son e Christian Eriksen, que começaram abertos, com Dele Alli por dentro.
Objetivamente, Eriksen estava mais condicionado pela bola, enquanto Son estava mais condicionado pelo espaço. À medida que o Tottenham avançava no campo de ataque, Eriksen deixava o corredor direito em direção ao meio, claramente buscando o espaço entre as linhas defensivas do Liverpool, às costas de Fabinho. É muito provável que essa escolha também seja influenciada pelo comportamento do Liverpool em organização defensiva, com os pressings já comuns nas equipes de Klopp – e os riscos que isso envolve. Essa é uma estratégia duplamente interessante se pensarmos que a ideia não era apenas criar superioridades com Eriksen, mas com Eriksen e Alli, sendo que este se deslocava alguns metrinhos à esquerda, exatamente para ficar disponível como opção de passe em uma distância que fosse, ao mesmo tempo, próxima tanto de Eriksen quanto de Son. Mas o fato, e isso foi absolutamente decisivo, é que Alli não jogou bem. E isso, aliado à dificuldade de conexão entre volantes-meias (pela pressão de que falamos acima), minou sensivelmente o ataque do Tottenham.
Son, por sua vez, ficava mais preso ao corredor esquerdo. Por quê? Primeiro, pela sua própria característica: enquanto Eriksen é mais associativo, Son é mais vertical, mais forte no 1 v 1, e isso é potencialmente mais explorável recebendo a bola na lateral, perfilado, do que por dentro, de costas (ainda que ele também saiba fazê-lo). Talvez uma das ideias fosse buscar o espaço às costas de Alexander-Arnold, a partir de ligações diretas como aquela que foi feita por Alderweireld (zagueiro pela direita, repare na inversão), aos 27 minutos do primeiro tempo.
Da mesma forma, o fato de ter um falso ponta e outro mais fixo tinha uma clara repercussão no comportamento dos laterais. Enquanto Trippier tinha muito mais liberdade para subir ao campo ofensivo, dando amplitude em todos os momentos, Rose tinha menos espaços para si, uma vez que o corredor estava ocupado por Son. Não por acaso, não apenas Trippier parece ter se esgotado mais rápido do que Rose, quanto as principais investidas deste último ficaram mais claras apenas no segundo tempo, quando o Tottenham já jogava em outro sistema (de que falarei abaixo). Aliás, talvez apenas ali pudemos ver que Rose foi um dos melhores em campo.

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Por volta dos 40 minutos do primeiro tempo, Pochettino faz uma primeira mudança estrutural importante: saiu do 4-2-3-1 para o 4-4-2. A partir dali, Eriksen passou a jogar mais centralizado, ao lado de Kane, enquanto que Son foi deslocado para a direita e Alli para a esquerda. Foi nessa estrutura, que se manteve até o final do jogo, que o Tottenham conseguiu crescer ofensivamente, criando uma série de situações, especialmente nos 25 minutos finais.
A questão é que este 4-4-2 de Pochettino, se olhado de perto, se assemelhava muito mais a um 4-2-4, e isso é importante: porque quando altera a estrutura, o Tottenham tenta não mais ter apenas três jogadores sobre a linha defensiva do Liverpool (linha de quatro), mas sim quatro jogadores– ainda que Eriksen tivesse uma função maior na sobra. Ou seja, de alguma forma este quarteto do Tottenham pressionava a linha defensiva do Liverpool, ameaçando atacar os espaços vazios em ligações diretas e, especialmente, ameaçando matar a sobra da defesa do Liverpool.
Essa mudança tem consequências importantes no segundo tempo, como veremos abaixo.

