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Sobre as superioridades numéricas como marcadores de semelhança

Crédito imagem – Site oficial Atlético/MG

Uma das tendências do comportamento humano, talvez de um ponto de vista histórico, reside numa vontade irresistível de ruptura – particularmente de ruptura com o passado. O fato de sermos capazes de racionalizar as coisas, portanto de darmos sentido ao que nos acontece, faz com que determinadas ideias e determinados atos nos pareçam muito razoáveis durante um certo período, mas depois não mais, e então rompemos. O futebol, enquanto atividade humana e enquanto parte do mundo da vida, não é diferente. Basta ver a quantidade de discursos e de práticas que buscam, de tudo quanto é jeito, romper com o passado e alinhar-se apenas e tão somente com uma certa ideia de futuro. Sobre isso, Pense num motorista que dirige sem os retrovisores e me diga se tende a ser uma boa ideia ou não.

Mas há rupturas e rupturas. Dentro da Pedagogia do Esporte – área fundamental na minha formação – houve uma ruptura particularmente interessante na teoria e na prática do treino, mais especificamente na teoria e na prática do treino dos jogos esportivos coletivos. Se, por muito tempo, cristalizou-se o ensino e a aprendizagem das modalidades coletivas a partir das suas diferenças (portanto, a partir daquilo que as separava), depois de um determinado momento – e talvez uma linha de corte importante seja a obra do pedagogo francês Claude Bayer – passou-se a considerar o ensino e a aprendizagem das modalidades coletivas a partir das suas semelhanças. Ou seja, podemos perfeitamente pensá-las a partir do que as une.

Segundo o próprio Bayer, há pelo menos duas categorias de saberes a partir dos quais podemos unir os jogos esportivos coletivos. Em primeiro lugar, os jogos coletivos têm, pelo menos, seis invariantes – bola, alvos, companheiros, adversários, regras e um espaço previamente definido. Ao mesmo tempo, os jogos coletivos também estão ligados pelos chamados princípios operacionais, que se subdividem em dois grupos: os princípios operacionais de ataque (manutenção da posse, progressão ao alvo e finalização) e os de defesa (recuperação da posse, evitar a progressão, impedir a finalização). Repare que a partir de um pensamento dos jogos coletivos pelas semelhanças, ao invés das diferenças, fica muito mais fácil imaginarmos o ensino e a aprendizagem do futebol não na condição de ilha, fechada em si mesma, mas na condição de algo muito mais próximo de um arquipélago, um arquipélago dos jogos esportivos coletivos, em cujas ilhas há sim certas especificidades, mas que guardam entre si enormes possibilidades de diálogo. É por isso que podemos não apenas retirar informações absolutamente valiosas das modalidades vizinhas, a partir desse fio que as une, como também podemos avançar numa prática pedagógica outra – que defende, por exemplo, uma iniciação esportiva diversificada, ao invés dos muito conhecidos processos de especialização precoce.

