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O mito da pausa para a Copa América

Com a Copa América rolando tem muito treinador de time brasileiro aliviado. Mas tem outros preocupados. Os que são bons de treino falam com convicção que essa pausa será importante para treinar suas equipes nos aspectos técnicos, táticos, físicos e emocionais – tudo isso é treinado junto, ao mesmo tempo. Se treina o todo do jogo de futebol para que em campo a equipe como um todo melhore – vale hoje em dia a máxima de que o todo é maior que a soma das partes.
Exemplificando: uma equipe fisicamente bem não é a que corre mais e sim a que tem as valências físicas necessárias para o modelo de jogo pretendido. Ou alguém questiona que uma equipe que tem 75 por cento da posse de bola em todo jogo, que está sempre agrupada e no campo adversário precisa de um preparo diferente de uma equipe que joga toda atrás e tem como principal arma ofensiva o contra-ataque, com grandes sprints de velocidade? Então para treinar essa parte física nada melhor do que treinar o jogo pretendido.
Pois bem, há no Brasil técnicos muito bons que conseguem através de treinamentos integrados, sistêmicos e transdisciplinares fazer com que suas equipes melhorem. Por outro lado, vamos agora falar dos treinadores que estão preocupados. Esses são aqueles que dão graças a Deus que tem jogo toda quarta-feira e todo domingo. Dessa forma, não há porque se preocupar em elaborar atividades que façam os jogadores compreenderem os princípios de jogo pretendidos, melhorarem suas capacidades cognitivas e de tomadas de decisão para cumprirem melhor a lógica do jogo na resolução dos problemas que se apresentam em uma partida. Se não tem tempo para treinar, fazer o que? Pensam eles…
Está no cerne da figura do treinador competente reunir habilidades metodológicas e pedagógicas de treino. Acabou faz tempo a figura do “bom treinador é aquele que não atrapalha”. E acredite em mim: jogador gosta de técnico que o faça crescer e se desenvolver.
Acompanharei atentamente as primeiras rodadas do futebol brasileiro logo após a Copa América. E não precisa de muito para ver se uma equipe está ou não está bem treinada. Os bons técnicos deixarão o campo falar. Os maus vão usar os mesmos microfones que antes serviam para lamuriar os poucos dias entre um jogo e outro para talvez agora reclamarem que falta ritmo de jogo ou que os atletas engordaram (!) nessa mini-férias. Estamos de olho nos jogos e nas entrevistas!
 

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Sobre raízes e modernos: uma breve entrevista

Deyverson, comemorando um dos seus gols: onde está a fronteira entre o raiz e o moderno? (Reprodução: torcedores.com)

 
Há pouco mais de dois meses, fui gentilmente convidado pelo colega Bruno Madrid, do BOL, a falar sobre uma dessas discussões que, de alguma forma, repercute no nosso imaginário futebolístico: as diferenças entre aquilo tido como raiz contra aquilo que se chama de moderno.
No fim das contas, vejo equívocos importantes dos dois lados, com a diferença que os modernos mais extremistas parecem pretensiosos demais (pela negação do passado, inclusive). Todas as minhas respostas seguem abaixo, na íntegra. Neste caso, eu não preciso fazer comentários, uma vez que as respostas falam por si só. Apenas acho importante ler a última resposta com uma certa dose de sarcasmo.
Aliás, elas também aparecem, mais enxutas, nesta matéria, escrita pelo próprio Bruno, quando minhas visões foram confrontadas com as de alguns outros colegas do meio.

***

O futebol brasileiro dos anos 90/2000 era melhor do que o futebol atual?
O futebol brasileiro dos anos 90/2000 tinha outros elementos. Por exemplo, vários dos nossos melhores jogadores passavam mais tempo no Brasil do que os jogadores desta geração. Entendo que existe uma certa tendência para a romantização do passado (não apenas no futebol), mas o romântico, para sê-lo, precisa superestimar as qualidades do que ama. Só que se pegarmos qualquer mesa-redonda daquela época e assistirmos hoje, provavelmente iremos comprovar que as discussões são, na raiz, as mesmas – mudam apenas os nomes! Ou seja, não se trata de melhor ou pior. São tempos diferentes.
 
A priorização das táticas e análises mais ajudou ou mais atrapalhou o futebol do país?
O Brasil deve ser um dos únicos lugares do mundo moderno que desconfia que o estudo é capaz de nos deixar mais burros. Pelo contrário, o esforço de vários colegas para se aprimorar, buscar outros olhares para o jogo, é super positivo. Você foi muito feliz citando o termo ‘táticas’, no plural. Existe uma tendência que confunde tática com esquemas táticos. Mas não, a tática é algo maior. O esquema está para a tática assim como um galho está para uma árvore, é uma derivação. Ou seja, mesmo a equipe mais descompromissada tem suas táticas, individuais e coletivas, e responde aos problemas do jogo, que também são táticos. Mas isso não nos impede, por exemplo, de refletir se não estamos tornando hiperobjetivo e metódico um jogo que é humano, logo, que vai para muito além da objetividade e do método. O futebol é mais poesia do que tese.
 
Depois da Copa de 2014, houve um sentimento de mudança geral, e técnicos como Felipão e Luxemburgo perderam espaço. Foi justo com eles? Há ‘desatualização’?
Aquele episódio causou enorme incredulidade, mas não sei se houve (e nem se deveria haver) uma perda de espaço. Um ciclo depois e Scolari, por exemplo, voltou simplesmente para a equipe mais abastada do futebol brasileiro – e foi campeão! Além disso, é importante considerarmos que o tempo e dinâmico, as ideias também. Mano Menezes, Cuca e Sampaoli, por exemplo, são treinadores da nova ou da velha geração? Não sei, sei que são bons treinadores. Não me agrada o termo ‘desatualização’, mas acho importante que o futebol brasileiro se habitue a conversar mais regularmente, trocar ideias com os bons profissionais daqui e do exterior, criar espaços de debate regulares e democráticos, sobre metodologias de treinamento, formação de atletas e treinadores, organização do calendário e etc. As melhores práticas internacionais nos mostram que esse é um caminho interessante.
 
