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Ao Senhor Doutor Lino Castellani Filho

Meu querido e inolvidável amigo,

fui alertado pelo nosso querido João Paulo Medina para a carta que se dignou escrever, neste site, sobre a minha pessoa, querendo até, aqui e além, reacender cinzas que eu julgaria já apagadas. Quintiliano, um dos mestres da oratória romana, recomendava aos oradores do seu tempo: “louvem com moderação e agradeçam com simplicidade”. O meu querido amigo não sabe louvar com moderação, quando a mim se refere. Vou tentar agradecer-lhe com simplicidade.

O Lino e o Laércio, ao convidarem-me, em setembro de 1983, a visitar o Brasil, pela primeira vez, para participar num congresso do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte – permitiram que eu conhecesse e depois amasse um país onde as pessoas eram mesmo cordiais… como em nenhuma outra parte do mundo! E, por isso, pudesse encontrar homens fraternos, como o Lino, verdadeiros mestres em lições de tolerância, de benevolência, de generosidade. E, por isso, pudesse encontrar o meu espaço de refúgio, quando em Portugal me rodearam a incompreensão e o ressentimento dos que projectam amargamente na vida (sem saber superá-lo) o sofrimento de frustrações sem conta.

Um espaço de refúgio de que a carta que o meu amigo fez o favor de me escrever, na Universidade do Futebol, é bem a continuação. As palavras são pálidas para exprimir os grandes sentimentos. A verdadeira eloquência da gratidão é o silêncio. No entanto, eu não posso esconder que a sua carta deslumbrou-me, mas, quanto aos meus méritos, não me convenceu.

Sei bem dos meus limites. E, porque me chama “Mestre”, deixe-me ser seu discípulo. Muito tenho a aprender, de facto, do seu ideal de política, do seu ideal de pátria, do seu ideal de ciência, do seu ideal de amizade, do seu ideal de desporto. No que ao desporto diz respeito, nem o meu amigo, nem eu, acreditamos naquela prática desportiva, no âmbito de uma política social assistencialista, que distribui umas migalhas de desporto, em troca da desmobilização política do povo.

Aliás, comigo estão os brasileiros, designadamente professores de Educação Física, que tanto o admiram, pelo trabalho que tem promovido e desenvolvido, como governante, como docente, como pesquisador e escritor. Não me surpreende que o meu amigo tenha compreendido rapidamente o fundamental da minha tese sobre a motricidade humana.

Alguns treinadores sustentam que ela anuncia a passagem do treino analítico ao treino integrado. Francamente, o que eu pretendia, sobre o mais, era afirmar que os professores de Educação Física estavam preparados, até cientificamente, para lutarem por um mundo novo. O meu antidualismo não se ficava (não se fica) pelo dualismo corpo-alma, mas proclamava (proclama) que o dualismo corpo-alma é reflexo do dualismo senhor-servo, o que eu rejeito frontalmente.

Quando insisto que o objecto de estudo do professor de Educação Física é a motricidade humana, ou seja, o movimento intencional da transcendência (ou da superação), sublinho que este profissional não é tão-só um educador de físicos, mas de pessoas que se movimentam intencionalmente. Ora, o radical fundante do comportamento humano é etico e político. O meu querido amigo percebeu rapidamente (porque é um político inteligente) até onde eu queria chegar e, assim, tenho a certeza, fazemos parte do mesmo grupo. Não, a área do conhecimento que nós estudamos não se centra principalmente no físico, mas no homem todo. Nunca me esqueço o que me disse um treinador de futebol, muito conhecido: “Ó Professor, eu até não sei nada de fisiologia”…

Por seu intermédio, conheci, pessoalmente, o Paulo Freire. Conheço, também pessoalmente, treinadores e praticantes, desportivos, de renome internacional. Respeitando-os a todos, porque, a seu modo, são pessoas de qualidades invulgares, nenhum deles tem para mim o valor de Paulo Freire. Porque, para mim, a envergadura moral, a prática política estão antes de tudo o mais.

Meu querido amigo, no dia 20 do último mês, completei 78 anos de idade. O Lino Castellani Filho foi das paisagens humanas mais belas que a vida me permitiu contemplar. É, como diziam os romanos, um “homem de virtude” – a virtude, palavra tão grata à antiguidade clássica e tantas vezes repetida, junto da Loba de bronze, pelos oradores da velha Roma.

