Mês: agosto 2019
Como colocar pontos de interrogação na cabeça do torcedor do São Paulo sendo que inúmeros pontos de exclamação foram apresentados nos último dias?! Longe de mim querer ser estraga prazer. Até porque nem é o caso, já que considero excelentes as contratações de Daniel Alves e Juanfran. Agora, entre ter jogadores excelentes no grupo e ter uma equipe sólida capaz de vencer campeonatos há um longo caminho a ser percorrido.
É contra-cultura aqui no Brasil falar sobre conceito de times, equipes e sistemas. Por mais que o futebol seja um esporte coletivo, nossa história se moldou pelas individualidades. Até certo ponto fomos bem sucedidos neste formato. No futebol antigo, o talento resolvia. Ganhamos Copas do Mundo assim. Hoje, entretanto, se o craque não for potencializado por tudo que a prática da teoria da complexidade traz de nada adiantará o talento individual.
Caberá ao técnico Cuca criar relações técnico-táticas e humanas nesse grupo do São Paulo. No futebol, a soma das partes não representa o todo. Ou seja, simplesmente colocar bons jogadores juntos não significa ter um jogo de qualidade. Quantas vezes vimos equipes com jogadores apenas razoáveis, sem nenhum craque, se dar tão bem em todos os aspectos do jogo por conta da excelente complementaridade dessas peças?! Já cansei de assistir equipes tão coesas que pareciam ter 14, 15 jogadores em campo, ao invés de 11.
O São Paulo vem de inúmeras quebras de ideias de jogo nos últimos anos. Treinadores e jogadores de qualidade passaram pelo clube recentemente e nada conquistaram. É inegável que há qualidade técnica no elenco. Mas agora, o time passará por uma nova transformação. E com o Brasileirão em andamento. Pegue a equipe 12 meses atrás, comandada por Diego Aguirre, passando depois por André Jardine, Vágner Mancini e agora com Cuca? O que ficou, o que se mantém? Praticamente nada.
A festa no Morumbi para receber Daniel Alves foi incrível. Como tinha sido muito legal também quando chegaram Luis Fabiano, Ganso, Kaká e outros bons jogadores. Só que o futebol vai muito além do marketing. A falta de novos troféus no salão do Morumbi mostra que tem faltado algo.
O Santos de Jorge Sampaoli tem deixado várias lições. O atual líder do Campeonato Brasileiro não chegou a esse posto por acaso. Continuo apontando que a equipe santista não é a favorita para levar o título nacional. Só que tão importante quanto o resultado é o processo. Por mais contraditório que possa parecer isso, pelo viés resultadista da nossa cultura, o peixe já quebrou paradigmas. Mesmo sem (e se não) ganhar nada.
Não vou me ater aqui à mentalidade ofensiva do Santos de Sampaoli. Isso já está claro desde os primeiros passos dele em solo brasileiro. É verdade que muita gente não entendeu no começo do ano, por exemplo, porque Vanderlei não era o goleiro ideal para o treinador argentino. Hoje, porém, ninguém contesta Everson, e suas saídas com os pés. Ou então as declarações dos atletas santistas estranhando o tal do ‘amor pelo balón’. O futebol brasileiro não é sinônimo de futebol arte?! Pela reação dos jogadores santistas fazia tempo que um técnico não pedia para eles gostarem de ter a posse de bola.
Já evoluindo também da hoje rasa discussão de alguns aqui no Brasil de que a posse pela posse não quer dizer nada, no Santos ela é meio para um fim maior que é dominar os adversários. E aí chego no ponto crucial desse texto: treinar, condicionar e preparar os jogadores técnica, tática, física e emocionalmente para esse tipo de jogo. Eis a grande diferença de Sampaoli para os demais.
Não assisto treinos. Até porque a maioria das atividades é fechada para a imprensa. Mas vejo todos os jogos do Santos. E ali está uma equipe bem treinada. Jogadores que sabem exatamente o que fazer em todas as fases do jogo – com e sem a bola. Sampaoli é inquieto a beira do campo, mas seus atletas cumprem as respectivas funções não por conta dos berros – até porque creio que a maioria nem entende o espanhol dele. Os atletas executam os seus movimentos porque estão condicionados para isso. E quanto mais elaborado é o conceito de jogo de uma equipe, mais as habilidades requeridas transcendem as técnicas e táticas e vão também para as cognitivas e mentais. Por exemplo, para construir um padrão agressivo é necessário concentração o tempo todo. E de uma maneira geral os atletas aqui no Brasil se acostumaram a dar o famoso ‘migué’ no treino. Logo, se não está treinado não é comportamento. Dessa forma, não aparecerá no jogo. Não existe mágica!
Não quero aqui ficar exaltando Sampaoli, até porque reconheço que ele é da segunda ou até da terceira prateleira dos técnicos mundiais. Mas espero com o maior entusiasmo que esse legado de que treino é jogo e jogo é treino que ele está deixando se perpetue aqui no Brasil. Quem sabe assim quando colocarmos frente a frente um jogo do Campeonato Brasileiro com um da Champions League não tenhamos mais a impressão de que a nossa partida está com a tecla da velocidade apertada no mais lento.
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Veteranos, nem tanto
O futebol do Brasil ficou agitado com as contratações do espanhol Juanfran e de Dani Alves pelo São Paulo Futebol Clube. Ademais, há sondagens a outros futebolistas de renome internacional. Nada-se em dinheiro? Não. Vive-se um bom momento a situação financeira dos clubes de futebol do Brasil? Muito menos. Do ponto de vista desta coluna, as vindas deles são estratégicas, quer seja dentro de campo ou fora dele.
Há quem diga que estão em fim de carreira e vomitam argumentos evasivos. No entanto, é completamente o contrário. Também é lugar comum falar que as contratações são importantes para a internacionalização da marca. Já são. Entretanto, é preciso manter esta internacionalização, cultivar, cativar. Em outras palavras, levar adiante, tema que pode ser abordado em outra coluna.
