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Sobre a abertura de um mundo mais longe do gol

Papu Gómez, da Atalanta: recuando metros, se aproximou do gol. (Foto: Reprodução/Diario AS)

 
Na última semana, logo na manhã que precedeu a enorme vitória da Atalanta sobre o Valencia, pela ida das oitavas-de-final da UEFA Champions League, começou a rodar internet afora esta entrevista do argentino Papu Gómez, um dos destaques da excelente equipe de Bérgamo. É uma leitura absolutamente indispensável, que indico desde já aos amigos e amigas.
No texto de hoje, gostaria de comentar algumas das respostas dadas por ele, uma vez que elas realmente ampliam algumas das nossas fronteiras sobre o jogo jogado. Transcrevo perguntas e respostas pontuais (sempre com traduções livres) e faço comentários logo na sequência.

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1- Gasperini diz que na Itália existe uma obsessão pela simetria na ocupação regular do campo, e que isso é bom para a ordem defensiva, mas ruim para atacar. Como se incentiva a ousadia?

  1. Ele até quer que os defensores arrisquem um passe interno, para filtrar as linhas. E, é claro, nos dá toda a liberdade no ataque. Mas isso está em mim: eu sei que tenho que arriscar. A gambeta [prefiro não traduzir] é minha coisa. E eu sei que, ao fazer isso, quebramos as linhas. Se eu tirar um cara, um mundo se abre. E mais na Itália, onde os jogos são muito táticos, todos eles balançam, com duas linhas de quatro, com oito caras defendendo. Se você não quebrar, pode ficar jogando a vida inteira, mas não quebrará nenhum esquema.

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Aqui, tanto a pergunta quanto a resposta são maravilhosamente importantes. Este tema da simetria me interessa muito, e talvez vocês se lembrem que escrevi largamente sobre isso no ano passado, mais precisamente aqui. Em linhas gerais, está cada vez mais normalizada a ideia de que o bom ataque, ou melhor, o ataque ‘organizado’, só pode acontecer se for simétrico, se houver ocupações racionais do espaço e etc. São todas ideias que, a meu ver, carecem de questionamento, como propus nas colunas acima.
O ponto principal (embora não pretenda aqui) está na ideia de ordem. Como já conversamos em diversos outros momentos, é preciso ter algum cuidado ao pensarmos a ordem no jogo de futebol, porque sendo sistema aberto, as ordens no jogo estão profundamente vinculadas ao caos (dentro daquilo que o querido Alcides Scaglia chama de padrão organizacional sistêmico). Às vezes, é de fato preciso mais ‘ordem’ na defesa, mas mais ‘caos’ no ataque. Daí que não apenas seja necessário repensar o que entendemos por ordem no jogo de futebol, como também o que percebemos como ordem na vida vivida – lembrando o futebol como prática da vida.

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1- Então, qual é o esquema da Atalanta?

  1. A ideia é jogar com uma linha de cinco defesas, mas os esquemas são mentirosos. Podemos dizer que jogamos com uma linha de três zagueiros, mas, afinal, acabamos jogando com dois, mano a mano atrás. Porque o zagueiro que sai com a bola sempre acaba atacando em busca de uma superioridade numérica. Na fase defensiva, podemos dizer que defendemos com cinco, mas se um lateral-meia sobe, o outro cobre e ainda restam quatro.

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“Esquemas são mentirosos” é outra ótima frase, mas que precisa ser percebida dentro de um contexto. Recentemente, na coletiva de apresentação no Palmeiras, Vanderlei Luxemburgo disse algo muito parecido, mas que não foi muito bem interpretado (talvez intencionalmente), porque é óbvio que quando se diz que os esquemas são ‘mentirosos’ ou ‘não existem’, não está se dizendo literalmente.
O que está sendo dito é que os esquemas vão se dissolvendo ao longo do jogo, a cada instante, e que o que chamamos de 4-4-2 ou 4-3-3 ou qualquer outra coisa são, basicamente, referências posicionais que precedem a tomada de decisão, mas que dependem dos movimentos da bola, dos companheiros, dos adversários, depende do espaço, do estado humano de cada atleta, etc. Num jogo como o futebol, os esquemas não são alguma coisa, eles estão alguma coisa. Por isso, neste mesmo espaço, escrevi certa vez sobre a fluidez das estruturas táticas.

