A Teoria da Comunicação Estratégica do Esporte (Pedersen, Miloch & Laucella, 2007) sugere que o conteúdo do esporte é infinito. E como é! Exemplo disso é este tempo de quarentena em que as emissoras de TV especializadas em conteúdo esportivo reprisam partidas antigas. Às vezes elas têm a narração e reportagens da época, outras vezes permanecem somente com as imagens e a interação é ao vivo, com uma equipe de transmissão atual. Os canais no YouTube dos clubes e federações têm seguido a mesma linha. Os resultados têm sido espetaculares. Quem dera o rádio pudesse fazer o mesmo também.
É uma espécie de sessão nostalgia. É parte de um drama que constrói a história de uma organização esportiva ao resgatar os ídolos, de relembrar uma narrativa fundamental para fundamentar seus valores e princípios. Isso dito não apenas de uma seleção nacional, mas de um clube e também do próprio veículo de comunicação. De mostrar aos mais novos que há uma história, que lá atrás muita gente fez de tudo para que o melhor acontecesse, que há um motivo e um porquê para tudo o que sentimos. Que nada é por acaso e em vão.
Lembro-me do pai deste colunista praticamente obrigar-me a ver as reprises dos jogos do Brasil na Copa de 1970, que a TV Bandeirantes passava nas semanas que antecederam o Mundial FIFA de 1994. Era uma maneira de dizer para se dar o devido valor: esta é a nossa história, é o que somos. Foi uma oportunidade de enxergar – e respeitar – o processo de uma maneira diferente, como um todo. De procurar compreender que é importante saber de onde se vem, o que se é e onde se quer chegar. E toda essa reflexão pode e deve ser transportada para as discussões atuais sobre a nossa sociedade: o que fomos como nação, o que somos e o que queremos para as futuras gerações, dos nossos filhos e netos.
É, portanto, esta sessão nostalgia da TV e das redes sociais, oportunidades – mesmo que inocentes – de olharmos e relembrarmos o passado. Desta maneira, talvez, possamos dar o devido valor e respeito ao que é realmente importante e deixarmos de lado tudo o que for supérfluo, ou seja, aquilo que nos fará “bater a cabeça” e não nos levará a lugar algum.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Campeões não são feitos em academias. Campeões são feitos de algo que eles têm dentro deles mesmos: um desejo, uma visão, um sonho. Eles têm que ter a habilidade e o desejo, e o desejo tem que ser mais forte que a habilidade.” Muhammad Ali
Na última semana, conversando com um atleta que treina comigo, chegamos em um ponto muito interessante, que gostaria de compartilhar com vocês na coluna de hoje. Basicamente, conversávamos sobre o jogo de paredão, sobre as possibilidades pedagógicas do paredão, e lá pelas tantas chegamos a um ponto em comum, sobre o qual eu escrevo melhor na segunda parte deste texto.
Aqui, gostaria de conversar um pouco sobre duas coisas: primeiro, sobre uma certa ideia de complexidade e, depois, sobre uma possibilidade pedagógica específica do paredão.
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Em primeiro lugar, um dos motivos por que me agrada muito o jogo de paredão está justamente nisso que podemos chamar de simplicidade. Para brincar de paredão, precisamos apenas de uma parede e de uma bola. Quando pequenos (e mesmo quando mais velhos), todos nós jogamos bola com a parede em algum momento. Eu mesmo, quando garoto, adorava fazer meus campeonatos, a cada lance fazendo um jogador diferente, atacante quando a bola ia e goleiro quando a bola voltava, às vezes um jogador brasileiro, às vezes estrangeiro, e aí já vão nos ficando claras a potência e os caminhos para onde o mundo do jogo pode nos levar.
Mas não vamos perder o fio: a priori, o paredão parece um jogo muito simples. Mas, na verdade, não o é. Vejam bem, uma das palavras mais repetidas pelas recentes gerações de treinadores e profissionais do futebol (porque de fato é uma das palavras que mais nos foram faladas na última década) é a palavra complexidade. O que eu não sei é se é uma palavra muito bem digerida. Complexo, como vocês sabem, vem do latim complexus, significa aquilo que é tecido junto. Ou seja, a complexidade não está exatamente na dificuldade de um determinado problema (como se as coisas mais complexas fossem simultaneamente as mais difíceis), mas sim nas relações entre as partes desse problema. No caso do futebol, por exemplo, um determinado jogo não é complexo porque é mais difícil, mas é complexo porque contempla, ao mesmo tempo, as várias dimensões do jogo (tática, técnica, física, psicossocial). Aliás, essa é uma vantagem indiscutível do jogo enquanto método, na comparação com os treinos analíticos, por exemplo.
