Existe no futebol um discurso antigo que persegue os jogadores de defesa na marcação dentro da área penal nas situações de escanteio.
Segundo ele (o discurso), o jogador que faz a marcação tem que ficar “de olho” no adversário a ser marcado por ele, e não na bola. Numa versão “mais evoluída” ele propaga e ecoa nos quatro cantos do campo de jogo, dos estádios e dos aparelhos de TV que “o jogador que marca no escanteio tem que ficar de olho no adversário a ser marcado mas com atenção à bola”.
Pois bem. Para debater a respeito daquilo que propõe as entrelinhas do “discurso”, recorro, abrindo um parêntese, a uma brincadeira/jogo de infância e pré-adolescência em que eu e meus amigos inspirados nos seriados da época encarnávamos personagens e criávamos um mundo paralelo de diversão; era a brincadeira/jogo de “polícia e ladrão”.
No jogo de “polícia e ladrão”, formávamos duas equipes com mesmo número de jogadores. Uma equipe (a dos “ladrões”) fugiria pela extensa área do condomínio onde morávamos e a outra (a dos “policiais”), depois de um tempo pré-determinado para que os “ladrões” fugissem e se escondessem, sairiam em busca de “capturá-los” e levá-los até a prisão (a prisão era um círculo de uns 10 metros de diâmetro desenhado no chão do playground do condomínio).
Era uma versão sofisticada do tradicional “pega-pega”. Para pegar bastava encostar a mão em quem fugia.
Toda vez que um “ladrão” fosse pego, era imediatamente conduzido para a “prisão”. Na prisão, poderia ser salvo. Bastava, para isso, que um dos jogadores da sua equipe que ainda estivesse livre, entrasse na prisão e encostasse a mão nele.
A brincadeira/jogo durava horas e a todo o tempo “policiais” e “ladrões” precisavam se ajustar as novas condições do jogo. Quando um “ladrão” era pego ao menos dois “policiais” eram remanejados para cuidar da prisão (caso contrário, corriam-se maiores riscos de que dois ou mais “ladrões” livres viessem tentar salvar seu companheiro, obtendo êxito).
Então, a cada necessidade imposta pelo jogo, uma nova organização (auto-organização) era estabelecida pelas equipes.
Normalmente, a equipe dos “policiais” se distribuía igualmente pelas áreas do condomínio; e nas redondezas da prisão ocupava pontos estratégicos para impedir as tentativas de salvamento. Os “ladrões” por sua vez tentavam alternar ataques a prisão com momentos de fuga e esconderijo, de acordo com as necessidades da equipe; diminuindo substancialmente os ataques a prisão conforme aumentava o número de “ladrões” presos.
Pois bem, exposta a brincadeira/jogo, voltemos ao discurso, nas suas duas versões.
Quando uma equipe tem a seu favor um escanteio, tem a chance de aproximar rapidamente bola e alvo, com uma distribuição já estabelecida de jogadores de ataque dentro da área penal ofensiva. Quando a bola é cruzada dentro da área, o objetivo máximo é finalizá-la a gol o mais rápido e com a maior eficácia possível.
Para a equipe que se defende, o escanteio ofensivo adversário é uma situação de perigo iminente e onde afastar a bola da meta defensiva é uma das prioridades.
Quando brincávamos/jogávamos de “polícia e ladrão” eu e meus amigos, ainda muito jovens tínhamos claro que quando éramos “polícia”, a melhor maneira de proteger a “prisão” (o alvo) do ataques dos “ladrões” era manter posições que garantissem uma distribuição equilibrada no terreno do jogo (obviamente não tínhamos a menor idéia do que significava “manter posições que garantissem distribuição equilibrada no terreno de jogo“; mas intuitivamente fazíamos).
Eram raríssimas as vezes que os “ladrões” tinham êxito.
Não, não, não, senhores!!!
Não estou propondo que a partir de uma brincadeira/jogo de criança mudemos algo no tão “jogo” como o futebol.
Mas façamos uma reflexão; não seria possível organizar a marcação no escanteio defensivo, para ao invés de priorizar o adversário como referência, orientar-se pela ocupação inteligente do espaço de forma a ter jogadores que possam chegar rapidamente à regiões de importância da área de meta – para no mínimo disputarem a bola e atrapalharem (dificultarem) a finalização adversária?
O que quero dizer em outras palavras é que havendo uma distribuição equilibrada, inteligente do espaço, não será necessário perseguir jogadores pela área; isso porque a distribuição dos jogadores que marcam garantirá que se tenham sempre jogadores na região em que a bola foi/for/ou será cruzada, independente de qual seja essa região.
Pensemos nisso.
E para que vocês senhores, não achem que isso é brincadeira de criança, sugiro acompanharem ao menos um jogo do Liverpool FC (que tal Liverpool vs Real Madrid dia 10 de março pela UEFA Champions League?), que tem dado um bom exemplo de como impedir o “ataques dos ladrões” a sua meta defensiva nos escanteios.
Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br