A partir daquela mesma ruptura – um entendimento das semelhanças mais do que das diferenças – há uma outra variável que aparentemente une os jogos coletivos, especificamente os jogos de invasão. Além dos princípios operacionais, de que falávamos acima, faz muito sentido pensarmos nos chamados princípios gerais, nomenclatura conferida pelo professor Carlos Queiroz (Para uma teoria do ensino/treino do futebol, 1983). A partir deles, sabemos que há uma necessidade absolutamente importante de buscar as superioridades numéricas, evitar as igualdades numéricas e negar as inferioridades numéricas. Embora seja um trabalho pensado para o futebol, o raciocínio é perfeitamente válido para qualquer modalidade coletiva de invasão: basta pensarmos, por exemplo, nas dinâmicas de do basquete ou do handebol, modalidades nas quais a transição ataque/defesa depende fortemente de uma completa recomposição dos espaços defensivos vitais, geralmente atrás da linha da bola, próximos ao alvo. No futsal, cuja característica também é fortemente transicional, as recomposições são igualmente rápidas, mas o fato de ser jogado com os pés, ao invés das mãos (além do fato de não haver restrições para eventuais ataques passivos, como há no basquete e no handebol) permite que as inclinações ao perde/pressiona no campo de defesa do adversário sejam bem maiores. No futebol de campo, embora se trate de uma área de jogo muito elevada (mesmo se considerarmos apenas o espaço efetivo de jogo), as tendências ao perde/pressiona também estão cristalizadas, não apenas pelo sucesso de várias das equipes que as praticam, mas também porque nos foi ficando clara a indivisibilidade das fases do jogo: defesa, ataque e transições dialogam entre si, de um modo que a estruturação do espaço numa das fases está diretamente relacionada ao que acontece na outra – portanto, a qualidade da transição defensiva depende da qualidade da fase ofensiva e etc. Em todos os casos, independentemente da modalidade e mesmo da fase do jogo, há uma certa atração pelas superioridades numéricas. E repare que, assim, seguimos uma linha de pensamento que parte das semelhanças: a busca por superioridades numéricas talvez não seja exclusiva do jogo de futebol, nem mesmo de determinadas formas de se pensar o jogo de futebol. A busca pelas superioridades numéricas, independentemente das fases do jogo, é uma tendência significativa dos jogos coletivos de invasão. Por isso, a busca pelas superioridades não é, necessariamente, um marcador de separação – é um marcador de união.

O que de fato marcam separação são os meios a partir dos quais nós criamos as superioridades. Os triângulos ofensivos do Phil Jackson, por exemplo, eram dependentes de uma assimetria na estruturação do espaço: via de regra, uma das duas zonas mortas não era ocupada por ninguém na base da jogada. No futebol, nós não temos exatamente a noção de zona morta do basquete, mas temos setores de maior importância contextual – no caso, o setor da bola. Quando pensamos numa equipe como o recente São Paulo do Fernando Diniz, pensamos num tipo de jogo em que a criação de superioridades passava mais pela ida dos jogadores até à bola do que o contrário. Em determinados setores do campo, particularmente nos corredores laterais do segundo terço, podia ser realmente problemático marcar o São Paulo, porque nenhuma equipe se dispunha, de fato, a disputar superioridade numérica no setor da bola. Se estavam, por exemplo, Juanfran, Gabriel Sara, Igor Gomes, Daniel Alves e Luciano próximos da bola, é muito mais prudente apostar na redução dos espaços no setor da bola (especialmente nos corredores laterais, pela própria restrição espacial do campo), mas mantendo o equilíbrio defensivo, do que por exemplo induzir um dos laterais a acompanhar o ponta até o outro lado do campo. Neste caso, reparem bem, não ter superioridade numérica no setor da bola pode tanto ser um cálculo (que se tenta compensar por uma variável posicional ou qualitativa, por exemplo) quanto pode, inclusive, ser futuramente benéfico, porque a chance de congestionar dois espaços ao mesmo tempo é mínima, de modo que se há muita gente atacando de um lado e a defesa recupera a posse, é esperado que haja espaços importantes do outro lado, em transição.    

Era um projeto ofensivo diferente de uma equipe como o Atlético Mineiro, de Jorge Sampaoli. Ali, era muito mais nítido que a criação de superioridades acontecia por mecanismos a partir dos quais a bola ia mais até aos jogadores do que os jogadores iam até à bola. É bem verdade que havia elos mais livres: por exemplo, Eduardo Sasha me parece um jogador do agrado do Sampaoli porque sabe muito bem baixar alguns metros quando a bola está no segundo terço, especialmente no corredor central, atraindo a marcação de um dos zagueiros (para libertar um espaço às costas) ou então buscando recebê-la no espaço entre as linhas do adversário, potencialmente encontrando um terceiro homem e etc. Mas o ponto é que, naquele Atlético, era quase que impensável que um Keno ou um Savarino atravessassem o campo até o lado oposto, porque os mecanismos de criação de superioridades passavam pelo uso do campo em amplitude máxima no campo de ataque, particularmente via pontas. Neste sentido, inclusive, as igualdades numéricas não eram de todo ruins: ou ter um jogador como o Keno em situações de 1v1 não era interessante? Vejam bem, ambas as equipes tinhas formas de criação superioridades numéricas, mas isso não significa que Fernando Diniz fazia um jogo de posição ou que Sampaoli fazia algo como um jogo de mobilidade. Esses são os marcadores de diferença, de que falava acima. 

