Em nada me espanta o mau momento do São Paulo. O resultado dentro de campo é sempre reflexo de tudo o que acontece fora dele, em todas as esferas do clube. No mundo corporativo isso se chama cultura organizacional. Não seria chegar na final do Campeonato Paulista e começar “bem” o Brasileirão que mudaria um cenário melancólico e arcaico que atormenta o Morumbi há anos.
Começo falando especificamente da parte de campo. Qual o conceito de jogo que o São Paulo quer ter como clube? Não está claro para ninguém. Diego Aguirre foi demitido no dia 11 de novembro do ano passado. De lá para cá, Cuca é o terceiro treinador. André Jardine e o interino Vágner Mancini foram remendando trabalhos. Não há paciência e convicção para fazer algo a médio prazo no São Paulo. O sucesso deixa pistas. E nunca vi uma equipe vencedora ser formada da noite para o dia. Muito menos com tantas mudanças no comando. E com ideias de futebol sempre tão antagônicas.
No comando do futebol as coisas também se mostram muito confusas no tricolor. Contratações equivocadas são a tônica dessa e de recentes gestões. É claro que até os melhores analistas de desempenho do mundo falam sempre em errar o menos possível quando se forma um grupo de atletas. Porém, Raí e sua equipe têm abusado do direito de errar. E mais do que erros no que tange a parte técnica e até física dos jogadores, está mais do que clara a dificuldade em se formar um elenco mentalmente forte, com a inteligência emocional necessária para suportar um ambiente carregado pela ausência de conquistas. Em cima disso, não é de hoje que questiono se Raí tem as competências técnicas para estar a frente do departamento ou se está lá apenas porque seu histórico de ídolo blinda o presidente Leco.
E por fim, chego na parte política do São Paulo. A guerra declarada e pública de Leco com o seu vice, Roberto Natel, deixa claro que nem todos remam pro mesmo lado no Morumbi. O São Paulo hoje é um clube frágil financeiramente que por ter um viés tão político em sua gestão fica atrasado em termos de marketing, arrecadação e negociações.
Para montar um quebra-cabeça vitorioso no futebol todas as peças devem estar bem encaixadas. No tricolor, porém, a impressão que se tem é que cada setor do clube está agarrado à sua própria peça pouco se importando com o todo, com o desenho final do quebra-cabeça. Ok, é uma opção. Só que os resultados em campo irão traduzir isso. Como estão há tempos traduzidos no São Paulo. A sala de troféus, que não ganha novos itens, mostra bem isso.
Mês: maio 2019
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Sobre os espaços do futebol de rua
Nos últimos meses, alguns dos meus textos neste espaço foram dedicados à rua, ao desenho daquilo que especialmente os professores João Batista Freire e Alcides Scaglia chamam, há algum tempo, de Pedagogia da Rua.
Algumas experiências recentes me mostram que persiste uma dificuldade de entendimento da rua, do seu significado, ainda que vários de nós sejamos herdeiros dela. Há quem associe, por exemplo, o futebol de rua com ‘malandragem’, no sentido pejorativo. Daí a necessidade de conversarmos mais sobre o assunto.
Nesta coluna, publicada uma semana após uma fala que Alcides e eu fizemos no Pint of Science– evento de divulgação científica realizado simultaneamente em todo o mundo – em que falamos exatamente da rua, gostaria de registrar três das reflexões que fiz por lá: a rua como espaço de metáfora, a rua como espaço de liberdade e a rua como espaço de descoberta.
Vejamos.
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Olhar para a rua como metáfora significa, basicamente, não olhar para a rua com olhos objetivos, positivistas. Significa, na verdade, olhar com olhos curiosos, relacionais, em certa medida poéticos, olhos metafóricos. Como sabemos, metáfora vem do grego metaphora, algo próximo de ‘levar além’. Ou seja, quando falamos da rua, precisamos ter claro que não falamos da rua literal.
Não falamos, portanto, da rua pela sua forma, mas da rua pelo seu conteúdo. Pois pensar na rua ao pé da letra pode trazer alguns equívocos importantes. Um deles é imaginar que a rua contém alguma espécie de substância mágica (um pó, como gosta de dizer o próprio Alcides) que faria dela transformadora e necessária. Se fosse assim, não precisaríamos conversar sobre Pedagogia, bastava encher os centros de treinamentos de asfalto, deixar os garotos e garotas sobre ele e dali brotariam craques e mais craques – e não é disso que se trata. Repare então que é possível falar de futebol de rua sem que se fale do futebol na rua (a foto que ilustra esta coluna é um exemplo). Da mesma forma, pensemos em uma fala de Ronaldinho Gaúcho, citada no ótimo ‘Futebol de rua: um beco com saída’ (Helder Fonseca e Julio Garganta), em que ele diz que além de jogar futebol com os amigos ‘também jogava horas sozinho com o meu cão, o Bombom, que era incansável. Com ele, tentei todas as fintas possíveis, para evitar que ele trincasse a bola, com excepção do ‘túnel’ [caneta], porque o Bombom tinha as patas curtas.’
Se estivéssemos desavisados e levássemos a rua ao pé da letra, então não me surpreenderia se alguém considerasse levar cães para os centros de treinamento, fazê-los marcadores, e talvez os macro e mesociclos ou mesmo as mensuráveis de complexidade fossem balizados, por exemplo, pelas raças dos cãezinhos, deixando os mais dóceis para a iniciação, os mais agressivos para o rendimento e por aí vai. É claro que o exemplo é absurdo, mas repare que alguns absurdos estão cada vez mais naturais – alguns deles sob o veu do suposto progresso.
Portanto, a rua é espaço de metáfora, não do literal.
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Isto dito, vamos pensar na rua como espaço de liberdade. Para isso, vamos pensar em pelo menos três características da rua que estão deslocadas em outros processos formativos. Na rua, em primeiro lugar, não há árbitros. Ou melhor, até há, mas os árbitros e árbitras são as próprias crianças, são os pequenos e pequenas que aprendem, a partir do jogo, a mediar os próprios conflitos. Isso ganha uma dimensão especial quando lembramos que I) na rua não há faixas etárias; II) a rua é pública, é do povo, de modo que todos os temperamentos e personalidades cabem, e é preciso enfrentá-las; III) o principal vetor de negociação não é a retórica, mas a lida com a bola. Neste sentido, parece claro que a rua apresenta uma dimensão para além da futebolística, apresenta uma dimensão moral decisiva na formação humana de quem dela bebe.