Neste sentido, pensem comigo o seguinte: jogar paredão pode ser simples (pelo senso comum), mas na verdade pode ser extremamente complexo. Ou melhor, o paredão é um jogo complexo com a aparência da simplicidade. Porque, jogando com a parede, eu trabalho simultaneamente uma dimensão técnica (por motivos óbvios), uma dimensão tática (porque preciso gerir o espaço para cumprir ações técnicas), uma dimensão física (porque estou em movimento e com bola, fazendo deslocamentos frontais e laterais, podendo subir ou baixar a intensidade) e uma dimensão mental, proporcional ao desafio que me proponho no jogo (passar a bola em cinco toques pode ser simples, mas passar a bola em apenas um toque, com o pé não-dominante e sem deixar a bola quicar, pode fazer um jogador qualquer se sentir o pior jogador do mundo, de modo que existe uma psicologia ali, como existe em qualquer outro lugar).
Então este é o primeiro ponto que gostaria de colocar: o complexo pode estar no simples, o complexo deve ser visto como sinônimo de difícil e, mais do que isso, o complexo (enquanto sinônimo de difícil) não deve ser visto como melhor – porque de fato pode não sê-lo. Na montagem de uma sessão de treino, por exemplo, fazer um treino complexo não significa, necessariamente, escolher jogos hiper complicados, cheios de alvos e regras de difícil compreensão. Pelo contrário, do ponto de vista pedagógico, os melhores jogos costumam ser os mais simples.
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A segunda coisa que gostaria de dizer tem a ver lá com o começo do texto. Conversando com esse meu atleta, ele me disse uma frase, que na verdade não vou me lembrar ao certo, mas que faz todo o sentido. Foi algo próximo do seguinte: no paredão, a bola volta do jeito que vai – não tem segredo.
Não sei vocês, mas eu enxergo até uma certa poesia nisso. Do ponto de vista pedagógico, essa ideia é particularmente interessante, e por um motivo especial. Em pequenos jogos, especialmente com um certo número de jogadores (digamos de quatro em diante), podemos muito bem terceirizar as responsabilidades pelos nossos insucessos. Podemos jogar mal e dizer que o problema foi um companheiro nosso, ou foi um adversário nosso, ou foi o árbitro que estava mal intencionado, ou foi a bola que estava redonda demais e etc etc. Assumir as próprias responsabilidades é um aprendizado que, às vezes, vem com o tempo (ou, como a vida nos mostra, às vezes não vem).
No caso do paredão, não bastasse esse viés da parede como espelho (ou seja, ela reflete precisamente a qualidade do nosso passe, ou do nosso chute), existe também essa dimensão educativa, da responsabilidade que nos cabe, da impossibilidade de fugir da raia. E aqui voltamos ao lugar onde havíamos começado, na complexidade que pode haver num jogo tão simples, porque para muito além de chutar uma bola na parede, podemos criar inúmeras variações, que nos permitam avançar em todos os aspectos do jogo, e que, para muito além disso, nos permitam avançar além do jogo, nos permitam ir mais longe do ponto de vista humano – desde que nós mesmos nos demos a permissão de enxergar essa possibilidade. O paredão ou qualquer outro jogo não tem apenas um valor em si, mas tem um valor dependente do sentido que damos a ele. Isso faz toda a diferença.
Nos jogos que jogamos e, tecido junto!, na vida que vivemos.
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PS: nenhuma vida é dispensável. Pandemias não existem no diminutivo. Se possível, fique em casa. Cuide da própria saúde e da saúde dos outros.
Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu; Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.
Eclesiastes 3: 1-8
Por conta da COVID-19 o futebol está parado em praticamente o mundo todo. Campeonatos, transferências, as atividades corriqueiras da bola. As diárias discussões no rádio, TV e internet caíram bastante, até mesmo porque pouca coisa acontece. Ao mesmo tempo o conteúdo histórico é infinito e, percebe-se isso haja vista a programação dos veículos de comunicação, dos podcasts nestes tempos que precisamos nos resguardar e proteger a quem mais amamos. Em tempos que nos faz repensar sobre muita coisa, rever valores e os relacionamentos com quem nos é importante. Sobre como caminha a humanidade e para onde ela irá.