Um ponto ainda a salientar: ao ler a sua carta, cheguei à conclusão que o coração morre, mas não envelhece.

Seu

Manuel Sérgio
PS.: Um grande abraço a cada um dos seus filhos e respeitosos cumprimentos à sua esposa.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

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A Inteligência Competitiva e o Espectáculo Desportivo

A Inteligência Competitiva (IC) resulta de uma resposta cultural e operacional à globalização e às transformações individuais e sociais que este fenómeno originou. A IC pode mesmo definir-se como um sistema cultural e operacional de recolha, tratamento, análise e encaminhamento da informação, visando o processo de tomada de decisões.

A IC, como diz o meu amigo, Doutor Miguel Trigo (Universidade Fernando Pessoa), “deve fornecer a informação certa, no momento certo, de forma certa, à pessoa certa, para que, finalmente, esta última possa tomar a decisão certa”.

De acordo com os dados publicados pela Society of Competitive Intelligence (SCIP), no plano internacional mais de 80% das empresas que atingem lucros superiores a 10 biliões de dólares possuem sistemas organizados de IC.

De facto, estas empresas, actualizadas do ponto de vista científico e organizacional, apresentam departamentos de IC e superam assim as restantes em três importantes áreas: vendas, quota de mercado e ganhos por quota de mercado. Relativamente aos profissionais de IC, a “conditio sine qua non” de admissão são as qualidades pessoais do candidato, a sua informação e a sua cultura. No caso do futebol, eu acrescentaria uma incontida paixão por esta modalidade desportiva. Quem gosta do que faz, trabalha mais e melhor…

A informação e a cultura são, hoje, os grandes factores de desenvolvimento. A multidimensionalidade da Sociedade da Informação, que é a nossa, exige, também dos fazedores do espectáculo desportivo (e portanto do futebol) mais informação e, por extensão, mais cultura.

No nosso futebol (meu poiso durante 28 anos, através do dirigismo no C.F. “Os Belenenses”) há dois campos bem estremados em liça: o dos que se fundamentam na sua vida de ex-profissionais e o dos que, teoricamente tão-só, falam de futebol, até à exaustão – escasseando, tanto num lado como noutro, a informação e a cultura. Trata-se de uma lacuna tão evidente… que ninguém vê! Ocorre-me o conto de Poe, “The Purloined Letter”.

A polícia parisiense procura, em vão, na casa de um suspeito, uma carta politicamente comprometedora. A polícia investiga os pontos mais escondidos e… nada! Em desespero de causa, o chefe da polícia solicitou a colaboração de Dupin, precursor de todos os detectives da literatura policial, que rapidamente encontrou a carta procurada. De facto, a carta não se encontrava em nenhum esconderijo de difícil acesso, mas à vista de toda a gente. E nisto consistia a astúcia: o seu ocultamento era a sua fácil visibilidade. Acontece o mesmo com o nosso futebol. É tão evidente a incultura e a desinformação, que o fragilizam, que se torna difícil descobri-las e entendê-las.

Daí que eu ouse propor a criação de um departamento de inteligência competitiva (DIC), nos clubes de futebol profissional, na selecção nacional de futebol, liderado por um doutor em Desporto e composto ainda por um filósofo, um psicólogo, um fisiologista (ou um médico) e um treinador de futebol.

Com que objectivos? A criação de uma nova racionalidade, onde ciência e filosofia sejam complementares e portanto onde conhecer seja principalmente relacionar, contextualizar, organizar. E que ciência? Indubitavelmente, uma ciência hermenêutico-humana, dado que o futebol é menos uma Actividade Física do que uma Actividade Humana. Uma teoria científica do Desporto é sempre uma teoria científica do sujeito.

Sem as acções individuais e colectivas do praticante, o futebol (ou qualquer outra modalidade desportiva) não pode estudar-se como objecto do conhecimento. E, como ciência hermenêutico-humana, que método?