Por isso, é interessante pensarmos muito atentamente na diferença entre superioridades e vantagens. É possível que uma determinada equipe tenha superioridade numérica no setor da bola, mas isso não significa que ela terá, necessariamente, vantagens naquela jogada. Da mesma forma como o gesto técnico, de um ponto de vista meramente biomecânico, não dá conta da complexidade da técnica (afinal, o ponto da técnica não é a perfeição do gesto, mas a resolução do problema do jogo), a superioridade numérica, em si, pode perfeitamente ressecar. Por isso faz todo o sentido considerar as variáveis posicionais, qualitativas, cinéticas, sócio-afetivas – quaisquer outros nomes que quisermos inventar. Os marcadores de diferença não estão nas fotos, mas no filme do jogo: a qualidade das relações, das interações e das retroações de uma equipe é que marca as suas singularidades na comparação com as outras.

O que nos leva a crer, se puxarmos o fio, que se as superioridades numéricas podem ser mais ponto de partida do que de chegada, e se elas florescem na medida em que se relacionam com as outras variáveis, dentro do contexto do jogo, pode ser perfeitamente possível que a indução às igualdades e mesmo às inferioridades numéricas sejam aceitáveis. Mais do que isso, podem ser as rupturas de um futuro próximo, em que se avizinham cada vez mais empecilhos na criação e dos espaços e na fruição das dinâmicas ofensivas. E sim, podemos tirar vantagem disso.

Mas, sobre este tema, conversamos em breve.

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Ídolos no comando técnico. Funciona?

Crédito imagem: Redes sociais/Juventus

Na esteira da excelente medida da CBF em restringir o número de trocas de treinador nesta edição do Campeonato Brasileiro, trago um tema que sempre me intrigou: porque grandes clubes investem em ex-jogadores consagrados, mas sem (ou pouca) experiência de comando para dirigir suas equipes principais?

É importante ressaltar que esse é um fenômeno mundial. E que até se aplica a seleções. Vamos lembrar de Dunga no comando do Brasil? Os critérios são os mesmos, ou bem parecidos, para falarmos de Rogério Ceni no São Paulo, Gallardo no River Plate, Pirlo na Juventus, Zidane no Real Madrid e até de Guardiola no Barcelona, dentre inúmeros outros.

Uma similaridade em praticamente todos os casos é o início: para um ex-jogador vitorioso virar treinador é necessário um cenário de crise e turbulência onde ele está assumindo. Quando as vitórias cessam, a pressão aumenta e o ambiente não é favorável, nada melhor do que recorrer a alguém conhecido, um rosto familiar, um nome que já construiu algo.

Dirigentes usam, de maneira intencional ou inconsciente, o conhecimento que esse profissional já tem da cultura. Mesmo no Brasil, onde há um grande viés político, os clubes mantêm uma estrutura e um modus operandi no dia a dia que independentemente de quem se elege para ocupar as cadeiras mais importantes pouco muda . E de fato conhecer essa organização, a maneira particular de a torcida se comportar e até mesmo nutrir um amor pelo clube, pode fazer com que esse ‘novo treinador’ tenha elementos para triunfar que outros profissionais ou não tem ou demorariam muito tempo para obter.

O fator torcida, mesmo em tempos pandêmicos sem público nos estádios, também conta muito. É natural uma paciência maior em casos de quem já tem uma história. Talvez o número “mágico” três – em caso de três derrotas consecutivas uma demissão – não se aplique a esses “treinadores-ídolos”. E o próprio respeito do grupo de jogadores no vestiário por esse capital simbólico do comandante pode ser diferente.

Quem se propõe a analisar o futebol com o viés da complexidade tem que entender que o jogo propriamente dito é só uma parte do todo – para mim, ainda e sempre, a mais importante. Mas não podemos tirar o contexto e o ambiente de qualquer olhar para o que acontece no futebol. É justo? Nem sempre…mas é a realidade.