Em segundo lugar, na rua não há treinadores – não neste sentido pragmático a que nos acostumamos. Aqui, gostaria de fazer uma provocação, encontrada no mesmo livro Futebol de Rua, a que me referi acima, vinda do sempre ótimo Jorge Valdano. Para ele, ‘a experiência diz-me que introduzir um treinador no processo de ensino de uma criança antes dos quatorze anos é muito útil para os jogadores medíocres e fatal para os jogadores excelentes.’
A crítica de Valdano, é claro, não vai a todos os treinadores, mas vai aos treinadores ansiosos, que querem controlar o jogo a todo custo, que querem controlar os movimentos das crianças, querem controlar a posição (seja lá o que se entende por posição), querem controlar a bola, querem controlar. E na ânsia do controle, as crianças se atrofiam, o espaço se esvai, a bola escapa, o jogo corre. Assim, a rua é um espaço de liberdade tático-técnica e a ausência de treinadores, no caso da rua, pode ser benéfica para a formação de uma autonomia futebolística que em certa medida incomoda, pois o bom jogador de rua, o bom jogador, também carrega um quê de irresponsabilidade.
Por fim, a rua não está repleta de regras, a rua tem muito menos regras do que as dezessete (além do vídeo) do jogo formal. A tese de doutorado recentemente defendida pelo colega João Claudio Machado discute o quão desinteressantes (do ponto de vista metodológico) podem ser os jogos cheios de regras, cheios de detalhes, que tendem a expressar, diretamente ou não, aquele controle de que falamos acima. E aí perdemos a mão em um dos pontos mais básicos quando pensamos na formação de jovens: é preciso deixar as crianças jogarem.
Aqui, portanto, a rua se consolida como um espaço de liberdade.
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Por fim, a rua é um espaço de descoberta. Mas descoberta de quê? Ao meu ver, descoberta de duas coisas: do jogo e de si.
A rua é descoberta do jogo porque – e é menos óbvio do que parece – na rua se joga. Na rua não se dribla cones, não se busca a técnica perfeita pela repetição descontextualizada, não se coloca a técnica acima de tudo, na rua não se faz outra coisa além de jogar – com todos os constrangimentos que isso significa. Jogar é mergulhar no imprevisível, no contingente, no relacional, na surpresa, na finitude, no desconforto, jogar é mergulhar no erro e é exatamente por isso que jogar também é mergulhar rumo ao acerto. E aos poucos, ao tempo de cada um, o jogo vai sendo des-coberto, vão se tirando as coberturas, e des-cobrindo o jogo jogado (e não pedaços dele) as crianças se enchem de um léxico futebolístico invejável, que nos ajudou a formar tamanhos craques durante tanto tempo.
Da mesma forma, a rua é descoberta de si, exatamente porque não existe a técnica perfeita, não existe a decisão correta (no singular), não existe nada no singular, mas existem caminhos, decisões plurais que nos levam ao mesmo lugar, existem formas diversas de enxergar e sentir o jogo que fazem com que, antes de tudo, o jogador precise olhar para dentro, precise encontrar-se a si mesmo, ao invés de se desencontrar. Jogar bem futebol, e faço aqui uma analogia com o Nietzsche, é tornar-se quem se é – o que é tarefa muito mais difícil do que parece.
E sobre isso falamos melhor em breve.
Há uns dias chamou a atenção uma fala de Quique Setién, antigo treinador do Real Betis, da Espanha. Falava sobre o peso da vitória nos dias de hoje, do triunfo a qualquer custo e que vencer é o mais importante. Estava preocupado sobre a maneira como isto é transmitido para a juventude. Além do imediatismo na busca pelos resultados. Não se esquivou da importância da vitória e de que é isso que todos querem, mas que, entre estes todos, só um vence. Dentre os diversos pontos que aborda, fala sobre ganhar fazendo o que é correto.
Em outras palavras, o último período do parágrafo anterior remete ao método. Logo, deduzimos que é sobre a identidade de uma equipe de futebol, em “como se vai jogar para ganhar”. Qual a identidade de jogo do grupo que a comissão técnica e o elenco julgam ser a correta, dentro das potencialidades dos colaboradores e da diversidade dos recursos humanos que se tem, a fim de conferir entrosamento ao plantel. É capaz de imprimir espécie de marca registrada na condução da partida, que em momentos de vitória fica muito mais verificada.
Bom, antes de tudo, isso requer tempo. No futebol do Brasil, Quique Setién teria um ataque de nervos: tempo é luxo. Infelizmente. Não somente pelo imediatismo e a busca por resultados a todo custo, mesmo pela maneira incorreta. Mas pela ausência de tempo para criação e inovação. O desenvolvimento passa pela capacidade de criar e inovar. É assim na ciência. É assim na economia. É assim na indústria. Como fenômeno social, é assim também no futebol. Se há lugar para mais trabalhos de longo prazo, sem ‘imediatismos’ ou soluções ‘sem espírito’, há um ambiente propício para a reflexão, discussão em conjunto e, consequentemente para a inovação e criação. Diferente de um cenário de imposição, que é feita sobretudo quando falta tempo.
Ganhar nunca deixou de ser importante e não vai deixar de ser. Agora, como ganhar é ainda mais importante. Esta coluna evita comparações e nem quer desmerecer um triunfo, mas quando se lembram das conquistas da seleção masculina de futebol, no tri e no tetracampeonato, em 1970 e 1994, respectivamente, a mais antiga é mais lembrada. Sim, pelo modo como se construiu o título. Nesta linha de pensamento, um elenco que nem foi campeão é talvez ainda mais lembrado que o de um título mundial, como foi com o de 1982, na Espanha.
Um ambiente com mais oportunidades para criar, inovar e, consequentemente, desenvolver, é extremamente fértil para aumentar as potencialidades do esporte. Cada grupo encontrará o seu método que vai conduzir a um estilo e identidade do jogo. Como resultado: futebolistas com uma formação mais ampla, conscientes dos papéis dentro e fora de campo e jogos muito mais atraentes para o público.