Assim também é no futebol. Tempos de rever para onde leva a ambição desmedida que coloca em risco a vida dos futebolistas e suas famílias. Dos torcedores também. Da urgência pelo respeito e pelo bom senso na condução das relações pessoais e profissionais a fim de preservar o que temos de mais importante: nosso bem-estar e paciência. De agir com profissionalismo e sensatez.
Estes tempos nos escancaram que não se tem o controle de todas as coisas, muito pelo contrário, estamos expostos e suscetíveis. Assim sendo, os resultados em campo também não estão no controle, afinal todos querem vencer. É preciso lidar com as situações e, com muito trabalho e paciência, superar e seguir. O que é mais importante: a vitória descabida e imediata (efêmera e insustentável) ou a certeza do propósito (porque você é o que é), a noção do pertencimento, a sua identidade, de saber de onde se veio, onde se está e para onde se vai?
Existir, simplesmente.
Diante disso, apesar da incerteza destes tempos, que sejam eles para quebrarmos paradigmas e tabus a fim de preservarmos o futebol e os seus elementos mais importantes: o atleta e o torcedor. Há quem diga que este cenário é difícil de acontecer, mas há tempo pra tudo e, para o bom convívio e entendimento, já não cabem mais as velhas práticas, sejam elas nas relações pessoais, profissionais, na gestão do esporte e, especificamente, na do futebol. O contrário significaria retroceder. E acredito que estes tempos, atuais, não queiram nos ensinar isso: retroceder. Nunca.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Vamos trocar de roupa rapazes e mesmo que o tempo esteja inclemente e vocês caírem,
tem coisas piores na vida do que um simples tombo na grama, e a vida é mesmo um jogo de futebol.”
Walter Scott (1771-1832)
poeta e romancista escocês
Que Tiago Nunes teria dificuldade nesse início de trabalho no Corinthians já escrevi, falei, repeti e tudo mais…porém, assusta muito a dificuldade de a equipe evoluir em aspectos básicos do jogo. Não há nem a possibilidade de reclamar de falta de treinos, já que a equipe fez apenas dois jogos em dezoito dias. E, quando não há evolução mesmo com tempo e treinamentos é porque há mais coisas envolvidas.
Os jogadores corintianos compraram a ideia de Tiago Nunes. Eles querem uma equipe mais ofensiva. Agrada, dos mais jovens aos mais experientes, a ideia de ter um time que privilegie o ataque. Está descartada qualquer possibilidade de corpo mole – possibilidade levantada por muitos sempre que o resultado não vem. Porém, os conteúdos ofensivos apresentados nos jogos ainda carecem de muitos ajustes. Princípios básicos como apoio, mobilidade, penetração e profundidade não aparecem no jogar corintiano. E o que é pior: os bons conteúdos defensivos, deixados de herança por Fábio Carille, não são mais vistos, por talvez não serem mais estimulados.
Tiago Nunes chegou com carta branca da diretoria para realizar as mudanças que julgava corretas. Vale lembrar que ele foi contratado em novembro, mas só assumiu em janeiro. Dispensas de jogadores consagrados como Ralf e Jadson foram aceitas, porque empolgava a todos – incluindo a direção – a ideia de uma equipe dinâmica, intensa e ofensiva. Tiago também realizou ajustes na relação com diversos setores como análise de desempenho, departamento de inteligência e na comunicação com as categorias de base. A tal da ‘cartilha’ já tão falada, que organiza horários de refeições e sono dos atletas, também foi instituída com o aval de quem está acima do treinador.
Tudo isso não interfere diretamente no resultado de campo. Mas entra na relação do treinador com o ambiente do clube em que ele está. Tiago Nunes tem que ter a flexibilidade para ‘conversar melhor’ com o que é o Corinthians. Inclusive, as próprias entrevistas dele tem que ser mais ‘corintianas’. Quando Tite, por exemplo, entendeu isso seu trabalho cresceu. Tiago não deve nunca abandonar suas convicções. Mas adapta-las ao que foi e ao que é o Corinthians é fundamental para que no futuro o treinador e o clube formem um só, aliando desempenho e resultado.