Para além de contribuírem com a comunicação e o marketing do clube, Dani Alves e Juanfran podem tornar-se ponto de virada a exemplo do que foi Ronaldo Fenômeno no Corinthians, entretanto com outros contornos, inseridos – oxalá – dentro de um planejamento estratégico. São atletas cujas opiniões serão carregadas de extrema peritagem, haja vista o currículo campeoníssimo dos dois atletas. Em outras palavras, serão capazes de quebrar paradigmas.
Desde o relacionamento com a imprensa até ao com os dirigentes e todas as partes interessadas, são atletas com experiência e que vêm de um ambiente de cultura organizacional praticamente inexistente por estes lados. Esta cultura, tema tão recorrente nos textos desta coluna, é fundamental na consolidação de uma identidade para a instituição, que fornece a todos aqueles que fazem parte dela – torcedores, sobretudo – um sentido de pertencimento. Identidade é fundamental para a consolidação e existência da organização, porque ela é capaz de dar sentido a todos os seus planos de ação, potencializa rendimentos (esportivos, estruturais e financeiros), que satisfazem as duas partes mais importantes dentro deste todo processo: o atleta e o torcedor.
Com tudo isso, em boa hora chegam estes reforços. Mais que dentro de campo, serão talvez mais importantes fora dele.
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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Vencer não é tudo, mas querer vencer, é.”
Vince Lombardi (1913-1970), treinador de Futebol Americano
Faz algum tempo, escrevi neste mesmo espaço sobre algumas das tensões do conceito de intensidade no futebol. Em linhas gerais, compartilhei uma impressão que cresce a cada dia, a saber: o termo intensidade está sendo poluído, banalizado e generalizado. Além disso, ainda é confundido, de vez em sempre, com uma certa noção de eficácia, como veremos a seguir. Ou seja, há quem ache que o futebol só pode ser bom e bem jogado se for ‘intenso’. Um certo ideal de intensidade seria pré-requisito para o bom futebol.
Bom, tenho minhas ressalvas e não sou o único. Gostaria de compartilhá-las com vocês nessa semana. Mais uma vez, sem nenhuma pretensão de acabamento.
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No primeiro capítulo do livro Fútbol: El Juego Infinito, Jorge Valdano faz uma crítica inteligentíssima ao ideal genérico de intensidade – que também se alastra mundo afora. Vamos pensar especificamente em um trecho, em que ele resume, com precisão, parte do envenenamento que os delírios por esta ‘intensidade’ podem causar. Trabalhei este mesmo trecho, de outra forma, alguns dias atrás:
“Se o bom da intensidade é que apazigua as consciências, o ruim é que arruinou um dos conceitos que mais contribuíram para o bom futebol: a pausa. Para jogar bem, é preciso correr, é claro, mas também há que saber parar, pois isso está se enchendo de jogadores que, em sua ânsia de serem intensos, se movem a uma velocidade acima do que podem se permitir, o atentado à precisão é permanente. Se não há precisão, a jogada não tem continuidade e, se não houver pausa, não há surpresa. A precisão e a pausa sempre foram os componentes essenciais do grande jogo, e a intensidade vai contra os dois conceitos. Assim, vamos começar a colocar a palavra “intensidade” como sinônimo de eficácia. Seria como pensar que um relógio é bom porque está se movendo mais rápido do que os demais.”
Vamos pensar sobre este trecho aos poucos. Em primeiro lugar, gostaria de falar um pouco deste ‘apazigua as consciências’. A minha leitura, dentre as várias possíveis, é que Valdano deixa subentendido que falar de intensidade, repetir a palavra intensidade, talvez sem muito rigor, é uma forma de mostrar-se atualizado, de mostrar-se estudado, de mostrar-se moderno e, portanto, é uma forma de se mostrar. É um certo narcisismo, supostamente capaz de tranquilizar a consciência. Talvez a intensidade seja uma dessas grandes commodities do futebol, um desses grandes recursos a serem ‘capitalizados’. E, nesta ansiedade de capitalizar, temos que nos mostrar atuais, reciclados, ‘modernos’, mesmo que o custo disso tudo, para o jogo e para nós mesmos, não nos sejam muito claros. Veja bem: o uso do termo intensidade não é um problema em si. Mas banalizar a intensidade, desgastar a intensidade, esgotá-la e usá-la sem muito critério, traz contribuições muito mais ilusórias do que reais.
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Agora, vamos pensar a relação que Valdano estabelece entre a intensidade e o tempo. Como os amigos sabem, a intensidade, na literatura do treinamento, é a contraparte de uma dupla que ainda tem o volume. Mas enquanto o volume está mais próximo da quantidade de um dado estímulo, a intensidade nos diz, grosso modo, um pouco sobre a qualidade deste estímulo. Como já disse outras vezes, desconfio que este conceito de intensidade, que usamos hoje no futebol, foi importado exatamente da literatura do treinamento.
O problema é que se a intensidade vem atrelada ao jogo, ela ganha enormes traços de complexidade. Os questionamentos metodológicos destas últimas décadas, que encararam os ideais cartesianos por trás do treinamento, nos fizeram pensar se o jogo não deve ser visto por olhos sistêmicos, complexos, que entendam o caráter absolutamente caótico do jogo e que, ao mesmo tempo, entendam que há ordens atrás deste caos. Ou seja, a intensidade, se aplicada ao futebol, não mais é absoluta (não importa apenas a velocidade de um dado jogador em um tiro curto), mas é relativa, relativa ao jogo. Por isso é muito mais do que física, é tática, técnica e mental – mas todos ao mesmo tempo, entrelaçados, complexus. Se falarmos de intensidade no futebol, não apenas temos que ter um certo cuidado com a palavra, como também não podemos afastar o termo da sua relatividade, da sua relação com o contexto, deste novo significado que nasce da irresistível associação à inteireza do jogo.
