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Ciência do Jogo e Marketing do Futebol

O Liverpool deu a volta ao marcador e tirou uma desvantagem quase impossível, sem seus principais craques. Classificou-se para a final junto com o Tottenham, que triunfou fora de casa de uma maneira ainda mais impossível. Bola no chão, futebol eficaz, eficiente e com excelência. Um produto espetacular.

Sem dúvida alguma que a indústria do esporte e o produto “Liga dos Campeões da UEFA” (o futebol europeu como um todo) passam pela qualidade da infra-estrutura oferecida, como por exemplo a qualidade do recinto de jogo: campo e instalações esportivas. No entanto, o texto desta coluna se atenta ao ponto em que o futebol como jogo passa a ser tratado como ciência, a fim de potencializar seus recursos e otimizar as oportunidades.

Liverpool celebra gol durante a vitória sobre o Barcelona (Foto: Divulgação)

 
Isso passa a ser feito de maneira mais intensa a partir dos anos 1990 e especificamente em Portugal. É impressionante a produção científica da Academia portuguesa sobre o futebol. Não à toa, em termos de rendimento a seleção daquele País – sobretudo – têm obtido ótimos resultados internacionais. Mas, para além disso, destaca-se a formação de futebolistas de ponta – a proporção per capita em relação aos seus habitantes destoa – mas também de treinadores e membros de comissões técnicas de nacionalidade portuguesa mundo afora. Nomeadamente, para além de José Mourinho, André Villas-Boas e Nuno Espírito Santo são apenas alguns exemplos.
Futebolistas do Tottenham comemoram gol na vitória sobre o Ajax. (Foto: Divulgação)

 

A questão não é a nacionalidade de quem gere e pensa o futebol dentro ou fora de campo. É de encará-lo como ciência, quantificar e qualificar para torná-lo, antes de tudo, melhor. Pensar além. Com isso, forma-se um produto muito bom para ser colocado no mercado, consumido de todas as formas pelo público. A partir do momento em que foi proposto fazer isso, o conhecimento ficou ao alcance de todos e motivou mais profissionais a buscá-lo. Vemos cada vez mais Guardiolas, Klopps, Barbieris, Pocchetinos e Larghis, e há muitos outros por aí.

O desenvolvimento de uma cidade, região ou país depende da sua capacidade inovadora. A inovação só vem com pesquisa, com a ciência. Economicamente, quantos destinos turísticos diferentes o futebol e o esporte não potencializaram ou produziram novos nos últimos anos? É inegável o contributo do desenvolvimento do jogo ao futebol como um produto. 

Portanto, o futebol é fato social total (Marcel Mauss) e ao ser encarado como tal é exemplo de como a ciência pode colaborar com ele. A evolução do jogo proporcionou avanços não apenas científicos, mas também tecnológicos. Ademais, uma nova ordem política e econômica está em curso e o futebol, têm sido um dos responsáveis por ele. Ainda há tempo para fazer uma contra-balança, a partir do momento que estivermos dispostos a romper com o senso comum e inovar. Não só o futebol, mas todo um país.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Os que têm estudo explicam a claridade e a treva, dão aulas sobre os astros e o firmamento, mas nada compreendem do universo e da existência, pois bem distinto de explicar é o compreender, e quase sempre os dois caminham separados.

João Ubaldo Ribeiro, em “O Albatroz Azul”