Como você enxerga a nova geração de treinadores (Carille, Roger, Barbieri e cia)?
Novas gerações têm duas características: sempre vão surgir e sempre causarão incômodo. Fico imaginando, por exemplo, se não havia resistência a um treinador como Luxemburgo no início de carreira. Provavelmente, era ele o ‘moderno’ da época. É um processo que precisa ser encarado com mais naturalidade. Em linhas gerais, vejo duas coisas: em primeiro lugar, o sarrafo para os jovens treinadores é sempre mais alto, de modo que a tolerância é menor. Thiago Larghi e Barbieri, na minha opinião, são dois bons exemplos: entendo que ambos fizeram ótimos trabalhos no último ano, mas não foram suficientemente reconhecidos. Jardine mal assumiu o São Paulo e já estava sob a mira feroz de parte razoável dos mesmos colegas que pedem ‘renovação’. Por outro lado, esta nova geração, na qual eu me incluo, precisa ter claro que o jogo de futebol não existe para ser domesticado, que a ordem surge do caos. Se não refletirmos seriamente sobre o conhecimento que nos chega, se não sairmos do futebol para entendê-lo melhor, podemos caminhar para um jogo cada vez mais estéril, limitado.
 
Quais os motivos técnicos dos fracassos da seleção brasileira ultimamente?
Técnicos, nenhum. Jogadores de qualidade não nos faltam. Sobre os ‘fracassos’, vejo duas coisas: para o torcedor médio, qualquer resultado que não seja o título será tido como ‘fracasso’, o que denota um problema maior no ideário brasileiro sobre futebol do que no jogo jogado, em si. O outro ponto está no campo. Na Copa do Mundo da Rússia, por exemplo, julgo que a maioria das críticas feitas ao desempenho e ao treinador da seleção brasileira foram absolutamente secundárias. Foi um trabalho de muito bom nível, que enfrentou percalços importantes em um período sensível (lesões de Daniel Alves, Renato Augusto e Neymar, por exemplo), e que terminou vencido por outra excelente equipe, que poderia muito bem ter sido campeã.
 
E em relação aos fracos desempenhos dos clubes (só o Corinthians de time brasileiro venceu o Mundial nas últimas 12 edições)?
Não acho que o Mundial de Clubes deva ser parâmetro para o sucesso internacional. Com a disparidade econômica cada vez maior, e tendo em vista este novo modelo apresentado pela FIFA, os títulos mundiais serão uma utopia. O ponto positivo é que talvez passemos a relativizar a importância do torneio, potencialmente fortalecendo nossa competição continental. Este sim, é um ponto a ser discutido. Ano após ano, a Libertadores não tem sido terreno simples para os clubes brasileiros, inclusive para os mais saudáveis financeiramente. Vejo bons programas de formação de treinadores nos países vizinhos (especialmente da Argentina), e acho que isso já tem e terá reflexo ainda maior no nível de exigência das competições continentais ao longo do tempo. No ano que vem, um Defensa y Justicia, por exemplo, mais maduro e mantendo Sebastian Beccacece, pode ser um adversário muitíssimo incômodo, apesar dos poucos recursos econômicos.
 
Por que há cada vez mais menos “personagens” (como Serginho Chulapa, Edmundo, Romário, Viola, Dinei…) no nosso futebol?
Mas será que realmente há menos personagens? Deyverson não é um deles? Walter, talvez o Felipe Melo, Lisca e Renato, Fred, Douglas, Marquinhos (ex-Avaí), o próprio Neymar… Veja bem, não quero comparar os ‘personagens’ do ponto de vista qualitativo, mas penso de uma outra forma: será que a estrutura hiperprofissional e burocratizada do futebol moderno não acaba criando uma barreira que não deixa os atletas serem como são? Vários dos ‘personagens’ mais antigos, se jogassem hoje, iriam colecionar visitas ao STJD e cartões amarelos em comemorações de gols. Acho algo a ser considerado. Novamente, são tempos diferentes.
 
Qual sua opinião sobre Deyverson?
Tenho a impressão de que ele se sente incompreendido. Cada uma das polêmicas em que ele se envolve me parecem um pedido inconsciente de ajuda, um sinal de que há problemas a serem resolvidos (exatamente como nós temos os nossos, com a diferença de que ele é uma pessoa pública). Como não é possível separar o humano do jogador, é claro que isso tem repercussões dentro do campo. Mas me parece um sujeito gente boa.
 
Você se considera mais “raiz” ou mais “moderno?
Sendo muitíssimo sincero, acho essa discussão entediante, embora os rótulos sejam naturais para cada tempo. A questão central é que existem coisas, no futebol e fora dele, que vão para além do tempo e unem os extremos. Rinus Michels e Cruyff são sujeitos raiz ou modernos? Telê Santana e Jorge Valdano? Enfim, é por aí que deveria estar a nossa busca. Para não te deixar sem resposta, diria que me vejo um boleiro atemporal.
 

 

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O futebol de rendimento: indústria de lazer e entretenimento

Durante o fim de semana a repercussão em cima do preço médio dos ingressos do futebol foi bastante grande. Mais do que antes, porque é tema delicado e ficou ainda mais após a construção dos estádios que receberam o mundial de futebol masculino, há cinco anos. Sem dúvida alguma que os preços dos ingressos aumentaram de maneira considerável, no entanto é preciso ao mesmo tempo compreender o porquê deste aumento.

Longe de defender esta alta, que afasta boa parte do público do futebol, muita coisa mudou nas últimas décadas em termos de padrões de segurança, acomodação, acesso e operação de um evento esportivo, que também nestes casos também são de entretenimento. Há muito mais pessoas envolvidas e complexas operações que exigem tempo e profissionalismo. Ao mesmo tempo, a indústria do lazer cresceu sobremaneira e, com isso, a concorrência. Em outras palavras, a disputa pelo mercado consumidor. Não há muito tempo as pessoas se lembram de como era antigamente chegar ao estádio, escolher (ou não) um lugar, tomar chuva ou ‘aquele’ sol bem ‘na cara’. Se houver outra opção, mesmo mais cara, mas que o torcedor não passe por isso, a paixão fica de lado na maioria dos casos.