Portanto, os imediatistas sempre vão dizer: “ah, mas bola não entrou, não adianta nada”. Bom, o futebol explica um país, muitos dizem. Os que isso dizem devem ser os mesmos que compartilham discursos e políticas evasivas, desprovidas de método para a construção de um Brasil que seja reconhecido pela excelência nos indicadores sociais, políticos e econômicos.
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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“O verdadeiro patriota é aquele que dedica a sua mais alta lealdade à pátria não como ela é, mas sim ao que ela pode e deve ser”.
Albert Camus, filósofo francês, ex-futebolista(1914-1960)
No futebol brasileiro o perfil de atleta que tem destaque hoje pode ser dividido, de maneira geral, em duas categorias: jovens que acabaram de sair das categorias de base e medalhões que retornam da Europa ainda com alguma lenha para queimar. Claro que há exceções de bons jogadores que continuam por aqui no auge da forma técnica, física e motivacional que vai dos 26 aos 30 anos de idade.
Mas quero aqui dar uma ênfase nos jovens de qualidade. Aquele que o torcedor brasileiro tem a chance de ver alguns anos, ou as vezes até meses, com a camisa do seu time até que algum clube europeu venha e o leve a preço de banana.
Por mais que os tempos tenham mudado defender a seleção brasileira ainda é um sonho para qualquer atleta. Independentemente da categoria. Vestir a camisa amarela, com cinco estrelas no peito, é motivo de orgulho para qualquer um. E, quando chega uma convocação como essa agora do novo técnico da seleção sub-20 André Jardine, para o Torneio de Toulon na França, há uma gritaria de torcedores, dirigentes e até de membros da imprensa pedindo o corte desses atletas.
Há vários pontos aqui. O primeiro é saber a vontade desses garotos. Alguém perguntou, por exemplo, para Pedrinho e Mateus Vital do Corinthians ou para o Antony do São Paulo se eles querem ficar aqui ao invés de representar o Brasil na Europa? Segundo ponto: como vamos cobrar desempenho das seleções de base nos torneios mais importantes se o técnico não consegue nem jogar, muito menos treinar, com o que ele tem de melhor? Muito fácil criticar Carlos Amadeo por não ter levado o Brasil ao mundial sub-20 neste ano. Só que jogo apenas uma perguntinha no ar: Vinícius Júnior seria liberado pelo Real Madri para jogar o Sulamericano? Acho que ele não foi liberado, né?!
Sei que o maior problema em toda essa questão atende pelo nome de calendário. Defendo que competições sub-23 e sub-20 sejam disputadas em Data-Fifa, mudando até de formato os classificatórios para Mundial, já que realmente pesa para uma equipe perder o seu atleta por vinte e cinco dias. Mas quero combater aqui a frase pronta de que ‘nossa geração é ruim’ ou a de que ‘não formamos mais atletas como antes’ com base apenas em resultados e desprezando todo o contexto.
Vou até mais além questionando se o técnico da seleção no último estágio da base não tenha que ser alguém com bagagem em equipes profissionais para saber gerir melhor um ambiente que terá em sua maioria jovens que já jogam Serie A de Campeonato Brasileiro e alguns até Ligas Europeias.
Que fique claro: concordo que não podemos ficar fora de três dos últimos quatro campeonatos mundiais da categoria sub-20, porém a análise tem que ser sistêmica. Não dá para pedir hoje a liberação de um atleta do Torneio de Toulon e amanhã cobrar título mundial.
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Sobre a quebra da marcação por encaixes
Há pouco mais de um mês, conversamos aqui sobre a quebra da pressão por encaixes. Naquele texto, discuti especialmente a importância dos pontas na superação do pressing de equipes que decidem, ao subir as linhas, adotar uma marcação individual no setor.
Hoje, gostaria de propor um debate parecido, mas agora pensando na quebra das individuais por setor de equipes que se defendem em bloco médio/baixo em um 5-3-2. Para isso, vou me basear no primeiro gol do Liverpool contra o Wolverhampton, marcado por Sadio Mane, na última rodada da Premier League, há alguns dias.
Vejamos.
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Até os 17 minutos do primeiro tempo, o Liverpool não havia criado situações claras de gol. Ao meu ver, isso se deu principalmente em razão da organização defensiva do Wolverhampton. Vamos falar sobre ela.
Como já sabemos, o Wolverhampton estava disposto em um 5-3-2. Mas o sistema é apenas uma parte da ideia: neste jogo, a equipe de Nuno Espírito Santo partiu de referências diferentes nas duas primeiras linhas defensivas. Enquanto a linha de três meias, composta por Rúben Neves, João Moutinho e Dendocker, tinha uma clara referência zonal, preenchendo os espaços ao sabor do movimento da bola, a primeira linha, composta por Doherty, Bennett, Coady, Boly e Jonny, era muito mais condicionada por referências individuais no setor, especialmente o trio de zagueiros, em razão dos danos em potencialmente causados pelo trio Mané – Origi – Salah. Neste sentido (e guardadas todas as proporções), a escolha defensiva dos Wolves me lembrou muito a recente escolha de Jorge Sampaoli, na vitória do Santos sobre o Grêmio, em Porto Alegre: igualdade numérica no meio com referências zonais e tentativa superioridade numérica próximo à área, com referências individuais no setor.
Uma grande diferença é que, no caso dos Wolves, os alas tinham dupla preocupação. Como Robertson e Alexander-Arnold têm liberdade para subir (inclusive ao mesmo tempo), provavelmente a instrução para os alas era pressionar o lateral adversário quando a bola estivesse no seu setor e acompanhar o movimento da linha caso a bola estivesse no setor oposto. Esta dinâmica (entre a primeira e segunda linhas, e dentro da própria linha) me parece um excelente exemplo do caráter ambíguo e contingente de qualquer sistema defensivo. Defesas não precisam ser puras, orientadas por um mesmo comportamento, (zona/individual no setor/individual), mas podem ser ambíguas, podem ser como um amálgama que reflete duas ou mais referências diferentes.
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Como dizíamos, o Liverpool passou 17 minutos sem claras chances, mas quando criou a primeira, abriu o placar. Aqui, indico que você assista ao gol (especialmente no ângulo que começa aos 0:57), que comentarei em detalhes abaixo.