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Base científica

Há um aspecto positivo sobre a polarização que tomou conta do Brasil nos últimos tempos: a despeito dos (condenáveis e muitas vezes execráveis) excessos, nunca se debateu tanto no país. Numa cultura de subserviência em que gerações foram forjadas com base no “sim, senhor”, é extremamente relevante que tudo – e não apenas política – seja pauta de discussão, mesmo que isso alicerce absurdos como o terraplanismo (sobre isso, aliás, recomendo o documentário “A Terra é plana”, “Behind the curve” no original, dirigido pelo norte-americano Daniel J. Clark e disponível na plataforma de streaming Netflix). No entanto, e talvez pela falta de costume, ainda usamos expedientes que nos encaminham para debates rasos e que muitas vezes nos afastam de abordagens com potencial verdadeiramente transformador. Tem sido assim no futebol de “ataque x defesa”, o novo “Fla-Flu” dos absurdos nacionais.
Fernando Diniz, 45, é um exemplo: técnico do Fluminense desde o início do ano, o ex-jogador nascido em Minas Gerais tem formação em psicologia e se notabilizou por um trabalho à frente do Audax, vice-campeão paulista de 2016. Consolidou então uma identidade de jogo baseada em troca de passes curtos desde o campo de defesa, independentemente da pressão sobre quem está com a bola, e carregou esses conceitos em todos os times que comandou na sequência. Levou consigo também uma onda de detratores e de dedos pontos para serem apontados ao treinador a cada revés.
No último domingo (05), o Fluminense de Diniz chegou a estar perdendo para o Grêmio por 3 a 0 em Porto Alegre, virou para 4 a 3, cedeu o empate e conseguiu a vitória no fim do duelo. Se tivesse sido derrotado, o time carioca fecharia a rodada com nenhum ponto em três rodadas e jogaria imensa pressão sobre o treinador, cujo estofo já tem sido colocado à prova desde o início do ano – não conseguiu o título estadual e sofreu para avançar na Copa do Brasil, afinal. Os tropeços acumulados pelo treinador repercutem sempre mais e viram derrotas do próprio estilo, como se ele fosse refém do futebol e das ideias que tenta incutir em suas equipes.
Com o Fluminense de Diniz, o Grêmio de Renato Gaúcho e o Santos de Jorge Sampaoli, o Campeonato Brasileiro já teve pelo menos três grandes jogos em três rodadas. A presença dos três é um sopro de leveza em futebol embebido de pragmatismo, acostumado a priorizar os resultados e discutir apenas a superfície do que cerca o jogo.
A principal razão para os três treinadores serem tão importantes no atual momento do futebol brasileiro é que todos contribuem com pluralismo num contexto em que ainda sobrevivem muitos axiomas baseados em praticamente nada. Todo mundo que acompanha futebol no país convive assiduamente com chavões e frases prontas que arrotam conhecimento.
Tem sido assim no debate sobre poupar jogadores, por exemplo. O técnico do Corinthians, Fabio Carille, disse após a vitória sobre a Chapecoense que havia cometido um erro ao escalar titulares. Segundo ele, o time sentiu falta de força e perdeu capacidade de definição por estar exposto a uma maratona de partidas relevantes.
A entrevista sincera do treinador serviu como mote para retomar um desgastado debate sobre como administrar elencos em um calendário tão opressivo quanto o do futebol brasileiro. No meio disso, pulularam opiniões como “eu sou amador e jogo várias vezes por semana”, “quem ganha salários tão altos não pode estar cansado” ou “no tempo em que eu era atleta não era preservado a não ser que estivesse realmente lesionado”.
O último caso é especialmente importante porque tem a ver com a velha discussão entre conhecimento empírico e conhecimento técnico. Infelizmente, muito do debate esportivo (e não apenas no Brasil) é baseado na experiência de quem esteve no campo de jogo, sem considerar o nível de entendimento que essa pessoa possui.
Ora, o futebol muda radicalmente e constantemente porque o mundo muda radicalmente e constantemente. Situações vividas no passado sempre servem como referência, mas não podem simplesmente balizar sozinhas uma análise sobre um cenário atual.
Reside aí uma das principais questões sobre o excesso de programas de debate sobre futebol na TV brasileira: sobram chavões e opiniões baseadas em conhecimento empírico, mas falta base científica. E isso contribui para a formação de um público acostumado a discussões rasas, enfadonhas e contraproducentes.
No fim, perde o produto como um todo: o jogo se torna mais denso, mas o grande público consumidor não ultrapassa a superfície. A busca pela audiência fácil e pronta para receber o conteúdo cria nos produtores uma visão de que o palatável é o acertado, e o palatável nem sempre é bom para o longo prazo.
É a polêmica do advento de mídias sociais: o tempo médio de leitura da população mundial certamente aumentou nos últimos anos, mas o tipo de leitura é a questão. Pessoas que leem mais não significam necessariamente pessoas mais inteligentes.
A formação de massa crítica depende substancialmente da construção de raciocínio, e isso está necessariamente atrelado à capacidade de interpretar números e dados científicos. Resta saber quando a mídia esportiva no Brasil vai entender que isso, e não os debates inócuos, é o principal caminho para formação de público consumidor para o esporte no país.
 