Por isso o alerta de Valdano é tão importante: ele nos diz que nos tão passivos com este discurso moderno, no futebol e fora dele, este discurso que prega a rapidez, a eficácia, o tempo real, o tempo do instante, este discurso que não admite perder tempo, estamos tão passivos frente a este discurso que não admitimos, por exemplo, baixar o ritmo, não admitimos que existem outros ritmos, outro tempo para o jogo e para a vida vivida que não seja este tempo corrido, imparável, incontrolável, sufocante, intenso. Chegamos ao ponto de achar que uma equipe deve ser intensa durante 90 minutos, e quando ela não consegue sê-lo, ainda que isso seja absolutamente natural, surgem as críticas aos treinadores, especialmente aos brasileiros, como se os problemas do jogo fossem sinônimo de um incompetência geral, uma incapacidade para imprimir este conceito idealizado de intensidade, do qual as equipes europeias de exceção conseguiram se aproximar.
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Como estamos intoxicados por este discurso, às vezes nos escapam detalhes óbvios. Por exemplo, jogos intensos podem ser muito ruins. Porque nos jogos muito intensos às vezes nada acontece, exceto a virulência. Se quiser, assista aos primeiros vinte minutos de Juventus x Ajax, jogado em abril e repare que o ritmo é tão alto, mas tão alto, que tudo é muito rápido, muita coisa se passa, muitos estímulos passam, mas pouca coisa acontece. E o que o jogo parecia pedir, como Valdano nos disse acima, é uma pausa, um pouco de tempo, de respeito ao tempo, de câmbio de ritmo, um tempo para o próprio jogo, ao invés dessa ansiedade desenfreada, que também se estende, cada vez mais à formação dos nossos jovens jogadores. Mas eles, se picados por este mosquito da intensidade, talvez não consigam imaginar que há outras formas, há inúmeras formas de pensar a intensidade no jogo. Penso, por exemplo, se não há pelo menos dois retratos macro da intensidade no jogo: uma em que tudo se passa e nada acontece e outra em que se passa menos, num tempo mais longo, mas mais coisas acontecem. A intensidade, às vezes, está na pausa, na calma.
Mas sobre isso falamos em breve.
Em parceria com a Indústria de Base, apresentamos a seguir números do primeiro levantamento intitulado O FUTEBOL MASCULINO BRASILEIRO E A ESCOLARIZAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE JOGADORES.
O estudo traz dados referentes ao número total de jogadores no futebol de base do Brasil, quantos deles atuam em clubes sem o certificado de clube formador, e ainda quantos jovens deixam suas cidades anualmente para participar processos seletivos.
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O FUTEBOL MASCULINO BRASILEIRO E A ESCOLARIZAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE JOGADORES
Este documento foi redigido com o objetivo de compreender a magnitude do futebol de base masculino no Brasil, evidenciando a grande concorrência por postos de trabalho de qualidade no futebol profissional e destacando os conflitos existentes entre o processo de formação esportiva e a escolarização dos jovens jogadores.
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1. FUTEBOL PROFISSIONAL — O TOPO DA PIRÂMIDE É MAIS FEIO DO QUE PARECE
A carreira de jogador de futebol é curta, instável e mal remunerada. Mesmo assim, milhares de jovens tentam a sorte nos gramados pelo país. Vamos aos números:
Os postos de trabalho de qualidade no futebol brasileiro masculino são pouco variáveis dado o número fixo de clubes nas principais divisões do país. Em uma conta simples, multiplicando o número de clubes que disputam as três principais divisões do país e que, portanto, têm condições de oferecer contratos de trabalho de, ao menos, um ano a seus jogadores, pelo tamanho do elenco de cada um desses clubes chegamos a um total estimado de 1500.
Clubes das séries A, B e C (60)* Jogadores no elenco — estimativa (25) = 1500 postos de trabalho
Além dos postos dentro do território nacional, é possível contabilizar os internacionais, nem sempre tão glamorosos como os das grandes equipes europeias, mas atraentes o suficiente para convencer pouco mais de 1200 jogadores a deixar o país de acordo com relatório do CIES de maio de 2017.
Postos nacionais (1500) + Postos internacionais (1200) = 2700 postos de trabalho
Portanto, os jogadores brasileiros disputam, anualmente, cerca de 2700 postos de trabalho de qualidade dentro desse esporte. Nesses postos, estão os jogadores menos impactados pela sazonalidade da profissão. Eles conseguem contratos mais estáveis, pois suas equipes tem o calendário de jogos garantido por pelo menos um ano. Neste grupo, encontram-se as grandes estrelas do futebol brasileiro, Dudu, Gabigol, Fágner, Pato, Fred, e os “estrangeiros” Neymar, Daniel Alves, Fernandinho, Alisson… Além de muitos outros menos conhecidos.
É importante considerar que os postos nacionais também são ocupados por jogadores estrangeiros, como no caso do centroavante peruano Paolo Guerrero, do Sport Club Internacional, e o meia uruguaio Giorgian De Arrascaeta, do Flamengo.
Abaixo desse oásis da estabilidade, fama e grandes salários, temos a série D, competição de âmbito nacional disputada no segundo semestre por equipes que tiveram bom desempenho em seus estados na primeira metade do ano. Daqui para baixo da pirâmide, a sazonalidade, baixos salários e falta de pagamento já são um fenômeno de impacto social relevante, pela frequência e pelo número de jogadores atingidos. Apesar da importância da questão, os números são pouco precisos, e muitas vezes divergentes. Aos serem analisados os dados disponíveis, a impressão é de que não há no país grande interesse pela questão.
Quantos jogadores de futebol profissional temos no Brasil?