O trio ofensivo do Liverpool, lembre-se, tinha Origi no comando de ataque, na vaga de Roberto Firmino, lesionado. Isso tem um claro impacto na organização ofensiva, uma vez que Firmino, cada vez mais adaptado à uma espécie de ponta de lança, tem enorme inteligência para encontrar ou criar espaços às costas dos volantes adversários – características diferentes das de Origi. Ao mesmo tempo, buscar a bola metros atrás é um recurso fundamental para confundir as defesas que marcam por referências individuais por setor. E aqui podemos entender este primeiro gol do Liverpool.
Um dos motivos porque o Liverpool tinha dificuldades para construir é que o trio Mané – Origi – Salah mantinha-se mais baseado no espaço, mais obediente, de modo que não fossem necessários enormes esforços dos defensores, já que os movimentos da linha de três meias adversários impedia que a bola chegasse em boas condições ao ataque. É importante citar, me perdoem se não ficou claro, que Mané e Salah jogam mais próximos da área, buscam as diagonais, deixando os corredores abertos para os laterais. Por isso faz sentido recorrer às individuais por setor no trio de ataque.
No início da jogada, Mané recua vários metros (por intuição ou por instrução externa, acredito na primeira), e recebe a bola ainda antes da linha de três meias do Wolverhampton, entre os corredores central e esquerdo. Isso tem dois reflexos imediatos: I) faz com que haja superioridade no meio-campo (4 v 3) e II) deixa o zagueiro responsável por Mané (Bennett) em uma situação desconfortável, porque agora precisa acompanhar o movimento da bola ao mesmo tempo em que acompanha o próprio Mané, à distância, com os olhos.
Depois de receber a bola, Mané faz uma rápida inversão, forte, à meia-altura. Decisão inteligentíssima, pois permitiu que ganhasse um ou dois segundos em comparação ao tempo que seria preciso caso a bola fosse invertida pelo alto. O passe de Mané busca Alexander-Arnold, pela direita. O passe rápido deixa o trio de meias do Wolverhampton sem ação, assim como Jonny, que até dois segundos atrás estava fechando a linha e agora precisa, rapidamente, pressionar o lateral. Tudo acontece muito rápido, o ritmo da jogada aumenta (seguindo o próprio modelo) e quando Arnold vai ao fundo, há um fato, em especial, que define toda a jogada.
Salah está na área, logo a frente de Bennett, que supostamente marcaria Mané. Por motivos óbvios, assim que Arnold ameaça o cruzamento, Bennett vai exatamente em direção a ele, sabendo da sua letalidade naquele setor do campo. Veja bem, isso não é exatamente um equívoco do zagueiro. Na verdade, é um problema cuja raiz está naquele início da jogada, de que falávamos acima. No lugar de Bennett, na tomada de decisão imediata, provavelmente todos nós tomaríamos a mesma decisão, ou algo muito parecido. Ao seguir Salah, Bennett não percebe o que se passava às suas costas: Mané chegava de fora da área, livre de marcação, de frente para o gol.
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O grande detalhe da individual por setor está menos no indivíduo e mais no setor. Este setor, este espaço até onde um jogador pode ser perseguido, não é fixo, não é objetivo, não é mensurável. Ele é dependente do jogo, dos problemas, das circunstâncias, é contingente.
Por isso sou muito favorável ao movimento constante dos pontas na organização ofensiva, exatamente para provocar o defensor, ver até onde ele vai, deixá-lo desconfortável, enquanto que, ao mesmo tempo, seja possível criar apoios por dentro, às costas dos volantes, causar desequilíbrios pelos lados (caso os laterais acompanhem até o fim), seja possível usar o equilíbrio dinâmico inerente ao jogo em favor de quem ataca.
Na verdade, isso significa não apenas testar os limites de um dos marcadores. Significa testar a estrutura defensiva adversária como um todo.
Já chegou ao Ministério da Justiça representação para a constituição de uma força-tarefa a fim de investigar lavagem de dinheiro no âmbito dos clubes, empresas e pessoas que atuam no futebol brasileiro. É dito que existe interesse público porque, além de haver recursos públicos no esporte, a modalidade possui grande papel na cultura brasileira. A lembrar o filósofo português Manuel Sérgio, “o futebol é um serviço público”.
Ora, em boa hora chega esta representação. Na justificativa para o Ministério da Justiça, usa-se a argumentação do desprestígio e declínio do futebol de seleção e de clubes do Brasil; pelo êxodo de jovens futebolistas; por mais crianças que acompanham clubes e campeonatos estrangeiros em detrimento dos brasileiros.
Antes disso, o zelo com a gestão do esporte brasileiro, especificamente o futebol, potencializa as oportunidades e é capaz de aumentar os rendimentos. Ao mesmo tempo, a transparência na publicação e justificativa dos gastos prioriza áreas estratégicas e premia a condução de projetos com método com vistas à excelência. Em outras palavras, exalta-se o profissionalismo, expressão comum dentro da transformação proposta por todos.
Uma profunda investigação no futebol do Brasil é capaz de gerar um movimento transformador, das entidades de prática e administração esportiva operarem de fato em um ambiente de mercado, competitivo e de livre concorrência. De não depender de recursos públicos e de fontes privadas de adiantamento de recursos que, de certa maneira, mantém conectados interesses escusos e alheios às boas práticas de gestão do esporte.
Com tudo isso, da mesma forma que no fim dos anos 80 e início dos 90 o “Relatório Taylor” foi o pontapé inicial da transformação da organização do futebol da Inglaterra, não é arriscado pensar que uma operação “Lava Bola” pode ter o mesmo efeito por estas bandas e repercutir em todo o esporte do Brasil. Como processo, a boa gestão será ainda mais valorizada, bem como a formação específica em Gestores do Esporte.
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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Você não precisa ter sido um cavalo para tornar-se um jóquei.”
Arrigo Sacchi,
treinador de futebol, questionado pelo fato de ser treinador sem ter sido futebolista.