*As opiniões de nossos parceiros não correspondem, necessariamente, à visão da Universidade do Futebol

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Um fio de esperança

Crédito imagem: FIFA.Com

A busca utópica pelo atalho ao sucesso esportivo no futebol brasileiro ganhou um novo capítulo ao ser registrada como alternativa oficial no regulamento da principal competição nacional a partir de 2021. Notícia que chamou a atenção do mundo, desde os vizinhos sul-americanos (Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai), passando por EUA, Alemanha, Inglaterra, França, Espanha, Portugal e até mesmo África do Sul. Especialmente na Europa, a atual narrativa aponta que o Brasileirão poderá servir como um estudo de caso a ser replicado por outras ligas se a implementação da nova regra for bem-sucedida. Chance de acesso à credibilidade!

Tal como qualquer tema polarizador, controverso ou polêmico, o debate (comumente opinativo) em torno das trocas de treinadores costuma liderar as divergências de quem acompanha ou comunica a modalidade à opinião pública no país, seguido pelo calendário de jogos e pela arbitragem.

Desvinculado de achismos (a favor ou contra a escolha do treinador A em detrimento do treinador B no clube X), o primeiro estudo científico que configuramos sobre as mudanças de comando técnico no futebol brasileiro contextualizou o cenário nacional para investigar as causas e as consequências das decisões recorrentes (e absurdamente fora de qualquer parâmetro comparativo internacional) que imperam na Série A desde o seu primeiro ano de implementação no formato de pontos corridos (2003) até a temporada 2018. Por meio da inteligência analítica, equacionando cálculos econométricos sobre uma amostra de 6506 jogos, 264 treinadores e 594 trocas entre efetivos e interinos (paralelo a todas as não-mudanças), dissecamos as evidências nos mínimos detalhes ao identificarmos os principais critérios que norteiam a tomada de decisão dos dirigentes, bem como a ineficácia das trocas no Brasil (aliada a necessidade de valorização primordial do tempo de trabalho de um novo líder técnico junto ao seu novo grupo de comandados).

Aos interessados, é possível escolher entre a versão do estudo em português e o artigo científico original em inglês (publicado oficialmente pelo jornal Sport, Business and Management em dezembro/2020).

Atualizando os números gerais (também conhecidos como estatísticas descritivas na academia), a temporada 2019 testemunhou um total de 33 mudanças e 41 treinadores durante o Brasileirão (cuja composição inclui 13 nomes inéditos no formato de pontos corridos). Já a temporada 2020/21 (Covid) apresentou um total de 42 mudanças e 55 treinadores somente na Série A (incluindo 17 nomes inéditos no sistema).

Ou seja, o volume absoluto (contabilizando todos os efetivos e interinos) subiu para 669 mudanças em 18 temporadas. A média de trocas continua em 37 por temporada. A volatilidade no cargo durante a competição permanece crônica entre todos os 294 treinadores e todos os 43 clubes que já participaram da Série A desde 2003 até 2020/21. E o treinador de futebol segue trabalhando para tentar sobreviver pouco mais de 2 meses durante o Brasileirão ou 6 meses durante o ano (salvo exceções).

Em suma, muito se mudou, porém nada mudou. Aliás, muito se troca, mas nada muda.

Naturalmente em um país com baixo investimento em educação, a ciência, a pesquisa e o desenvolvimento enfrentam maiores desafios de aceitação e até mesmo de compreensão, pois confrontam avaliações objetivas com construções subjetivas. Em outras palavras, a evidência é apresentada ao achismo, causando um desconforto inicial devido à quebra de paradigmas ou pré-conceitos.

Aproveitando o raciocínio, vale esclarecer como funciona a autonomia do esporte quanto ao seu regime, condução e resolução.

Um jogo de futebol é conduzido por regras que tornam possível a sua prática como modalidade esportiva. Já uma competição (seja um campeonato, torneio, liga, copa) é conduzida seguindo um regulamento em comum acordo entre os clubes participantes (ou federações, confederações). Dentro desse cenário, eventuais resoluções de conflito são tratadas em tribunais de justiça desportiva, cuja instância máxima é o CAS (Tribunal Arbitral do Esporte) na Suíça.

