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Sobre a face afetiva do jogar

Neymar e Coutinho, parceiros desde as categorias de base: quanta história e afetos estão nesse jogar? (Divulgação: Revista Exame)

 
Em várias outras oportunidades, desde a primeira conversa que tivemos aqui, falamos sobre aquele que me parece o tema central no qual treinadores e treinadoras devem se debruçar, diligentemente: a humanidade dos atletas que jogam o jogo. Embora fácil de ser dito, é algo difícil de se materializar regularmente. O futebol não é jogado por um grupo de onze coisas espalhadas em um espaço de 105x68m, mas sim por onze pessoas, onze seres humanos que transformam, quase que de modo alquímico, suas luzes e trevas em centenas/milhares de ações, com a bola e sem ela. Assim como um mínimo equívoco, ainda que no início, altera toda uma equação, uma equipe estará seriamente ferida se seus componentes não forem vistos como os humanos que são.
Pois bem, se queremos olhar o que se passa em campo de modo humanizado, então precisamos refletir sobre o locus dos afetos, sobre a expressão afetiva nos nossos processos de treino/jogo. Para isso, vamos estabelecer dois pontos de partida: em primeiro lugar, afeto vem do latim affectio, significa relação, disposição, atração. Mas vamos entender aqui os afetos como algo próximo das emoções. Depois, repare que usaremos o termo sempre no plural, porque suas expressões são múltiplas, são um mosaico.
Há um motivo que me faz pensar especialmente sobre este assunto. Você haverá de convir que parte importante dos nossos treinadores e treinadoras estão se formando à luz de um conhecimento substancialmente científico. Ótimo, mas as ciências que alimentam mais longamente o futebol, de um ponto de vista histórico, são as ciências duras, positivas. Elas levam em consideração tudo aquilo que pode ser visto, mensurado. Ou seja: quanto mais for visto, melhor. Mas, para isso, ela nos estabelece uma condição, uma espécie de pacto: tudo aquilo que for afetado pelas emoções não é exatamente confiável. Os afetos seriam capazes de contaminar um objeto, afinal.
Com pouco esforço, temos aqui dois problemas principais. O primeiro é óbvio: suprimir os afetos significa suprimir a humanidade de jogadores, treinadores, analistas, gestores etc. O segundo é mais sutil, mas não menos importante. Suprimindo os afetos, ensaiamos uma tendência hiperracional, uma tentativa falível (ainda que honesta) de encontrar explicações inteligíveis para todos os problemas que nascem do jogo. Nossos argumentos podem até estar absolutamente equivocados, distantes daquele caleidoscópio de situações, quase que indecifrável, que culminaram em um determinado gol, mas ainda assim nós precisamos acreditar nas nossas próprias narrativas e, talvez por isso, confiemos nelas ao mesmo tempo em que nos acostumamos a silenciar qualquer afeto, o menor dos traços de emoção, intuição ou algo parecido. Ainda que limitada, trata-se de uma forma de compensação.
Para o nosso jogar, isso tem alguns significados. Nós, treinadores, se ignoramos os afetos, cortamos não apenas uma enorme parte da nossa própria humanidade, como também arrancamos aquele que talvez seja o grande combustível dos nossos jogadores e jogadoras (cujas decisões estão para muito além do córtex pré-frontal). Nossos pequenos e pequenas, ávidos depósitos de conceitos e mais conceitos de jogo, chegam à idade adulta, muitas vezes, carentes de inteligência emocional, entregues à própria sorte e ao contexto, somatizando no jogar e no próprio corpo físico os sinais que foram suprimidos até então. Nossas análises se tornam contaminadas, mas contaminadas pelo visível, dependentes da luz, sem saber como lidar com a escuridão de cada jogador e do próprio jogo (como organismo vivo). Todos nós, enquanto profissionais, somos comumente vistos como meras máquinas lineares, instrumentos da grande linha de produção da bola, e normalmente não nos é dado o direito de oscilar, de temporariamente sucumbir a nós mesmos, de voltar-se adentro para então fazer-se no mundo lá fora. O tempo dos afetos não existe. Está ocultado pelo relógio da razão.
Não se esqueça que falar dos afetos não significa, em hipótese alguma, romantizar as emoções. Estamos aqui falando de um jogo coletivo de invasão que, para vários dos leitores e leitoras, é disputado na mais profunda necessidade de vitória, sob risco de críticas (várias delas injustas) e desemprego. Mas este é o ponto: é exatamente para jogar melhor, para que o jogar seja melhor, que devemos nos entregar à influência dos afetos, não apenas da razão. Temo que Rousseau tenha se equivocado, e a natureza humana não seja exatamente boa. Por isso, lidar com os afetos também significa lidar com a raiva, com a angústia, lidar com o medo, com tudo aquilo que vive sob os tapetes da bola, mas que ressurge, assim como a sujeira que escapa aos tapetes, em cada uma das decisões tomadas dentro e fora de campo.
Em tempos de tamanha saturação, estímulos à razão não nos faltam. Mas isso não significa que devamos nos dar ao direito de tirarmos férias dos afetos. Também no futebol, é preciso que não nos escape a faculdade de sentir, é preciso recuperar a arte de saborear o jogo, pois sem ela nos tornamos meras máquinas – e as máquinas são melhores, no ofício de serem máquinas, do que o humano.
Mas o humano, por sua vez, é inegavelmente superior à máquina na arte de ser humano.
E isso, acredite, é muito mais representativo do que parece.