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Perder não pode ser normal
O Flamengo havia sido superado pelo o Atlético-MG em Belo Horizonte, em jogo válido pela quinta rodada do Campeonato Brasileiro, a despeito de ter ficado com um homem a mais ainda no primeiro tempo – Elias, meio-campista da equipe alvinegra, foi expulso. No ínterim entre o desfecho da partida e o início da entrevista coletiva de Abel Braga, técnico dos cariocas, chamou atenção uma previsão feita por Mauro Cezar Pereira, comentarista dos canais “ESPN”. “Ele vai dizer daqui a pouco que perder para o Atlético-MG é normal”, vaticinou o jornalista.
Nesta segunda-feira (20), torcedores do Flamengo picharam muros da Gávea, sede do clube, que fica na Zona Sul do Rio de Janeiro, e do Centro de Treinamentos Ninho do Urubu, na Zona Oeste. “Fora Abel” e “perder não é normal” estavam entre as frases escolhidas pelos adeptos rubro-negros ao externar revolta.
Perder não pode ser normal para clubes do porte do Flamengo, mas derrotas não podem criar ambientes de tensão em instituições desse porte. O Campeonato Brasileiro não tem um vencedor invicto desde o Internacional de 1979, e o próprio Flamengo acumulou nove reveses na campanha da taça de 2009 – ao lado do Corinthians de 2011, recorde de placares adversos para campeões nacionais em pontos corridos com 20 times. Na atual temporada, os cariocas já perderam dois jogos em cinco rodadas, para Internacional e Atlético-MG, ambos como visitantes.
O Flamengo passou por uma mudança de status desde a ascensão do grupo político que atualmente comanda o clube. Naquela época, o presidente Eduardo Bandeira de Melo adotou discurso de austeridade e planejou sanar pendências financeiras antes de investir na formação de uma equipe forte. A torcida passou anos ouvindo que era uma política de médio/longo prazo e se acostumou a metáforas como guardar dinheiro para comprar um carro importado em vez de passar a vida em consórcios de veículos populares.
Quando o Flamengo passou a investir em contratações de peso, portanto, havia entre os torcedores uma expectativa de que o time seria como um carro importado em uma corrida de veículos populares. A sensação ganhou corpo à medida que desembarcaram na Gávea nomes como Diego, Guerrero e Éverton Ribeiro. Tornou-se ainda mais forte neste ano, quando o time rubro-negro conseguiu reforços como Bruno Henrique, Gabigol e Arrascaeta.
Além da expectativa exacerbada, decisões tomadas pela cúpula rubro-negra reforçaram a sensação de que o time sempre estava aquém de seu potencial. No ano passado, por exemplo, o Flamengo demitiu Mauricio Barbieri, que havia acumulado 14 vitórias em 26 rodadas do Brasileiro, e contratou Dorival Júnior, que obteve sete triunfos nas 12 partidas restantes da competição nacional e fechou a temporada na segunda posição.
As mudanças de treinadores tornaram-se marca do Flamengo desde a ascensão do grupo político que atualmente comanda o clube. Foram 19 trocas de 2013 para cá (considerando interinos) e cinco técnicos diferentes apenas entre 2017 e 2018. Abel Braga, veterano e vitorioso, foi contratado nesse contexto.
A ideia da diretoria do Flamengo com Abel era ter à frente da equipe um nome capaz de frequentar a mesma prateleira de seus principais jogadores. Alguém que pudesse acalmar o ambiente como Luiz Felipe Scolari fez no Palmeiras.
A questão é que o Flamengo de Abel, assim como o Palmeiras de Felipão, convive com uma pressão que vai além dos resultados positivos. São times caros, cercados de expectativa, que precisam entregar desempenho e traduzir em campo o nível de confiança que seus torcedores demonstram quando acompanham as chegadas de reforços. Com a diferença fundamental de que os paulistas são os atuais campeões nacionais – os cariocas não conquistam nada além de seu Estado desde 2013.
Existe pressão por resultado e por desempenho, portanto, e no caso do Flamengo isso é ampliado pela estiagem de títulos nacionais ou internacionais. E aí entra o processo de comunicação: a fatídica nota oficial que o clube emitiu neste ano, na qual valorizou o título conquistado na Florida Cup, só contribuiu com a animosidade. Entre as pichações desta segunda-feira havia reclamações sobre a “Copa Mickey” em alusão ao torneio de pré-temporada.
Mais uma vez, é importante considerar esse contexto para entender o tamanho da declaração de Abel Braga. O treinador considerou normais as derrotas para Internacional e Atlético-MG, mas fez isso num cenário em que tudo é anormal para o Flamengo. Sobretudo porque o desempenho da equipe, mais do que os resultados, tem sido preocupante para os torcedores.
Abel tem apenas cinco meses de trabalho, mas ainda não mostrou um rumo. Não começou a estruturar uma equipe pragmática e tampouco mostrou ser capaz de construir um time que possa desempenhar mais. Existe uma crise de identidade no Flamengo de 2019, e essa crise é agravada por todo o contexto. A frase que tem sido usada frequentemente para definir isso, cuja autoria eu infelizmente desconheço, é que “o Flamengo não tem projeto; tem pressa”.
O clube carioca é, portanto, um exemplo de como a comunicação não pode ser dissociada do contexto. Há uma bagagem construída ao longo das últimas temporadas, e nesse cenário até uma avaliação simples (perder para o Atlético-MG fora de casa é realmente normal, afinal) pode ser estopim para uma crise.
Por isso é tão importante que um plano de comunicação tenha objetivos claros e saiba transmitir isso ao público. Saber o que se quer atingir e estabelecer um cronograma para isso é tão ou mais importante do que o resultado.
Perder para o Atlético-MG pode até ser normal. O que não é normal é o Flamengo chegar a maio de 2019 sem saber o que pode entregar a seus torcedores neste ano.
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Interatividade
O narrador distribui inúmeras saudações a espectadores, citando nomes e cidades; comentaristas e repórteres disputam espaço com pitadas, opiniões ou apenas aparições inócuas de quem está em casa; na tela, uma barra mostra o que pensa o público, que também pode escolher o melhor em campo ou interagir com a partida avaliando o desempenho dos atletas em seu time do fantasy game. O advento de novas ferramentas criou no Brasil um modo extremamente interativo de consumir esporte. No entanto, será que esse é um caminho irreversível/positivo para o produto como um todo?
