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O FUTEBOL E A PARALISIA METODOLÓGICA

Este fim de semana fui presenteado pelo meu pai com um documento histórico acerca da educação física, mais especificamente sobre o ensino e treinamento do futebol. Para quem não sabe, meu pai também é professor de educação física e não é qualquer professor. Para meu orgulho e admiração, meu pai, Lino Castellani Filho, é uma das grandes referências da Educação Física brasileira e latino-americana. Professor aposentado da Unicamp, ex presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e ex Secretário Nacional de Esportes, meu companheiro (nos tratamos carinhosamente assim), presenteou-me não com uma produção dos seus tempos de Unicamp, CBCE ou Ministério do Esporte, mas com uma das suas produções dos tempos em que trabalhava na Secretaria de Esportes e lazer do Maranhão, em 1980. Ainda que suas produções de destaque sejam do campo da história da Educação Física, das políticas públicas e educação física escolar, esta produção aborda outra temática: o Futebol!    

Vale destacar, novamente, o ano desta publicação: 1980. Eu sequer havia nascido quando o professor Lino produziu este material!

Nesse momento pode estar se perguntando… “e daí?”.

Entremos então no tema central deste texto.

Nesta produção de pouco mais de 50 páginas, o professor Lino destaca a evolução histórica, evolução tática, regras e exercícios para aprimoramento técnico de alguns fundamentos do futebol. Se compararmos com qualquer publicação sobre futebol dos tempos atuais, certamente o teor seria significativamente diferente. Entretanto, o que causou certa surpresa e suscitou em mim a vontade de trazer esse tema para nossa reflexão e debate foi o fato de grande parte das escolas de esporte (mais conhecidas como escolinhas de futebol) e clubes ainda repetirem as mesmas estratégias de ensino elencadas em 1980 pelo professor Lino. Isso mesmo… mais de 40 anos depois desta produção, apesar dos significativos avanços no âmbito da produção teórica/acadêmica, com a proposição de inúmeras novas abordagens na pedagogia do esporte e, portanto, para o ensino e treinamento do futebol, as aulas e treinos continuam praticamente idênticas, como se tivéssemos enfrentando no campo da intervenção pedagógica, no decorrer destas 4 décadas, uma síndrome que nos paralisa no tempo. Uma síndrome que faz com que permanecêssemos em 1980, reproduzindo metodologias de ensino que, ao menos no campo teórico, já foram totalmente superadas.   

Há um número considerável de professores e treinadores que, mesmo com as críticas realizadas em diferentes e mais atuais estudos situados no campo da pedagogia do esporte, ainda elaboram suas ações pedagógicas pautadas no método analítico,  sustentando suas aulas e treinos na identificação de necessidades associadas ao gesto motor, à técnica dos fundamentos (domínio, passe, drible, chute etc) sem a preocupação com tomadas de decisões exigidas durante o jogo e com as questões táticas inerentes ao próprio jogo.

E tudo bem se o professor Lino propõe aulas e treinos pautados no método analítico. Afinal, em 1980, provavelmente, essa era a teoria que representava o que havia de mais avançado àquela época. Nem tudo o que é antigo, é velho ou ultrapassado. Há muita coisa ainda que os estudos contemporâneos não deram conta de superar. Mas este não é o caso dos estudos relacionados ao ensino e aprendizagem do futebol, afinal, a área da pedagogia do esporte avançou e a produção teórica nesta área se diversificou e se qualificou muito.    

Entretanto, 43 anos depois, é possível notarmos que esses avanços teóricos ainda não se manifestam nitidamente em muitas aulas e/ou treinos de futebol, evidenciando uma grande dificuldade se fazer chegar essa produção ao conhecimento de treinadores e professores e, também, deles traduzirem em suas intervenções pedagógicas (aulas e treinos) o que está preconizado pelo conhecimento científico contemporâneo. É justamente essa dificuldade, ou resistência, que faz com que aquilo escrito há 43 anos atrás ainda carregue consigo traços de atualidade.   

Se estamos pensando no processo de ensino-aprendizagem-treinamento do futebol para crianças e jovens, seja no âmbito escolar, clubes ou escolas de esporte, a iniciação esportiva deve se dar de modo que o futebol se adapte às características e necessidades das instituições de ensino/treinamento e, principalmente, dos praticantes. Ou seja, é preciso adaptar o esporte à criança e não a criança ao esporte. É preciso, como nos diz o professor João Batista Freire, tratar as crianças como crianças e devolver o jogo a elas.  