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1- Dribladores naturais como você, aqui na Europa são geralmente aventureiros individualistas. Sua tarefa é mais unir do que quebrar?

  1. A palavra que vem à mente é italiano: convolgere. Envolver! Quando você envolve toda a equipe, quando você faz todos participarem … eu sei que sou importante pelo jeito que jogo como Ilicic, que talvez drible um e então tudo se abre; mas sei que os laterais também são muito importantes aqui, que um faz o cruzamento e o outro chega ao gol na mesma jogada [nota: foi exatamente assim que saiu o primeiro gol da Atalanta contra o Valencia, no dia da publicação dessa entrevista]. Como os dois meio-campistas, um para chegar ao arremate e o outro para dar equilíbrio. Até os zagueiros chegam ao gol. Toloi, o zagueiro direito, tem quatro assistências. Porque ele chega com a bola dominada perto da área rival e procura o passe interno.

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Aqui, está muito clara uma outra noção, sobre a qual escrevi mês passado, muito próxima disso que podemos chamar de flexibilidade. Ou seja, defensores cheios de obrigações ofensivas, atacantes cheios de obrigações defensivas. As fronteiras que separavam algumas funções das outras estão se dissolvendo sempre mais, e ser um especialista, restringir-se a apenas uma função (e isso serve tanto para os jogadores quanto para os profissionais do futebol em geral) talvez não baste. Daí que seja tão importante essa ideia do envolvimento, do convolgere, da unidade da equipe nos momentos ofensivos e defensivos, além da consciência dos próprios atletas do seu papel neste processo. Para não falar de uma questão de valores, de solidariedade, alteridade, empatia e etc, especialmente importantes no processo formativo.
Papu Gómez talvez tenha sido criado como um jogador muito mais de ataque, muito mais vocacionado ao gol (como ele mesmo diz mais adiante na entrevista). Mas talvez, com o tempo, tenha descoberto que às vezes o gol fica mais perto quando nos afastamos dele.
 

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Demissões rápidas e burras

Trocar de treinador não é algo proibido. Todo contrato tem cláusulas que preveem a quebra por qualquer uma das partes. Até por isso, a minha questão aqui não é nem a parte legal do negócio- hoje em dia, inclusive, a maioria dos técnicos que são demitidos acaba recebendo todos os valores acordados. O que me deixa perplexo, porém, é a falta de conhecimento e paciência de dirigentes que ávidos por darem ‘respostas a torcida’ cometem barbaridades ao contratar e demitir.
Na primeira divisão do futebol brasileiro estão os melhores clubes do pais – pelo menos no momento atual. Imagina-se que por esse status eles saibam o que estão fazendo e onde querem chegar. Como explicar, então, de maneira lógica e racional que quatro dos vinte clubes da Série A do Brasileiro de 2020 já demitiram o treinador com apenas um mês de temporada? Eu não consigo compreender…
Falta entendimento processual de formação de equipe para quem está no comando diretivo. Vou repetir: não sou contra demitir técnico! Mas desde que haja minimamente uma base concreta para avaliação de que o trabalho está sendo mal feito. Para começar, dirigentes verdadeiramente preparados buscam inúmeras informações antes de contratar. Ainda mais para um cargo tão estratégico como o de treinador. Ideias de jogo, metodologia de treinamento, relação com jogadores, gestão do ambiente, tudo isso entra – ou deveria entrar – em requisitos pesquisados por um dirigente antes de assinar um contrato com um técnico. E, a não ser que haja um fato negativo muito fora da curva, não há como fazer uma avaliação real e justa de um trabalho tão complexo com apenas um mês.
No mercado corporativo há um lema que diz: demore para contratar e seja rápido para demitir. Ou seja, pesquise muito antes de contratar alguém e tenha perspicácia para avaliar rapidamente se as coisas estão fluindo e se não estiverem troque rapidamente. Trazendo esse pensamento para o futebol, temos um círculo vicioso só de rapidez tanto para contratar como para demitir. O problema é que a rapidez para demissões não se justifica por perspicácia e sim por analfabetismo de quem está com a caneta nas mãos.