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Memória afetiva – as lendas que o futebol conta

O esporte tem uma capacidade incrível de criar lendas. É um traço fundamental do segmento, e talvez isso não seja igualado por nenhuma outra seara. A literatura e o cinema, por exemplo, mais se apoderam de feitos do que os disseminam.

Basta pensar no primeiro treino de Garrincha no Botafogo, em 1953. O ponta direita acabou com Nilton Santos, lateral esquerdo que já era um dos maiores do país, e o desempenho fantástico foi visto por milhões de pessoas. Duvida? Basta perguntar a qualquer um que era vivo na época e ver quantos vão dizer que estavam lá.

O mesmo acontece com um gol de Pelé contra o Juventus, marcado na Rua Javari, que o próprio Rei considera o mais bonito da carreira. O jogo não foi sequer televisionado, e o documentário “Pelé Eterno” precisou reconstituir digitalmente o lance. Ainda assim, considerando a quantidade de gente que diz ter visto in loco, o acanhado estádio da capital paulista devia ter mais gente nas arquibancadas do que o Maracanã na decisão da Copa do Mundo de 1950.

O mais curioso é que essas “testemunhas” têm uma memória afetiva extremamente exagerada. Já ouvi relatos de que o treino de Garrincha foi “uma das maiores exibições de um jogador na história do futebol” e “um dos maiores bailes que um lateral já levou”. E isso foi contado, é claro, por pessoas que estavam lá no dia.

Essas lendas que o esporte cria afetam diretamente algumas análises sobre o jogo. No último fim de semana, por exemplo, ouvi de quatro comentaristas diferentes a mesma história. Todos eles usaram a seleção brasileira de 1970 para questionar a escalação de times atuais.

A história que eles contaram é que o técnico da equipe brasileira na Copa do Mundo daquele ano, Mário Jorge Lobo Zagallo, ousou encaixar Gerson, Jairzinho, Pelé, Tostão e Rivellino no time, a despeito de eles estarem acostumados a desempenhar funções parecidas em seus clubes.

O recado que Zagallo passou, segundo os comentaristas, é que craques sempre têm espaço e que sempre é possível aglutiná-los na equipe. Essa tese foi usada por comentaristas de São Paulo no fim de semana para falar sobre Palmeiras, Santos, São Paulo e até o Barcelona.

No Palmeiras, Bruno Cesar e Valdivia estiveram juntos pela primeira vez na formação titular. Eles foram armadores em um time que teve Leandro e Alan Kardec como atacantes. O Santos improvisou Gabriel como meia em uma equipe que teve Rildo, Geuvânio e Leandro Damião na frente. A discussão no São Paulo é sobre qual a posição ideal para Alexandre Pato, contratado neste ano. No Barcelona, questiona-se a viabilidade de Messi e Neymar como dupla ofensiva.

A resposta dos comentaristas para todos os casos é que sempre é possível acumular craques. Afinal, Zagallo fez isso em 1970.

Sempre que eu ouço esse tipo de ilação, penso em uma frase atribuída a Albert Einstein: “Loucura é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Há três aspectos fundamentais que devem ser considerados na decisão de Zagallo: o perfil dos jogadores que ele reuniu, o quanto eles estavam dispostos a sacrificar individualidades pelo time e a realidade do futebol daquela época. O esporte praticado em 1970 simplesmente não existe mais.

Usar o passado como forma de explicar o presente é um artifício válido em muitos momentos. Em algumas situações, e esse é um caso, trata-se de uma muleta rasa e que acaba desviando o foco das reais discussões.

As “posições de origem” dos jogadores são apenas dados para preencher fichas. O mais importante é saber o que eles podem fazer e o que eles estão dispostos a fazer pelo time.

O técnico Pep Guardiola dá exemplos constantes disso. No Bayern de Munique que ele comanda, Philipp Lahm é lateral direito, lateral esquerdo, primeiro volante ou armador. Thiago Alcántara e Bastian Schweinsteiger também passeiam por várias posições do meio, e Thomas Müller pode ser armador central, meia pela lateral ou até centroavante.

Quando Guardiola coloca Thiago em campo, portanto, ele pode fazer uma alteração defensiva, uma mudança ofensiva ou até ambos. O meio-campista da seleção espanhola é um símbolo perfeito do quanto é possível adaptar uma peça a diferentes funções do jogo.