As fontes mais confiáveis são o “Raio-x do futebol”, publicado anualmente pela CBF, e o “Relatório Anual de Informações Sociais” — RAIS, publicado pelo Ministério Público do trabalho e que, segundo as reportagens consultadas, possui dados relevantes para o presente levantamento em sua edição de 2017.
“O Rio é o segundo estado com mais empregados — 786 atletas com carteira assinada em 2017. Perde apenas para São Paulo, com 1 790 jogadores” (Ministério Público do Trabalho. Relatório Anual de Informações Sociais — RAIS, 2017. In.: Revista Piauí. Maio, 2019).
De acordo com a reportagem, o número combinado de atletas com carteira assinada em 2017 nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo seria de 2576.
Números conflitantes com os apresentados por uma reportagem da Folha, em maio de 2018. Segundo os dados apresentados, o total de jogadores profissionais atingiria a soma de quase 13 mil, com cerca de 8 mil apenas no estado de São Paulo.
Já de acordo com os números mais recentes da Confederação Brasileira de Futebol — CBF, referentes à 2018, os números são os seguintes:
Contratos profissionais — 22.177
Contratos ativos — 7.048
Vínculos ativos — 47.177
A Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol aponta um total de cerca de 18 mil, com o número de desempregados podendo chegar aos 15 mil nos momentos do ano com menos competições.
“De acordo com a Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol, o País possui hoje 18 mil atletas profissionais. Os índices de desemprego variam ao longo do ano por causa da mudança no número de competições. Os clubes menores simplesmente fecham as portas no segundo semestre. “No mês de abril, temos 30% dos atletas trabalhando. No fim do ano, esse número cai para 6%”, disse o presidente Felipe Augusto Leite” (Istoé, outubro, 2017).
Mas o que é “desemprego” para um jogador de futebol?
Estar jogando em um clube pequeno, em uma competição de pouca visibilidade, com um contrato de três meses, podendo não receber por isso é a situação da maioria dos jogadores no país. É possível considerar que essa é uma situação de emprego?
“Veja a Copa Paulista, por exemplo. É uma competição deficitária, que os clubes usam de laboratório para o ano seguinte. Oferecem salários baixos para fazer avaliações de atletas ainda em início de carreira e, logo depois, dispensam os garotos. São atletas que nunca haviam sido profissionais antes e dificilmente conseguirão outro clube. Você considera essas pessoas jogadores de futebol profissionais? ”, questiona o presidente do Sindicato de Atletas de São Paulo, Rinaldo Martorelli. A resposta dele é que não. Já para a Fenapaf, é sim” (Folha. Maio, 2018)
Como é possível observar no trecho acima, não há uma padronização para a definição dessas estatísticas, o que torna difícil conclusão sobre o real número de jogadores trabalhando em situação precária no país. Uma estimativa baseada nos números acima, estabelecendo o total de jogadores “profissionais” pelo país em um patamar de cerca de 20 mil, e levando em conta o cálculo do número de postos de trabalho de qualidade na altura dos 2700, é razoável considerar que temos, ao menos, 17 mil jogadores em situação precária de trabalho no Brasil.
Total de jogadores no país (20 mil) — Postos de trabalho de qualidade (2700) = 17300 desempregados/em situação precária de trabalho anualmente.
O grande sonho e a falta de qualificação
É depois de adulto que a maioria dos jogadores começam a entender as dificuldades da carreira que escolheram, mesmo assim, seguem firme em busca do sonho. Eles têm duas razões para isso. Acreditar muito no próprio talento e dedicação, apesar das estatísticas difíceis, e não ver alternativas melhores, falta a eles qualificação.
“As crianças que começam no futebol hoje em dia pensam isso mesmo. É o que aparece na TV” (Folha, 2018).
“Para um goleiro, a minha idade não pesa tanto. Mas na vida, sim. Tenho amigos da minha idade que já terminaram a faculdade. Eu, não. Mas tenho esperança que vai melhorar. Fiz isso a minha vida toda. Não consigo me ver fazendo outra coisa”, diz Kaique de 22 anos.
“Rodrigo [outro jogador] se acostumou à mesma cena. Ver antigos companheiros de campo desesperados à procura de trabalho” (Folha, 2018)
A pirâmide salarial
De acordo com dados da CBF publicados em 2016, o total de jogadores no país era de 28.203. Desse universo, menos de 4% — cerca de 1100 — tinham no seu contrato de trabalho registrados vencimentos maiores do que R$ 5 mil.
Carreira curta
Todos esses jogadores, sejam os de seleção, com seus salários de seis dígitos, ou os milhares da base da pirâmide, com rendimentos escassos e pouco regulares, verão sua carreira esportiva terminar de maneira muito rápida, às vezes com 20 e poucos anos, em outras com mais de 40, mas ainda assim com muitos anos de vida pela frente. Considerando a estimativa de cerca de 20 mil jogadores no país e o número de aposentadorias anuais, 900, de acordo com dados publicados pela CBF referentes a 2018, é possível estimar que em uma década um número aproximado de 29 mil pessoas tenha se aventurado no mundo do futebol profissional e experienciado todas as peculiaridades dessa carreira.
Jogador brasileiro — A imagem do país em jogo
Os jogadores de futebol do Brasil estão entre as personalidades do país com maior visibilidade na comunidade internacional. Suas declarações, comportamento, atitudes, são uma janela para o mundo mostrando como é o país e o brasileiro, podendo ter impacto nas relações exteriores, comércio e turismo. Ter jogadores de elite com uma bagagem educacional rica é uma vantagem estratégica que o país vem desperdiçando há anos.