Em notícias de alguns dias, a “Amazon” demonstrou interesse em ter a sua marca colocada na camisa do Flamengo. Quer seja pela fase, pela popularidade do clube, pela penetração maior dos seus produtos no território brasileiro, vários fatores justificam este interesse. No entanto, concentrar-se apenas nestes motivos seria ingenuidade.
Ao passo que avançam as discussões da Lei Geral do Esporte (que pode conferir os direitos de transmissão dos jogos para a equipe que tem o mando de jogo), a gigante da internet vê no Rubro-Negro carioca (e vice-versa) oportunidades financeiras e de propriedade bastante promissoras. Afinal, não seriam apenas os jogos transmitidos, mas sim todo e qualquer conteúdo relacionado ao clube: o dia a dia, variedades e outros produtos, a exemplo da série com a seleção brasileira masculina nos bastidores da Copa América de 2019. Com base na Teoria da Comunicação Estratégica do Esporte (Pedersen, Laucella e Miloch), o conteúdo gerado pelo futebol é infinito, e a “Amazon” se basearia nisso.
Simultaneamente, o clube vê nesta parceria uma plataforma que aumenta o poder de barganha face a grupos de mídia concorrentes, além de ela oferecer projeção e difusão internacional, o que contribuiria a posicionar a marca “Flamengo” em um mercado global. Não se trata da internacionalização da marca, que talvez possa vir em um outro momento, mas sim ter o seu emblema ao lado de outros exponentes do mercado para potencializar a imagem de grandeza à organização esportiva (Flamengo).
Portanto, imaginar que a exposição da marca da camisa é o principal interesse de um investidor em um clube de futebol, é não se dar conta do conteúdo ilimitado que uma equipe profissional, de torcida numerosa e renomado palmarés é capaz de proporcionar. Inclusive se, daqui alguns anos, o Flamengo queira se dar ao luxo de não ter nenhuma marca estampada em seu manto, a fim de valorizá-lo, poderá assim fazer.
Em tempo: acredito que todos os torcedores sonham em ter a camisa do seu clube sem qualquer marca.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Nenhuma emissora de televisão parece se importar com os torcedores, os seguidores de um time. Mas sem o barulho e a cantoria dos torcedores, o futebol não seria nada. Futebol se trata de paixão. Sempre será sobre paixão. Sem paixão, o futebol está morto. Sem os torcedores, o futebol seria apenas 22 homens correndo atrás de uma bola. Uma merda, em outras palavras. São os torcedores que tornam o futebol importante.”
Faixa da “Curva Nord”, ultras da Internazionale, de Milão/ITA, em referência a passagem do livro ‘The Football Factory’, de John King (foto abaixo)
A performance de um time dentro de campo é resultado de tudo o que acontece dentro do clube. Sei que é difícil o torcedor entender que cobrar só o jogador e/ou o treinador não faz muito sentido, porém cada vez mais tenho pra mim que o resultado final dentro das quatro linhas é fruto das relações entre todos os departamentos que compõe a estrutura do clube. Ou seja, o massagista, o roupeiro, o nutricionista, o psicólogo, enfim, todos que trabalham no dia a dia são responsáveis por a bola entrar ou não. E é dentro desse conceito integral e sistêmico que quero falar sobre zona de conforto e liderança no futebol.
O viés competitivo tem que estar presente 24 horas no dia a dia de um time. Se o treino não for intenso, o jogo não será intenso. Se os jogadores não tiverem fome de vitória nas pequenas atividades do dia a dia não será um estádio cheio que vai criar esse comportamento em uma partida importante. Não existe mágica. E nisso entra o papel fundamental que um treinador tem que ter para a geração de um ambiente propício a conquistas. Cabe a ele estimular diariamente o desconforto necessário que as grandes vitórias pedem.
Em uma época que se debate muito a gestão das pessoas não só no futebol, mas também no mundo corporativo, o papel do técnico na gestão desse ambiente tem um peso muito grande. E dentro do conceito que acredito – como coloquei no primeiro parágrafo – que todos são responsáveis pelo desempenho do time, cabe ao treinador deixar todos ‘desconfortavelmente’ prontos pra vitória.