O método, para a máquina complexa que é o ser humano, será o que decorre do pensamento complexo, ou seja, o método da complexidade, ou método integrado (cfr. Francisco Silveira Ramos, Futebol – a competição começa na rua, pp. 31 ss.) onde, pelas acções típicas da competição, se treinam o individual e o colectivo, o grupo e as capacidades individuais físicas, intelectuais, emocionais. De sublinhar também que a realidade e a verdade são fruto de práticas discursivas complicadas. De facto, a realidade não pré-existe à razão e à linguagem.

O treinador deve, por isso, saber comunicar, para motivar. Por outro lado, o método da complexidade diz-nos que o jogador é homem, antes de ser futebolista, e portanto na preparação do futebolista não pode esquecer-se o homem capaz de assumir uma racionalidade e uma ética intersubjectivas e… um rigoroso “treino invisível”.

O DIC criará ainda e dinamizará dispositivos de recolha, tratamento e disseminação da informação, de acordo com os mais modernos princípios da informação e da comunicação e os interesses do departamento de futebol.

Semanalmente, este departamento encontrar-se-á com o treinador principal, apresentando-lhe a informação julgada necessária aos seus processos de decisão, como técnico de futebol. Também, todas as semanas, o DIC fará, só com os elementos que o integram, uma reflexão crítica sobre o papel da inteligência competitiva, como resposta cultural e operacional às problemáticas criadas pelo desporto de alta competição em geral e pelo futebol em particular.

Cada um dos elementos deste departamento perceberá senhas de presença pelas reuniões que efectuar. Porque sou um teórico tão-só e quem não pratica não sabe (eu aprendi a memorizar e a ver, não a fazer) peço desculpa por ter metido a foice em seara alheia.

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

 

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José Mourinho: um treinador pós-moderno

Quero timbrar em respeitar a verdade e assim começo por reafirmar que nunca ensinei futebol ao José Mourinho e, mesmo que o pretendesse, não o saberia fazer. Demais, sou em crer que o grande mestre de futebol, que ele conheceu, foi precisamente o seu pai, excelente jogador e treinador. Enfim, o incomparável treinador, que o José Mourinho é, nada me deve, designadamente no que ao futebol diz respeito…

Venho, quer por escrito, quer oralmente, exprimindo as minhas opiniões sob a personalidade e a obra de José Mourinho, com quem já aprendi mais do que a pouca filosofia que lhe ensinei. E julgo que (passe a imodéstia) com foros de seriedade e solidez. É evidente que, no trabalho do actual treinador do Real Madrid, há uma nítida aliança entre ciência e cultura, há inovação e competitividade, há busca incessante da excelência e do mérito. E tudo isto num clima de solidariedade, onde os próprios jogadores se sentem sujeitos e não objectos. Como o refere Ruben de Freitas Cabral, é específico da era pós-moderna, que vivemos, que as pessoas se saibam (e se sintam) sujeitos, “funcionando em rede ou em teia”, onde a ordem não é a da máquina, mas da “coerência dos grandes consensos nascidos de princípios partilhados” (in Brotéria, Abril de 2002, p. 335).

Por outro lado, a racionalidade científico-técnica predominou durante a modernidade, desde o século XVI até à primeira metade do século XX. Era o paradigma das ciências da natureza que, com exclusividade, então se teorizava e praticava. O próprio ser humano se estudava, num estilo maçudo de sebenta, como se os números pudessem retratar fielmente o humano. A “teoria e metodologia do treino”, enquanto disciplina curricular, era positivista, biologista, mecanicista (não é positivista, biologista, mecanicista o treino liderado por alguns treinadores?).

No atinente à “teoria e metodologia do treino”, não escondo que o Dr. David Monge da Silva deu a esta disciplina, durante a sua docência no ISEF de Lisboa, corriam os últimos anos da década de 1970, as características típicas do paradigma pós-moderno e, por isso superando (sem deixar de respeitar) o que Galileu e Descartes ensinavam. “Para estes eruditos, o único conhecimento que valia a pena prosseguir era aquele que podia ser expresso por regras precisas e eternas, independentes do contexto” (Keith Devlin, Adeus a Descartes, Publicações Europa-América, p.317). António Damásio escreve em O Sentimento de Si, no início do capítulo onze: “Talvez a ideia mais surpreendente deste livro seja que, afinal, a consciência começa por ser um sentimento, um tipo especial de sentimento, bem entendido, mas, mesmo assim, um sentimento”. David Monge da Silva já conhecia, naqueles anos, o conceito hegelo-marxista de totalidade e abandonava, de vez, o treino analítico, em favor de um treino que visava, em todos os momentos, a complexidade humana.

