Minha intenção inicial para o texto desta semana, era a de discutir uma interessante declaração do treinador da equipe do Internacional de Porto Alegre, Jorge Fossati, que disse recentemente que seu esquema tático preferido é o 1-3-4-2-1 (que as pessoas confundem, segundo ele, com o 1-3-6-1).
Basicamente, iria explorar o fato, de que apesar de em uma foto estática (como na figura que segue), aparentemente, a ocupação dos espaços do campo de jogo ser igual para os esquemas táticos 1-3-6-1 e 1-3-4-2-1, na verdade, as dinâmicas que regem cada uma de suas linhas fazem com que eles (os esquemas) apresentem identidades de jogo bastante diferentes.
Porém, vou pedir licença aos leitores, para reproduzir na sequência, uma interessante entrevista, do treinador José Mourinho, em uma das poucas oportunidades em que responde perguntas a um entrevistador brasileiro (Paulo Roberto Falcão).
A entrevista foi publicada pela edição eletrônica do jornal Zero Hora (http://zerohora.clicrbs.com.br) de 06 de fevereiro de 2010, e segue na íntegra, logo abaixo:
Mourinho: “O craque? O craque é a equipe!”
Em passagem pela Itália, Paulo Roberto Falcão entrevistou José Mourinho, técnico da Inter de Milão e um dos treinadores mais respeitados do mundo
– Paulo Roberto Falcão
Estive na Itália na semana passada e me encontrei com José Mourinho, o mais respeitado treinador europeu da atualidade e certamente um dos melhores do mundo. Aos 47 anos, ele comanda a Inter, de Milão, lidera o campeonato italiano, fala cinco idiomas e ganha mais de 10 milhões de euros por ano. Campeão da Uefa e da Liga dos Campeões pelo Porto entre 2002 e 2004, Mourinho foi contratado a peso de ouro pelo Chelsea da Inglaterra e elevou ainda mais sua cotação ao ganhar dois títulos nacionais (2005 e 2006) depois de 50 anos de abstinência.
Em junho de 2008, assumiu a Inter, já tendo conquistado o título da Série A na temporada da Itália e a Supercopa da Itália. Na Inter, ele comanda os brasileiros Júlio César, Maicon, Lúcio e Thiago Motta. Português de Setúbal, filho de um goleiro do União de Leiria, Mourinho chegou a tentar a carreira de jogador, sem muito sucesso, mas formou-se em Educação Física, fez vários cursos para treinador e começou a deslanchar ao ser contratado pelo Sporting de Lisboa para ser o tradutor do técnico inglês Bobby Robson, com quem manteve parceria também no Porto e no Barcelona. Depois, ainda no Barça, foi treinador adjunto do holandês Van Gaal, antes de voltar para Portugal já como técnico principal, primeiro de Benfica e União de Leiria, e posteriormente do Porto, com o qual conquistou seus primeiros títulos europeus. É um estudioso do futebol, um estrategista, um gestor de pessoas e um profissional extremamente meticuloso, como se pode ver nas respostas às 20 questões que lhe apresentei.
Falcão – Você é considerado, ao lado de Alex Ferguson, o mais reconhecido treinador europeu. Importa ser o número 1? Como você vê esta questão?
Mourinho – O número 1 é uma coisa muito relativa. Quem ganha mais vezes é o número 1. Ferguson ganha há 30 anos. Eu ganho há sete anos. Guardiola ganhou tudo à época (temporada) passada. E há ainda outros que foram ganhando coisas importantes. Mas o importante é estar no topo muito tempo.
Falcão – Você teve forte influência de Bobby Robson no início da carreira. Considera-se um seguidor de suas ideias? Que outros profissionais o inspiraram?
Mourinho – Bobby Robson foi um senhor do futebol e eu um sortudo por trabalhar com ele. Futebolisticamente temos poucos pontos em comum. Em comum, a paixão pelo futebol e a consciência de que o aspecto psicológico é fundamental.
Falcão – Futebol europeu e sul-americano: ainda há diferenças acentuadas na sua opinião ou a globalização do futebol misturou tudo? Se há diferenças, quais são, quem leva alguma vantagem?
Mourinho – Futebol é futebol. Mas as diferenças culturais são importantes. Não há dois futebóis iguais. O talento na América do Sul nasce todos os dias, mas a organização tática e a intensidade do jogo são muito mais altas na Europa. Pelo clima, pela personalidade, pela cultura, pelos árbitros. Há tantos fatores que condicionam e fazem o futebol diferente em todo o mundo.