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O problema do futebol brasileiro é não ter ideias de jogo

O futebol bem jogado aproxima uma equipe da vitória. E jogar bem o jogo em nada tem a ver com ter mais posse de bola do que o adversário, como muitos pensam. É possível marcar em bloco baixo, fechando os espaços do outro time, marcar gols em jogadas de transição e com isso jogar bem e vencer. Tudo isso com trinta por cento de posse, por exemplo.
A discussão que se tem no Brasil hoje é que a qualidade do nosso jogo é ruim porque as equipes são reativas. Discordo enormemente. Nosso jogo é ruim porque não temos ideias. Isso porque para se fazer com excelência o que coloquei no parágrafo inicial é preciso muito treino: técnico, tático, físico e mental para fazer os jogadores comprarem esse plano de jogo e executá-lo com perfeição.
O que vejo muitas vezes no Brasil (há exceções, claro!) são equipes e treinadores aleatórios. Ou seja, não há intencionalidade no jeito de jogar e o caos do jogo e a auto-organização natural da equipe ditará o que vai ser feito em campo. E sem um trabalho de qualidade por trás, evidentemente o jogo mais simples encontrado é dar a bola para o adversário, ficar esperando e tentar por algum acaso e se der, chegar lá na frente.
Vejo beleza e trabalho para operacionalizar uma marcação compacta, com coberturas, flutuações, equilíbrios e outros princípios defensivos. Executar bem isso não é simples. Também na transição é necessário ter ideias: basicamente quando você retoma a bola há duas opções: tirar da zona de pressão ou progredir rapidamente ao gol adversário. Como executar bem qualquer uma dessas possibilidades? Com qualidade no treino, com jogadores bem condicionados fisicamente, mas principalmente, mentalmente para tomar a melhor decisão. Em suma, é preciso bom trabalho.
O que quero aqui é refutar a ideia de que para jogar bem é necessário ter mais posse que o adversário e criar pelo menos vinte chances de gol. O jogar bem é muito mais complexo que isso. Evidentemente que se você tem jogadores capazes e um ambiente propício para propor um futebol de apoios, triangulações, ultrapassagens e troca de posições, ótimo! Porém, sendo ‘proativo’ ou ‘reativo’ a questão é saber o que se quer e como fazer. Ao deixar ao acaso, reclamando que não dá tempo para treinar, que no Brasil as viagens são longas, que o calendário é ruim e outras milhões de desculpas, continuaremos a ter jogos pobres, chatos e desinteressantes.
 

 

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Sobre o jogo jogado e a vida vivida

Yony Gonzalez, do Fluminense, logo após decidir o jogo na Arena do Grêmio. (Foto: Lucas Merçon/ Fluminense F.C/ Reprodução: Explosão Tricolor)

 
Bastou que o Grêmio fizesse o terceiro gol, com Jean Pyerre (um belíssimo gol, por sinal), para que um enorme arsenal de clichês, escondido sob as trincheiras, viesse à tona, quase que de imediato. Três volantes, qualidade técnica, vertical, horizontal… Lugares comuns, às vezes vestidos com uma roupagem moderna, não faltam nessas horas.
Mas o jogo não é lugar comum. Grêmio e Fluminense, juntos, jogaram uma das partidas mais agradáveis do ano – e talvez isso diga mais sobre o olhar de quem vê do que sobre o jogo jogado. Neste texto, gostaria de escrever algumas ideias, não exatamente sobre o jogo, mas a partir dele. Sem ordem, sem simetria. Vamos jogando com as palavras.

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Pense comigo: o treinador é uma espécie de escultor. Ou seja, é aquele que tem uma ideia, uma ideia que chega até ele, e é aquele que, diariamente, vai até o seu ateliê, até o seu laboratório (local do labor) para esculpir a ideia. À ideia, hoje em dia, nós damos o nome de modelo de jogo. Ao processo artesanal de esculpir o modelo, nós damos o nome de treinamento.
Grêmio e Fluminense, a meu ver, são equipes esculpidas de maneira diferente. O Grêmio é esculpido para o caos a partir do meio-campo, em movimentos quase que de futsal entre Maicon, Matheus Henrique e Jean Pyerre, junto das diagonais dos pontas (Éverton e Alisson). O Fluminense, de Fernando Diniz, é esculpido para o caos desde o primeiro metro, com Rodolfo e os quatro defensores, inclusive como forma de chamar o adversário para a pressão. Ou seja, enquanto um guarda energia no começo da construção para investi-la do meio em diante, o outro investe energia desde o início, para causar desequilíbrios imediatos. Até outro dia, o Fluminense tinha um caminho importante pelo lado, com Everaldo – na ausência dele, teve de se reconstruir durante o jogo, dentro do campo. Mas são duas equipes que querem a bola, querem passar a bola, querem passar a bola bem, querem jogar bem futebol.
E isso exige coragem.