Dessa forma, ao entendermos que o principal estímulo das crianças à prática do futebol está relacionado ao prazer que sentem quando jogam, é importante que nossos planos e estratégias de ensino sejam elaborados didaticamente respeitando suas necessidades e dando grande destaque aos jogos e brincadeiras para que vivenciem o lúdico. 

Portanto, independente do objetivo das nossas aulas/treinos, é importante que pautemos nossas atividades no caráter lúdico, pois, principalmente em estágios iniciais de prática, e se tratando de crianças e jovens, o lúdico vivenciado em jogos e brincadeiras se constitui como elemento chave no processo de ensino-aprendizagem-treinamento. Vale destacar, no entanto, que não se tratam de quaisquer jogos ou brincadeiras, mas sim jogos e brincadeiras que oportunizem situações nas quais os jogadores não fiquem excessivamente com ou sem a posse da bola, que assumam diferentes níveis de complexidade, que, seja por situações reduzidas ou por adaptações nas regras, estimulem a tomada de decisão e a resolução de conflitos/problemas que se manifestam no jogo.

Neste aspecto, há inúmeras teorias que, guardadas suas especificidades, têm mostrado sua eficácia por pautarem-se no ensino do futebol tal como ele é jogado “na realidade”. Seu caráter coletivo, criativo, imprevisível, dentre outros, se expressa nestes jogos/brincadeiras fazendo com que os jogadores compreendam e apreendam a lógica do jogo e tomem decisões críticas e contextualizadas ao jogo, tendo como referência o ensino dos meios técnicos-táticos, defensivos e ofensivos (GALATTI, PAES, 2007; SANTANA, 2005).  

Passadas quatro décadas, não podemos mais elaborar e desenvolver nossos treinos e aulas tendo como referência o conceito de fragmentação do jogo, tal como preconiza o método analítico-sintético, no qual o ensino da modalidade esportiva se dá a partir da soma das partes que compõem o jogo, ou seus fundamentos. Este método apresenta como problema e elemento central, de acordo com Gallati e Paes (2007), a execução dos fundamentos de forma isolada, com ênfase na repetição de gestos motores para o aprimoramento técnico, sem o qual, de acordo com tais autores, a prática do jogo formal fica prejudicada. Não garante, assim, dentre outras necessidades impostas no e pelo jogo, a resolução de problemas de ordem tática.

Os treinos/aulas de futebol orientadas pelo método analítico partem do pressuposto de que o atleta/aluno ainda não sabe executar determinado gesto ou ação e só irá aprende-los de modo linear, indo do simples para o complexo, a partir da demonstração, imitação e repetição. Ao centrar-se na técnica, o professor/treinador busca que seu aluno reproduza modelos (drible como o Neymar, passe a bola como o Arrascaeta, conduza a bola como Messi etc) repetindo movimentos até torná-los automáticos.

Talvez o exemplo mais clássico deste método de ensino seja posicionar os alunos/atletas em filas para driblar cones dispostos simetricamente em linha reta. Diante destas circunstâncias, como já explanado por mim e pelo professor João Batista Freire em texto publicado na Universidade do Futebol (A diferença entre driblar ou fintar um cone e uma pessoa), “não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar o drible, não há tensão, não há diversão, não há prazer, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados. Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue”.

Talvez a qualidade da imagem abaixo retirada desta produção do professor Lino prejudique nosso olhar às filas para execução do passe. O tempo da publicação é significativo. Mas preocupante mesmo é pensar que tanto depois, grande parte das aulas e treinos de futebol permaneçam idênticas!  

De que forma, dispor nossos alunos e atletas em filas para fazer passes um de frente para outro garante a imprevisibilidade, aleatoriedade e o ambiente caótico inerentes ao futebol?

Vemos cada vez mais jogadores pouco criativos, preferindo o passe burocrático ao drible, perdendo a capacidade de resolver ou desequilibrar uma partida. Aqueles poucos que ainda se destacam pela sua criatividade e pela capacidade de improvisar no ambiente de jogo, à exceção de Neymar, Vini Jr. e mais alguns poucos, têm sua criatividade e capacidade de solucionar os problemas do jogo também cerceadas, tanto pelos treinos atuais, quanto pela conduta dos treinadores.