O futebol que José Mourinho aprendeu, no ISEF de Lisboa, fundamentava-se numa visão sistémica do treino e da competição. Principiava então a grande revolução que o futebol português atravessaria, com o ingresso dos treinadores, licenciados em Desporto. Tenho a certeza de que, se fosse vivo, José Maria Pedroto se sentiria feliz – ele que, um dia, ao telefone, em conversa comigo, reconhecia: “De facto, falta ciência ao futebol português”. Quero, a propósito, aqui realçar que pude conviver com Mário Wilson, Fernando Vaz, Manuel Oliveira, Francisco Andrade, Carlos Silva, Artur Jorge, Manuel Cajuda, Toni, Jorge Jesus (e outros poderia nomear) e considero que todos eles estão entre os pioneiros de um futebol pós-moderno ou até da Sociedade do Conhecimento…

José Mourinho (hoje, o Doutor José Mourinho, pela UTL) beneficiou de uma licenciatura (a licenciatura em desporto) que, nas décadas de 70 e 80, entrou, em pleno, na universidade, que ele frequentou. Mas a sua pós-modernidade revela-se, sobre o mais, numa episteme (ou cultura) que ele próprio criou e que aprofunda aquilo que lhe ensinaram acerca do futebol. E assim construiu um património prático-teórico inestimável, de real eficácia na sua liderança – um património que o torna inimitável, porque José Mourinho não é o que sabe, mas o que é. Demais, os seus ininterruptos êxitos revelam que o seu saber não é um estado, mas um processo.

O melhor treinador de futebol do mundo paira acima das escolas, não podendo medir-se pela craveira dos outros. Quando os seus métodos se estudarem, um dia, como vem fazendo Luís Lourenço, considerá-lo-ão, inevitavelmente, um agitador e renovador de ideias, talvez a mais poderosa e original mentalidade que o futebol produziu. Está a nascer a Sociedade do Conhecimento da Idade da Informação? Com nervo e argúcia, José Mourinho há muito vive nela e há muito a desejou!

E termino felicitando o Real Madrid que, com José Mourinho, indiscutivelmente o melhor treinador do mundo, como a Fifa o proclamou, em Zurique, no passado dia 11 de Janeiro, vai voltar a um novo ciclo de vitórias, à imagem dos êxitos inolvidáveis da equipa de Di Stéfano, Puskas e Gento. É arriscado o que venho de escrever? Com José Mourinho, o pior de todos os riscos é não arriscar!

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

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Carta Aberta ao André Villas-Boas, treinador do F.C.Porto