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As substituições relativamente rápidas de Firmino e Wijnaldum dão a entender que o Liverpool, embora firme mentalmente, sofria do ponto de vista físico. Isso também aconteceria com o Tottenham minutos mais tarde. Mas o ponto é que Klopp precisou mudar as peças (sem mudar o sistema) para seguir em um nível próximo do primeiro tempo, no qual o Tottenham teve a bola, mas não conseguiu criar.
Durante todo o segundo tempo, Pochettino jogou no 4-4-2 a que me referi acima, mas fazendo alterações significativas do ponto de vista individual. Quando Lucas Moura entra no lugar de Winks, aos vinte minutos, Eriksen passa a jogar mais recuado, como volante, com Son e Alli pelos lados e Lucas logo atrás de Kane. Em tese, essa substituição permitiria ao Tottenham ter, próximo de Kane, um jogador que agride ainda mais a área do que Eriksen, este mais confortável metros atrás, pensando o jogo em outros espaços e com eventuais chances de finalização de média distância. E foi a partir dali, mais especificamente depois de uma grande chance perdida por Milner, aos 23 minutos, que o Tottenham cresceu de forma considerável, fazendo de Alisson um grande personagem.
Antes disso, lembramos ainda da entrada de Fernando Llorente na vaga de Dele Alli, aos 35 minutos. Com isso, o Tottenham teve, nos minutos finais, não mais um, mas dois centroavantes de ofício (é bem verdade que um deles sobre Virgil van Dijk), em clara intenção de buscar ataques diretos ou potenciais vantagens nas bolas paradas. Como já dissemos, o Tottenham é uma equipe que dança muito bem ao som da música, é mais camaleônico, não apenas pelo sistema, mas também pelo modelo, podendo tanto jogar curto se assim quer, como também usando o jogo direto, se preciso.

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Até que começasse a se destacar, na reta final do jogo, Alisson pouco havia sido exigido, fosse pela eficiência defensiva do Liverpool, fosse pelas próprias dificuldades ofensivas do Tottenham (ambas não se separam). Quando exigido, mostrou-se enorme.
Muito bem, mas vamos pensar em questões humanas. Embora a distância não me permita dizer com segurança, sinto que Alisson desenvolveu, para além da técnica, uma mentalidade muito grande, confiante em si mesmo e no grupo, que faz com que mesmo os gestos mais difíceis se tornem leves, fluidos e pareçam simples – como aquela bola encaixada num chute cruzado de Kane, já nos minutos finais. Essa mentalidade, em alguma medida, não reflete apenas o que acontece no presente, mas reflete as experiências do passado, reflete o que o atleta arrasta do passado para o presente, e neste sentido a importância do treinador (de todos os treinadores e treinadoras anteriores) ganha ainda mais peso. Tamanha segurança nas defesas das finalizações de Alli, Lucas, Eriksen e Kane materializa uma mentalidade vencedora, uma mentalidade que foi sendo ensinada e construída aos poucos, talvez não de modo sistemático, mas que foi feita fazendo, está em construção. E, como percebe-se, foi encarnada, já está na carne.
Não existe sequer margem de discussão sobre a qualidade de um goleiro como Alisson. E se isso é verdade, é pela conjunção dele mesmo com as circunstâncias. É nessa medida, essencialmente humana, que acho que devemos nos medir como treinadores e treinadoras. Há um mundo enorme além do gesto técnico.

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Nos minutos finais, com Divock Origi (cuja ascensão nos jogos finais é assustadora), o Liverpool sacramentou uma conquista que se construiu não apenas na vitória, mas nos fracassos. Na derrota para o Sevilla, em 2016, na terrível derrota para o Real Madrid, no ano passado, no vice-campeonato da Premier League, após uma campanha estupenda de 97 pontos.
Neste sentido, Liverpool e Tottenham são parecidos, são talhados na dor, com cicatrizes e marcas visíveis. E aqui está, outra vez, esta brava dimensão existencial do futebol, que não apenas nos mostra que não existe vitória sem dor, como também que não existe uma vida boa, que valha a pena ser vivida, sem cicatrizes que atravessem a pele e o coração.
Talvez aí esteja uma das grandes lições desta Champions League, que nos falou muito de futebol, mas nos falou ainda mais das coisas que estão para muito além dele.
E enquanto não sairmos da ilha, ela nos será maior.
 

