Não nasci Bernardo. Adotei-o como alcunha por soar bem com eremita, minha condição atual, desde que compartilho o fundo desta caverna com uma variada fauna das trevas, entre ela um minúsculo mamífero que me serve de conselheiro espiritual e morcego correio. O quiróptero chama-se Oto, em homenagem a ninguém e sem qualquer alusão; apenas porque o nome me lembrou um morcego, ou porque o morcego me lembrou um nome. É com Oto que converso horas e dias a fio, posto que não há viva alma por aqui, a não ser alminhas inocentes de meus soturnos vizinhos. Se mantenho algumas ligações com o conturbado mundo do futebol, devo-o a Oto, meu minúsculo mensageiro.
Para que entendam o que faz um eremita quebrar seus votos, conto o fato que o precipitou. Tempos atrás recebi, para quem vive numa caverna, um insólito presente, trazido por um dos poucos amigos que me restaram. Acordei certa manhã com gritos à entrada. Atravessei os trinta ou quarenta metros de galerias que me separam dela para atender a voz insistente e remotamente conhecida. Não o autorizei a entrar, mas deixei-o falar. Trazia o aparelho, disse, em reconhecimento a um antigo favor que eu lhe fizera, graças ao qual por pouco não se tornou futebolista de profissão. Ora, não precisava agradecer, disse-lhe. Apenas ensinei-o a cortar caminhos no campo, de modo a evitar o cansaço correndo como bobo atrás dos adversários.
O aparelhinho luminoso serviria para alimentar meu antigo gosto pelo esporte bretão. E também para me animar a escrever uma ou outra linha sobre as coisas que eu veria e ouviria na tela do dito aparelho de televisão. Uma armadilha bem urdida, para me tirar do claustro. Mas, como poderia eu recusar tão pequeno favor ao menino João Paulo? Por isso, cá estou, trazido pelas asas do bom e fiel Oto, horas de confabulação com ele após o match que assistimos juntos no sábado.
O que motivou nossa conversa foram os comentários tenebrosos de afamados locutores, dois em especial. No primeiro dizia o arauto da bola que a defesa do chute à queima-roupa devia-se a um ato de puro reflexo do goalkeeper. O segundo comentário referia-se a um gol perdido, cara a cara, pelo centroavante, motivado por sua atitude infame de fechar os olhos no momento exato do cabeceio. Mantivesse os olhos abertos, insistia, e a bola teria se aninhado no fundo das malhas.
Fui aos alfarrábios, que por aqui são poucos e embolorados. Dei tratos à bola, não menos que 40 minutos, auxiliado por Oto. Dada minha consideração histórica pelos locutores de futebol – tenho uma foto de Fiori Gigliotti pendurada no teto da caverna -, não poderia emitir opinião precipitada. Oto não seria tão condescendente. Concluí, enfim, pelo pior: nosso glorioso porta-voz incorrera em equívoco, dos graves, arrastando ao erro, dada sua notória influência, milhões de telespectadores. Resumindo: o homem trocou as bolas.
Senão, vamos às provas.
Prezado leitor, com a devida cautela, e sem faltar-lhe com o respeito, submeta-se ao seguinte teste: peça para que arremessem, na exata direção de sua testa, uma bola, qualquer que seja seu tamanho. Macia, de preferência, para evitar contusões. Percebendo o projétil se aproximar a vinte, trinta quilômetros por hora, seu organismo mobilizará um mecanismo automático de proteção, um reflexo, e suas pálpebras se fecharão no momento do contato. Graças a isso, os órgãos mais preciosos de seu rosto, os olhos, manterão a integridade. No futebol, aquela grande esfera pesada se aproxima, geralmente, a velocidades bem maiores. Somente com enorme esforço para manter a consciência, um ou outro futebolista permanecerá de olhos abertos. Inutilmente, uma vez que, no momento do impacto com a bola, a direção que ele pretende dar a ela já estará definida.
Portanto, meu prezado jornalista, o jogador fecha os olhos para executar o cabeceio, não porque quer, mas involuntariamente. Reflexo é uma reação involuntária a um estímulo externo. Pode ser inato ou condicionado. No caso do nosso centroavante, é inato, e sinal de saúde.
Passemos à outra pérola. Reagisse nosso guarda-valas com um comportamento reflexo, como pretendia nosso afamado locutor, cairia ele em desgraça, ovacionado aos gritos de “frangueiro, frangueiro”, pela massa enfurecida das arquibancadas.
Meu querido locutor. Lamento contradizê-lo, mas o ato do goleiro em questão foi voluntário, ele saltou e defendeu a bola porque quis. Se há, em sua ação, movimentos automáticos, é pelos mesmos motivos pelos quais seu pezinho direito, prezado arauto, está neste exato instante balançando à revelia de sua vontade.
Suponhamos, meus caros leitores, que um belo dia um homem adulto, na infância um garoto sonhador, sendo goleiro, e dos bons, veja-se de repente desprovido de vontade própria. No meio de um jogo, subitamente, passa o eficiente goalkeeper a saltar sempre do mesmo jeito, por puro reflexo. A cada chute dos avantes, cai nosso homem sempre para o lado direito. Por sorte, o primeiro petardo ele defende; os demais, todos para a esquerda, estufam as malhas. Ao ser substituído pelo desesperado técnico, o placar já anota 5 a 0… para o adversário.
Que terrível troca de bolas: aquilo que era reflexo, nosso afamado locutor pretendia que fosse voluntário (os olhos fechados no cabeceio). O que era voluntário (a defesa do goleiro) ele queria que fosse reflexo.
Com tantas corujas e falcões pelo caminho, nem mesmo sei se o pergaminho que lhes envio chegará ao seu destino. Se o estão lendo é porque Oto sobreviveu.
* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.
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