A lei trabalhista, assim como a legislação que rege cada país, permanece soberana no estado. Com base nisso, modificações ou inovações em regulamentos esportivos devem sempre considerar ajustes que não venham a infringir a relação social entre empregado e empregador na atividade econômica.

Portanto, no caso de uma medida preventiva que tente frear as mudanças de comando técnico durante o Brasileirão, trata-se de uma regra e não de uma lei. E isso é viável e pode ser autorizado pela autonomia do esporte.

Tal regra define que os clubes pertencentes àquela competição chegaram ao comum acordo de limitar o registro de treinadores durante a vigência do campeonato. Os clubes permanecem livres para contratar e demitir o volume de treinadores que bem entenderem e quiserem ao longo do ano, porém durante o campeonato nacional (do ano sob análise) fica permitido o registro máximo de X treinadores por equipe. Igualmente aos treinadores, que permanecem livres para assinar ou romper contratos de trabalho com o clube que bem entenderem ao longo do ano, mas cientes de que não haverá registros ilimitados durante a vigência da competição nacional no ano sob análise.

A mesma essência do raciocínio se aplica à limitação no registro de jogadores, à limitação no número e tipos de profissionais autorizados a acessar o banco de reservas, à limitação do mando de campo e aos demais componentes do regulamento da competição. Isso acontece pois o esporte (neste caso o futebol) é representado por um caráter simultâneo competitivo e colaborativo. Não há jogo de futebol com uma única equipe, tampouco há campeonato com uma única equipe.

A parte mais importante do progresso é o desejo de progredir” – Sêneca

É verdade que matematicamente, contudo, a nova regra não terá condições de assegurar uma alteração do histórico até o momento, pois se os 20 clubes participantes do Brasileirão exercerem a alternativa do regulamento nas duas ocasiões autorizadas (uma troca efetiva e uma troca interna), chegaremos ao volume de 40 mudanças de comando ao fim do campeonato (sem contabilizar eventuais saídas voluntárias dos treinadores). Logo, se a média desde 2003 é de 37 trocas por temporada, a nova regra mantém o espaço aberto para replicar as alternâncias em mais um ano de Série A.

Mesmo assim, podemos enxergar a medida preventiva com otimismo, pois a nova regra exemplifica uma alternativa de curto prazo para tentar frear a oscilação dos líderes técnicos sobre o futebol que se tenta praticar nas camadas mais altas do Brasil, servindo de exemplo a divisões inferiores. Um sinal de esperança, ainda que mínimo e cheio de lacunas, mas que pode (e até deve) ser comemorado.

Mesmo se não houver sensibilidade na implementação logo no primeiro ano, já visualizamos um passo adiante por estimular discussões que vão além do treinador (independente se ele for o sujeito A, B ou C). Apenas com o anúncio da medida já é possível testemunhar que todos os atores que participam da cadeia de valor do futebol nacional precisam colocar a mão na consciência para que o nível técnico, operacional, esportivo possa recuperar o caminho de prestígio no país.

  • Torcedores – ao cobrarem transparência dos dirigentes de seus clubes de coração; ao repensarem a pressão desproporcional que se volta ao treinador em fases desfavoráveis; ou até mesmo ao escolherem friamente por onde e como consumir conteúdo de mídia esportiva.
  • Dirigentes (estatutários e executivos) – ao atenderem de forma profissional os processos de seleção, monitoramento e transição de seus treinadores e comissões técnicas durante e entre temporadas; ao avaliarem o legado deficitário (financeiro e técnico) que pode permanecer na instituição; e também ao identificarem os pontos de melhoria com o aprendizado da nova regra.
  • Jornalistas (e demais profissionais ligados à mídia esportiva) – ao redirecionarem o holofote e a discussão aos responsáveis pela volatilidade de treinadores; ao reconhecerem que também contribuem com as decisões das trocas recorrentes por meio de estímulos verbais e audiovisuais na imprensa e em plataformas de rede social; e também ao auxiliarem na crítica construtiva pelo aprimoramento da medida preventiva de curto prazo, aliada a conscientização e reeducação de longo prazo.
  • Treinadores – ao abraçarem a oportunidade de agir com mais estratégia e cuidado nas escolhas de carreira; ao defenderem o posicionamento da classe na prática de forma coletiva, a fim de potencializar a profissão no país; e também ao evitarem saídas voluntárias durante a temporada, mesmo quando a crônica do senso comum apontar que esse seria um caminho normal e aceitável.