Meu caro amigo,
esta carta parece, velada ou declaradamente, o resultado do mais puro oportunismo: o André é o mais que provável vencedor do Nacional de futebol da primeira divisão e, digo-o sem receio, da Liga Europa; lidera uma das melhores equipas do futebol mundial – e cá estou eu a exibir o virtuosismo de um conhecimento que já é acessível a qualquerportuguês amante do futebol. Ou seja, evitei prudentemente, meses atrás, um prognóstico difícil, sobre o seu futuro, como treinador de futebol, e venho agora falar, de cátedra, do actual treinador do F.C.Porto. Se assim fosse, as vozes dos profissionais da injúria não deixariam de retratar-me como personagem incómoda ou ridícula. Só que, contra a agressividade dos meus críticos, teria o André, ao meu lado.
De facto, trabalhava o meu amigo na Académica de Coimbra, muito antes dos convites do Sporting e do Porto, e já eu lhe escrevia, sustentando que, num clube com as condições necessárias e suficientes, o André surgiria como um treinador de excepcional relevo e manifestando até insuspeitadas potencialidades. Recordo que o surpreendeu o conteúdo da referida carta e foi lesto a telefonar-me: “Gostava de saber por que me vê com um futuro brilhante, na profissão de treinador de futebol?”. E acrescentou ainda: “É que eu sinto que tenho tanto para aprender!”.
Libertando-me de uma linguagem esotérica, frequentemente exibicionista, respondi-lhe: “Porque o meu amigo sabe liderar uma equipa, sabe comunicar com os jogadores que a constituem, sabe ler um jogo e vive de uma tensa e intensa vontade de vitória. Está aqui a base do êxito de um treinador de alta competição. Isto o que se vê, mesmo pela televisão. Com o apoio estrutural de um grande clube e com o que aprendeu com o José Mourinho, o meu amigo decuplicará o talento que mostra”. Há poucos dias, numa das nossas conversas telefónicas, o André chegou mesmo a dizer-me: “O professor até acreditou em mim, antes de eu acreditar!”. Não é bem assim. Eu vejo o desporto e os desportistas com uma teoria que elaborei e que me norteia. Para mim, esta área do conhecimento, mais do que uma actividade física, é uma actividade humana, onde o físico-biológico se encontra integral mas superado.
No futebol, portanto, o jogador deve desenvolver-se em equipa, sem ser reduzido à equipa. E assim o treinador, nos seus momentos de reflexão, poderá levantar, no mais íntimo de si mesmo, esta questão: qual o tipo de pessoa que eu quero que nasça dos jogadores que lidero? Reside aqui, no meu modesto entender, o momento essencial do treino.
É evidente que os livros de metodologia do treino (e são milhares, por esse mundo além) pouco se apercebem da intrínseca influência da preparação intelectual e moral de uma equipa. E, entre os factores de rendimento, dão ao físico-biológico lugar primacial. Ora, para mim, não só tudo é sistema, como só o sistema é real. Portanto, no treino, há que distinguir para associar e não separar para reduzir. Por isso, antes de tudo o mais, o jogador deve acreditar no que faz e transformar-se na expressão da fé que anima todo o clube, desde o mais humilde associado e funcionário até aos membros da direcção. A crença gera biologia. O jogador que acredita que é um dos aspectos fundamentais da alma de um clube tem mais força e mais velocidade e mais resistência e mais impulsão, etc., etc.
Meu querido amigo, não lhe falo de um anseio indefinido ou de uma superstição romântica – falo-lhe do espírito que deve animar um departamento de futebol profissional. Hoje, o próprio conhecimento científico é subjectivo-objectivo. O futebolista também está todo em tudo o que faz, mas o que dele sobrevive é a sua vontade de ser mais e de ser melhor.
Nada de novo lhe escrevi nesta carta. É verdade! Tudo isto o meu amigo sabe, designadamente através da sua prática diária. Eu não passo de um simples teórico mas que, há 42 anos, vem ensinando filosofia do desporto e aprendendo com o André e um ou outro colega seu, que fazem o favor de tentar dissipar muitas das minhas dúvidas.
O André está, entre os treinadores que eu conheci e conheço, ao lado dos que maior sensibilidade manifestam à necessidade de repensar o treino, à luz do pensamento complexo. Por isso, também no futebol a cultura é o primeiro factor de desenvolvimento. Leia um Camus, um Malraux, uma Hanna Arendt, uma Clarice Lispector, um Jorge Amado, uma Maria Zambrano, um Vergílio Ferreira, um Saramago, um Jorge Luís Borges e tantos mais; aprenda a saborear a arte de poetas como Pessoa, ou Sebastião da Gama, ou Sofia, ou Herberto Helder, ou Torga, ou Régio; escute atentamente a mensagem dos filósofos e dos sociólogos – e vai começar a saber mais de futebol!
O maior defeito dos técnicos da Fifa e da Uefa é abusarem de uma aturdidora profusão de palavras e sentirem-se incapazes das grandes sínteses que tentam compreender o humano. Ora, o futebol é, repito, uma actividade humana e onde, portanto, a vida tem mais força do que a lógica. Estudar futebol é, sobre o mais, aprender com a vida.
Por isso, meu amigo, se me der essa honra, vamos continuar a falar ao telefone. Para eu saber mais de futebol? Não sei se em Portugal haverá alguém que tenha lido mais obras, sobre futebol, do que eu. Só se for o Dr. Jorge Castelo. Na minha biblioteca de, em números redondos, 4000 livros, contam-se às dezenas! Eu consigo aprendo muito de futebol porque falamos de ciências de um novo tipo. Quando um jogo começa, qual a ciência que explica o que se está a passar no campo? Eu chamo-lhe ciência da motricidade humana. Mas há tanta gente que me lança um olhar misericordioso, quando me ocupo destes assuntos. Resta-me a sua compreensão e a de alguns amigos. No meu caso, pode crer, a sua compreensão revigora-me: é que eu estou convicto que está a nascer, no meu amigo, um dos grandes treinadores do futebol português – e, neste mundo globalizado, que é o nosso, do futebol internacional.
Por fim, não escondo que o F.C.Porto de Jorge Nuno Pinto da Costa é o melhor seminário para ampliar e aprofundar o muito que o meu amigo sabe e é. Aconteceu o mesmo com o Dr. José Mourinho. Parecendo que não, a história deste clube não é carismática, é estrutural.
Seu,
Manuel Sérgio.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