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Quando o Grêmio pressionava loucamente, naqueles primeiros minutos, eu não me preocupava exatamente com essa dita diferença entre os times. Na verdade, eu pensava o seguinte: somos nós que jogamos com o jogo ou é o jogo que joga conosco? Se o Fluminense (que tem a esperança no hino), interpretasse aquele momento de infortúnio como um filme, jamais teria reagido. Na verdade, aquele era um retrato, um recorte do jogo. Sendo recorte, seria curto, finito, um pedaço do jogo.
Mas eu pensava comigo: I) quando isso (o retrato) vai terminar? II) o que vai acontecer depois dele?

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Existe uma questão importante aqui. Treinadores e treinadoras não esculpem apenas um jeito de jogar. Nós também somos escultores de nós mesmos. E isso faz absolutamente toda a diferença. Porque quando nos esculpimos, não nos preparamos para a mediocridade (o que está na média), mas para os altos e baixos, para o céu e o inferno. Para momentos como aquele, em que o Grêmio, tranquilo, estava três gols acima. Na pele de qualquer um dos dois treinadores, o que (e como) faríamos? À primeira brisa, nossas esculturas se deformam, são facilmente destruídas, ou mantém-se firmes?
Este ponto é particularmente interessante, porque estamos falando de dois treinadores que, obviamente, não são perfeitos, mas são convictos. Esculpem com ideias e com convicção. Se mensuramos o sucesso de treinadores e treinadoras pelo número de vezes em que a bola entra no gol adversário (ao longo do tempo), então estamos inteiramente perdidos, porque treinadores não fazem gols. Treinadores esculpem, pensam em caminhos para chegar ao gol. Se aquela for a mensurável, talvez seja preferível a derrota dos ‘fracassados’ do que a vitória dos outros.

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Júlio Cesar, depois do erro, fez três ou quatro defesas de cinema. Mas fala-se mais delas ou dele?

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Embora eu ainda não consiga descrever o que sinto em palavras (pelo menos não como eu gostaria), o que me ocorre é o seguinte: há uma relação muito forte, íntima, intensa entre o futebol e a vida vivida. Na verdade, o futebol é uma amostra micro, uma pequena representação, um retrato da arte de viver. Por isso, não basta saber de futebol: quem só sabe de futebol, nem de futebol sabe (Manuel Sergio). Essa citação, diga-se, é especialmente válida nestes dias.
Quem já sofreu derrotas da vida, derrotas no plural, sabe ao menos duas coisas: I) elas são formativas, elas nos formam e nos transformam; II) elas são parciais. Não existe uma derrota sequer que é eterna, nem mesmo a morte (se pensarmos que tudo o que não é vida é morte, a morte foi, portanto, superada pela vida que vivemos hoje). Basicamente, fiquei com a impressão de que o jogo escolheu jogar com o Fluminense, decidiu testá-lo, mas aquilo não seria eterno, no caso, não duraria 90 minutos. Em algum momento, como na vida vivida, haveria uma janela. Nessa janela, o Fluminense deveria reagir. Não com a técnica, com a tática, a posição, a ‘ordem’, nada disso: primeiro, seria uma resposta moral, uma resposta de valores (coragem, por exemplo). Depois, seria uma resposta encarnada (vinda da carne – também está no hino).
Acho que este Fluminense venceu aquele jogo não só porque sabe de futebol. Mais do que isso, de alguma forma, porque sabe da vida. Se não soubesse, teria se entregado.

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É claro que tudo isso se materializa no campo, na tática, na técnica, no físico, nessas coisas que não se separam. Daniel no lugar de Airton foi uma substituição que me surpreendeu, não pela coragem, mas porque Daniel estava ausente há algum tempo, e o garoto foi muito bem, trouxe outro tipo de apoio por dentro, o Fluminense passou a ser o Grêmio do primeiro tempo. Como na vida vivida, os papeis se invertem. Tudo o que não me mata, me fortalece, disse o Nietzsche. E é nossa obrigação interpretar os papeis que nos cabem (na vitória e na derrota) com respeito, com grandeza e mesmo com gratidão – quantos gostariam de estar ali e não estão?