Simultaneamente, temos uma economia em que a concorrência não é grande e a competitividade baixa em comparação com os grandes centros econômicos do mundo, nomeadamente América do Norte, Europa e Ásia. Soma-se isso à paridade do poder de compra da nossa moeda, os preços acabam ficando mesmo caros. Exemplo: uma partida de futebol da primeira divisão de um importante centro na Europa a 40 euros, comparado ao salário mínimo daquele país, é preço relativamente acessível e as operações do estádio ou do clube são pagas. Não é o que acontece no Brasil, com o ingresso a 40 reais e nem fazendo o câmbio exato de euros para reais.

É uma sequência em cadeia.

Ademais, o futebol de rendimento está caro. Os futebolistas de ponta ganham cada vez mais, com inúmeras pessoas envolvidas no processo de preparação, formação e contratação do atleta. Há muito mais partes interessadas que operam em um mercado de baixíssima regulamentação e fiscalização. Isso permite pensar que a barganha política que existe é muito grande. Um setor regulamentado e fiscalizado sugere sustentabilidade. É por isso que, volto a dizer, sou fã da política de teto salarial e normatização para agentes de atletas nas ligas norte-americanas.
 

(Foto: Divulgação)

 

Com tudo isso, parte desta grande alta dos preços dos ingressos tem como origem toda esta gama de transformações da indústria do entretenimento, em também como a sociedade e o conceito de lazer mudaram, somada à complexidade do modelo econômico e uma ausência de regulamentação do mercado.

Mais uma vez: longe de querer justificar a alta dos preços, mas mais perto de querer compreendê-la.

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 Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Desporto é a expressão corporal do progresso sócio-econômico de um povo.
Prof. Dr. Manuel Sérgio, filósofo português (1933-)

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Bom futebol se joga com boas ideias

Sou muito crítico a tudo o que acontece no futebol brasileiro. Tenho claro que o 7 a 1 na Copa do Mundo de 2014 não foi acaso. Nem culpa do Felipão. Eu, como imprensa, perdi de 7 naquele dia também. Todos que de alguma forma estão envolvidos na indústria do futebol foram derrotados pelos alemães. A partir dessa pancada, fiz minha parte e comecei a estudar. A fundo mesmo, tudo que rola dentro e fora de campo. Quanto mais aprendo mais quero continuar aprendendo. E passei a ser mais duro com o nosso atraso. Por outro lado, quando vejo coisa boa me sinto obrigado a também registrar. E aqui vai o elogio para uma das classes mais atrasadas da nossa cadeia: a de treinadores.
Consigo enxergar hoje o que no passado não existia em Campeonatos Brasileiros: muitos técnicos com ideias claras de futebol. Uma intencionalidade treinada para cada fase do jogo. É claro que só isso não basta para termos uma qualidade semelhante as principais ligas europeias, por exemplo. Mas já é um avanço, visto que antes a aleatoriedade e o caos prevaleciam. Inclusive na primeira divisão tupiniquim.
Vamos aos fatos: consigo ver uma ideia clara, tendo a posse como meio para dominar o adversário, nos sistemas propostos por Eduardo Barroca no Botafogo, Fernando Diniz no Fluminense, Rogério Ceni no Fortaleza, Renato Gaúcho no Grêmio, Jorge Sampaoli (argentino!) no Santos e Thiago Nunes no Atlético-PR. E se o início de tudo é ter ideia, e não julgo o que é bom ou ruim até porque isso é relativo, sendo que a eficiência é a marca de vitórias no futebol, também temos ideias que privilegiam a defesa, com ataques rápidos e diretos, como Mano Menezes no Cruzeiro, Fábio Carille no Corinthians, Felipão no Palmeiras e até Róger Machado no Bahia.
Não aceito a falta de tempo para treinar como desculpa para um jogo mal feito. Até porque um dos problemas da nossa cultura sempre foi o famoso ‘migué’ em treinamentos. Inclusive dos técnicos, por incrível que pareça. De uma maneira geral, ainda treinamos mal aqui no Brasil. Tem pouco tempo? Como otimizar as atividades para rapidamente criar comportamentos e padrões de resposta? Mas quero salientar que a troca constante no comando das equipes faz com que trabalhos sejam remendados e quem chega sempre tenha que lidar com uma herança do ex-treinador.
Porém, se o um mau futebol é com jogada más ideias ou sem ideia e um bom futebol é jogado a partir de boas ideias consigo ver uma luz no fim do túnel baseado nessas rodadas iniciais do Brasileirão. Falta muito para termos uma competição do nível top mundial. Porém, ter técnicos com intencionalidades claras para desenhar uma equipe já é um grande avanço.
 

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Sobre os sentidos do futebol

Klopp e os jogadores do Liverpool comemoram: sinais de caminho, significado e afetos. (Reprodução: RTE)

 
Há algum tempo, por ocasião do meu trabalho de mestrado, tenho me dedicado um pouco mais às palavras, ao peso que as palavras têm e também aos significados que as palavras podem trazer. No futebol, como em qualquer outro lugar, precisamos das palavras mais do que elas precisam de nós.
Nesta semana, gostaria de refletir um pouco sobre a palavra sentido. A partir dela, podemos falar sobre treinamento, formação, modelos, estratégias, táticas e etc. Divido este texto em três partes. Em cada uma delas, apresento um olhar diferente do sentido e como cada um desses olhares se realiza pelo futebol.
Vejamos.