Ao estimularmos os praticantes de futebol a vivenciarem o jogo com base nos métodos de ensino apontados pelas pesquisas como mais eficazes, estaremos proporcionando a eles que compreendam a lógica do jogo e tomem suas decisões, de modo autônomo, inteligente e criativo, a partir das relações que eles estabelecem com os demais jogadores, sejam adversários ou companheiros de equipe, e também com a própria bola e o gol. 

É preciso, de uma vez por todas, rompermos essa paralisia que nos aprisionou em décadas passadas e darmos conta de fazer refletir em nossas aulas e treinos, como muitos já o fazem tão bem, o conhecimento científico contemporâneo produzido pela área da pedagogia do esporte. As perspectivas apontadas pelas pesquisas recentes são inúmeras e, apesar de distintas, partilham da mesma premissa de que colocar nossos alunos em filas intermináveis, driblar cones, realizar passes de frente para o companheiro etc, não é o melhor caminho para promover uma aprendizagem significativa, contextualizada e eficaz.

Texto por Rafael Castellani e, necessariamente, não reflete a opinião da Universidade do Futebol

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Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.5 – Perceber e reagir ao entorno

Pelo fato de encararem julgamentos públicos e internos com alta frequência, os treinadores do futebol brasileiro devem tomar cuidado ao observar as operações que rodeiam a sua prática profissional, demonstrando cautela para perceber e reagir ao entorno, pois “ainda existem muitas demandas amadoras no futebol”. Conforme afirmou um dos profissionais, “os clubes de futebol no Brasil ainda mantêm uma estrutura política em que os seus presidentes dependem de votos para serem eleitos e, portanto, eles são influenciados por resultados o tempo inteiro”. Ainda nesse raciocínio, outro entrevistado reforçou que os clubes são “administrados pela gestão política, que por sua vez se baseia no que pensa a oposição, a mídia, as áreas externas, sem uma estrutura para avaliar o trabalho do treinador”. Preocupados com a pressão externa e alheia ao treinamento e ao desenvolvimento coletivo, os profissionais revelaram como os seus pensamentos expandem o âmbito esportivo no exercício da profissão de treinador no Brasil. Para perceber e reagir ao entorno, os treinadores devem fortalecer a sua habilidade política e as suas relações públicas

“Há o cenário externo da torcida junto ao cenário político interno de quem está contra a atual administração. Na verdade, as relações e as decisões sobre o trabalho do treinador giram em torno desse cenário. Há uma crise constante, mesmo quando se tem resultados. Por exemplo, influência de empresários ou algum jogador reserva de um empresário que é alinhado com a diretoria, então você começa a ser questionado. Por não existir uma estrutura profissional, há coisas que circulam o clube e que acabam influenciando decisões internas.” 

Em termos de sua habilidade política, os treinadores devem procurar demonstrar um senso de juízo, ainda que discreto, em torno dos movimentos políticos que imperam dentro do clube, “mantendo um bom diálogo com os dirigentes e presidentes, coexistindo bem com eles”. Tal capacidade não necessariamente se volta a um envolvimento direto com ações internas, mas sim pelo benefício do equilíbrio que pode ser proporcionado ao cargo de treinador e ao trabalho da comissão técnica mediante uma consciência política sobre o que acontece internamente e no extra-campo. Contudo, um dos profissionais reconheceu que “a situação mais estranha que existe é saber medir e lidar com a política no clube”. Ao considerar que os assuntos políticos aparentam ditar a norma e afetar decisões sobre o trabalho dos treinadores em clubes brasileiros, dois entrevistados compartilharam uma revolta compreensível: 

“Isso é muito contraditório aqui porque o futebol brasileiro está submetido a uma série de ingerências de pessoas que não são exatamente as mais habilitadas para comandarem o nosso futebol. A gente sabe que o dirigente comanda muitas vezes pela paixão e por outros interesses também. Da minha maneira de ser é difícil conviver com essa turma. Isso acaba interferindo na fidedignidade da concepção do que é um bom treinador no Brasil, o que um treinador precisa ter para ser bom aqui no país, para ele ter longevidade, para ele conseguir desenvolver o trabalho dele. Essa instabilidade da administração dos clubes põe em cheque a capacidade de muitos treinadores. Do meu ponto de vista é difícil você reunir somente a competência técnica do treinador. Ele deve, acima de tudo, saber lidar com a administração do clube, porque senão ele não vai conseguir dar continuidade ao trabalho dele.” 