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Lotados e loteados: os uniformes e os patrocinadores do futebol do Brasil

Recentemente esta coluna recebeu imagem de uniforme de grande clube do Brasil, repleta de patrocinadores, com muitos centímetros quadrados aproveitados. Impossível não se lembrar das – eternas – discussões sobre eventual desvalorização da marca do clube e todos os debates que remetem ao tema. Sem dúvida que a estética deve ser levada em consideração. Nem sempre, é verdade. Aliás, quase nunca. Entretanto, no futebol atual do Brasil poucos podem dar-se o luxo de restringir a exposição de uma marca na camisa.

Assunto inclusive foi tema de episódio do grupo “Porta dos Fundos”. (Foto: Divulgação)

 

Não há dúvidas de que muitos torcedores são influenciados pelas marcas patrocinadoras quando adquirem produtos oficiais do clube. Mais importante para o patrocinador que o retorno financeiro, é o reconhecimento institucional da sua marca. E quanto mais uma marca for associada positivamente, de força e de importância, com o tempo o consumidor pode mudar o comportamento em relação a ela, da não aquisição para a aquisição.

Para além da estética, o debate sobre os uniformes de futebol dos clubes do Brasil estarem cheios de patrocínios passa também pela credibilidade do universo esportivo brasileiro. Consequência de décadas de exemplos de má gestão e muitos casos de mecenato, de uma gestão amadora voltada para a projeção pessoal e de pequenos grupos. Oportunidades de investimento sempre existiram, as possibilidades de exposição e retorno, bastante altas. No entanto, diante da falta de transparência e credibilidade dos dirigentes (o estereótipo do “cartola”), em gerir as equipes, em conduzir um torneio e operar o mercado do esporte, era mais do que natural que os investimentos se esvaziassem. Como consequência, um produto desvalorizado. Nesta linha de pensamento, não surpreende um grupo de mídia ao longo destes anos todos atrair o interesse de patrocinadores de peso, uma vez que sabem que suas marcas terão o alcance necessário dentro de uma operação profissional com um produto (que não deixou de ser) espetacular, que mobiliza milhões de pessoas ao mesmo tempo e em todo o país: o jogo de futebol e tudo o que ele envolve. 

Atualmente observam-se “ventos de mudança” neste cenário. Muita coisa mudou, verificam-se gestões mais profissionais; mais entidades de prática e administração esportiva voltadas para o mercado; mais formação específica em Gestão do Esporte. E se discute e se reflete toda a consequência de anos de desserviço com o esporte do Brasil.

Portanto, quer seja por estética ou desvalorização da marca de um clube, por mais raso que seja o debate sobre a quantidade de patrocínios no uniforme, é processo por que o esporte do Brasil e especificamente o futebol precisa passar. A incredulidade e inconformismo são capazes de gerar ações que tragam credibilidade para a indústria do esporte no Brasil.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Ter ganhado muito no passado não garante nada no futuro”.
Bernardinho, treinador da Seleção Brasileira de voleibol

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O caos do São Paulo

Em nada me espanta o mau momento do São Paulo. O resultado dentro de campo é sempre reflexo de tudo o que acontece fora dele, em todas as esferas do clube. No mundo corporativo isso se chama cultura organizacional. Não seria chegar na final do Campeonato Paulista e começar “bem” o Brasileirão que mudaria um cenário melancólico e arcaico que atormenta o Morumbi há anos.
Começo falando especificamente da parte de campo. Qual o conceito de jogo que o São Paulo quer ter como clube? Não está claro para ninguém. Diego Aguirre foi demitido no dia 11 de novembro do ano passado. De lá para cá, Cuca é o terceiro treinador. André Jardine e o interino Vágner Mancini foram remendando trabalhos. Não há paciência e convicção para fazer algo a médio prazo no São Paulo. O sucesso deixa pistas. E nunca vi uma equipe vencedora ser formada da noite para o dia. Muito menos com tantas mudanças no comando. E com ideias de futebol sempre tão antagônicas.
No comando do futebol as coisas também se mostram muito confusas no tricolor. Contratações equivocadas são a tônica dessa e de recentes gestões. É claro que até os melhores analistas de desempenho do mundo falam sempre em errar o menos possível quando se forma um grupo de atletas. Porém, Raí e sua equipe têm abusado do direito de errar. E mais do que erros no que tange a parte técnica e até física dos jogadores, está mais do que clara a dificuldade em se formar um elenco mentalmente forte, com a inteligência emocional necessária para suportar um ambiente carregado pela ausência de conquistas. Em cima disso, não é de hoje que questiono se Raí tem as competências técnicas para estar a frente do departamento ou se está lá apenas porque seu histórico de ídolo blinda o presidente Leco.
E por fim, chego na parte política do São Paulo. A guerra declarada e pública de Leco com o seu vice, Roberto Natel, deixa claro que nem todos remam pro mesmo lado no Morumbi. O São Paulo hoje é um clube frágil financeiramente que por ter um viés tão político em sua gestão fica atrasado em termos de marketing, arrecadação e negociações.
Para montar um quebra-cabeça vitorioso no futebol todas as peças devem estar bem encaixadas. No tricolor, porém, a impressão que se tem é que cada setor do clube está agarrado à sua própria peça pouco se importando com o todo, com o desenho final do quebra-cabeça. Ok, é uma opção. Só que os resultados em campo irão traduzir isso. Como estão há tempos traduzidos no São Paulo. A sala de troféus, que não ganha novos itens, mostra bem isso.
 