Há poucos anos, aconteceu um caso que ilustra como a defasagem educacional, e principalmente da falta de uma relação mais afetiva com a escolarização e desenvolvimento intelectual impacta a vida de um jogador de futebol profissional. Um jogador brasileiro que atuava em um clube importante na Espanha foi contratado por uma equipe inglesa. Naquela altura, o jogador não sabia falar uma palavra em inglês, o que dificultou inclusive seu início no novo local de trabalho. É emblemático o fato de que um jogador que atingiu esse nível, e que certamente já tinha a ambição de viver e jogar na Europa, não tenha tido em nenhum momento de sua carreira a atitude de decidir estudar a língua mais falada do mundo que, com toda certeza, seria muito útil tanto pessoal, como profissionalmente, em algum momento de sua vida.
O exército de desempregados
Se a formação educacional dos ídolos é fundamental, que dirá os milhares de jogadores que ainda irão se aposentar sem nenhuma qualificação e a conta bancária zerada.
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2. NA BASE — A EDUCAÇÃO JOGADA PARA ESCANTEIO
A realidade das categorias de base no futebol é muito heterogênea. Enquanto os maiores clubes possuem estruturas físicas sofisticadas, capazes de acomodar centenas de jovens em condições dignas, na outra ponta temos alimentação precária e ambientes muitas vezes insalubres e degradantes. Antes de aprofundar a relação das categorias de base com a escolarização e a educação de maneira geral, é fundamental entender o número total de jovens impactados nesse universo.
A Federação Paulista de Futebol tinha até abril 13.172 jogadores de base inscritos em todo o estado. Não é possível afirmar com precisão qual é esse número no âmbito nacional. Em fevereiro de 2019, a CBF disponibilizou em seu site oficial os seguintes números:
Contratos profissionais: 22.177
Vínculos não profissionais: 38.309
Em teoria, entre os mais de 38 mil vínculos não profissionais deveriam estar contidos muitos dos jogadores de base do futebol masculino brasileiro, o restante dos jogadores de base está incluído naqueles que já completaram 16 anos e, por estarem se destacando, podem já ter um contrato profissional assinado. Por outro lado, entre os 38 mil não profissionais, podem estar incluídos também registros de ligas amadoras, etc., o que diminuiria o número total de jogadores jovens nesse grupo. Foram consultadas diversas fontes de dentro e de fora da CBF e nenhuma delas soube precisar o que os dados de fato querem dizer.
Um outro caminho para tentar entender o real tamanho do futebol de base nos clubes profissionais, aqueles filiados à CBF, no país, é verificar o número de clubes que participam das competições estaduais. Em um levantamento realizado pelo Indústria de Base, que levou em consideração apenas a menor faixa etária seguinte à idade mínima permitida para o alojamento de jovens jogadores no país que é de 14 anos, foram identificados 448 clubes em atividade em 2018. A faixa etária de competição mais comum nos 27 estados da federação, dentro desses parâmetros, é a sub-15.
Pela grande heterogeneidade de suas estruturas, é difícil definir com precisão o número de jogadores em cada um desses 448 clubes. Os maiores e mais ricos clubes do país podem ter equipes de futebol de campo e de futsal que vão desde o sub-9 até o sub-23, enquanto equipes menores e/ou de estados mais periféricos do ponto de vista econômico e futebolístico podem ter apenas duas ou três equipes de base, como é possível verificar nos sites das federações estaduais. De acordo com profissionais de diversas áreas que atuam ou atuaram nas categorias de base do futebol masculino do Brasil e que colaboraram com esse levantamento, cada equipe de base de um clube no Brasil possui de 18 a 40 jovens jogadores e cada clube tem um número total — somadas todas as suas equipes — que varia de 90 a 300 jogadores. Por considerar a amostra de dados pequena, foram entrevistados profissionais de apenas 7 clubes, a decisão foi a de estabelecer essa estimativa em 90 jogadores por clube, o menor número encontrado.
Clubes com categorias de base (448) * Jogadores/clube (90) = 40320 jogadores de base no país
Lembrando que esses 40320 jogadores vão disputar as 2700 vagas de qualidade no futebol profissional na próxima década com jogadores que já estão nestes postos e vão demorar anos para se aposentar.
As condições de vida nas categorias de base do futebol masculino
Se a qualidade da maioria dos postos de trabalho no futebol profissional é precária, é fácil imaginar que na base, a condição de vida não deve ser diferente. Para além dessa dedução, o número de clubes com o certificado de clube formador — CCF, pode ser um bom parâmetro para que se conclua algo a respeito.
Regulamentado em janeiro de 2012 pela CBF, o CCF é um mecanismo previsto na lei Pelé que incentiva as confederações esportivas nacionais, no caso do futebol a CBF, a conceder uma certificação reconhecendo clubes e entidades esportivas filiadas como formadoras caso atendam requisitos mínimos. Como contrapartida, os clubes adquirem legalmente o direito à preferência na assinatura do primeiro contrato profissional dos jovens treinados na instituição ou à uma indenização caso ele chegue a um acordo com outra agremiação e também ao mecanismo de solidariedade da FIFA, muito comemorado por clubes brasileiros em grandes transferências internacionais como a de Neymar do Barcelona para o Paris Saint Germain e de Philippe Coutinho do Liverpool para o Barcelona, que geraram, respectivamente, R$ 33 mi para o Santos e R$ 15,8 mi para o Vasco. Em resumo, o CCF previne que a instituição que investiu tempo e dinheiro na formação de um jogador deixe de contar com seus serviços em um momento crucial, que é a assinatura do primeiro contrato de trabalho ou, ao menos, receba uma compensação financeira por isso. Algo muito relevante em um cenário no qual a maioria dos clubes do país tem dívidas significativas se comparadas a seus faturamentos anuais e tem na chamada “venda” de jogadores uma das poucas soluções para equilibrar as contas.
Apesar dessa garantia jurídica, o número de clubes com certificado de clube formador representa apenas uma pequena parcela dos filiados à CBF mesmo entre aqueles que possuem categorias de base. Dos 448 clubes que disputaram competições em faixas etárias nas quais o alojamento é permitido por lei em 2018, 406 clubes NÃO possuíam o certificado. Abaixo, os requisitos mínimos para que um clube possa solicitar o reconhecimento como clube formador junto à CBF.