“É preciso ter o conhecimento de como funcionam os clubes no Brasil. Não adianta chegar ao clube e apresentar metodologias de treinamento, treinos com qualidade, propor mudanças na estrutura do clube. Os clubes brasileiros têm uma estrutura totalmente política. Um presidente para ser eleito depende dos votos e depois há a participação dessas pessoas que o colocaram na presidência. Sabendo que as pessoas que avaliam o trabalho no dia-dia na realidade não têm o conhecimento técnico ou tático do seu trabalho, não adianta chegar e querer fazer reunião com o presidente e até com o diretor de futebol explicando como você joga. Conhecer esse sistema e se adaptar a ele às vezes vale muito mais do que o seu conhecimento técnico, a sua preparação. É uma coisa muito do lado emocional.” 

Tal cenário desafiador se assemelha a depoimentos coletados junto a treinadores da Escócia, cujo contexto laboral também demonstrou uma nítida dependência à política interna dos clubes empregadores, enquanto os profissionais alegaram não estar necessariamente preparados ou equipados para tratar de assuntos fora do âmbito esportivo com os seus dirigentes. Inevitavelmente, o rendimento esportivo de uma equipe profissional também está relacionado a uma complexa rede de agentes que cedem à paixão emocional mesmo em posições de liderança na instituição. Como consequência dessa realidade, a natureza do treinamento passa a ser contestada no momento em que implicam-se relações micropolíticas nas tarefas do treinador, que pode se ver forçado a manipular impressões a fim de adquirir apoio, espaço e tempo de trabalho. 

Levando em consideração como os treinadores de futebol profissional atraem uma atenção significativa da opinião pública mediante as suas ações, espera-se que eles também saibam enaltecer as suas relações públicas, conectando-se bem com os canais de comunicação e com a mídia em geral, a fim de transportarem uma imagem institucional positiva aos seus clubes. Para ser valorizado como competente, “um treinador precisa se fazer entender através da mídia sobre como ele pensa o jogo, compartilhando suas ideias e estratégias para a competição”. Cientes de que “atualmente a internet amplifica e prolonga debates que afetam o processo diário do treinamento”, os treinadores devem cultivar um bom “relacionamento com a imprensa e com os torcedores”. Um dos profissionais inclusive admitiu o porquê das relações públicas terem se tornado uma competência de alta relevância ao treinador no país: 

“O relacionamento com a mídia é importante porque ela é uma formadora de opinião e tem um peso enorme no Brasil até pela falta de critério de quem gere o processo. A imprensa é uma forte condutora e indutora dos nomes, sugerindo e alavancando treinadores. Eu acho que é importante você conseguir se relacionar bem, saber atender bem, responder bem, ‘jogar o jogo’, porque muitas vezes você é colocado contra a parede e tem que saber responder de forma inteligente, sem criar atrito, sem divergência, mas conseguindo colocar as suas ideias.”

Ao estudar a evolução do ofício, o treinador de futebol profissional realmente se tornou o protagonista de uma incômoda cultura de celebridades cujo nível de visibilidade sob intensos questionamentos ajudou a transformar o futebol em uma novela masculina que prioriza manchetes sensacionalistas, opiniões superficiais e constante especulação. Coincidentemente, os entrevistados reconheceram que “o futebol parece ter virado um reality show onde o treinador carece de autonomia” enquanto “os dirigentes são torcedores misturados com a paixão”. Sobretudo devido a novos meios de comunicação e plataformas online disponíveis à opinião pública, o grau de fiscalização midiática se elevou de forma exponencial, consequentemente exigindo dos treinadores um maior cuidado em termos de suas exposições públicas. 