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Sobre os espaços do futebol de rua

Crianças jogam futebol de rua: sem treinadores, sem árbitros, poucas regras. (Photo by Mario Tama/Getty Images | Reprodução: HuffPost)

 
Nos últimos meses, alguns dos meus textos neste espaço foram dedicados à rua, ao desenho daquilo que especialmente os professores João Batista Freire e Alcides Scaglia chamam, há algum tempo, de Pedagogia da Rua.
Algumas experiências recentes me mostram que persiste uma dificuldade de entendimento da rua, do seu significado, ainda que vários de nós sejamos herdeiros dela. Há quem associe, por exemplo, o futebol de rua com ‘malandragem’, no sentido pejorativo. Daí a necessidade de conversarmos mais sobre o assunto.
Nesta coluna, publicada uma semana após uma fala que Alcides e eu fizemos no Pint of Science– evento de divulgação científica realizado simultaneamente em todo o mundo – em que falamos exatamente da rua, gostaria de registrar três das reflexões que fiz por lá: a rua como espaço de metáfora, a rua como espaço de liberdade e a rua como espaço de descoberta.
Vejamos.

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Olhar para a rua como metáfora significa, basicamente, não olhar para a rua com olhos objetivos, positivistas. Significa, na verdade, olhar com olhos curiosos, relacionais, em certa medida poéticos, olhos metafóricos. Como sabemos, metáfora vem do grego metaphora, algo próximo de ‘levar além’. Ou seja, quando falamos da rua, precisamos ter claro que não falamos da rua literal.
Não falamos, portanto, da rua pela sua forma, mas da rua pelo seu conteúdo. Pois pensar na rua ao pé da letra pode trazer alguns equívocos importantes. Um deles é imaginar que a rua contém alguma espécie de substância mágica (um pó, como gosta de dizer o próprio Alcides) que faria dela transformadora e necessária. Se fosse assim, não precisaríamos conversar sobre Pedagogia, bastava encher os centros de treinamentos de asfalto, deixar os garotos e garotas sobre ele e dali brotariam craques e mais craques – e não é disso que se trata. Repare então que é possível falar de futebol de rua sem que se fale do futebol na rua (a foto que ilustra esta coluna é um exemplo). Da mesma forma, pensemos em uma fala de Ronaldinho Gaúcho, citada no ótimo ‘Futebol de rua: um beco com saída’ (Helder Fonseca e Julio Garganta), em que ele diz que além de jogar futebol com os amigos ‘também jogava horas sozinho com o meu cão, o Bombom, que era incansável. Com ele, tentei todas as fintas possíveis, para evitar que ele trincasse a bola, com excepção do ‘túnel’ [caneta], porque o Bombom tinha as patas curtas.’
Se estivéssemos desavisados e levássemos a rua ao pé da letra, então não me surpreenderia se alguém considerasse levar cães para os centros de treinamento, fazê-los marcadores, e talvez os macro e mesociclos ou mesmo as mensuráveis de complexidade fossem balizados, por exemplo, pelas raças dos cãezinhos, deixando os mais dóceis para a iniciação, os mais agressivos para o rendimento e por aí vai. É claro que o exemplo é absurdo, mas repare que alguns absurdos estão cada vez mais naturais – alguns deles sob o veu do suposto progresso.
Portanto, a rua é espaço de metáfora, não do literal.