Os 5 requisitos do CCF
1 — Apresentar a relação de técnicos e preparadores físicos responsáveis
2 — Comprovar participação em competição oficial
3 — Apresentar o programa de treino, seus responsáveis e compatibilidade com a atividade escolar dos jovens jogadores
4 — Garantir frequência escolar dos jovens jogadores
5 — Garantir a saúde dos jovens jogadores (por meio da contratação dos seguintes profissionais: médico, fisioterapeuta, psicólogo, nutricionista, e de ações como promover visitas frequentes dos ou aos familiares, oferecer três refeições diárias, manter os alojamentos limpos e locais de treinamento preparados para atendimento de urgência).
406 clubes atuando nas categorias de base sem CCF, é dizer que não é possível garantir que mais de 35 mil jovens tiveram acesso à escola.
Clubes sem CCF (406) * Jogadores/clube (90) = 36540 jovens jogadores em clubes sem CCF
Vale lembrar que o Flamengo, um dos clubes mais ricos do país, possuía o CCF na época do incêndio que vitimou 10 adolescentes nas dependências do clube. Um indício de que não é possível afirmar que mesmo nos clubes certificados o acompanhamento escolar, assim como o dos outros requisitos do documento, seja rigoroso.
Bom de bola, bom na escola?
O distanciamento do ensino formal nos centros de formação de jogadores acontece tanto literalmente quanto de uma forma mais sutil. Estudos publicados por Melo e colaboradores em 2010 apontam que jovens jogadores provenientes de outras cidades e estados que vivem em regime de albergamento em clubes do Rio de Janeiro são os que detêm maior número de reprovações e de atraso escolar quando comparados aos futebolistas em formação que vivem com a família. Também segundo os pesquisadores, quanto maior a faixa etária, mais os jovens são levados a estudar no período noturno. Em outro estudo, realizado por Marques e Samulski em 2009 com 186 jogadores de 18 anos, também é apontado o atraso escolar e dificuldades para conciliar a escola e a carreira esportiva, sendo que mais da metade da amostra parou de estudar em algum momento para se dedicar ao futebol.
Não há, em geral, por parte dos jovens jogadores, uma relação afetiva com a escola, “predomina a visão do estudo como obrigação, um mal necessário imposto pelas famílias e pelos clubes para obter a permissão de continuar jogando futebol. É visível o distanciamento afetivo desses jovens da vida escolar” (UNICEF, 2014, p. 28). Tal distanciamento dos jovens em relação à escola, observado também por Rocha, em estudo publicado em 2011.
Existe também, certa complacência com o jovem jogador. Sua vida escolar tende a ser mais permissiva do que a de um aluno “regular”. “Professores e diretores se tornam parceiros e colaboradores na concessão de benefícios sistemáticos que objetivam a compatibilização entre as rotinas desses alunos. De modo semelhante ao desejo dos atletas, os pais são cientes e concordam com o funcionamento de tais mecanismos” (ROCHA et al, 2011, p. 262).
A continuação da vida escolar, quando ocorre, é muito mais por uma obrigação legal, do que por uma convicção. Por isso, “pouca atenção é dada ao planejamento de uma carreira não esportiva futura” (MARQUES; SAMULSKI, 2009, p. 115). Os clubes parecem “empurrar seus atletas para o ensino noturno” (MELO et al, 2016, p. 6) e os jovens jogadores podem chegar a passar semanas ausentes da sala de aula para participar de competições e testes dentro e fora do país (MELO et al, 2016; SOUZA, 2008). A questão da perda de dias e até semanas do calendário escolar por conta da carreira esportiva será abordada na sequência.
As competições e o conflito com o calendário escolar
As equipes de base no Brasil disputam competições estaduais, usualmente de longo prazo e realizadas aos finais de semana, nacionais, a partir da faixa etária sub-17 e mais restritas aos grandes clubes, e torneios de sede fixa. Por serem disputados aos finais de semana, os estaduais, em teoria, não prejudicam a frequência escolar dos jovens jogadores. Em algumas ocasiões, porém, as equipes viajam para a partida no dia anterior à disputa, na sexta-feira, o que pode ter como consequência para os jovens que estudam no período da tarde e da noite faltas frequentes nesse dia da semana. Essa situação é mais comum nos clubes grandes, pois eles possuem maiores recursos para financiar a estadia de suas equipes em outras cidades quando necessário. Os clubes grandes também disputam com maior frequência os campeonatos nacionais de base, esses sim, em dias de semana.
As competições com sede fixa são as que causam um maior impacto em relação à perda de dias letivos. Em um levantamento feito pelo Indústria de Base com quatro clubes grandes do estado de São Paulo, foi constatado que esses torneios significam, em média, a perda de 30 dias letivos nas equipes da faixa etária sub-15 de cada clube.