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Em primeiro lugar, acho possível olhar para o sentido no futebol a partir do caminho. O que é um modelo de jogo, por exemplo? O modelo de jogo é um caminho. Um caminho diferente da estratégia, porque o modelo é maior, resiste ao tempo, enquanto que a estratégia é mais pontual, sofre alterações sutis, de acordo com o adversário, de acordo com nós mesmos, de acordo com o modelo. Mas, nos dois casos, estamos falando de caminhos.
Dar sentido ao nosso trabalho (para além de uma direção) é sinônimo de dar um caminho. Nessas horas, não me esqueço daquela passagem de Alice nos País das Maravilhas, quando Alice diz não saber para onde vai, ao que o Gato Louco responde algo do tipo: ‘para quem não sabe onde vai, qualquer caminho serve’. Traçar um sentido é traçar um caminho, um caminho específico, um caminho que nos agrada, um caminho que gostaríamos de fazer. Se você preferir, traçar um sentido é traçar um caminho ideal. Ou seja, de certa forma, o sentido é idealista. Mas o jogo não é ideal, o jogo é real.
Este é o motivo por que vários colegas, dentre os quais eu me incluo, defendem metodologias de treinamento baseadas no jogo – não nos recortes do jogo. Um garoto que dribla cones estará cada vez melhor na arte de driblar cones, mas não necessariamente na arte de jogar futebol. Para tornar-se artista no futebol, este garoto precisa jogar. Isso não significa jogar apenas o jogo formal, mas significa jogar jogos, com oponentes reais, em espaços diferentes, com objetivos diferentes, com regras diferentes, não para fazer repetições quaisquer, para fazer repetições inteligentes, mas precisa jogar. Se formamos nossos jogadores para driblar cones, escolhemos um sentido. Se formamos jogadores para jogar, escolhemos outro.
Por isso, pensar no sentido como caminho faz tanta diferença.

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Mas também é possível olhar para o sentido no futebol a partir do significado. Por exemplo: pense na organização dos nossos treinamentos. Quando organizamos um treino, fazemos isso de qualquer jeito? Bom, espero que não. Cada exercício (ou cada jogo) tem a ver com o sentido da sessão, que por sua vez se encaixa no sentido do microciclo, que por sua vez é uma parte do mesociclo (assim sucessivamente) e todos eles conversam com o modelo, com aquele caminho que estabelecemos lá em cima. Ou seja, talvez exista um sentido anterior ao treino (caminho), mas também existe um sentido posterior ao treino – o significado.
Encontrar um significado quer dizer, no mínimo, duas coisas: primeiro, que aquele jogo, aquela sessão, aquela semana de treinamentos, tudo aquilo significa alguma coisa para alguém. Quando uma parte deste ato de treinar, por menor que seja, não significa nada para alguém (ou pior, quando não significa nada para ninguém) é sinal claro de que erramos a mão. Depois, se o significado deve ser encontrado, então ele não existe em si, ele não foi determinado, ele nasce da busca e, portanto, ele é subjetivo, é único e intransferível. A isso, aliás, nós podemos chamar de experiência. Um mesmo treinamento tem significados completamente diferentes para cada pessoa envolvida no processo.
Para um treinador ou treinadora, não basta que o treinamento (para ficar neste exemplo), faça sentido apenas para si. É preciso, ao mesmo tempo, que o treinamento faça sentido (tenha significado) para um atleta, para todos os atletas, para toda a comissão, para o clube. O significado precisa ser o mesmo para todos os atletas? Claro que não! Como dissemos acima, os significados são subjetivos – e discordo frontalmente daqueles que pensam que, para formarmos uma equipe, os atletas devem pensar a mesma coisa ao mesmo tempo. Os atletas devem pensar diferente, devem tornar-se quem são, e a formação como equipe não acontecerá porque todos os pensamentos têm a mesma cor, mas sim porque todas as cores dialogam entre si. Tudo é um.
Se quisermos que nosso trabalho tenha um sentido, um significado, é preciso então que nossos colegas tenham as devidas ferramentas para fazê-lo. Quanto menor for a capacidade de reflexão dos nossos atletas, menores serão as possibilidades de atribuição de sentido. E educar o pensamento dos atletas (junto do nosso próprio pensamento) também é parte da nossa profissão.

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Por fim, também é possível olhar para o sentido no futebol a partir do afeto. O que isso quer dizer? Quer dizer que nossos treinamentos e nossas atitudes, como treinadores e treinadoras, não devem apenas estimular o pensamento dos nossos atletas. Devem também fazer com que eles sintam coisas.
Quanto mais indiferentes nossos atletas forem aos nossos treinamentos, à nossa fala, às nossas ideias (ou quanto menos chegarmos aos afetos), maiores serão as nossas barreiras, menores serão nossas possibilidades de construirmos laços humanos, maiores serão as distâncias entre todos nós, envolvidos no processo. Por isso, na nossa formação como treinadores e treinadoras (formação que não termina), não basta nos dedicarmos aos conhecimentos ou às competências, como se os cursos de formação fossem um grande supermercado, onde recolhemos nas gôndolas as competências que gostaríamos e julgamos não ter. Tornar-se treinador ou treinadora é principalmente um caso de sentir, de fazer sentir, de fazer sentir ao longo do tempo, de educar os afetos, de deixar-se educar pelos afetos.
Mas então tornar-se treinador ou treinadora é deixar-se levar. Quando os afetos nos atingem, é porque nos deixamos atingir, é porque estamos abertos, é porque mostramos nossas fraquezas e, exatamente por isso, nos damos o direito de sermos humanos. Nossa humanidade não se faz apenas na força, amigos e amigas, se faz nas fraquezas. Por mais contraditório que pareça, olhar apenas para cima pode ser uma grande fragilidade, assim como admitir e compartilhar nossas fraquezas pode tornar-se, às vezes de imediato, uma força irresistível.
Mas é preciso estarmos abertos. Estando abertos, encontramos sentido.
E pelo sentido, sentimos.
 

 

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As mulheres da seleção brasileira: trabalho, método e mérito

No último domingo tivemos as duas seleções principais de futebol do Brasil em campo. As mulheres fizeram a estreia na Copa do Mundo e os homens, amistoso preparatório para a Copa América. A repercussão foi imensa e a mobilização da torcida pela equipe feminina é algo que deixa qualquer um emocionado. A identificação do público com elas, também. Oxalá não seja temporária, que perdure e aumente mais e mais.

Sobre a identificação, ela não surpreende. É cada vez maior a distância da seleção masculina com o público. O popular, “muito mimimi”. E é isso mesmo. A sociedade confere tanto retorno  aos ídolos no esporte, faz tanto por eles – não apenas o reconhecimento pelas habilidades profissionais -, são referências estéticas e éticas a ponto de precisarem retribuir, quer seja por uma visita a um hospital até a criação de uma fundação assistencial. Em uma sociedade acostumada à indicação, ao nepotismo, influências e interesses, quase sempre os que ocupam cargos de comando  – sobretudo públicos – a meritocracia é rara e o esporte um dos poucos setores em que ela é escancarada.