É claro que acima de um treinador tem no mínimo um diretor de futebol e um presidente. E eles têm que ter também uma liderança inquestionável, firme e pautada na vitória. Se houver qualquer fraqueza o ambiente sente. Os jogadores sentem. E aí todo o sistema entra em colapso. Já tivemos times campeões com salários atrasados, mas nunca com uma liderança fraca. Sim, dirigente forte segura até crise financeira. Do outro lado, já vimos times com as contas em dia, mas derrotados dentro de campo. Não quero aqui defender má gestão e sim colocar que uma liderança eficaz extrapola a questão de grana. É muito mais do que isso. O jogador tem que saber quem manda no processo. E acreditar nisso. O lado financeiro é apenas um elemento. Mas o todo é maior do que a soma das partes.
Sair da zona de conforto dói. Mas é lá que as grandes vitórias são construídas. Em um grupo de pessoas, os líderes têm um papel fundamental nisso. Fazer todos os departamentos respirarem conquistas não é algo simples. Por isso, em todo campeonato só temos um campeão.
O “Benelux” após a segunda grande guerra (1939-1945) foi o ponto de partida para a tão trabalhada e arranjada União Europeia e sua moeda única continental, o Euro, posto em circulação em 2002. Exemplo de integração que acreditamos fosse ser o caminho para o mundo todo. Em pouco mais de dois meses deste ano de 2020 já vemos o “Brexit”* (saída do Reino Unido da União Europeia) em execução. A tal onda de globalização, trans e multinacionalização dos anos 1990 e 2000 tem dado lugar a governos cada vez mais protecionistas, fechados em seus próprios interesses. Demonstrações de intolerância por todas as partes. Paulatinamente percebe-se uma – bem nítida – desintegração.
No entanto, apesar de esta incerta e turbulenta atualidade, uma simbólica resposta ao “Brexit” através da modalidade que os próprios britânicos consolidaram, o campeonato europeu de seleções de futebol, torna-se exemplo de integração. São ao todo doze estádios de doze cidades-sede, em uma dúzia de países daquele continente. Não mais todo o torneio concentrado em um ou dois países, mas por toda a Europa, de uma ponta a outra, de Bilbau a Baku; de Roma a São Petersburgo. Ironicamente, a final será disputada na capital do país que optou em não mais fazer parte da União Europeia, Londres (Reino Unido).
Há muito ainda a ser feito. Entretanto, em meio a estes tempos sombrios, a Euro 2020 é espécie de pontapé inicial do que o futebol é capaz de fazer: integrar.
E é capaz de fazer muito mais. A candidatura conjunta de Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai para a Copa do Mundo de futebol de 2030 pode estimular – por que não? – um por séculos tão sonhado processo de integração regional sul-americano. Se for resgatado na história, a atual “Liga dos Campeões da UEFA” foi concebida na esteira da euforia da integração europeia, nos anos 1950 do século XX. Na Copa América de 2020, Argentina e Colômbia assim o farão na medida do possível. A comunicação e marketing oficial do evento inclusive já trabalham a ideia de um continente integrado pelo futebol.
Com tudo isso, assim como escrito em colunas anteriores, o futebol tem sido lugar para demonstrações de intolerância. No entanto, é preciso trabalhar de maneira incansável para que ele seja antes de tudo um manancial de bom senso e bons exemplos que o mundo muito precisa.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“O esporte possui um poder imenso para unir povos, além de promover a paz e o desenvolvimento.” Ban Ki-Moon ex-Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU)
O trabalho de um técnico de futebol é muito complexo. E, ao mesmo tempo muito específico. Cada ambiente de trabalho, a cultura de cada clube, pede um tipo de liderança e um tipo específico de jogo. Cabe ao treinador, que é sempre o condutor maior do processo, ter a flexibilidade e as competências necessárias para identificar corretamente cada cenário e conseguir interferir nele de maneira eficaz.
Tiago Nunes não conseguiu ser bem-sucedido neste primeiro ‘micro-ciclo’ no Corinthians. O desafio era enorme já que o resultado teria que vir no curtíssimo prazo em função da Libertadores da América e ao mesmo tempo o contexto pedia uma ruptura com um conceito de jogo mais defensivo, sepultado com a demissão de Fábio Carille no ano passado. Todos esses ingredientes somados a pouco tempo de treino, viagem para torneio amistoso nos Estados Unidos e elenco sendo trocado, com chegadas e saídas de jogadores. Repito: cenário conturbadíssimo. E Tiago não conseguiu ser eficiente na gestão desses elementos.