A discussão ganhou corpo no último domingo (12), depois da vitória do Santos por 3 a 0 sobre o Vasco em partida válida pelo Campeonato Brasileiro. A TV Globo fez, como vinha fazendo em todas as rodadas anteriores, uma eleição online para escolher o craque do jogo. Em ação sarcástica coordenada pelo grupo de humor “Desimpedidos”, o goleiro Sidão, titular da equipe carioca, recebeu percentual expressivo dos sufrágios e foi o vitorioso, a despeito de ter falhado de forma clara no primeiro gol dos paulistas. A brincadeira de mau gosto rendeu uma das cenas mais constrangedoras do ano: Sidão recebeu o “prêmio” das mãos da repórter Júlia Guimarães, que não conseguiu disfarçar o desconforto (horas depois, o apresentador Tiago Maranhão relatou no canal fechado “Sportv” que ela chorou e pediu desculpas ao goleiro pelo episódio).
“Pedimos desculpas ao Sidão, jogadores, profissionais e torcedores que se sentiram ofendidos”, respondeu o “Desimpedidos” nesta segunda-feira (13). “A prática de influenciar pesquisas e enquetes abertas à votação popular é comum no canal (e em outras páginas), tanto que rendeu o prêmio Puskas ao Wendell Lira, em 2016, e o prêmio Laureus à Chapecoense, em 2018”, continuou a nota oficial do canal.
Ora, se a fraude à interatividade é prática “comum” no canal e em outras páginas, por que os grandes grupos de mídia no Brasil seguem usando indiscriminadamente o artifício? Se as caixas de comentários de portais repercutem discurso de ódio, por que permitir que isso reverbere e transforme qualquer conteúdo em mote para mais e mais violência?
O controle sobre o conteúdo é tema central em discussão de grandes players atualmente. A rede social Twitter trabalha em uma mudança no algoritmo chave para evitar que a circulação de conteúdo esteja atrelada unicamente à popularidade (a ideia é privilegiar também aspectos como a pluralidade do debate e o alcance do assunto). A direção do Facebook esteve reunida com autoridades francesas nos últimos dias para tentar entender como encontrar um caminho para evitar que a plataforma seja uma caixa de ressonância para certos comportamentos.
Enquanto isso, há outros exemplos de grupos de mídia reavaliando o uso da interatividade. Até programas de TV baseados na interatividade, como reality shows, têm relativizado e buscado outros caminhos para construir relação com o público. Isso influencia até a monetização dos produtos – há casos como “The Voice”, musical que há anos prioriza downloads em plataformas de streaming em detrimento de somatório de votos, por exemplo.
Afinal, o que os veículos de mídia ganham com a interatividade? Quais são os objetivos de abrir a transmissão e dar mais espaço ao público? Pensando em eventos que são finitos (um jogo sempre vai durar 90 minutos, afinal) e em uma oferta cada vez maior de conteúdos, por que preencher esse espaço com comentários que nem sempre oferecem qualquer contribuição para o debate?
A resposta é parte de uma linha editorial pautada unicamente pelo que o público deseja no momento. Trata-se de uma parte de um projeto de construção de conteúdo palatável e simples para consumo rápido, urgente e simples. A inclusão de nomes, comentários e votos de espectadores em transmissões esportivas conversa diretamente uma sociedade egocêntrica, que espera se ver representada ou refletida em cada conteúdo que consome.
O mesmo vale para a “zoeira sem limites” da internet. A web é um mundo de possibilidades e conteúdos, mas também fortalece perfis impositivos. Existe uma história de bullying e de brincadeiras de mau gosto por trás do público que enxerga na humilhação pública um caminho para entender quem vale a pena. O mundo que valoriza personagens como o “humorista” Danilo Gentili reflete questões psicológicas muito mais densas do que o conteúdo que ele distribui.
Sidão é vítima de um contexto amplo – afinal, o comportamento que chegou ao prêmio dado ao goleiro é fruto de uma geração forjada no debate raso, no consumo urgente e no egocentrismo.
Existe uma consequência de toda a geração formada pelo “Globo Esporte” brincalhão, pelos cavalinhos do “Fantástico” ou pelo esporte tratado como entretenimento. Existe uma consequência de toda a geração que cresceu entendendo como humor as piadas baseadas em estereótipos – quase sempre racistas, homofóbicos ou machistas.
Se os veículos de mídia pensarem apenas no que é popular ou no que o público quer, vão oferecer sempre informações rasas, fáceis e umbilicalmente ligadas a todas essas questões da formação social. Vão reverberar, afinal, problemas que perpassam todo o tecido que liga as pessoas.
A discussão sobre interatividade é extremamente urgente, assim como o debate sobre o controle no ambiente virtual. Hoje ainda reina a ideia de que internet é terra de ninguém – ou que é ok repetir online uma série de práticas que podem humilhar ou causar problemas sérios aos outros.
A Globo esperou até o bloco de esportes do dominical “Fantástico” para pedir desculpas a Sidão, mas fez isso depois de um VT de três minutos em que o goleiro foi simplesmente achincalhado, num contexto em que o apresentador conversava com um cavalinho de pelúcia e reafirmava toda a linha editorial que propiciou o prêmio.
A piada de mau gosto feita pelos internautas não foi apenas com o desempenho de Sidão, mas com a própria Globo. E só aconteceu porque a principal emissora de TV do país ainda não parou para discutir os efeitos da interatividade ou as consequências de sua linha editorial. Não adianta pedir desculpas ao goleiro, mas seguir fazendo piadas ou evitando discutir assuntos que realmente podem contribuir para que as pessoas aprofundem sua relação com o jogo.
“O que você fez até hoje te trouxe até aqui. Para alcançar outros patamares é preciso fazer coisas diferentes e melhores”. Essa frase tão conhecida no mundo do coaching e tão verdadeira e de fácil aplicação na nossa vida serve hoje para o Corinthians. A equipe do técnico Fábio Carille teve um padrão de atuação e performance suficientes para ganhar o Campeonato Paulista, passar pelas quatro primeiras fases da Copa do Brasil e pela fase inicial da Copa Sul-Americana. Para desafios maiores, o time terá que produzir mais. Principalmente, na parte ofensiva.