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Minutos depois do jogo, já surgiram os discursos viralatistas, dos mesmos cães de sempre, que dizem que o jogo ‘não foi isso tudo’, que ‘faltou organização’, aqueles mesmos lugares comuns pseudomodernos. Que não aparecem, por exemplo, quando há um jogo de sete ou mais gols em qualquer liga europeia de elite. Ou não apareceram no quarto gol do Liverpool contra o Barcelona, em Anfleid.
Veja bem, é claro que não quero fazer comparações neste sentido. A questão, amigos e amigas, é que nos habituamos, ao falar do futebol brasileiro, ao copo meio vazio. Mas muitas vezes não é só o copo, a crítica também é vazia, especialmente aquela, herdeira de uma certa miséria intelectual, que se acha na condição de julgar e atacar treinadores e treinadoras, dos mais diversos níveis, sem que se tenha um mínimo entendimento do que significa ser treinador. Não existe um jogo de sete, oito ou quarenta gols sem erros defensivos, da mesma forma que não existe um jogo de futebol sem erros defensivos, da mesma forma que não existe jogo sem erros, da mesma forma que, repare bem, não existe uma vida sequer livre de erros (ou esses mesmos ‘analistas’ têm vidas perfeitas, moralmente irretocáveis?).
Como crianças que se habituam a um brinquedo apenas, formamos uma certa geração que só sabe brincar com um brinquedo, o brinquedo europeu ocidental das divisões de elite, e todos os brinquedos que escapem ao seu são feios, ‘assimétricos’, não têm ‘ordem’, não têm ‘método’. Mas qual é a contribuição deste discurso para o futebol brasileiro? Este é um futebol distante da perfeição, há um caminho enorme a ser desbravado, inúmeros avanços no horizonte, mas se um crítico quiser ser respeitado, talvez seja preciso se dar ao respeito também.

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O jogo foi um só, os olhares foram vários. Ao meu ver, existe um certo tratado moral ali. Há coisas ali sobre o futebol e sobre a vida – elas não se separam. Assim as coisas são esculpidas.
Enquanto isso, nós vamos nos esculpindo daqui também.
 

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Negócio fechado: o caso do Palmeiras e do Athletico

Eis que Athletico e Palmeiras não chegaram a acordo com o Grupo Globo e vários dos seus jogos não terão transmissão pelos canais do principal grupo de mídia do país. Em um primeiro momento é ruim, uma vez que o torcedor compra pacotes de transmissão, aguarda ansioso pelos jogos; grupos se reúnem em bares e restaurantes, estabelecimentos que esperam pelo futebol para potencializar os rendimentos. Como se houvesse um vácuo, um vazio, em pleno século XXI, caracterizado pela disponibilidade dos meios de transmissão e rapidez das informações.

Entretanto, o não acordo abre muitas possibilidades de longo prazo. Muitas delas abordadas nesta coluna. Em primeiro lugar, o clube é o grande responsável pelo seu produto. Um deles é o seu jogo e como ele vai colocar o seu jogo no mercado, como vai transmiti-lo, a fim de potencializar a exposição de patrocinadores e tudo o que for relacionado ao clube e ao jogo específico. Obviamente não dá o imediato retorno, mas o resultado virá com o tempo.

A possibilidade de acordo com outros grupos de mídia abre outras oportunidades também outrora desconhecidas. A presença de um concorrente é benéfica para o mercado e, em um futuro, caso haja possibilidade de acordo, é capaz de fazer as partes cederem em vários pontos. Quem ganha com isso? A instituição esportiva. O atleta. O torcedor, também.

Não é o fim do mundo Palmeiras e Athletico ficarem de fora da TV em alguns jogos. É bom sinal, de que existem outras possibilidades e oportunidades. Concorrência conduz à competitividade e competitividade leva à excelência na condução, transparência e execução dos negócios, do que levado em acordo e da gestão como um todo. Para além do futebol, é disso que o país precisa também.

Athletico e Palmeiras, grandes protagonistas fora de campo no início do Brasileirão Série A 2019. (Foto: Divulgação)

 

Com tudo isso, é questão de autonomia e “soberania” financeira do clube, que não dependem de certas origens de receitas antecipadas. Isso é financeiramente bastante saudável, permite o clube a trabalhar a longo prazo. O Athletico, especificamente, faz isso há muito tempo e está colhendo os frutos agora. Haverá sim um acordo, porque é inaceitável que dois grandes clubes da primeira divisão de profissionais de futebol do Brasil – principal modalidade do país com indiscutível palmarés internacional – não tenham a totalidade dos seus jogos disponíveis na TV. No entanto, as condições do acordo têm tudo para serem bem diferentes.

