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Sobre os lugares do drible e outras ideias

Talles Magno: lembrança de um jogo que se perde aos poucos. (Foto: Rafael Ribeiro/Vasco)

 
O drible maravilhoso do garoto Talles Magno, do Vasco, aplicado no último domingo em São Januário, pelo Campeonato Brasileiro, rodou páginas e mais páginas mundo afora. Um leve gingado, sem encostar na bola, seguido de uma lambreta (ou carretilha, ou qualquer outro nome) objetiva, em direção à área, interrompida pela falta que resultou na expulsão do atleta adversário. Certamente um dos pontos altos da rodada.
Ao mesmo tempo em que causou admiração, este lance também gerou um certo debate, tanto do ponto de vista ético quanto do ponto de vista mais técnico, digamos assim. Neste segundo caso, vem à tona o que se chama de um certo perfil do futebol brasileiro, um certo jeito brasileiro de se jogar futebol, uma certa carência do drible no egresso da base brasileira e etc.
É mais ou menos neste sentido que gostaria de escrever hoje.

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Vamos começar com uma pergunta daquelas: o que é um drible? Como alguém que não gosta de definir coisas, eu diria de cara que não faço a mínima ideia. Mas como alguém que gosta de pensar em hipóteses, vamos pensar em hipóteses. Por exemplo: o drible é uma forma maravilhosa de afirmação individual. Quando digo isso, repare bem, não falo de afirmação do jogador, mas falo de afirmação da pessoa. O sujeito disposto ao drible é um sujeito disposto ao confronto, aos riscos do confronto e, portanto, às consequências do confronto. Mas para quem quer se afirmar, para quem quer superar a si mesmo, nada disso importa. Porque quem tem medo não dribla. Os dribles em geral (e os dribles bons, em particular) têm pelo menos duas características incorrigíveis: a primeira delas é a coragem. O bom driblador é corajoso.
A segunda característica, a meu ver, é a criatividade. Só que aqui nós começarmos a pisar em um terreno metodológico. Ou seja, será que a minha metodologia de treinamento estimula ou restringe a criatividade dos meus atletas para determinadas situações-problema? Porque se você concorda comigo que a coragem é um requisito importante para o drible, mas no nosso treinamento colocarmos nossas crianças para driblarem cones, temos pelo menos dois problemas: I) não é preciso coragem para driblar cones e II) não é preciso criatividade para driblar cones. Talvez então seja preciso criar situações (situações de jogo!) que façam com que as nossas crianças na iniciação esportiva, ou os nossos jovens da especialização, possam desenvolver-se como dribladores contra adversários reais, desafiadores, em um ambiente de jogo que permita a aprendizagem. Basta buscar o número de horas de futebol de rua jogados por todos esses exímios dribladores que temos e tivemos ao longo da história para perceber o que um ambiente de jogo pode fazer. Daí, aliás, a importância fundamental da Pedagogia da Rua.
Mas ao mesmo tempo em que é uma forma de afirmação, corajosa e criativa, o drible também é uma certa forma de subversão. O jogador obediente demais não dribla tanto assim. Quem dribla é o desobediente. Ou seja, o jogador que desobedece o tempo (porque usa um tempo diferente dos outros), que desobedece o espaço (porque usa espaços que fogem à regra), que desobedece, vez por outra, as convenções que estão postas (confiando nas suas próprias), que desobedece as ideias do adversário e, muitas vezes, que desobedece até a si mesmo (se pensarmos no caminho intuitivo de que falamos semana passada). Mas, veja bem, mesmo a maior desobediência é obediente ao jogo, e nem toda desobediência é contrária ao modelo. Nada está fora do jogo, nada está fora das regras (senão não seria jogo), tudo está posto, mas de um jeito próprio, surpreendente, fantasioso e, exatamente por isso chamativo. Quem se afirma chama as atenções para si.
Ou seja, talvez o drible seja uma expressão afirmativa corajosa, criativa… e desobediente.