Começa agora, porém, um outro momento. Com a eliminação na Libertadores, o Corinthians terá tempo para trabalhar e treinar. Neste primeiro semestre, apenas o Paulista e o início do Brasileirão para disputar. Tiago Nunes poderá, então, mostrar suas habilidades não só para criar e ajustar comportamentos táticos, mas também para gerar conexão e laços com – e entre – os atletas. É um trabalho que exige tempo para ser implementado. E tempo, o Corinthians terá de sobra…
Os próximos jogos do Campeonato Paulista serão fundamentais e até decisivos. É imprescindível que o Corinthians apresente uma melhor performance. O desafio de Tiago Nunes continua sendo dificílimo, afinal se trata de um dos maiores clubes do mundo. Só que a justificativa da falta de tempo deixará de existir…
Tenho comentado aqui já faz um tempo sobre a centralidade do processo de humanização do treino/jogo. Sobre isso, já escrevi algumas colunas, que vocês podem encontrar nos arquivos. Vou fazendo abordagens diferentes, mas que acabam tendo um mesmo pano comum, que são tecidas juntas (a origem da palavra complexo, cada vez mais comum no nosso vocabulário no futebol, é exatamente essa, aquilo que é tecido junto).
Também percebo que existe alguma dificuldade de perceber o que significa fazer essas coisas na prática – ou pelo menos nisso que entendemos como prática. Ao mesmo tempo, é uma ansiedade que me parece desnecessária. Vamos conversando por aqui e, nos tempos certos, encontramos as nossas formas de avançar.
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Bom, a primeira coisa que me ocorre é a seguinte: seja no futebol de iniciação, seja na especialização ou mesmo no rendimento, acho bastante claro que estamos falando de um processo pedagógico. Se pensarmos a Pedagogia como a ciência da educação, então entendemos um pouquinho mais o sentimento de que o futebol é uma prática educativa e, ao mesmo tempo, é uma prática humana. O que significa que lidamos com educação (ou seja, temos um caminho não apenas tático, técnico, físico e etc, mas um caminho pedagógico) e que lidamos com a educação de seres humanos – o que também é bastante particular.
Me permitam me estender um pouquinho mais neste sentido, porque o fato de lidarmos com seres humanos (novamente, seja na iniciação esportiva, no processo de especialização ou com atletas de rendimento) tem algumas implicações muito particulares. Quando falamos de pessoas, estejam elas jogando futebol ou não, falamos de sujeitos que se diferenciam dos outros animais através das palavras (lembrem-se do Aristóteles, humanos são viventes dotados de palavras) e que, portanto, são capazes de atribuir sentido a tudo o que lhes acontece a partir das palavras. Da mesma forma, como profissionais do futebol, precisamos ter claro que as palavras são como flechas: elas podem tanto chegar aos alvos certos, quanto podem chegar aos alvos errados e inclusive ferir os alvos (e as pessoas) erradas. Na Grécia Antiga, por volta do século IV a.C., na transição para o período socrático da Filosofia, já era corrente considerar que as palavras podiam ser tanto remédios quanto venenos – tudo dependia do uso e da dose.
Quando penso no processo de humanização, penso bastante fortemente no peso das palavras, no significado das palavras (que é e sempre será diferente para cada um, o que significa que o que dizemos não é e não será o que o outro entenderá sobre o que dissemos – essa batalha está posta) mas, especialmente, no poder das palavras ao longo do processo de formação. Isso significa que um caminho que podemos considerar é estimular os atletas, em quaisquer níveis, a dar sentido às coisas que lhes aconteceram no processo de treino/jogo, assim como também nós, como treinadores e profissionais do futebol em geral, vamos dando sentido às coisas regularmente, com continuidade – e isso acontece exatamente pelas palavras. Porque se fizermos isso, damos um grande passo no seguinte sentido: as coisas não são como parecem, as coisas são o que fazemos delas. Ou, se você preferir: o problema não está exatamente na derrota, ou exatamente no treino, ou exatamente nas relações, ou exatamente no mundo, mas o problema está no sentido que damos à derrota, ao treino, às relações e ao mundo. O que fazemos com o que as coisas nos fazem nos diz, basicamente, quem somos e quem seremos no futuro.