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Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.4 – Conduzir treinamentos e preparar para competir

Possivelmente situada entre as competências mais previsíveis, a capacidade de conduzir treinamentos e preparar para competir atende aos requisitos e expectativas básicas à profissão de treinador de futebol. Segundo os entrevistados, “um treinador deve saber conduzir a sua equipe taticamente e tecnicamente”, pois os jogadores têm exigido treinadores que consigam “ler as alternativas oferecidas pelo jogo”. Com base no raciocínio dos argumentos expostos neste estudo, duas condições foram enfatizadas: a filosofia de trabalho e a metodologia de treinos.
Para aplicar uma autêntica filosofia de trabalho, os profissionais que operam no território brasileiro sinalizaram que os treinadores devem incorporar as suas próprias ideias e crenças quando abordarem o âmbito esportivo do jogo, cultivando “uma base sólida de conhecimento” para poderem navegar entre as dimensões que contribuem ao rendimento dos atletas na modalidade. Visto que “não há mais espaço para ex-jogadores que apenas repetem aquilo que foi feito com eles”, “os jogadores percebem rapidamente quando um treinador está seguro sobre o seu conhecimento”. A fim de exemplificar, dois dos entrevistados compartilharam suas opiniões:
“A pessoa precisa ter confiança e convicção no que faz, na maneira que vê o futebol. É muito claro que o treinador precisa se fazer entender para o jogador. Eu acho que o treinador se perdeu um pouco nessa maneira de conduzir o trabalho. É claro que ele deve entender e estar atento ao que acontece no futebol mundial, não precisa se fechar a conhecimentos ou maneiras de trabalhar, mas sempre definindo o que você acha importante ou não em vez de virar uma ‘moda’. Eu vejo que hoje em dia há muitos ‘modismos’.
O novo é legal, alguns termos são legais de falar, mas o treinador precisa entender como ele vai passar as convicções dele, a maneira como ele próprio enxerga o futebol, quais são as suas estratégias e o seu
modelo de jogo. Isso é fundamental para que ele tenha sucesso.”
“Para ter rendimento é preciso dar continuidade ao processo de aprendizagem e desenvolvimento. É evidente que eu quero ganhar títulos, mas se eu puder evoluir o meu atleta tanto como profissional e como pessoa, isso vai reverter em performance e título. Eu quero pensar no processo. Para mim o processo é mais importante do que o fim.”

Além de compreender o futebol de uma forma própria e individualizada, espera-se que os treinadores também sejam capazes de transferir a sua filosofia à metodologia de treinos. Com uma perspectiva pessoal que possa vir a distinguí-los em termos práticos, o treinador profissional deve saber acomodar as demandas da modalidade e do jogo por meio de sua capacidade em desenvolver a equipe no treinamento. Isto é, incutir o seu “conhecimento, expertise e conteúdo em sessões de treinamento” com um “bom repertório de treinos, entendendo o modelo tático e os procedimentos de treino”. Ao prescrever as sessões, o treinador deve, sobretudo, “criar soluções dentro do treinamento para resolver um problema, que às vezes pode ser um comportamento setorial, intersetorial, individual ou coletivo” de modo que a equipe possa “aprender a jogar em diferentes situações”. Um dos treinadores entrevistados explicou a mudança de paradigma transportada ao jogo no Brasil:
“Para se diferenciar hoje no Brasil é preciso jogar com conceitos, princípios, ideias. Há algumas décadas nós tinhamos o jogo com espaço e confrontos individuais, onde tinhamos mais poder pela individualidade. A partir do momento em que os espaços diminuíram e as questões de habilidade e técnica se contextualizaram numa visão mais coletiva, o campo foi diminuindo e a questão tática foi aflorando. Agora para chegar ao gol adversário você precisa ter posicionamento em cada metro que a bola anda em campo, nas ações, tomadas de decisões com e sem a bola. O nosso treinador desenvolveu o perfil de liderança para falar da família, a necessidade de subir de vida, o motivacional. Hoje ele precisa mudar esse discurso para um perfil mais tático, sinalizando as formações e ações específicas. Nós temos um jogo mais solto, no qual precisamos controlar um pouco mais. Robotizar, dar tática, melhorar os conceitos.”

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A DITADURA DA TÁTICA NO FUTEBOL

Reflexões sobre as mudanças paradigmáticas no futebol brasileiro e mundial

“Tanto jogando, como assistindo, o povo brasileiro potencialmente ainda conserva a sua paixão pelo jogo bonito, criativo, alegre e eficiente, que fez do futebol brasileiro uma marca reconhecida mundialmente. Aprendemos a gostar deste “jogo com bola, jogado com os pés”, de forma natural e espontânea. Desde a época das peladas e do “futebol de rua” que essa cultura de jogo nos envolve. Se faz necessário um esforço coletivo para resgatá-la, preservá-la e retroalimentá-la, porém com novos ingredientes que o futebol e a sociedade contemporânea exigem.”