Em outras palavras, que resumem o parágrafo acima, aquele que é referência tem que dar o exemplo. Dentro e fora de campo. Ultimamente não é isso que se percebe de alguns expoentes da seleção masculina, pois não. 

Cansados de tanta “balbúrdia”, de péssimos ou de nenhum exemplo, as pessoas se lembram do passado e comparam com os tempos em que não havia tantos holofotes. Lembram-se de ser bem menor ou quase nula a presença dos esportes no noticiário policial ou no de fofoca. O “amor à camisa” era mais evidente, falava-se pouco e fazia-se muito. Trabalhava-se muito! 

E é isso que as mulheres fazem e sempre fizeram. Trabalharam e trabalham em um silêncio extremamente barulhento, que são os incontestáveis resultados. Chegam lá pelo esforço, com método e com mérito. De respeito ao passado, às futebolistas pioneiras no Brasil, que desafiaram uma legislação que as impedia de praticar a modalidade principal deste país, que se confunde com a formação da identidade nacional!

Ademais, a conduta diária de esforço contínuo, profissionalismo e empreendedorismo são os melhores exemplos que podem ser dados a um país para atingir os níveis mais altos de desenvolvimento humano, a romper com a cultura da indicação, do nepotismo, das influências e interesses alheios ao crescimento e desenvolvimento.
 

Brasil venceu a Jamaica na estreia da Copa do Mundo 2019 por 3 a 0. (Reprodução: CBF)

 

Diante disso, é absolutamente natural que, nos noticiários esportivos da noite do último domingo,  as manifestações de simpatia pelas mulheres da seleção brasileira tenham sido incontáveis. Principalmente pela maneira como elas têm trabalhado e subido passo a passo. Exemplos para todo um país.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Nunca foi. Ambição, desejo de se tornar herói nacional e ganhar mais dinheiro sempre foi mais forte.
Tostão,
campeão mundial de futebol em 1970, sobre em o alto-rendimento no esporte ser lugar para desenvolver valores morais e éticos

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Neymar: por que tudo isso, Neymar?!

Neymar é hoje o único jogador brasileiro com condições de um dia brigar para ser o melhor do mundo. Não há nenhum outro que reúna as habilidades técnicas, físicas e até cognitivas que ele tem. A capacidade que Neymar tem para resolver os problemas do jogo são extraordinárias. Porém, para ser o melhor do mundo “só” isso não basta. É preciso um pacote maior. Que vai incluir o comportamento. Até porque, de forma natural, a maneira com que o jogador lida com o que está fora vai influenciar o que acontece dentro de campo. E aí chegamos no ponto mais fraco de Neymar.
Não tenho condição alguma e nem quero julgar sobre a mais nova polêmica envolvendo esse termo tão pesado que é estupro. Porém, os problemas se acumulam. Se amontoam. E criam uma atmosfera negativa não só para ele como também para toda a equipe de trabalho do seu clube e da seleção brasileira.
O foco é fundamental para a alta performance de qualquer atividade humana. E focar significa abrir mão de uma série de coisas para conseguir uma outra em particular. Ou seja, Neymar teria que ter como principal e única fonte de motivação o futebol. Melhorar como jogador. Com e sem a bola. Desenvolver ainda mais suas aptidões técnicas. Ter o seu corpo como um equipamento para desempenhar suas funções em campo. Uma mente blindada contra distrações e sabotadores. O melhor do mundo tem que respirar futebol. Dia e noite. Se sacrificar. E não parece ser o caso do camisa dez da seleção brasileira.
Não estou defendendo que ele seja um robô. Mas o melhor em uma atividade tem que fazer o que outros não fazem. E Neymar indica a todo o momento que o foco dele não está cem por cento na bola. As polêmicas são consequências de um estilo de vida que não combina com o de um jogador acima de todos os outros.
Tudo na vida é questão de escolha. A carreira de um jogador é muito curta. A questão aqui não é ganhar mais dinheiro. É ser melhor que os outros. É merecer um posto de destaque sobre os demais. A continuar assim, Neymar continuará sendo um jogador extraordinário. Porém, não o melhor de todos. Acredite em mim: logo o argumento de que não há como competir com Messi e Cristiano Ronaldo vai passar. E haverá outro argumento traduzido pelo nome de outros jogadores. Tudo por culpa única e exclusiva do próprio Neymar.
 

 

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Liverpool v Tottenham – algumas notas

Henderson e o Liverpool comemoram o título: há conquistas sem cicatrizes? (Reprodução: Twitter da UEFA Champions League)

 
Reflexão exige tempo. Para refletir, é preciso ter tempo para pensar, tempo para sentir, tempo para mergulhar e também tempo para voltar à superfície. Sem opiniões imediatas, sem tempo real, sem nada dessas coisas que encurtam nossa relação com o tempo. No futebol e na vida vivida, o tempo deve jogar a nosso favor, não contra.
Passados alguns bons dias deste Tottenham x Liverpool, que consagrou o velho novo campeão da UEFA Champions League, sinto que agora consigo expressar, com mais calma, as minhas impressões deste jogo. Elas estão divididas em vários tópicos. Alguns maiores, outros não.
Vejamos.

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Sofrer um pênalti (questionável) aos vinte e dois segundos de jogo é um golpe enorme para qualquer equipe, e não seria diferente para este Tottenham. Mas havia algo ali, logo após o gol de Mohamed Salah e durante todo o jogo, que pareceu muito forte: este Tottenham demonstra, a olhos nus, uma enorme força de caráter. A impressão, mesmo no instante seguinte ao gol, era de aceitação do incerto, de cabeça erguida e confiança no modelo. Talvez isso aconteça por dois motivos: pelas experiências deste grupo (especialmente as recentes, basta lembrar-se do jogo contra o Ajax), como também pelas ideias e pelo trabalho deste exímio Mauricio Pochettino.
A linguagem corporal de Pochettino, logo após o gol, mostra um treinador evidentemente incomodado, mas ao mesmo tempo compreensivo, crente no seu trabalho e na incerteza do jogo. Soube outro dia, pelo colega Carlos Thiengo, que ele fala sobre algo parecido nesta entrevista, dada ao La Nación, publicada logo antes do jogo. Tendo a achar que Pochettino, com menos dinheiro e mais subestimado do que vários dos seus colegas, não construiu este trabalho a partir das suas forças, mas principalmente a partir das fraquezas, das fragilidades, das cicatrizes de uma equipe que, sofrendo, aprendeu a sofrer.
Não fosse isso e o resultado final, contra este Liverpool, poderia ser mais elástico.