Ou seja, um processo de humanização do treino/jogo é um processo que entende que lidamos com seres humanos, que sendo humanos estão em contínua formação (ou seja, não apenas podem mudar, como estão em mudança constante, ainda que nem eles ou nem nós mesmos percebamos), que sendo humanos são limitados, conseguem fazer e saber algumas coisas, mas não conseguem fazer e saber de todas as coisas (ninguém consegue). Não se pode esperar de humanos um comportamento de máquina, uma performance de máquina, uma eficiência de máquina, não apenas porque humanos não são máquinas (e não são coisas), mas também porque as máquinas, via de regra, são inteligentes para coisas muito específicas – e burras para todo o resto. Uma máquina pode processar vários terabytes de informação num tempo muito curto, mas não pode olhar os olhos nem sentir os sentidos de si mesmo ou de alguém. Máquinas, pelo menos por ora, não têm afetos, não sabem sentir, e é nisso que também reside a importância e a particularidade do humano.
Quando pensamos em modelo de jogo, em estruturas/sistemas de jogo, nesses debates posição/função, quando pensamos em blocos altos, médios e baixos, em metabolismo anaeróbio alático, anaeróbio lático e aeróbio, nas capacidades físicas, em força estática, dinâmica e em potência, quando pensamos na glicólise ou na gliconeogênese, quando pensamos no reto femoral ou no vasto lateral, quando pensamos nessas coisas todas, acho que devemos nos acostumar não a fazê-las antes de pensarmos no humano, mas depois. Todas essas coisas existem porque, antes delas, existe um ser vivo, consciente, potencialmente autônomo e livre, em movimento constante.
E talvez o processo de humanização do futebol seja, basicamente, um processo de nos entendermos como os humanos que somos. Na grandeza e nas limitações da nossa própria humanidade.
O treinador venezuelano Rafael Dudamel fora contratado em janeiro para assumir o Clube Atlético Mineiro. Pouco tempo depois, foi demitido. Alegam que os bons resultados não vieram, entre outras coisas. Mais uma constatação da falta de planejamento e do trabalho com base no imediatismo de boa parte da elite do futebol do Brasil.
Para que um trabalho tenha solidez e seja sustentável, é preciso tempo. Quando se fala sobre Marketing Esportivo, elemento da Gestão do Esporte, o tempo é um bem bastante precioso. É através dele que se executa um cuidadoso plano de ação, em que cada passo possui resultados a serem atingidos. Estas ações possuem como base os valores da instituição que criam uma cultura organizacional, que por sua vez dão um sentido de missão para a instituição, cujo trabalho se volta para como o clube quer ser reconhecido e estar fazendo em um breve futuro. Desta maneira, criada esta cultura organizacional, com o tempo o marketing e a comunicação do clube podem atuar com base na condução dos trabalhos dos demais departamentos.
É preciso perguntar o porquê de contratar Rafael Dudamel. Longe de questionar suas competências e qualidades. Entretanto a contratação dele precisa se adequar ao que o clube quer no futuro próximo e como o novo treinador vai colaborar com a sua cultura organizacional, no cumprimento da sua missão e com base em seus valores.
Dudamel durante o trabalho à frente das seleções venezuelanas carregava com ele o exemplo de um sério trabalho com vistas a colher resultados a longo prazo. Era o treinador da equipe principal e das de base. Conseguiu dar identidade e mentalidade vencedora ao futebol de seleções do seu país, já não mais reconhecida como sendo a mais fraca da América do Sul. A “Vinotinto” foi vice-campeã mundial sub-20 masculina há alguns anos e o plantel certamente será a base em busca de uma vaga para um próximo mundial FIFA. Em linhas gerais, exemplo de planejamento, visão e trabalho de longo prazo. Em outras palavras, projetos que deram resultados.
Pelos vistos não foi pensado nisso quando o contrataram, para terem-no demitido após tão pouco tempo. Consequência do imediatismo que ainda trabalha boa parte do futebol de rendimento neste país, de satisfazer a torcida e do esquema de poderes entre os dirigentes da modalidade. Em outras palavras, o querer que resultados deem origem a projetos.
Com tudo isso, é preciso romper de uma vez por todas com paradigmas do passado que envolvem o futebol de rendimento do Brasil em um ciclo vicioso. É preciso pensar e trabalhar em longo prazo não apenas para a sustentabilidade da modalidade, mas para que dê sentido de missão, propósito e vocação para a organização esportiva e que esta viva e cumpra com os seus valores.
Vencer, não apenas dentro de campo, mas fora dele também.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“O segredo da mudança é concentrar toda a sua energia, não em lutar contra o velho, mas em construir o novo.” Sócrates Filósofo da Grécia antiga