(João Paulo Medina)

O futebol, enquanto expressivo fenômeno sociocultural e esportivo de alcance mundial, vem sofrendo diversas influências e transformações, conforme seu percurso ao longo da história.

Não é nosso objetivo, neste ensaio, fazer uma análise histórica mais aprofundada sobre as origens e a evolução desta modalidade esportiva, mas, apenas, contextualizar algumas reflexões críticas sobre o atual estágio do futebol no Brasil e no mundo. Nesta perspectiva, vamos tomar como referência histórica o período entre a realização da primeira Copa do Mundo, realizada em 1930 no Uruguai, até os tempos atuais. 

As Copas do Mundo, sendo repetidas de 4 em 4 anos (com apenas duas interrupções em 1942 e 1946 devido à Segunda Grande Guerra Mundial), costumam servir de termômetro – achemos adequado ou não – para se avaliar o estágio de desenvolvimento do futebol globalmente.

Neste período de quase 100 anos (1930-2023), pudemos constatar diferentes estágios de desenvolvimento no jogo de futebol. Mas até a década de 1950, o que se praticava era um jogo, onde a habilidade técnica individual dos jogadores era o fator decisivo, fazendo toda a diferença. Cabia ao treinador “enxergar” o potencial técnico de seus comandados e oferecer certa organização em campo aos jogadores para que pudessem expressar sua arte e obter bons resultados. 

Em seguida, em um período que podemos situar entre as décadas de 1960/70, com a evolução das ciências do esporte, iniciou-se a etapa de ênfase à preparação física, onde só as qualidades técnicas já não eram suficientes para as demandas do alto rendimento. Lembro-me, nesta época, aqui no Brasil, das críticas que sofriam os preparadores físicos (que começavam a surgir nos clubes mais estruturados), por parte de muitos que personificavam neles o retrocesso do futebol-arte, como “marca registrada” do futebol brasileiro. Com o passar do tempo, foi se conseguindo certo equilíbrio entre as exigências físico-fisiológicas dos jogadores e as suas habilidades técnicas necessárias à prática do “bom jogo”.   

Até que veio uma “terceira onda” no processo de evolução do futebol, cuja ênfase é dada à preparação físico-técnico-tática, na qual o componente tático começa a ter muito protagonismo.   

É claro, que não se pode distinguir, de forma mecânica, linear ou cartesiana, estas 3 grandes etapas. Na verdade, estes processos de mudança, ocorrem das mais diversas formas e, muitas vezes, sutilmente, com avanços e retrocessos.

O fato é que mais acentuadamente nestas últimas décadas, o jogo de futebol de alto rendimento, mudou bastante em vários sentidos. Mas vamos nos ater aqui, prioritariamente, à evolução de sua dimensão tática.  

Sem desconsiderar treinadores mais antigos, alguns excepcionais e inovadores, como Bill Shankly, Bob Paisley, Helenio Herrera, Ernst Happel, Rinus Michels, Zagalo, Johan Cruyff,entre outros, queremos destacar Arrigo Sacchi que no final dos anos 1980 e início da década de 1990, revolucionou o futebol mundial, inaugurando definitivamente uma era de predominância dos aspectos táticos no jogo de futebol que podemos afirmar que dura até nossos dias. Sacchi foi quem, com suas inovações táticas, deu grande ênfase ao jogo coletivo, colocando em outro patamar a necessidade de se ter um espírito de trabalho em equipe em seu mais alto grau de exigência até aquele momento.

Simultaneamente a ele, e depois dele, se destacaram outros grandes treinadores, desde Carlos A. Parreira, José Mourinho, Telê Santana, Luiz F. Scolari, Alex Ferguson, Van Gaal, Carlos Ancelotti, Tite, Luciano Spalletti, Lionel Scaloni, Abel Ferreira, entre muitos outros, até chegarmos nos icônicos Jürgen Klopp e Pep Guardiola.

Klopp e Guardiola se notabilizaram mais recentemente por suas inovações táticas (e não só), com resultados expressivos que, agora, segundo alguns analistas, começam a dar sinais que podem representar o encerramento de uma era, iniciada por Arrigo Sacchi. 