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Isto dito, vamos pensar na rua como espaço de liberdade. Para isso, vamos pensar em pelo menos três características da rua que estão deslocadas em outros processos formativos. Na rua, em primeiro lugar, não há árbitros. Ou melhor, até há, mas os árbitros e árbitras são as próprias crianças, são os pequenos e pequenas que aprendem, a partir do jogo, a mediar os próprios conflitos. Isso ganha uma dimensão especial quando lembramos que I) na rua não há faixas etárias; II) a rua é pública, é do povo, de modo que todos os temperamentos e personalidades cabem, e é preciso enfrentá-las; III) o principal vetor de negociação não é a retórica, mas a lida com a bola. Neste sentido, parece claro que a rua apresenta uma dimensão para além da futebolística, apresenta uma dimensão moral decisiva na formação humana de quem dela bebe.
Em segundo lugar, na rua não há treinadores – não neste sentido pragmático a que nos acostumamos. Aqui, gostaria de fazer uma provocação, encontrada no mesmo livro Futebol de Rua, a que me referi acima, vinda do sempre ótimo Jorge Valdano. Para ele, ‘a experiência diz-me que introduzir um treinador no processo de ensino de uma criança antes dos quatorze anos é muito útil para os jogadores medíocres e fatal para os jogadores excelentes.’
A crítica de Valdano, é claro, não vai a todos os treinadores, mas vai aos treinadores ansiosos, que querem controlar o jogo a todo custo, que querem controlar os movimentos das crianças, querem controlar a posição (seja lá o que se entende por posição), querem controlar a bola, querem controlar. E na ânsia do controle, as crianças se atrofiam, o espaço se esvai, a bola escapa, o jogo corre. Assim, a rua é um espaço de liberdade tático-técnica e a ausência de treinadores, no caso da rua, pode ser benéfica para a formação de uma autonomia futebolística que em certa medida incomoda, pois o bom jogador de rua, o bom jogador, também carrega um quê de irresponsabilidade.
Por fim, a rua não está repleta de regras, a rua tem muito menos regras do que as dezessete (além do vídeo) do jogo formal. A tese de doutorado recentemente defendida pelo colega João Claudio Machado discute o quão desinteressantes (do ponto de vista metodológico) podem ser os jogos cheios de regras, cheios de detalhes, que tendem a expressar, diretamente ou não, aquele controle de que falamos acima. E aí perdemos a mão em um dos pontos mais básicos quando pensamos na formação de jovens: é preciso deixar as crianças jogarem.
Aqui, portanto, a rua se consolida como um espaço de liberdade.

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Por fim, a rua é um espaço de descoberta. Mas descoberta de quê? Ao meu ver, descoberta de duas coisas: do jogo e de si.
A rua é descoberta do jogo porque – e é menos óbvio do que parece – na rua se joga. Na rua não se dribla cones, não se busca a técnica perfeita pela repetição descontextualizada, não se coloca a técnica acima de tudo, na rua não se faz outra coisa além de jogar – com todos os constrangimentos que isso significa. Jogar é mergulhar no imprevisível, no contingente, no relacional, na surpresa, na finitude, no desconforto, jogar é mergulhar no erro e é exatamente por isso que jogar também é mergulhar rumo ao acerto. E aos poucos, ao tempo de cada um, o jogo vai sendo des-coberto, vão se tirando as coberturas, e des-cobrindo o jogo jogado (e não pedaços dele) as crianças se enchem de um léxico futebolístico invejável, que nos ajudou a formar tamanhos craques durante tanto tempo.
Da mesma forma, a rua é descoberta de si, exatamente porque não existe a técnica perfeita, não existe a decisão correta (no singular), não existe nada no singular, mas existem caminhos, decisões plurais que nos levam ao mesmo lugar, existem formas diversas de enxergar e sentir o jogo que fazem com que, antes de tudo, o jogador precise olhar para dentro, precise encontrar-se a si mesmo, ao invés de se desencontrar. Jogar bem futebol, e faço aqui uma analogia com o Nietzsche, é tornar-se quem se é – o que é tarefa muito mais difícil do que parece.
E sobre isso falamos melhor em breve.
 