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Que o Liverpool jogaria no 4-3-3 nós já sabíamos. Minha dúvida estava na formação inicial do Tottenham, cujas estruturas são mais flexíveis. Neste vídeo, gravado ao lado do amigo Luís Felipe Nogueira, sugeri que o Tottenham começasse o jogo com uma linha de cinco defensores. Pensei nisso muito em função do comportamento do trio de ataque do Liverpool (Mané – Firmino – Salah), especialmente dos dois pontas, que buscam as diagonais em demasia e poderiam, ao lado de Firmino, criar situações de 3 v 2 sobre Alderweireld e Vertonghen. Mas Pochettino partiu de uma linha de quatro, começou em um 4-2-3-1. Bom, vamos refletir um pouquinho sobre essa escolha.
Dois jogadores importantes, que não puderam jogar nas últimas semanas, agora estavam em condições: Harry Winks e Harry Kane. No caso do segundo, principalmente, repare que é impensável deixá-lo no banco em condições normais de temperatura e pressão. Este, aliás, é um ponto importante que separa o analista médio (não o analista de desempenho) do treinador, e aqui entendemos melhor os motivos que fizeram Lucas Moura começar no banco de reservas. Um treinador, em uma final, não escala apenas pela memória recente, escala pela temporada, pelos treinamentos, pelas relações, pelo adversário, pelos companheiros e por si mesmo. Mas este não é um cálculo matemático, é um cálculo humano. As contas humanas não se fazem nos números, se fazem nos afetos, nos sentidos, na intuição – são apostas! E apostar (também) é um ato de coragem.
É provável que Pochettino e a comissão tenham previsto que o Tottenham teria mais posse – como de fato teve. Por isso, a escolha por mais um jogador de meio-campo (ao invés de mais um defensor) é plenamente compreensível, como uma forma de conservar a posse e, de alguma forma, progredir ao gol. Com Winks, o Tottenham ganharia um passador de muito bom nível, superior aos colegas de posição, tendo ao lado Moussa Sissoko, este mais físico, mais forte em condução – embora não exatamente um driblador. Aqui (e veremos abaixo o porquê), gostaria de ver como poderia contribuir Moussa Dembèlè, até outro dia no Tottenham (hoje no Guangzhou R&F), desses ótimos jogadores em situações de 1 v 1 pelo centro do campo.

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Sobre o Liverpool, havia um aspecto particularmente interessante neste 4-3-3. Como sabemos, Klopp é um treinador mais apegado às estruturas do que Pochettino. É raro que haja alterações no sistema – ao menos quando comparado com outros treinadores do mesmo nível.
Mas neste jogo, houve uma repercussão interessante do ponto de vista defensivo. A marcação inicial, como esperado, era das mais altas, partia do campo ofensivo, pressionando a construção do Tottenham. Não era bem uma pressão comprometida com o desarme, mas mais próxima de induzir o erro de um dos cinco defensores (Lloris + linha de quatro) na primeira fase do ataque. Neste sentido, portanto, o Liverpool partia em uma leve inferioridade numérica, de 4 v 3 – que tentava compensar do ponto de vista posicional.
Mas se há inferioridade em algum lugar, há superioridade em outro, e a superioridade estava na segunda linha. Este, ao meu ver, foi um ponto chave. Com Fabinho – Henderson – Wijnaldum, o Liverpool mantinha situações de 3 v 2 sobre os volantes adversários (Winks – Sissoko), o que tinha claros reflexos na construção ofensiva do Tottenham. Sabendo das suas fortalezas, e provavelmente esperando que os Spurs realmente tivessem mais controle da bola, Klopp desenhou uma situação limitante para a construção ofensiva do adversário por dentro, forçando-o a buscar: I) os lados do campo (o que não era exatamente interessante para o Tottenham, veremos o porquê abaixo) ou, como aconteceu de fato, II) os ataques diretos.
Para além de um efeito tático, induzir o Tottenham à verticalidade tem uma repercussão mental importante, porque o próprio Liverpool faz isso muito bem – especialmente em transições. O trio de ataque já está suficientemente condicionado a buscar o espaço às costas dos laterais-zagueiros adversários tão logo a bola é recuperada, especialmente contra equipes que precisam das linhas altas – como é o caso do Tottenham. O lance do pênalti que origina o primeiro gol sai exatamente em um passe rápido, pelo alto, às costas de Trippier, em um espaço atacado por Mané, aproveitando-se exatamente da altura da linha-base do Tottenham. Induzir o adversário a fazer algo que não apenas é desconfortável, como é melhor feito pela equipe que induziu, é uma solução potencialmente terrível do ponto de vista psicológico.