Vanderlei Luxemburgo no Roda Vida da TV Cultura em 1995

O futebol brasileiro ainda se apresenta como especulativo. Antes mesmo de ser imediatista ou resultadista, especula-se vitórias, títulos e campanhas com orientação a expectativas desproporcionais à realidade que traz circunstâncias muito distintas, originando frustrações desnecessárias. Mas é possível mudar essa postura.

Novas ações podem gerar novos hábitos, que por sua vez podem influenciar gradativamente um novo comportamento. E se mudarmos o comportamento, teremos uma nova cultura com progresso estruturado.

Nesse raciocínio, medidas preventivas podem combater o senso de urgência no curto prazo, aliadas a uma conscientização e reeducação em cadeia no longo prazo, ouvindo as críticas construtivas de quem se opõe ou levanta dúvidas, a fim de experimentar e vivenciar ações progressistas em um processo democrático.

Nada vai mudar drasticamente da noite para o dia, mas testemunhamos, enfim, um fio de esperança!

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Epistemologias nossas de cada dia III – (inter)agir

Crédito imagem: Site oficial/Palmeiras

‘O todo é maior do que a simples soma de suas partes’

Do inatismo e do empirismo, aquelas teorias do conhecimento que sustentam numa visão paradigmática positivista, tradicional, racional e linear, já conversamos – suas mazelas e influências no ensino, aprendizagem e treinamento do futebol, ainda no Século XXI. Falemos agora do interacionismo, a corrente epistemológica que propõe romper, sem lá muito carinho, o que estava posto e deixar guardada na gaveta as lentes de contato com o mundo que já não dão conta de nossa miopia mental e social.

 O interacionismo, seguindo o pensamento epigenético arquitetado pelo professor e epistemólogo suíço, Jean Piaget, confia que nossos saberes são constituídos não pelo dom, pelo genoma, pela quantidade de experiências ou pela racionalização técnica, mas pela qualidade das relações. Conhecimento é produto da interação. Somos, os humanos, seres essencialmente relacionais. Preciso do outro para aprender algo e o outro precisa de mim. Carecemos e dependemos uns dos outros e do meio, qualquer meio, para viver.

A não ser que seja um ou uma eremita, desconfio fortemente que você há de concordar das últimas três afirmações do parágrafo acima. Todos e todas somos interacionistas, porque nos comunicamos, agimos, nos relacionamos e ressignifcamos os ambientes que constituem nossas vidas e a nós mesmos. O que sou hoje é diferente do que fui ontem, que, por sua vez, será diferente do que serei amanhã. Óbvio, até demais. Mas raciocínio necessário para evidenciar que o interacionismo não é o futuro, mas constitui o presente e foi, ainda que sem tanta consciência, fundamental ao passado.

Ocorre que ao conceber tão bem as relações sujeito-sujeito e o sujeito-meio, mais ainda à medida em que estudiosos como Frank Capra, Thomas Kuhn e Edgar Morin jogavam luz ao paradigma emergente e contra-positivista, o interacionismo pressupõe descontrole e imprevisibilidade, termos estes que trazem calafrios às classes economicamente dominantes, que, em favor da manutenção de certos privilégios, não se furtaram em patrocinar o ranço ao que não pode ser manejado sem restrição aos ambientes educacionais e, evidentemente, ao esporte, principalmente ao de alto rendimento. Não à toa, o pensamento empirista cumpre há, no mínimo, três décadas sua função de antídoto à fuga de ordem: manipula comportamentos, cria conteúdos-padrões, estabelece relações hierarquizadas, enfatiza a técnica, a memorização e a objetividade em nome do resultado.