 A simplista e tradicional nomenclatura dos “sistemas táticos”, como o 4-2-4, o 4-3-3, o 4-2-3-1, o 4-1-4-1, o 3-5-2 etc., como interpretação das dinâmicas que ocorrem durante um jogo de futebol, parecem estar com seus dias contados.  Muitos treinadores, inclusive, já não os consideram como referência aos seus modelos de jogo. Mas não só esta nomenclatura está sendo questionada cada vez mais, como também os próprios sistemas táticos atuais em si mesmos, começam a mostrar suas fragilidades, independentemente dos números que os possam classificar ou identificar.

Neste sentido, um interessantíssimo artigo, publicado recentemente por Rory Smith, respeitado jornalista esportivo inglês e correspondente do influente jornal norte-americano, The New York Times, faz críticas aos “sistemas táticos” atuais, procurando dar luz a esta inflexão que pode desembocar em uma ruptura ou mudança de paradigma no jeito de jogar futebol, mundo afora. 

Rory afirma “A história do futebol é um processo de estímulo e resposta, de ação e reação. Uma (determinada) inovação domina por um tempo – o processo acontece cada vez mais rapidamente – antes que a concorrência a decodifique e a neutralize ou a adote.”

E continua o autor do instigante texto: “E há, agora, os primeiros vislumbres do que se pode seguir no horizonte (do futebol). Em toda a Europa, as ‘equipes de sistema’ estão começando a vacilar (geralmente, com muitos altos e baixos). O caso mais evidente é o Liverpool, de Jürgen Klopp, lutando não apenas com um cansaço físico e mental, mas também (com questões) de filosofia. Seus rivais e colegas, agora, estão inoculados para seus perigos. (…) Até o Manchester City (de Pep Guardiola, com o seu badalado “Jogo de Posição”), onde o sofrimento é sempre relativo, parece menos soberano do que antes.” Em relação ao Real Madrid, clube que tem conseguido manter bons desempenhos e resultados nos últimos tempos, ele justifica: “O Real Madrid, é claro, sempre teve esta abordagem, optando por controlar momentos específicos dos jogos, em vez do jogo em si. Mas o fez com uma vantagem significativa de possuir muitos dos melhores jogadores do mundo.”

Após essas considerações preliminares, Rory Smith afirma algo que queremos aqui destacar, por concordar amplamente com o que diz: “O futuro, ao contrário, parece pertencer às equipes e treinadores que estão dispostos a ser um pouco mais flexíveis e veem seu papel como uma plataforma na qual seus jogadores podem improvisar.” 

Na sequência, para sustentar seus argumentos, ele cita os trabalhos de Luciano Spalletti, do Napoli e de Fernando Diniz, do Fluminense, como novidades e bons exemplos de inovação no futebol. E é este o ponto que queremos destacar nestas reflexões. 

Não conheço muito o trabalho de Spalletti, a não ser a sua crença de que os jogadores “não podem ser tratados como marionetes, encorajando-os a pensar e interpretar o jogo por si mesmos.”  Mas acompanho com muita atenção, há tempos – desde seu período de Audax-SP – os movimentos e a evolução do treinador Fernando Diniz. 

Diniz, sempre questionou muito os posicionamentos tradicionais, engessados pelos sistemas táticos de jogo, quaisquer que fossem eles (mesmo os mais atuais e vencedores). Se insurge também àqueles que priorizam a tática descontextualizada, em detrimento dos relacionamentos humanos mais profundos. Dificilmente veremos o treinador do Fluminense travando um debate sobre tática ou modelo de jogo, por exemplo, sem antes contextualizar suas reflexões às situações concretas (de vida, inclusive) de seus jogadores.  Para ele, uma sociedade que exclui injustamente, que só valoriza quem vence e que simplesmente destrói jogadores (com potencial), mas que – por circunstâncias muitas vezes desconhecidas – não conseguem ser bem-sucedidos, é uma sociedade doente e que precisa ser superada.