Falcão – Os treinadores brasileiros não têm tido a mesma sorte dos jogadores no futebol europeu. Wanderley Luxemburgo não teve sucesso no Real Madrid, Luiz Felipe teve mau desempenho no Chelsea. Por que na sua opinião?
Mourinho – Os jogadores têm mais tempo para se adaptarem. Os treinadores, quando o resultado não é imediato, saem logo, quase sem ter tido tempo para perceber onde estavam, e as suas necessidades de adaptação à realidade nova. O talento dos jogadores, desde que modelado às exigências da intensidade e do rigor tático europeu, vem sempre acima, e todos sabemos que o inato, o dom, o talento que Deus deu, existe aos quilos no jogador sul-americano que, depois, enquadrado com as características do jogador europeu, faz um produto final de grande qualidade. O problema do treinador sul-americano na Europa, se calhar, será o mesmo tipo de problema que um treinador europeu pode sentir para treinar na América do Sul.
Falcão – Você ainda tem entre suas metas treinar a seleção de Portugal?
Mourinho – Sim… mas quando for velhinho. Adoro treinar e jogar, adoro treinar todos os dias e jogar grandes jogos todas as semanas. Quero continuar ao mais alto nível em Espanha, Inglaterra ou Itália. Na seleção, está-se muito tempo de férias. E eu, sem futebol, não sou feliz.
Falcão – Portugal tem chances na África do Sul? Você, que trabalha com jogadores da Seleção Brasileira na Inter, acha que a diferença técnica entre as duas seleções é grande?
Mourinho – Portugal tem chance porque num torneio de curta duração tudo pode acontecer. Mas, objetivamente, há seleções com mais talento em quantidade. Portugal tem jogadores top, mas não 22. Não comparemos Portugal com o Brasil, porque o Brasil pode fazer três seleções iguais. Mas, num jogo, Portugal pode ganhar ao Brasil. Futebol não é matemática, onde dois mais dois são sempre quatro.
Falcão – Quem são os seus favoritos para a Copa do Mundo?
Mourinho – Os de sempre. Os que têm na sua história alguma Copa. E a Espanha, que tem uma estrutura de base muito forte, com jogadores de meio campo e ataque fantásticos.
Falcão – Você passa as férias em Salvador e tem vários jogadores brasileiros na Inter. De onde vem esta ligação com o futebol brasileiro?
Mourinho – Desde sempre o futebol italiano teve jogadores brasileiros, alguns verdadeiramente top. E quem ama futebol, quem ama talento, quem pensa que sem talento não há futebol, obviamente se sente ligado ao futebol brasileiro, o maior produtor de talento.
Falcão – Apesar de contratarem dezenas de jogadores brasileiros, os europeus às vezes passam a impressão de conhecer tão pouco clubes e futebol brasileiro. Isso é real? Por quê?
Mourinho – Enquanto trabalhei na Inglaterra saí um pouco do controle do futebol brasileiro porque na Inglaterra o jogador não comunitário só pode entrar depois de ser já consagrado, mas em Portugal há sempre a necessidade de pesquisar no Brasil, principalmente em clubes onde o jogador não está ainda inflacionado
. Recordo que o meu primeiro clube como treinador, a União de Leiria, de onde saltei depois para o FC Porto, estive no Brasil um mês a saltar de campo em campo, de clube em clube, de treino em treino, de Estado em Estado. Encontrei jogadores com ambição e talento, que em Portugal fizeram um grande trabalho e me ajudaram a ter sucesso. É preciso trabalhar na prospecção, e no Brasil encontra-se talento.
Falcão – A Fifa costuma eleger o melhor jogador do mundo a cada fim de ano. Por que os grandes jogadores que estão fora da Europa nunca são selecionados?
Mourinho – Boa pergunta. Talvez porque os grandes jogadores que não estão na Europa são logo contratados. Com quantos anos veio Ronaldo para a Europa? E o Roberto Carlos? E o Kaká? E o Maicon? Saem muito cedo e no momento da maturação já estão com a camisa de um grande clube europeu.
Falcão – As suas biografias que circulam na internet lhe dão dois rótulos: genial e arrogante. Você aceita algum deles? Como se autodefine?