Ao pensarmos, todavia, o esporte e, em específico, o futebol, como manifestações regidas pelo ato de jogar, temos uma enorme e custosa contradição. O jogo, por natureza, é autotélico, imprevisível, irredutível e caótico – chancelaram estudiosos como Roger Callois e John Huizinga. Porque nos sentimos desafiados, jogamos. Por não ter certeza dos quês, comos e quandos de uma partida, nos envolvemos com o jogo. O jogo encontra sentido na não linearidade nas relações que eu, que jogo, tenho com meus colegas de equipe, com o terreno de prática, bola, adversários, arbitragem, comissão técnica, jornalistas, torcedores, dirigentes e, claro, comigo mesmo. É, portanto, representação instintiva do interacionismo. 

Ainda assim ou por isso, foi – e permanece sendo – domado pelo tecnicismo empirista. Há, no futebol, uma resistência significativamente maior à autocrítica em relação aos contextos de formação escolares, por exemplo, para a aplicação de didáticas e metodologias de treinamento, que, a partir do jogo, evoquem o interacionismo. O esporte-bretão é resistência, sim – mas trata-se de um resistir nem sempre adequado às lentes de contato da ‘moda’ no Século XXI.

Virou, o futebol, refúgio de valores tóxicos, sejam morais, éticos, sociais, educacionais e econômicos. Ali, são mantidos e reforçados a naturalização do machismo estrutural e declarado, o racismo, a objetificação humana, o desprezo com o próximo. O ópio do povo se disfarça em privada legal para excretar, sem grandes ressentimentos, ódios e frustrações internas, suavizados por discursos passionais: ‘sempre foi assim’, ‘é dinâmico’, ‘errou, sai’, ‘perdeu, troca’.

Nem surpreende, portanto, que até chefes de estado encontrem, no futebol, o eco ardiloso e necessário para que certas narrativas continuem a sustentar o discurso retrógrado de projeto de poder de natureza medieval e anti-vida. Vale tudo – e nem essa expressão escapou do complemento tóxico – para reiterar a não afeição à mudanças, a algo mambembe, míope, que não dá conta da inteireza do ser humano. Mas o que é a inteireza humana perto de três pontos suados ou o fim de um jejum de títulos incômodo? Meu time acima de tudo, resultado acima de todos.

Tal reflexão é necessária, porque o pensamento interacionista, ao derivar do paradigma emergente, é primordial na contraposição ao tradicionalismo. O que não significa que ele, o interacionismo, seja imune às limitações de dado contexto – e muito menos, que abra mão do produto final, o resultado.

Mostra, porém, que, para alcança-lo, um olhar cuidadoso – e nem sempre imediatista – aos processos faz um bem danado. Tomo emprestado a fala e o capital simbólico de quem teve, recentemente, uma importante conquista: ‘quando mais você se concentra no resultado, mais ansioso fica. Não tem sentido se preocupar se vai passar ou não numa prova: você tem que estudar para ela. Cuide do processo de aprendizagem e o resultado virá’. Recomendo, aliás, a leitura atenta de toda fala de Abel Ferreira ao excelente The Coaches Voice. Interacionismo em estado puro.

Conceber as relações entre humanos e com o próprio humano como fundamental à construção de saberes e estruturar tarefas que contemplem a essência do jogo no ensino, aprendizagem e treinamento do futebol, em detrimento do tecnicismo (e não dá técnica, como colocado na conversa anterior) são premissas básicas do pensamento interacionista. Que apesar da supracitada resistência tradicionalista, tem avançado e pautado discussões país afora, também pela promoção de espaços de debates fomentados como este entre bem-intencionados e intencionadas, no jornalismo, nos espaços acadêmicos e no próprio meio esportivo.

O futebol, afinal, (ainda) depende do humano para existir. Cuidemos bem dele. 

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Para quando chegar a hora – a volta dos torcedores aos estádios

No início do mês de março, a federação carioca de futebol e os clubes se reuniram para discutir da volta dos torcedores aos estádios. Felizmente, a iniciativa não foi aprovada. O número de mortos deste então só aumenta, e o retorno do público para as arquibancadas poderia deixar a situação ainda pior. No entanto, o assunto tem sido levantado em outros países do mundo, seja em tom de esperança por estádios cheios ou de cautela. Esta coluna surge a partir disso para analisar o que clubes, federações e demais entidades precisarão considerar no momento de receber seus torcedores novamente.