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Em tempo mais uma frase desta coluna:

Jogue na Inglaterra. Porque melhor do que ouvir você tem futuro”, é ouvir “you have a future

Anúncio da Nike ao promover o concurso “A Chance”, em 2011

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No Brasileirão não é o melhor que vence

Até que enfim começou o Campeonato Brasileiro! Gosto e defendo os campeonatos estaduais. A cadeia do futebol nacional precisa dessas competições, que empregam e movimentam a grande maioria de quem trabalha e depende da modalidade. Porém, nos moldes atuais os estaduais conseguem atrapalhar os times grandes, que jogam muito, e os pequenos, que jogam pouco. Mas isso é assunto para outra coluna. O fato aqui é que no Brasileirão há muito mais jogos interessantes por rodada. Ou deveríamos ter. Isso porque existe uma crença no inconsciente coletivo do futebol brasileiro de que todo clube deve priorizar uma ou outra competição. Jogar “para valer” dois ou até três campeonatos é impossível, alegam os preguiçosos. E muita gente aceita essa desculpa.
Os dois trabalhos mais consolidados no Brasil são o de Renato Gaúcho, no Grêmio e o de Mano Menezes, no Cruzeiro. Coincidência ou não, ambos estão há muito tempo em seus clubes e ambos também têm ganhado vários campeonatos. Renato com o seu Grêmio ofensivo e Mano com o seu Cruzeiro pragmático. Duas ideias diferentes, mas bem executadas pelos seus jogadores. Menção honrosa, também, a Fábio Carille reconstruindo o Corinthians e Odair Hellmann no Inter e Tiago Nunes no Atlético-PR aperfeiçoando e buscando alternativas dentro do seus respectivos modelos de jogo. Felipão no Palmeiras e Abel Braga no Flamengo são dois grandes gestores de pessoas, porém precisam apresentar mais em termos de conceitos de jogo.
Quando o Brasileirão recomeçar após a pausa para a Copa América teremos decisões em Libertadores e Copa do Brasil. Serão jogos de meio e final de semana para as equipes que forem avançando. E aí ouviremos aos montes a famigerada expressão ‘priorizar competição’. O discurso já está pronto: o Brasil é muito grande, são muitas viagens, os aeroportos da América do Sul não funcionam direito, não dá tempo para treinar, os jogadores estão cansados e outros blá, blá, blá, idênticos aos de anos anteriores.
Jogando muito ou jogando pouco a qualidade do futebol brasileiro, de maneira geral, representa a segunda divisão do futebol mundial. Muito por conta dessas desculpas e justificativas que são dadas. Jogador cansa porque corre errado. Porque a equipe é mal treinada. A questão física é muito relativa porque quanto melhor o time cumpre os princípios ofensivos, defensivos e de transição menor é o gasto de energia. Se treina pouco no mundo inteiro, mas a qualidade do treino e a criação de um estado de jogo nas atividades é que faz com que o jogador leve concentração e rapidez na tomada de decisão para o campo. Não é um estádio lotado que fará o jogador sustentar uma performance em alto nível técnico, tático, físico e emocional durante uma partida. Muito menos o técnico berrando na beira do campo. É treino intenso, na sua versão mais complexa e sistêmica, que fará com que o jogador somatize comportamentos e apresente isso no jogo.
Por todas essas questões não dá para falar quem vai ser campeão brasileiro. Já citei quais são os melhores trabalhos por aqui. Mas as desculpas vão acontecer conforme o ano for transcorrendo. Acredito que não vá vencer o melhor. E sim quem der menos desculpas.
 

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Sobre os limites do ataque: algumas notas

Marcelo Gallardo, do River Plate: um dos treinadores sul-americanos que deslocam os limites do ataque. (Reprodução: These Football Times)

 
Como eu mesmo tenho escrito recentemente, talvez o problema que mais me inquiete no futebol de hoje em dia seja o problema do ataque. Outros problemas, como os ideais inalcançáveis de liderança, as supostas tensões entre teoria/prática, os pseudo experts que se criam por aí (na academia e na imprensa), todos me parecem problemas secundários, seja pela irrelevância, seja pela inferioridade em comparação ao problema do ataque. Talvez o único assunto tão importante quanto o do ataque seja o da humanização. Mas este não será nosso foco hoje.
Neste texto, vamos conversar, na medida do possível, sobre algumas ideias que me ocorrem quando penso no ataque. Mas, assim como para as soluções, também me faltam palavras para expressar claramente minhas dúvidas. Assim, ao longo do texto, vou tateando minhas inquietações e, de alguma forma, espero que elas se relacionem com as suas.
Vejamos.