Mourinho – Sou José Mourinho, com suas qualidades e defeitos. Mas no futebol estou para servir o meu clube e os meus jogadores, não para ser simpático ou político. Fora do futebol, sou uma pessoa diferente, mas muito fechado à minha intimidade e autonomia.
Falcão – Qual a sua ideia de formação tática? Tem um esquema preferencial? Três zagueiros?
Mourinho – Penso que o mais importante é uma formação adaptada às características dos jogadores e adaptada às necessidades da competição que se joga. Um treinador deve ter a cultura tática suficiente para saber treinar e jogar de um modo que se adapte aos jogadores. O mais importante é o jogador sentir-se feliz e confortável no modo como a equipe joga e nas funções que o treinador decide.
Falcão – O trabalho tático é fundamental ou não é tão necessário quando uma equipe é experiente como a sua Inter?
Mourinho – Trabalho tático é fundamental. Uma equipe deve estar em campo segura, os jogadores devem saber o que fazer em todos os momentos do jogo. E de jogo para jogo surgem fatores novos, e devemos reduzir ao máximo essa imprevisibilidade. Trabalhar taticamente sempre.
Falcão – Você costuma treinar em sigilo, sem a presença da imprensa no treino? Em que isso ajuda?
Mourinho – Gosto de trabalhar tranquilo, sem a presença de adeptos (torcedores) ou imprensa. Acho que na hora dos feedbacks em que, por vezes, o treinador critica ou ensina o seu jogador, a intimidade dá muito maior segurança ao jogador. No entanto, reconheço que o trabalho da imprensa deve ser respeitado, e a paixão dos adeptos deve ser alimentada. Por isso procuro de vez em quando abrir o treino.
Falcão – No futebol atual, é indispensável que todos marquem? O craque do time precisa marcar?
Mourinho – O craque? O craque é a equipe! Ganhamos todos e perdemos todos. Somos todos iguais. Não digo marcar, não digo que um atacante deve recuar 30 metros para marcar. Mas trabalhar, devem trabalhar todos. E um atacante pode trabalhar se pressionar o seu adversário na frente. Sem correr muito, pode atrasar a saída do adversário para o contra-ataque. Sim, sim, temos todos que trabalhar.
Falcão – Nesta questão da aplicação coletiva, há diferença entre jogador sul-americano e europeu?
Mourinho – Não vejo diferença. Já tive de tudo, europeu que trabalha e joga para o coletivo, europeu egoísta, egocêntrico, sul-americano que morre em campo pelo coletivo, sul-americano com dificuldade de percepção do trabalho coletivo. Mas, com honestidade, empatia e trabalho, penso que todos podem exprimir o seu talento num enquadramento coletivo de base.
Falcão – O número de atacantes é importante, ou interessa mais que vários jogadores cheguem na frente na hora certa?
Mourinho – A ocupação do espaço ofensivo é determinante. Como? Com jogadores mais fixos, com jogadores mais móveis, com ataque planejado e homens-referência no ataque, com jogadores de mobilidade e velocidade que chegam a posições ofensivas em momentos de transição após recuperar a posse da bola. Digamos que para chegar ao estádio o adepto (torcedor) pode ir de carro, a pé, de bicicleta, de ônibus. O importante é mesmo chegar ao estádio.
Falcão – Há alguma regra do futebol que você gostaria de modificar?
Mourinho – O tempo útil. Bola fora, cronômetro parado. Jogador lesionado, cronômetro parado. Bola na arquibancada, cronômetro parado. Gandula esconde bola, cronômetro parado. Assim, o jogo deixaria de ter estas artimanhas que o fazem menos bonito e menos honesto. E, claro, a câmara de baliza óbvia. Nesta indústria, não é possível ganhar ou perder um jogo com uma bola que não entrou.
Falcão – Jogador rico, milionário, consagrado, é mais difícil de administrar?
Mourinho – Não, não. Honestidade, motivação, paixão não têm que ver com dinheiro nem estatuto.
Falcão – Depois de trabalhar em Portugal, na Inglaterra e na Itália, qual é a sua meta na carreira?
Mourinho – Trabalhar e ganhar sempre nos campeonatos de top, Itália, Espanha, Inglaterra. E ser feliz no que faço, levantar de manhã e ir a sorrir treinar, estar a 10 minutos do início do jogo e sentir a emoção de jogar. “O craque? O craque é a equipe!”.
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