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Mas o fator decisivo no primeiro tempo, ao meu ver, foi não apenas a escolha do Tottenham pela linha de três meias, como o comportamento de cada um deles. Chamo a atenção especialmente para as diferenças entre Heung-Min Son e Christian Eriksen, que começaram abertos, com Dele Alli por dentro.
Objetivamente, Eriksen estava mais condicionado pela bola, enquanto Son estava mais condicionado pelo espaço. À medida que o Tottenham avançava no campo de ataque, Eriksen deixava o corredor direito em direção ao meio, claramente buscando o espaço entre as linhas defensivas do Liverpool, às costas de Fabinho. É muito provável que essa escolha também seja influenciada pelo comportamento do Liverpool em organização defensiva, com os pressings já comuns nas equipes de Klopp – e os riscos que isso envolve. Essa é uma estratégia duplamente interessante se pensarmos que a ideia não era apenas criar superioridades com Eriksen, mas com Eriksen e Alli, sendo que este se deslocava alguns metrinhos à esquerda, exatamente para ficar disponível como opção de passe em uma distância que fosse, ao mesmo tempo, próxima tanto de Eriksen quanto de Son. Mas o fato, e isso foi absolutamente decisivo, é que Alli não jogou bem. E isso, aliado à dificuldade de conexão entre volantes-meias (pela pressão de que falamos acima), minou sensivelmente o ataque do Tottenham.
Son, por sua vez, ficava mais preso ao corredor esquerdo. Por quê? Primeiro, pela sua própria característica: enquanto Eriksen é mais associativo, Son é mais vertical, mais forte no 1 v 1, e isso é potencialmente mais explorável recebendo a bola na lateral, perfilado, do que por dentro, de costas (ainda que ele também saiba fazê-lo). Talvez uma das ideias fosse buscar o espaço às costas de Alexander-Arnold, a partir de ligações diretas como aquela que foi feita por Alderweireld (zagueiro pela direita, repare na inversão), aos 27 minutos do primeiro tempo.
Da mesma forma, o fato de ter um falso ponta e outro mais fixo tinha uma clara repercussão no comportamento dos laterais. Enquanto Trippier tinha muito mais liberdade para subir ao campo ofensivo, dando amplitude em todos os momentos, Rose tinha menos espaços para si, uma vez que o corredor estava ocupado por Son. Não por acaso, não apenas Trippier parece ter se esgotado mais rápido do que Rose, quanto as principais investidas deste último ficaram mais claras apenas no segundo tempo, quando o Tottenham já jogava em outro sistema (de que falarei abaixo). Aliás, talvez apenas ali pudemos ver que Rose foi um dos melhores em campo.

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Por volta dos 40 minutos do primeiro tempo, Pochettino faz uma primeira mudança estrutural importante: saiu do 4-2-3-1 para o 4-4-2. A partir dali, Eriksen passou a jogar mais centralizado, ao lado de Kane, enquanto que Son foi deslocado para a direita e Alli para a esquerda. Foi nessa estrutura, que se manteve até o final do jogo, que o Tottenham conseguiu crescer ofensivamente, criando uma série de situações, especialmente nos 25 minutos finais.
A questão é que este 4-4-2 de Pochettino, se olhado de perto, se assemelhava muito mais a um 4-2-4, e isso é importante: porque quando altera a estrutura, o Tottenham tenta não mais ter apenas três jogadores sobre a linha defensiva do Liverpool (linha de quatro), mas sim quatro jogadores– ainda que Eriksen tivesse uma função maior na sobra. Ou seja, de alguma forma este quarteto do Tottenham pressionava a linha defensiva do Liverpool, ameaçando atacar os espaços vazios em ligações diretas e, especialmente, ameaçando matar a sobra da defesa do Liverpool.
Essa mudança tem consequências importantes no segundo tempo, como veremos abaixo.

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As substituições relativamente rápidas de Firmino e Wijnaldum dão a entender que o Liverpool, embora firme mentalmente, sofria do ponto de vista físico. Isso também aconteceria com o Tottenham minutos mais tarde. Mas o ponto é que Klopp precisou mudar as peças (sem mudar o sistema) para seguir em um nível próximo do primeiro tempo, no qual o Tottenham teve a bola, mas não conseguiu criar.
Durante todo o segundo tempo, Pochettino jogou no 4-4-2 a que me referi acima, mas fazendo alterações significativas do ponto de vista individual. Quando Lucas Moura entra no lugar de Winks, aos vinte minutos, Eriksen passa a jogar mais recuado, como volante, com Son e Alli pelos lados e Lucas logo atrás de Kane. Em tese, essa substituição permitiria ao Tottenham ter, próximo de Kane, um jogador que agride ainda mais a área do que Eriksen, este mais confortável metros atrás, pensando o jogo em outros espaços e com eventuais chances de finalização de média distância. E foi a partir dali, mais especificamente depois de uma grande chance perdida por Milner, aos 23 minutos, que o Tottenham cresceu de forma considerável, fazendo de Alisson um grande personagem.
Antes disso, lembramos ainda da entrada de Fernando Llorente na vaga de Dele Alli, aos 35 minutos. Com isso, o Tottenham teve, nos minutos finais, não mais um, mas dois centroavantes de ofício (é bem verdade que um deles sobre Virgil van Dijk), em clara intenção de buscar ataques diretos ou potenciais vantagens nas bolas paradas. Como já dissemos, o Tottenham é uma equipe que dança muito bem ao som da música, é mais camaleônico, não apenas pelo sistema, mas também pelo modelo, podendo tanto jogar curto se assim quer, como também usando o jogo direto, se preciso.

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Até que começasse a se destacar, na reta final do jogo, Alisson pouco havia sido exigido, fosse pela eficiência defensiva do Liverpool, fosse pelas próprias dificuldades ofensivas do Tottenham (ambas não se separam). Quando exigido, mostrou-se enorme.
Muito bem, mas vamos pensar em questões humanas. Embora a distância não me permita dizer com segurança, sinto que Alisson desenvolveu, para além da técnica, uma mentalidade muito grande, confiante em si mesmo e no grupo, que faz com que mesmo os gestos mais difíceis se tornem leves, fluidos e pareçam simples – como aquela bola encaixada num chute cruzado de Kane, já nos minutos finais. Essa mentalidade, em alguma medida, não reflete apenas o que acontece no presente, mas reflete as experiências do passado, reflete o que o atleta arrasta do passado para o presente, e neste sentido a importância do treinador (de todos os treinadores e treinadoras anteriores) ganha ainda mais peso. Tamanha segurança nas defesas das finalizações de Alli, Lucas, Eriksen e Kane materializa uma mentalidade vencedora, uma mentalidade que foi sendo ensinada e construída aos poucos, talvez não de modo sistemático, mas que foi feita fazendo, está em construção. E, como percebe-se, foi encarnada, já está na carne.
Não existe sequer margem de discussão sobre a qualidade de um goleiro como Alisson. E se isso é verdade, é pela conjunção dele mesmo com as circunstâncias. É nessa medida, essencialmente humana, que acho que devemos nos medir como treinadores e treinadoras. Há um mundo enorme além do gesto técnico.