***

Assim como fizera o colega Nuno Amieiro, no seu livro Defesa à Zona, discutindo o significado do termo marcar, também me sinto obrigado a localizar os leitores e leitoras sobre o que falo quando falo do ataque. Para isso, não precisamos inventar muito. Quando falo do ataque, falo especialmente de situações de gol criadas a partir de lances com bola rolando. Esta tem sido minha grande preocupação: fazer com que minhas equipes cheguem ao gol, com bola rolando, de maneira recorrente.
Bom, neste sentido, qual é a relevância das estruturas? Ou seja, que diferença faz jogar num 4-3-3 ou num 1-7-2? Na minha opinião, nenhuma. Nenhuma porque as estruturas são apenas pontos de partida, são imagens sólidas que desenhamos a priori, mas que se dissolvem dentro do jogo, no ataque, na defesa, nas transições. As estruturas, queiramos nós ou não, irão se adaptar ao jogo, aos problemas do jogo, serão equilíbrios dinâmicos. Ótimo, mas se isso não é central, então o que é? Talvez sejam outras duas coisas: a quantidade e o movimento.
Vamos pensar em quantidade como o número de jogadores com os quais atacamos. Veja bem, isso é central. É possível jogar em 4-2-3-1, por exemplo, e atacar com apenas quatro jogadores: um dos laterais, os três meias e o centroavante. Da mesma forma, é possível jogar em 4-2-3-1, mas atacando com sete jogadores: os dois laterais, um dos volantes e os quatro da frente (quando me refiro ao número de jogadores, imagine os que estão autorizados a ocupar o espaço da linha da bola em diante). Voilà, matamos dois coelhos de uma vez só: a estrutura é secundária, mas o número de jogadores autorizados a atacar (ao mesmo tempo), não.
Da mesma forma, pense comigo: é possível atacar com sete jogadores a partir de estruturas mais fixas. Ou, se você preferir, em função do espaço. Ou seja, cada jogador sabe que tem um espaço a explorar, que têm uma zona e que, via de regra, não deve escapar à própria zona, exceção feita, talvez, ao chamado último terço do campo. Este não é um problema, pelo contrário: há diversos treinadores de ótimo nível que partem desta premissa. Por outro lado, imagine um treinador que também ataca com sete jogadores, mas que dá a eles liberdade para movimentarem-se pelo campo ofensivo como julgarem necessário. Veja bem, isso não é sinônimo de anarquia: afinal, qualquer tomada de decisão demanda responsabilidade, consigo mesmo e com a equipe. Mas, ao mesmo tempo, a liberdade ofensiva permite não apenas uma expressão da própria subjetividade, como também facilita o encontro dos espaços do jogo, dado que eles sempre serão imprevisíveis, contingentes, relacionais, incertos. Quem não estiver livre, disponível e aberto para explorá-los, terá maiores problemas. Quem estiver livre, quem puder criar a própria liberdade, talvez tenha mais possibilidades. Do caos, surge uma nova ordem.
Neste sentido, repare que interessante o primeiro gol do São Paulo, no último sábado. Éverton sabe que não precisa prender-se ao espaço definido no setor esquerdo do ataque, ele está livre! Por isso, atacou outro espaço, entre os zagueiros. Da mesma forma, repare que interessantes os movimentos ofensivos de Victor Ferraz, do Santos, e Gilberto, do Fluminense – apenas para ficar nos dois. Eles podem começar como laterais/alas, mas também podem virar volantes, meias, às vezes centroavantes!– quem decide é o jogo.
Para quem se defende, isso pode ser terrível.