Os estudos e os alojamentos
Se os jogadores que vivem em regime de albergamento são os mais afetados pelos impactos negativos da carreira esportiva juvenil na escolarização, é fundamental saber qual é o número total deles em âmbito nacional. Para tentar responder à essa questão também foram utilizados números conseguidos por meio de entrevistas com profissionais do futebol. De acordo com os relatos, o número é pouco homogêneo entre as equipes. Um deles afirmou trabalhar apenas com jogadores da própria cidade até a faixa etária sub-17, por outro lado, em dois clubes do sudeste, a taxa de jogadores alojados em relação ao total de jogadores da base é igual ou maior a 50% o que corresponde a cerca de 145 jogadores nos dois clubes. A média de jogadores alojados em relação ao total nos 6 clubes dos quais foi possível obter esse número combinada à porcentagem de alojados no Fluminense, disponível em reportagem do Globoesporte.com publicada em fevereiro, é de 25,2%. A mesma reportagem traz os seguintes números de jogadores alojados em equipes de série A:
Athlético — 120
Atlético — 105
Avaí — 44
Bahia — 100
Ceará — 40
Chapecoense — 48
Cruzeiro — 35
Flamengo — 60
Fluminense — 45 (de um total de 300)
Goiás — 34
Palmeiras — menos de 100. Alojados em um hotel da capital paulista (Informação enviada via assessoria de imprensa do clube no dia 02/08)
Vasco — 45
TOTAL — 876
25,2% do total de jogadores de base no Brasil (40320) = 10160 jogadores alojados no Brasil
Há ainda mais um degrau na pirâmide da formação dos jogadores de futebol brasileiro. O dos jovens que buscam uma vaga em um clube de futebol filiado à CBF.
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3. OS PERAMBULANTES
Os processos de seleção dos clubes são bastante diversificados e também muito heterogêneos, sendo realizado de acordo com as respectivas capacidades financeiras de cada agremiação. Eles vão desde seletivas, as famosas peneiras, até a utilização de uma rede de observadores espalhada por diferentes cidades e estados. As crianças e jovens aprovadas, a preferência é pelo ingresso nas menores faixas etárias possíveis, passam, normalmente, por uma segunda fase do processo de seleção que consiste em uma semana, duas em alguns casos, de treinos dentro do clube. Uma semana fora de casa é igual a uma semana sem aulas, já que esse período de treinos independe do calendário escolar de acordo com os relatos.
Se conseguir dados oficiais precisos sobre jogadores profissionais e de base já é uma missão ingrata, quantificar o número dos jovens “perambulantes” com um padrão mínimo de precisão é quase impossível. Nos relatos dos entrevistados os números variaram entre pouco mais de 30 a cerca de 500 jovens participando anualmente das semanas de avaliação nos clubes brasileiros. Esses números são referentes apenas àqueles que se deslocam de sua cidade de origem perdendo, por consequência, ao menos uma semana de aulas.
Clubes com categorias de base no país (448) * Jogadores em avaliação por ano (30) = 13440
Há cerca de quatro anos, o Indústria de Base acompanha de perto a rotina de dois jogadores que deixaram suas famílias pela aposta em uma carreira no futebol. Um dos casos é o de um jovem do interior de São Paulo que deixou a casa dos pais em 2015, aos 15 anos, para viver a 70 km de sua cidade natal. O jovem se mudou para outra cidade de sua região em 2016, mas ficou apenas dois meses na cidade, voltando para seu primeiro clube seguindo a sugestão do empresário. Apesar do período no segundo município, ele não transferiu sua matrícula escolar, terminando os estudos depois de voltar para a cidade do primeiro clube. Após outras idas e vindas, o jovem desistiu da carreira esportiva aos 18 anos.
Esse garoto teve um início que é considerado tardio no futebol, mesmo assim foi possível observar ao longo de sua carreira impactos negativos dos frequentes deslocamentos em sua escolarização. O outro caso acompanhado pelo site é o de uma criança, um menino roraimense que, desde os 7 anos, passa por avaliações em clubes de São Paulo e Rio de Janeiro. A primeira foi em novembro de 2017. Em 2018, foram mais três viagens ao sudeste do país para semanas de avaliações, em abril, junho e outubro. Aprovado por um grande clube do Rio de Janeiro, ele está morando com o pai e o irmão, de 5 anos, na cidade desde o começo do ano. Fica claro nesse caso que a tentativa de emplacar uma carreira esportiva é um projeto familiar. A pesquisadora Carmen Rial estudou a história de jogadores bem-sucedidos e constatou que é comum que o filho mais novo da família consiga êxitos maiores em sua carreira dentro do futebol, isso acontece, pois, a família, melhor estruturada financeiramente com o filho caçula, possui mais recursos para investir nele do que na tentativa anterior, com o irmão mais velho, o que auxilia no êxito da carreira.
A prática de recebimento de jogadores menores de 14 anos em categorias de base de clubes de futebol, como no caso relatado, é comum, principalmente nos maiores clubes do país. Por conta de os processos de avaliação não respeitarem, usualmente, o calendário escolar, a consequência é que milhares de crianças perdem uma quantidade significativa de semanas de aula para participar desses processos.
Procurando joias, esquecendo de cultivar o próprio quintal
Esse grande fluxo de crianças e jovens pelo território brasileiro é questionável não só do ponto de vista educacional, mas também esportivo. Países muito menos populosos do que algumas cidades brasileiras formam quase tantos bons jogadores quanto o Brasil, como é o caso do Uruguai, com 3,45 mi habitantes e a Croácia, com 4,15 mi. Tanto para o desenvolvimento humano dessas crianças e jovens, quanto para a construção de um processo esportivo mais sustentável, seria interessante que os jovens jogadores ficassem tanto tempo quanto possível em suas cidades de origem.
Números
2700 vagas de qualidade por ano no futebol profissional
20 mil jogadores profissionais
40 mil jogadores de base
35 mil em clubes sem CCF
10 mil alojados
13 mil perambulantes
Ponderações
É importante pontuar que alguns clubes do futebol brasileiro possuem ótimas estruturas em seus alojamentos e investem na formação educacional de seus jovens jogadores. As matrículas em escolas particulares e a necessidade de reforço para alguns jogadores, sinalizam que a defasagem educacional é um fenômeno que extrapola o futebol, ela atinge as camadas sociais dos jovens que usualmente buscam no esporte uma esperança de ascensão social que a escolarização não lhes aparenta proporcionar. Por outro lado, a formação educacional passa a ser uma preocupação obrigatória das instituições esportivas a partir do momento no qual se assume a responsabilidade de abrigar menores.