A solidez da defesa corintiana não é novidade. As linhas compactas, invariavelmente em bloco médio e baixo, marcando por zona, flutuando sempre em bloco para o lado da bola já vem da década passada. No ano passado, com a saída de Carille, isso se perdeu um pouco, mas com alguns treinos, conversas e vídeos rapidamente o técnico do Timão retomou o padrão em 2019. O problema atual reside com a bola nos pés. Em momentos ofensivos – sejam eles de organização e/ou transição.
A discussão deve ir muito além sobre quem deve ser o centroavante. É claro que com um camisa 9 em boa fase as coisas tendem a ficar mais fáceis. Porém, não podemos resumir a falta de poderio ofensivo do Corinthians a má fase de Boselli, a queda e lesão de Gustagol e a indefinição de posição de Vágner Love. Faltam ideias, conceitos e modelos de ataque aos comandados de Fábio Carille.
O desenho da equipe do meio pra frente ainda está indefinido. Não se tem muito clara qual a posição de Ramiro, que atuou enquanto Júnior Urso estava lesionado, não se sabe quem são os meias pelos lados do campo – Clayson tem sido o mais consistente – e por dentro, Sornoza tem jogado por estar numa fase menos pior do que Jadson e só agora ambos têm a concorrência de Régis, que estreou contra o Grêmio. Saliento a importância das peças individuais porque todo modelo deve ser construído a partir dos jogadores. É insano para qualquer treinador tentar impor suas ideias sem respeitar as características de quem vai executa-las.
Fábio Carille sabe muito bem que passou da hora de evoluir individual e coletivamente os mecanismos ofensivos do time. Seja qual for a maneira mais usual de atacar – posicional, jogo direto, contra-ataque, etc – ela deve estar somatizada nos jogadores, assimiladas como comportamentos para que sejam bem executadas em campo. Hoje, com esse jeito aleatório de atacar, o Corinthians será engolido por equipes melhor preparadas.
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Sobre o simples na complexidade
Na última quarta-feira, horas antes do jogo de volta pelas semifinais da UEFA Champions League, o diário El País publicou uma extensa entrevista com Mauricio Pochettino, treinador do Tottenham – agora finalista. É um dos relatos mais belos que li recentemente, de um treinador muito, mas muito bom, aparentemente muito simples, de hábitos muito simples, e bastante humano.
Nesta semana, reproduzo algumas das respostas de Pochettino, que me chamaram a atenção, seguidas de comentários meus. Todas as traduções são livres. Desde já, indico aos colegas que leiam, assim que possível, a entrevista na íntegra.
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P: No seu livro, Brave New World [ainda não traduzido para o português], você fala da existência de uma “energia universal”. Como define essa percepção?
R: Se toca, se vê, se nota. Todo mundo pode entender, mas nem todos estão abertos a isso, a canalizar isso para conseguir o que se quer. Sinto desde pequeno. É algo que estava em minha mente e não sei o porquê. Pensava que havia uma energia que me permitia sonhar coisas que depois conseguia. Programar coisas com a sua mente para que depois aconteçam tem sido para mim uma ferramenta fácil de usar para conseguir coisas boas. As pessoas se unem através de coisas que não são fáceis de racionalizar.
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Não acho que este trecho deva ser lido com um certo esoterismo, não é o melhor caminho. Quando Pochettino fala de algo intangível, intocável, desta ‘energia universal’, ele deixa implícito que não enxerga o humano como somente racional. Este é um ponto interessantíssimo. Nossos atletas, nossos colegas de comissão técnica e nós mesmos, treinadores e treinadoras, somos carne e razão, mas também somos paixões, somos afetos, e podemos ainda nos sentir alguma outra coisa, parcialmente metafísicos (além do físico). Esta ‘outra coisa’ não é necessariamente espiritual, e não precisa necessariamente ser investigada. Basta pensar que respeitá-la não é tão dolorido assim. Sinto que, de alguma forma, Pochettino fala de uma coisa bastante democrática, acessível a todos nós e que, especialmente, humaniza a si mesmo (uma vez que assume algo que não se vê). Em um meio que se diz cada vez mais científico, é preciso ter alguma coragem para mostrar um lado intangível.
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P: Não acha que sua visão de futebol se superou há 30 anos? Isso de criar equipes duradouras [Pochettino havia falado sobre isso na resposta anterior] não é antigo?
R: Isso é transferível a qualquer clube. É transferível ao Espanyol, ao Southampton, ao Tottenham, ao [Real] Madrid, ao Bayern, ao United. Por que não? Somos responsáveis por preservar alguns valores. Porque estamos nos afastando da essência do futebol. Temos ficado em uma posição que sinceramente não me agrada. Porque o futebol atual é muito bonito (…), mas outro dia vi a semifinal da Copa da Europa de 1975 entre Barcelona e Leeds United… Aquilo era futebol! Você vê o Cruyff batendo. Se esforçando! Era o Cruyff! Os jogadores não sabiam que estavam sendo gravados para a televisão. Sou um apaixonado por este futebol.
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Seria um exagero dizer que este é um treinador à moda antiga? Não, não acho. Explico: não é a primeira entrevista em que o vejo falar com alguma nostalgia do passado, de uma vida que viveu e que não vive mais, como se ele fosse um sujeito não à frente, mas deliberadamente atrás do seu tempo, deste tempo. E ao contrário do que nos acostumamos a ouvir, isso não é necessariamente um problema. Para muito além desta oposição antigo/moderno (que nos está deixando doentes), está a ideia de que existem valores atemporais, ideias e faculdades tão fortes, tão profundas e humanas, que ultrapassam a barreira do tempo. O pensamento, a capacidade de refletir atenta e seriamente sobre o mundo (e sobre o futebol) é atemporal. As paixões (que nos fazem vulneráveis) são atemporais. O fato é que ninguém hoje, em sã consciência, diria que Pochettino é um sujeito retrógrado. Mas quantos estariam dispostos a encarar, com tranquilidade, que muito do que chamamos de moderno, pode não representar progresso algum?
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P: Hoje os treinadores falam do que acontece em campo como se tivessem fabricado um foguete. Você fala de paixão. Tem simplificado o discurso. É possível ser um grande treinador sem essa vaidade do científico?