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Imediatismo: grande inimigo do (futebol do) Brasil

Há uns dias chamou a atenção uma fala de Quique Setién, antigo treinador do Real Betis, da Espanha. Falava sobre o peso da vitória nos dias de hoje, do triunfo a qualquer custo e que vencer é o mais importante. Estava preocupado sobre a maneira como isto é transmitido para a juventude. Além do imediatismo na busca pelos resultados. Não se esquivou da importância da vitória e de que é isso que todos querem, mas que, entre estes todos, só um vence. Dentre os diversos pontos que aborda, fala sobre ganhar fazendo o que é correto.

Em outras palavras, o último período do parágrafo anterior remete ao método. Logo, deduzimos que é sobre a identidade de uma equipe de futebol, em “como se vai jogar para ganhar”. Qual a identidade de jogo do grupo que a comissão técnica e o elenco julgam ser a correta, dentro das potencialidades dos colaboradores e da diversidade dos recursos humanos que se tem, a fim de conferir entrosamento ao plantel. É capaz de imprimir espécie de marca registrada na condução da partida, que em momentos de vitória fica muito mais verificada.

 

Seleção da Copa do Mundo de 1982 não foi campeã (o resultado), mas é sempre lembrada. (Foto: Divulgação)

 

Bom, antes de tudo, isso requer tempo. No futebol do Brasil, Quique Setién teria um ataque de nervos: tempo é luxo. Infelizmente. Não somente pelo imediatismo e a busca por resultados a todo custo, mesmo pela maneira incorreta. Mas pela ausência de tempo para criação e inovação. O desenvolvimento passa pela capacidade de criar e inovar. É assim na ciência. É assim na economia. É assim na indústria. Como fenômeno social, é assim também no futebol. Se há lugar para mais trabalhos de longo prazo, sem ‘imediatismos’ ou soluções ‘sem espírito’, há um ambiente propício para a reflexão, discussão em conjunto e, consequentemente para a inovação e criação. Diferente de um cenário de imposição, que é feita sobretudo quando falta tempo.

Ganhar nunca deixou de ser importante e não vai deixar de ser. Agora, como ganhar é ainda mais importante. Esta coluna evita comparações e nem quer desmerecer um triunfo, mas quando se lembram das conquistas da seleção masculina de futebol, no tri e no tetracampeonato, em 1970 e 1994, respectivamente, a mais antiga é mais lembrada. Sim, pelo modo como se construiu o título. Nesta linha de pensamento, um elenco que nem foi campeão é talvez ainda mais lembrado que o de um título mundial, como foi com o de 1982, na Espanha.

Um ambiente com mais oportunidades para criar, inovar e, consequentemente, desenvolver, é extremamente fértil para aumentar as potencialidades do esporte. Cada grupo encontrará o seu método que vai conduzir a um estilo e identidade do jogo. Como resultado: futebolistas com uma formação mais ampla, conscientes dos papéis dentro e fora de campo e jogos muito mais atraentes para o público.

Portanto, os imediatistas sempre vão dizer: “ah, mas bola não entrou, não adianta nada”. Bom, o futebol explica um país, muitos dizem. Os que isso dizem devem ser os mesmos que compartilham discursos e políticas evasivas, desprovidas de método para a construção de um Brasil que seja reconhecido pela excelência nos indicadores sociais, políticos e econômicos.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

O verdadeiro patriota é aquele que dedica a sua mais alta lealdade à tria não como ela é, mas sim ao que ela pode e deve ser”.
Albert Camus, filósofo francês, ex-futebolista(1914-1960)