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Nos minutos finais, com Divock Origi (cuja ascensão nos jogos finais é assustadora), o Liverpool sacramentou uma conquista que se construiu não apenas na vitória, mas nos fracassos. Na derrota para o Sevilla, em 2016, na terrível derrota para o Real Madrid, no ano passado, no vice-campeonato da Premier League, após uma campanha estupenda de 97 pontos.
Neste sentido, Liverpool e Tottenham são parecidos, são talhados na dor, com cicatrizes e marcas visíveis. E aqui está, outra vez, esta brava dimensão existencial do futebol, que não apenas nos mostra que não existe vitória sem dor, como também que não existe uma vida boa, que valha a pena ser vivida, sem cicatrizes que atravessem a pele e o coração.
Talvez aí esteja uma das grandes lições desta Champions League, que nos falou muito de futebol, mas nos falou ainda mais das coisas que estão para muito além dele.
E enquanto não sairmos da ilha, ela nos será maior.
 

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Lotados e loteados: os uniformes e os patrocinadores do futebol do Brasil

Recentemente esta coluna recebeu imagem de uniforme de grande clube do Brasil, repleta de patrocinadores, com muitos centímetros quadrados aproveitados. Impossível não se lembrar das – eternas – discussões sobre eventual desvalorização da marca do clube e todos os debates que remetem ao tema. Sem dúvida que a estética deve ser levada em consideração. Nem sempre, é verdade. Aliás, quase nunca. Entretanto, no futebol atual do Brasil poucos podem dar-se o luxo de restringir a exposição de uma marca na camisa.

Assunto inclusive foi tema de episódio do grupo “Porta dos Fundos”. (Foto: Divulgação)

 

Não há dúvidas de que muitos torcedores são influenciados pelas marcas patrocinadoras quando adquirem produtos oficiais do clube. Mais importante para o patrocinador que o retorno financeiro, é o reconhecimento institucional da sua marca. E quanto mais uma marca for associada positivamente, de força e de importância, com o tempo o consumidor pode mudar o comportamento em relação a ela, da não aquisição para a aquisição.

Para além da estética, o debate sobre os uniformes de futebol dos clubes do Brasil estarem cheios de patrocínios passa também pela credibilidade do universo esportivo brasileiro. Consequência de décadas de exemplos de má gestão e muitos casos de mecenato, de uma gestão amadora voltada para a projeção pessoal e de pequenos grupos. Oportunidades de investimento sempre existiram, as possibilidades de exposição e retorno, bastante altas. No entanto, diante da falta de transparência e credibilidade dos dirigentes (o estereótipo do “cartola”), em gerir as equipes, em conduzir um torneio e operar o mercado do esporte, era mais do que natural que os investimentos se esvaziassem. Como consequência, um produto desvalorizado. Nesta linha de pensamento, não surpreende um grupo de mídia ao longo destes anos todos atrair o interesse de patrocinadores de peso, uma vez que sabem que suas marcas terão o alcance necessário dentro de uma operação profissional com um produto (que não deixou de ser) espetacular, que mobiliza milhões de pessoas ao mesmo tempo e em todo o país: o jogo de futebol e tudo o que ele envolve. 

Atualmente observam-se “ventos de mudança” neste cenário. Muita coisa mudou, verificam-se gestões mais profissionais; mais entidades de prática e administração esportiva voltadas para o mercado; mais formação específica em Gestão do Esporte. E se discute e se reflete toda a consequência de anos de desserviço com o esporte do Brasil.

Portanto, quer seja por estética ou desvalorização da marca de um clube, por mais raso que seja o debate sobre a quantidade de patrocínios no uniforme, é processo por que o esporte do Brasil e especificamente o futebol precisa passar. A incredulidade e inconformismo são capazes de gerar ações que tragam credibilidade para a indústria do esporte no Brasil.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Ter ganhado muito no passado não garante nada no futuro”.
Bernardinho, treinador da Seleção Brasileira de voleibol

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O caos do São Paulo

Em nada me espanta o mau momento do São Paulo. O resultado dentro de campo é sempre reflexo de tudo o que acontece fora dele, em todas as esferas do clube. No mundo corporativo isso se chama cultura organizacional. Não seria chegar na final do Campeonato Paulista e começar “bem” o Brasileirão que mudaria um cenário melancólico e arcaico que atormenta o Morumbi há anos.
Começo falando especificamente da parte de campo. Qual o conceito de jogo que o São Paulo quer ter como clube? Não está claro para ninguém. Diego Aguirre foi demitido no dia 11 de novembro do ano passado. De lá para cá, Cuca é o terceiro treinador. André Jardine e o interino Vágner Mancini foram remendando trabalhos. Não há paciência e convicção para fazer algo a médio prazo no São Paulo. O sucesso deixa pistas. E nunca vi uma equipe vencedora ser formada da noite para o dia. Muito menos com tantas mudanças no comando. E com ideias de futebol sempre tão antagônicas.
No comando do futebol as coisas também se mostram muito confusas no tricolor. Contratações equivocadas são a tônica dessa e de recentes gestões. É claro que até os melhores analistas de desempenho do mundo falam sempre em errar o menos possível quando se forma um grupo de atletas. Porém, Raí e sua equipe têm abusado do direito de errar. E mais do que erros no que tange a parte técnica e até física dos jogadores, está mais do que clara a dificuldade em se formar um elenco mentalmente forte, com a inteligência emocional necessária para suportar um ambiente carregado pela ausência de conquistas. Em cima disso, não é de hoje que questiono se Raí tem as competências técnicas para estar a frente do departamento ou se está lá apenas porque seu histórico de ídolo blinda o presidente Leco.
E por fim, chego na parte política do São Paulo. A guerra declarada e pública de Leco com o seu vice, Roberto Natel, deixa claro que nem todos remam pro mesmo lado no Morumbi. O São Paulo hoje é um clube frágil financeiramente que por ter um viés tão político em sua gestão fica atrasado em termos de marketing, arrecadação e negociações.
Para montar um quebra-cabeça vitorioso no futebol todas as peças devem estar bem encaixadas. No tricolor, porém, a impressão que se tem é que cada setor do clube está agarrado à sua própria peça pouco se importando com o todo, com o desenho final do quebra-cabeça. Ok, é uma opção. Só que os resultados em campo irão traduzir isso. Como estão há tempos traduzidos no São Paulo. A sala de troféus, que não ganha novos itens, mostra bem isso.