É importante ressaltar que este não se trata de um texto fazendo campanha pelo público nos estádios, longe disso. O que busco aqui é debater os desafios que a indústria terá no retorno dos torcedores, enfrentando alguns destes de maneira inédita, em consequência de algumas mudanças no comportamento destes fãs.

O primeiro desafio é em relação à saúde. Por mais que a retomada aconteça com grande parte da população vacinada, alguns comportamentos adquiridos na pandemia irão permanecer na rotina de todos. Dentre estes, está o uso de novas formas de pagamento ou de acesso, que deixem as pessoas menos expostas a qualquer tipo de vírus. O dinheiro de papel, além dos ingressos físicos, deve estar com os dias contados, favorecendo a utilização de meios digitais que evitem ou diminuam ao máximo o contato. Trago aqui três exemplos de novos meios que ganharam força nos últimos meses:

Pagamentos pelo app: esse é o meio mais simples e já era utilizado anteriormente em diversos serviços, com o cliente realizando todo processo pelo aplicativo e apenas retirando o pedido na loja ou local onde o produto é feito.

Tecnologia de aproximação: o meio que ganhou mais força na pandemia. Segundo pesquisa do Itaú, divulgada em fevereiro de 2021, a quantidade de pagamentos realizados por aproximação, com soluções conhecidas pela sigla NFC (Near Field Communication), cresceu 326% em 2020. Esta forma de pagamento era vista em grandes festivais como o Rock in Rio, mas deve ser aprimorada para o retorno do público.

Reconhecimento facial: uma tecnologia mais avançada, mas que vem sendo testada em diversos países. A grande dificuldade seria em momentos de grande movimentação, onde um sistema novo poderia causar demora para entrar no estádio.

Outro aspecto que deverá ser observado está relacionado com as experiências para o torcedor no dia da partida. Essa tendência já era observada antes da pandemia, mas ganha importância uma vez que o público tem se acostumado com os pontos positivos que assistir ao jogo em casa traz: conforto, segurança e custos reduzidos. Por isso, as entidades esportivas terão que entregar experiências memoráveis ao fã, que o convença a voltar na semana seguinte.

Existem alguns pontos que, reunidos, podem favorecer a montagem destas ações que ficarão na memória dos torcedores. Pensando no cenário brasileiro, o mais importante a ser trabalhado é a conexão de internet nos estádios, permitindo que alguns hábitos adquiridos em casa possam ser mantidos diretamente do palco do jogo. Segundo o relatório The Future of the Sports Fan, 3 em cada 4 torcedores postam em suas redes sociais enquanto estão vendo a partida. Além disso, 75% destes costumam olhar o replay das jogadas mesmo estando presente na arquibancada. Como fazer isso sem uma boa conexão?

A maioria das iniciativas anteriores devem ser executadas pelos clubes. No entanto, cabe a CBF decidir quando será permitido que torcedores ocupem as arquibancadas em partidas de seus campeonatos, e em que quantidade. Para isso, a confederação brasileira possui uma vantagem que não deve ser comemorada. Por estarem em melhores situações sanitárias, muitos países devem abrir seus estádios ao público antes do Brasil. Aqui será possível entender as melhores práticas adotadas em outros cenários e aplicá-las a nossa realidade.

Para citar outros grandes centros, a UEFA já pensa em receber torcedores durante a Eurocopa, marcada para iniciar dia 11 de junho. As ligas nacionais mais otimistas são da Espanha e Itália, onde se fala em abrir as arquibancadas, ainda que para um público reduzido, no final desta temporada. Já a Alemanha adota um discurso mais cauteloso, visando ter público nos estádios apenas na próxima temporada, no final do mês de julho.

Como foi visto ao longo do texto, a tecnologia terá papel fundamental no retorno do público aos estádios. Enquanto esse momento não chega, clubes devem aproveitar para estudar as ferramentas necessárias para garantir segurança e experiências memoráveis aos fãs, que aguardam ansiosamente sua hora de voltar para as arquibancadas.