R: O futebol perdeu gente autêntica. Parecemos atores. Quarenta anos atrás em Murphy [cidade natal] nos juntávamos na praça para jogar. Jogávamos em 30×40 metros. Se formavam duas equipes. Quem tinha a posse da bola? Os melhores! Por mais que houvesse treinadores dirigindo aquilo. Quem tinha mais percentual de posse de bola? Os que tinham a melhor equipe. Os tecnicamente melhores. Que nem sempre eram os que ganhavam porque às vezes jogavam muito bem, mas os outros te faziam gols porque chutavam ou resolviam [em um drible, talvez]. Mas, a quem pertence o jogo de posse de bola? Aos jogadores. Aqui vendemos uma ideia de que há treinadores que inventaram o futebol de posse e não é assim. A mim me encanta jogar com a bola. Quero ter a bola o máximo que puder. Mas se não tenho as ferramentas nem os jogadores técnicos para jogar, devo buscar uma forma diferente. E parece que esse futebol não existe. Parece que pertence somente a alguns. E não é assim. Como faz para que o Burnley jogue com posse? Se tenho Xavi, Iniesta, Busquets… Como lhes vou dizer que joguem direto, a correr, e em transições rápidas? Seria estúpido. (…) Há debates que são estéreis. O importante é que se mostre como é, não como um ator.
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Essa resposta começa com um detalhe importante: Pochettino não respondeu à pergunta – não diretamente. Ele o fez nas entrelinhas, mas ao invés de responder com argumentos, recorreu à uma anedota pessoal. Isso me parece bastante importante, porque mostra que a ação (responder a uma pergunta com uma história) está vinculada aos seu próprios discurso (não exatamente científico). Julgue-me pelas minhas ações, não pelas minhas palavras, diria alguém. Mas ao mesmo tempo, Pochettino flerta com uma ideia que pode soar perigosa: a de que algumas equipes podem jogar com posse e outras, não. Imagino que ele quis dizer que neste nível de competição, é preciso ser bastante eletivo na escolha do modelo, pois a insistência em ideias alheias à uma certa cultura (daí o exemplo de Xavi, Iniesta e Busquets) pode não ser bem recebida e causar o efeito inverso. Isso não significa que um treinador ou treinadora não possa, através das ideias e do treinamento, fazer com que determinados atletas evoluam, fazer com que o modelo permita ao atleta se redescobrir. Encontrar este meio-termo, esta justa medida, é uma das maiores tarefas que nos cabem. Talvez só não seja tão difícil quanto tornar-se quem se é, ao que ele se refere no comecinho da resposta. Esta sim é uma grandíssima tarefa humana.
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P: Você tem simplificado conceitos para que os jogadores mudem [de esquema] e se adaptem sem se confundir?
R: A mensagem é simples dentro da complexidade. Uma coisa é a posse e outra é não ter a posse da bola. Como nos organizamos em posse dependendo do que vai buscar e como se organiza defensivamente dependendo de como vai perder a bola. (…) O futebol é simples. Se tenho a bola, o que faço? Que características têm os jogadores que tenho em campo? Como quero atacar? Como busco a debilidade do adversário? E se não tenho a bola, como me defendo? Como me organizo rápido? Onde pressiono? Onde quero recuperar e de que forma? Dentro dessa simplicidade há uma complexidade que desenvolve no dia a dia. Depois, isso é bastante fácil de transmitir quando o jogador trabalha conscientemente, mas isso termina no inconsciente. Parece natural porque para o jogador a mudança não soa estranha. O Liverpool é 4-3-3. Há pouca flexibilidade. Os três do meio são mais defensivos. É uma equipe que se prevê que jogará de uma determinada forma. (…) No final buscam [Pochettino também havia citado o City] na qualidade do indivíduo a capacidade de vencer o oponente sem buscar tanto desenvolvimento tático para encontrar outra via de melhora na equipe, ou de mais fluidez ou de ter a capacidade de chegar de maneira diferente. Voltamos ao mesmo: se você tem uma ideia de futebol, perfeito, quero desenvolver um sistema mas necessito que quando não esteja Aguero jogue um atacante do mesmo nível como Gabriel Jesus. E se não tenho Sterling, quero Mané… Isso é muito diferente de trabalhar com uma equipe onde há que ir buscando os caminhos para ajudar aos jogadores a se encontrarem. Eu não posso decidir jogar ou não com extremos.
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A primeira linha da resposta deu origem ao título desta coluna. Cruyff dizia que o futebol é simples – mas fazer o simples é difícil. É uma leitura próxima da que faço nesta frase de Pochettino, que reconhece que existe ali uma grande complexidade, que o jogo é caos/ordem, mas que a mensagem que precede do jogo precisa ser simples, ou pode ser estéril. Repare que as perguntas feitas por ele (o que faço? como quero atacar?) são de fato simples, sem terminologias elaboradas, mas são corretas, centrais. Com essa simplicidade (que não é sinônimo de vulgaridade) Pochettino consegue brincar com os sistemas, consegue encontrar soluções coletivas para encarar equipes que podem até ser mais sólidas do ponto de vista estrutural, como o Liverpool, com jogadores ligeiramente mais decisivos, e mesmo assim consegue fazê-lo bem, de frente. Acima das estruturas (qual é o nosso sistema?) está o modelo (como vamos jogar?) e é isso que permite alguma fluidez, de jogo para jogo, durante a temporada.
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Há quem diga que essa entrevista faz referência ao ‘lado humano’ dos atletas e do próprio Pochettino. Não é verdade. Deixo aqui um texto que escrevi neste mesmo espaço, criticando a ideia de ‘lado humano’, uma vez que I) o humano não tem lados e II) o humano não poderia ser apenas um lado, é maior do que isso.
Outra vez, indico a leitura da entrevista na íntegra. Pochettino parece ser um sujeito muito interessante, um sujeito meio bucólico nesta correria da modernidade, e isso transparece tanto nas suas palavras quanto nas suas ações e no seu modelo.
Não existe filosofia que não seja encarnada, que não venha da carne, e os resultados recentes (que não vem de hoje) comprovam que o caminho traçado por ele tem um sentido.
E que este caminho pode nos levar um pouquinho mais longe.