No Barcelona, é impossível recorrer a Zagallo de 1970 para dizer que o time é obrigado a encaixar Messi e Neymar. Os dois são finalizadores de jogadas, agudos, e qualquer discussão precisa considerar fatores como esse. Quando estão juntos no setor ofensivo catalão, ambos precisam mudar um pouco o estilo e dividir as conclusões de lances.

Isso não quer dizer que os dois tenham de disputar um mesmo espaço no Barcelona. Usar a goleada dos catalães por 7 a 0 sobre o Osasuna, com três gols de Messi e Neymar afundado no banco de reservas, seria simplista e “resultadista”.

O ponto é que não existe uma resposta pronta para o problema do técnico Gerardo “Tata” Martino. É impossível ter como único parâmetro o Zagallo de 1970 ou a goleada do último domingo.

Futebol, como cansa de dizer o gênio Tostão, é uma síntese da vida. É um jogo complexo, sobretudo porque envolve gente. E nós temos uma tendência impressionante de simplificar comportamentos, ideias e atitudes. Isso vale também para o esporte.

O esporte cria lendas, como o primeiro treino de Garrincha, o maior gol de Pelé ou a seleção de 1970. Na memória afetiva das pessoas, tudo isso tem valor maior do que o real. A questão é que quem analisa futebol não pode ser guiado por coisas como a memória afetiva.
 

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Rivaldo sem rival

Um dos três melhores jogadores da Copa de 98, quando ele foi vice.

Um dos três melhores jogadores da Copa de 2002, quando ele foi penta.

Poderia ter sido tetra, em 1994, não fosse um mau semestre pelo Corinthians.

Coisa que aconteceu na vida dele, de qualquer brasileiro comum, simples, modesto, humilde. Como ele foi mal em 96, na Olimpíada, em Atlanta. Depois de ralar a bola pelo espetacular Palmeiras do primeiro semestre daquele ano.

Quando se criou a bobagem de que ele não era na Seleção o craque que foi pelos clubes onde passou.

Melhor do mundo em 1999 pelo Barcelona, era detonado mesmo brilhando pelo Brasil, como nos 4 a 2 contra a Argentina, em Porto Alegre.

Quando não vinha bem, era cobrado mais que o normal. Como foi xingado no Morumbi, em 2000, na estreia de Leão na Seleção. Ele não foi vaiado. Foi xingado! No estádio onde brilhou pelo Mogi Mirim, de 1992 a 1993. Pelo Corintthians no segundo semestre daquele ano, onde até de libero atuou.

Como venceria quase tudo pelo Palmelras, de 1994 a 1996. Quando foi para o La Coruña fazer temporada tão boa que fez com o Barça por ele pagasse a multa rescisória e ganhasse um jogador especial. Como centroavante do Santa Cruz na Copa SP de 1992. Como meia, quase ponta do ótimo Mogi de Vadão. Como tudo pelo Palmeiras e pelo Barcelona. Pelo Brasil de 98 e 02. Trocando de posição. Nem sempre jogando na dele. Mas sempre na dele. Impondo-se pela bola. Mais que pela boca.

Como disse meu amigo Menon: muitos têm carisma. Nem todos têm caráter.

Rivaldo tem. Craque de caráter. Homem de palavra. Humildade como deve ser – virtude. Vontade de jogar bola admirável como a técnica, a capacidade tática, a superação física.

Não conseguia parar. Não conseguia fazer o que anunciou neste sábado. Parou de jogar como profissional. Porque um cara de espírito amador jamais vai parar. Ele ama. Nunca será esquecido.

Rivaldo, obrigado pelos dribles, lançamentos e gols.

Rivaldo, obrigado por resolver jogos difíceis. Dinamarca-98. Bélgica-02. Inglaterra-02.

Obrigado por simplificá-los.

Obrigador por me fazer gostar ainda mais de futebol. Da Seleção. Do Palmeiras.

Nestes 24 anos de jornalismo esportivo, foi ótimo conhecer pessoas mais que ídolos como você.

O mesmo magrelo que vi no Sub-20 do Santa Cruz é o mesmo craque que está no Top-10 das Copas.

É você, Rivaldo.

Sem rival.

 

*Texto publicado originalmente no blog do Mauro Beting, no portal Lancenet.