Fernando Diniz, embora esteja atento à evolução científica no esporte, que traz inovações às metodologias de preparação dos futebolistas, não se deixa levar facilmente pelos modismos que, muitas vezes, tomam conta do ecossistema do futebol, de forma acrítica, criando-se verdadeiras “camisas de força” ou “ditaduras”, venham eles de onde vierem; das estatísticas, da fisiologia, da tática, ou de qualquer outra área específica do conhecimento.  Não se rende, enfim, às interpretações puramente especialistas (muitas vezes, vistas de forma estática, mecânica ou linear) sobre um jogo que entende ser complexo, dinâmico, caótico e imprevisível, em sua essência. Talvez, por isso, que seu “jogo aposicional”, que tanta controvérsia provoca, seja a marca indelével de seu estilo.

É fato que as equipes (todas) vão ganhar e perder no futebol de diferentes formas e circunstâncias, sejam quais forem as suas propostas, mas é fundamental que percebamos como os sistemas (posicionais ou “aposicionais”) podem ter influência no desenvolvimento dos jogadores e do futebol brasileiro e mundial.

E para finalizar com uma síntese do pensamento de Fernando Diniz, ele acredita firmemente que tudo aquilo que o jogador faz em campo é muito menos fruto de suas habilidades físico-técnicas e táticas, em si mesmas, e muito mais fruto de sua predisposição para seguir seus propósitos, ter coragem, desenvolver seu espírito de solidariedade, sua inteligência (individual e coletiva), seguindo um roteiro pré-determinado pelo treinador, porém com suficiente liberdade de movimentos e autonomia para poder improvisar e criar, mantendo aceso o genuíno prazer e alegria de jogar futebol. E não seria isso, o resgate da essência do futebol brasileiro, em tempos contemporâneos? 

João Paulo S. Medina

Fundador da Universidade do Futebol

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Não existe clube bom com gente ruim!

As empresas são feitas de pessoas e os clubes também. Clubes são feitos de pessoas que jogam o jogo dentro das quatro linhas e de pessoas que jogam o jogo fora das quatro linhas. Então, faço aqui uma afirmação: todos deveriam estar capacitados e engajados para jogar um único e grande jogo.

E por quê? Porque a bola não entra por acaso. Porque por trás de um grito de gol, da transferência de um atleta, da atração de investidores, de novos patrocínios, da paixão de torcedores, da transformação da vida de atletas e famílias, da classificação para um grande campeonato… tem pessoas. Tem pessoas que, se inspiradas por uma estratégia clara, cultura e liderança fortes e recursos adequados, fazem o sucesso ou o fracasso de um clube ao longo de sua história.

São inúmeras perspectivas e reflexões sobre pessoas, que não cabem em um único artigo. Escolho então começar a refletir sobre alguns. De que adianta um sistema completo de scouting e investimentos milionários para compra de atletas se a liderança não estiver preparada para capitalizar no melhor de cada indivíduo e em favor do bem maior que é o time? De que adianta talentos individuais sem a força do coletivo? De que adianta atletas com capacidade técnica-desportiva excepcional se não forem pessoas com outras habilidades e competências, inclusive de relacionamento? Quais os limites de um atleta competente dentro do campo sem inteligência sócio-emocional?

Se refletimos o jogo fora do campo, vale também questionar o quanto as pessoas são talentos individuais e não são estimuladas a trabalharem na direção de um objetivo maior que suas próprias áreas e responsabilidades. O quanto essas pessoas estão, ou não, nos lugares adequados dos clubes onde possam inovar e gerar os melhores resultados baseadas nos seus propósitos, interesses, habilidades e competências. O quanto cada um entende seu papel e suas contribuições e investe no seu auto-desenvolvimento.

Mas, ainda mais relevante que refletir sobre as características e responsabilidades dos indivíduos, cabe destacar que tudo começa na alta liderança. É imprescindível a existência de líderes que tenham vontade política para gerir um clube de futebol de maneira profissional, humanizada e acima de interesses individuais ou de um único grupo.

Difícil começar? A desculpa continua sendo o resultado do jogo de domingo e a falta de recursos financeiros? Lembre-se que futebol realmente não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro. Comece com visão de longo prazo e engajando os melhores. Demita aqueles que não estiverem alinhados com a transformação. Ouça as pessoas de dentro e de fora do seu clube, invista neste coletivo, pactue, engaje, comunique com todos os públicos de interesse e veja a potência de contar com pessoas jogando o mesmo jogo dentro e fora das quatro linhas.

Texto por: Heloisa Rios