***

No comecinho da construção, existe algo que me inquieta. Vários colegas (e eu mesmo) gostam da ideia de começar o ataque com uma linha de três. Mas de que linha de três falamos? Via de regra, há duas possibilidades: uma linha com dois zagueiros e um dos volantes (saída lavolpiana, se você preferir), ou então uma linha que parte de três zagueiros de ofício. A única semelhança entre elas está no número, na forma. No conteúdo, são bem diferentes.
Veja bem, existe uma consequência prática no fato de sair com uma linha de três zagueiros de ofício, especialmente quando essa é uma solução temporária, circunstancial, não exatamente treinada pela equipe. Para o zagueiro central, aquele que está de costas para o campo quando a bola está com o goleiro, esta pode ser uma situação bastante desconfortável. Porque não exatamente ele está habituado aquele lugar, não sabe se sai do corredor central (abrindo as linhas de passe atrás dele) ou se fica, ou às vezes não se lembra, no calor do jogo, de perfilar o corpo mais lateralmente, para perceber tanto o goleiro quanto o resto do campo. Neste caso, uma das coisas que agradam é fazer uma linha assimétrica, ou seja: quando a bola está com o goleiro, este zagueiro se desloca para um dos lados, (deixando o espaço central livre), fazendo o zagueiro daquele lado abrir mais alguns metrinhos. O objetivo é simples: evitar que zagueiros recebam de costas em um setor perigoso, especialmente se a ideia da equipe for construir por baixo. Aliás, em um futuro próximo, imagino que este espaço central seja cada vez mais ocupado pelos goleiros – como já fez o Hamburgo recentemente.
Repare que é uma situação diferente da de um volante (como um Busquets, por exemplo), que foi formado para aquela função, para perfilar-se de lado, para olhar por sobre os ombros sete, oito, dez vezes a cada lance, que sente quando deve aproximar-se do goleiro, quando deve se afastar. Esta fluidez tem uma repercussão importante na construção ofensiva, pois ela também dirá se haverá ou não maiores chances de superioridade mais adiante no campo. A equipe que ataca a partir de três zagueiros de ofício provavelmente terá mais ou menos jogadores no ataque do que uma equipe que parte com dois zagueiros de ofício e um volante? Provavelmente, menos. Pois aquela ainda terá um jogador logo à frente da linha de zaga (3 + 1), enquanto que, no outro caso, este jogador já existe (2 + 1, o que faz com que aquela equipe ataque, no máximo, com seis jogadores, enquanto esta pode atacar com até sete).
Isso faz com que uma equipe ataque melhor do que a outra? Claro que não. Mas é um detalhe a se pensar. E nos detalhes se faz o ofício de treinadores e treinadoras.

***

Por fim, vejo no ataque um problema existencial. Pense comigo: o jogador que joga é a pessoa que se é. Da mesma forma, o treinador que treina também é a pessoa que se é. Não é possível, amigas e amigos, dissociar a existência do ofício. Mas, quando falamos de futebol, será que levamos isso a sério?
Acho que não. Levar isso a sério significa, basicamente, sair das palavras para os atos. Significa estar munido de uma pedagogia maior, que enxerga a pessoa que está além do atleta, significa olhá-lo por inteiro, todos os dias, a cada instante. Isso é muito mais difícil do que parece. E o que isso tem a ver com o problema do ataque? Bom, basta lembrar que atacar bem é um ato de coragem. Mas repare que, sutilmente, formamos gerações cada vez mais confortáveis, imediatistas, simplificadoras, oscilantes, gerações moralmente frágeis e incapazes de reagir às próprias fragilidades. Como esperar, portanto, que aqueles com limites para resolver os problemas da vida vivida possam resolver, regularmente, os problemas do jogo? Este é o produto do nosso tempo, e é por isso que nós, treinadores e treinadoras, precisamos não apenas nos perceber como educadores, mas nos cercar do progresso (não do progresso da técnica, mas do progresso moral), necessário ao nosso ofício.
Neste sentido, repare bem, é fundamental cultivarmos um caminho duplo, que não apenas perceba o potencial educativo (literalmente pedagógico) do jogo, mas que também perceba o potencial educativo que está além do jogo. Nossas filosofias de vida precisam estar encarnadas – é por elas que educamos! Isso não se faz apenas pelos livros, isso se faz pela experiência, por aquilo que nos passa, que nos toca. Uma equipe ofensiva reflete gente ofensiva, uma equipe corajosa reflete gente corajosa (nos atos), uma equipe fluida reflete gente fluida e, especialmente, uma equipe humana reflete gente de carne e de osso, gente que é corpo, carne, sangue e espírito, e gente que não apenas pensa (porque a razão pura não é suficiente), mas que também sente o jogo, afina os sentidos, como um violonista afina pacientemente o instrumento em busca da melodia perfeita. Ultrapassar os limites do ataque significa ultrapassar os limites do humano, significa uma outra humanidade, de modo que não nos basta buscar (captar) os melhores jogadores, é preciso formar melhores jogadores, melhores pessoas, é preciso formar a si mesmo.
Mas como fazê-lo?
Bom, isso é outra conversa.