Os dados e estimativas apresentadas ao longo do documento servem de alerta em relação ao número de crianças e jovens que perdem semanas de estudo por conta do início precoce da carreira esportiva, mas também para o fato de a educação não ser vista como prioridade no país de uma forma mais ampla. O futebol, pelo lugar de destaque que ocupa na cultura nacional, pode ser uma ferramenta potencializadora de mudança desse paradigma.
Ações de priorização da educação no esporte de base, além garantir o previsto no ECA e impactar os milhares de crianças e jovens diretamente ligadas ao esporte, podem servir como um gesto simbólico de grande impacto em todo o país. Na Alemanha, por exemplo, um jogador de dezessete anos não disputou uma partida da competição de clubes mais importante do mundo, a Champions League, pois tinha uma prova na escola marcada para o mesmo dia do jogo em questão. Mais do que o impacto prático da ação em si, que pode até ser questionado, a mensagem passada é de que não há nada mais importante do que a educação para um jovem, é o esporte de rendimento cumprindo sua função de transmitir valores positivos para a sociedade.
Referências adicionais
Onde há fumaça, há fogo. Indústria de Base, 2019.
Procurando joias, futebol brasileiro esquece de cultivar o próprio jardim. Indústria de Base, 2019.
Joia ou gente? Opinião de treinadores brasileiros sobre jogadores de futebol da categoria masculino sub-15. Arthur Sales Pinto, 2018.
A infância entra em campo: riscos e oportunidades para crianças e adolescentes no futebol. Unicef, 2014.
Jogadores de futebol no Brasil: mercado, formação de atletas e escola. Antonio Jorge Gonçalves Soares e colaboradores, 2011
Perfil educacional de atletas em formação no futebol no Estado do Rio de Janeiro. Leonardo Bernardes Silva de Melo e colaboradores, 2010
Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiro no exterior. Carmen Rial, 2008.
Veja a situação dos alojamentos das categorias de base dos 20 clubes da série A. Globoesporte.com, fev/ 2019.
Apêndice– As fontes de informação direta do relatório
Além da consulta a diversas fontes oficiais e reportagens descritas ao longo do documento, profissionais de sete clubes do futebol brasileiro masculino foram consultados diretamente para levantamento de informações específicas sobre essas instituições. Eles nos forneceram dados referentes ao número total de jogadores nas categorias de base, número de jogadores alojados e o processo de seleção de jogadores, conforme a tabela a seguir:
Apesar da tentativa de buscar clubes dos diferentes níveis esportivos e administrativos, os dados levantados para esta primeira versão do relatório são, ainda, muito superficiais. A necessidade de um levantamento mais abrangente e preciso sobre os aspectos destacados ao longo do documento é urgente. Os números apresentados servem para que se possa ter uma ideia inicial da magnitude, e consequente relevância social, do futebol de base masculino no país.
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A pressa que mata o futebol brasileiro
Começamos a semana tendo um novo líder do Campeonato Brasileiro. E com a chegada do Santos ao primeiro posto do Brasileirão já começamos a ouvir elogios desmedidos a equipe de Jorge Sampaoli e críticas pesadas ao Palmeiras, segundo colocado (!), e até ao Flamengo, que é o terceiro – as críticas cessaram temporariamente por conta da vitória em cima do Botafogo no domingo. Veja que curioso, para não falar raso e triste: com uma vitória a crítica diminui. Mas com uma derrota ela volta. Coisas do nosso futebol.
Jamais vou culpar o torcedor por nada. É ele a razão da existência dessa gigantesca indústria da bola. Mas a euforia e a crítica exagerada parte principalmente de quem está na arquibancada. Podemos questionar qual o peso nisso tudo da falta de preparo de muitos dirigentes e da cobrança da imprensa por resultados. Por isso prefiro colocar tudo junto no liquidificador e ter como fruto disso a cultura do futebol brasileiro, que glorifica e derruba tudo com uma rapidez incrível. Sem muita análise de contexto e circunstâncias.
É claro que o trabalho de Sampaoli é bom. Há uma clara intenção no jogo dele e os atletas compraram e assimilaram a ideia muito rapidamente. O Santos é o time que mais sabe usar a posse de bola no Brasil. Ela é meio para a criação de jogadas de finalização e não um fim nela mesmo. Porém, eu me questiono se essa performance será sustentada quando tivermos dois jogos por semana no Brasileirão. O elenco santista é enxuto. Quando reposições forem necessárias tenho dúvidas sobre a manutenção da qualidade do jogo.
Do outro lado, o Palmeiras não era um super time quando liderava o Brasileirão com folgas e não é péssimo agora que está apenas dois pontos atrás do Santos. É evidente que a equipe palmeirense tem enfrentado problemas coletivos tanto para atacar como para defender, mas em nada justifica alguns torcedores protestarem, usando o termo “pipoqueiro” para se referir aos atletas. E sobre o Flamengo, todos sabiam que não seria fácil o começo de trabalho de um técnico estrangeiro no meio da nossa temporada, já com inúmeras decisões e pouco tempo para treinar. Ou a diretoria flamenguista não sabia o “projeto” que estava comprando?
Verdades absolutas no futebol de hoje morrem amanhã. Com apenas doze rodadas é impossível cravar, por exemplo, que o Santos será campeão. Continuo com ressalvas sobre a qualidade técnica do elenco de Vila Belmiro. Ou cravar que o castelo palmeirense já começou a desmoronar e o clube não ganhará nada neste ano. Ou então taxar como fracasso a passagem de Jorge Jesus no Flamengo caso a equipe seja eliminada da Libertadores. Não é uma questão de ficar em cima do muro. E sim entender a complexidade do jogo de futebol e ponderar que inúmeras variáveis determinam o resultado de uma partida e de um campeonato. Circunstâncias positivas e negativas não podem taxar todo um trabalho. Melhor ter cautela hoje do que rever opiniões amanhã.