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Fiz questão de citar a importância metodológica ali em cima, porque de fato esta é uma discussão importante. Há colegas que realmente acham que não temos carência de dribladores no futebol brasileiro. E usam como argumento os jogadores A, B ou C, geralmente atletas de nível internacional e/ou Seleção Brasileira, que seriam as provas de que os dribladores não estão em falta e etc etc.
Mas vejo pelo menos dois problemas aqui: I) existe uma diferença entre Seleção Brasileira e futebol brasileiro. Uma coisa não é sinônimo da outra. O fato de haver dribladores no mais alto é minimamente esperado, uma vez que o futebol brasileiro, ao longo da sua história, construiu-se muito a partir do drible, do inesperado, desta bela dança com a bola nos pés. Daí a dizer que isso representa todo o futebol que se joga no país me parece um equívoco. Os estímulos que nossos garotos recebem são muito diferentes de um passado recente e são diferentes de região para região. O resultadismo alojado no profissional já se diluiu para a base, os terrenos em que nossas crianças jogam hoje são muito diferentes, bolas e chuteiras são muito diferentes de uma época em que as bolas podiam ser pedrinhas e as chuteiras eram um privilégio. Alguns ideais pseudossistêmicos apostam que a força do coletivo está no silencioso assassinato da individualidade, e por aí vai. E talvez o drible tenha deixado de ser uma fantasia para virar um acessório, muito abaixo do passe, muito abaixo do espaço, em zonas específicas, que não pode ter tanta coragem, não pode ter tanta criatividade, não pode ser desobediente e, portanto, talvez não possa ser drible. Será que não criamos cópias incompletas daquilo que era tão nosso?
Daí, chegamos ao problema II) Não sei vocês, mas tenho a impressão de que o drible está profundamente associado ao prazer de se jogar futebol. É possível dar um passe e não sentir nada, é possível dar um chute e não sentir nada, mas não é possível completar um drible e sair indiferente. E de tanto driblarmos em campo (talvez pelos problemas que já tínhamos como pátria) causamos um espanto tamanho, que diversos outros países tiveram que inventar alternativas e mais alternativas para tirar nosso espaço, cortar nosso tempo, matar nosso drible. Só que quem faz isso não faz por prazer, faz por obrigação. Daí que seja assustador que, vez por outra, nós aceitemos tão passivamente uma ou outra ideia externa, que olha de cima para baixo as nossas culturas, as nossas identidades, o nosso povo, os nossos corpos. Será que não compramos como solução exatamente alguns dos antídotos que foram criados para nos frear? Não seria isso um dos mais claros exemplos de suicídio futebolístico? Se sim, talvez a questão não seja como adaptar o futebol brasileiro ao que se chama (muitas vezes, sem critério algum) de modernidade, mas sim como isso que se chama de modernidade, ainda que não se saiba ao certo o que se chama de modernidade, se adapte (e não anule) às raízes culturalmente construídas pelo futebol brasileiro.

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Daí que a surpresa e as reações causada pelo drible de Talles Magno sejam tão sintomáticas, de um futebol às vezes tão comportado, tão asséptico, tão apático, tão respeitoso (no sentido metafórico), que um breve traço de picardia, de coragem, de criatividade e de desobediência seja tão estranho, tão raro, seja uma lembrança tão distante de nós mesmos.
A saber se aquele futebol mata a fome de um povo.
 

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Imagem e Legado

Há uns dias o autor desta coluna conversava sobre a imagem que uma instituição esportiva quer que o mercado e o ambiente em que atua tenham dela, impressões que lhe sejam conferidas. Por imagem se entende como uma representação visual ou um domínio subjetivo. São, portanto, as representações mentais: visões, fantasias e esquemas. Em outras palavras: atributos.

Muito se falou dos amistosos recentes do Brasil em solo asiático, especificamente em Singapura. Especialistas falam que se trata da internacionalização da marca, o produto “Seleção Brasileira”, o lema “Nascido pra jogar futebol”, chamam a digressão de “Global Tour”, tal e coisa, coisa e tal. Muito disso tem como objetivo trabalhar a imagem da equipe nacional no Brasil pelo mundo, com base em toda a história construída, de títulos e ídolos sempre recordados, em como a “seleção” quer ser lembrada, o legado que ela constrói e deixa por onde passa.

Para que isso aconteça, não basta apenas jogar. Atuar, simplesmente, não deixará legado algum. Legado, segundo o dicionário, é o que é transmitido às gerações que se seguem. Para construí-lo, que está diretamente associado ao conceito de imagem tratado nesta coluna (representações mentais), faz-se necessário envolvimento, criação de vínculo, laços, relações próximas e estreitas. A exemplo do que houve na Copa do Mundo de Rugby, em que alguns jogos foram cancelados por tufão, uma das equipes que tiveram o jogo cancelado trabalhou na limpeza da cidade afetada pela tempestade. Outro exemplo – e vocês vão muito bem se lembrar – é o da Alemanha no Brasil durante o Mundial de 2014: a proximidade, as relações humanas construídas e o trabalho de relações públicas são até hoje mencionados e diretamente influenciaram na imagem da seleção e do futebol alemão.

Neymar durante amistoso do Brasil em Singapura e a placa “Brasil Global Tour” ao fundo. (Foto: Reprodução/Divulgação)

 

Assim sendo, internacionalizar uma marca esportiva, globalizar um produto não significa somente jogar em determinado lugar, fazer um ou outro gol, “dar autógrafo” e ir embora. Nos dias de hoje os vínculos são cada vez mais raros e o ser humano carece deles. São estes tipos de relações que permanecem, contribuem para a imagem e duram muito. Este é o legado.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

“O Brasil precisa vencer pelo que ele tem de sua essência: pela alegria, pela criatividade, pela música, pela boa paz, pela generosidade e pelo amor. Vencer com o que há de pior no espírito humano é uma grande derrota. Afinal, somos ou não o tal país do futuro?”
Afonso Celso ‘Afonsinho’ Garcia Reis