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A retórica do abstrato ou o discurso de Johan Cruyff

Na última página do jornal A Bola, edição de 13 de Julho de 2010, é notícia uma crítica de aberta oposição de Johan Cruyff ao futebol praticado pela Holanda e, afinal, pelas grandes potências europeias do futebol, que não têm estilo e cultura que as distinga umas das outras. As mais conhecidas seleções europeias jogam todas sob os mesmos princípios e os mesmos modelos de jogo. Nelas, impera a mesmidade e escasseia o inesperado e o insólito do futebol verdadeiramente espetacular. Cruyff aponta uma das causas: há demasiados estrangeiros nos campeonatos e, por isso, os melhores jogadores nacionais são forçados a emigrar. Se são convocados para as seleções dos seus países, surgem “mecanizados” por princípios que não refletem a cultura da terra que os viu nascer. É caso para perguntar: há futebol inglês, ou futebol na Inglaterra? Há futebol italiano, ou futebol na Itália? Há futebol holandês, ou futebol na Holanda?

A existência da Fifa significa que o futebol, nos vários países, se edifica sobre leis universais e sobre relações estáveis, duradouras, jerarquizadas. O futebol globalizou-se sob um poder mundializado. E, por isso, há futebol, na Inglaterra, na Holanda, na Itália, na Espanha, em Portugal, etc. E com semelhantes instituições e regras iguais. Só que o poder, qualquer que ele seja, traz consigo, hoje, a incontrolada tirania dos mercados.

A Fifa não globaliza só o futebol, mas também o mercado global que a faz viver, através dos grandes monopólios empresariais e dos poderosos conglomerados multinacionais. As vendas de jogadores, a realização de feéricas competições desportivas, os direitos televisivos, o merchandising, todos proporcionam lucros fabulosos aos donos de um mercado único de capitais, que concentra o dinheiro em meia dúzia de empresários e instituições e dele afasta a esmagadora maioria dos clubes de futebol. A mercantilização do futebol não passa de uma estratégia para excluir dos lucros que o futebol gera um número incontável de clubes que também são a sua razão de ser.

Nos campeonatos dos seus países, não jogam só o Barcelona, ou o Real Madrid; nem o Chelsea, ou o Manchester United; nem a Inter, ou o Milan; nem o Benfica ou o Porto (e não me sirvo de mais exemplos, agora) – muitíssimos outros clubes competem também. Ora, o capitalismo global e os mercados planetários, que a Fifa representa, não se encontram ao serviço das necessidades do futebol, mas dos imperativos do mercado.

Na Fifa, o futebol é a estrutura determinada, e o econômico, a estrutura determinante. Quem, como eu, vê futebol há 70 anos, parece-lhe justo capitular de vã quimera o pensar-se que os futebolistas atuais são admiráveis artistas, face aos seus predecessores de cinquenta anos atrás, tímidos, canhestros e desajeitados. É que, na seleção dos “Magriços”, em Portugal, ou nas “seleções canarinhas” de 58 e 62 (três exemplos, entre outros), não sei se teriam lugar qualquer um dos jogadores brasileiros e portugueses, que representaram os seus países, no Mundial da África do Sul. Incluindo o Kaká e o Cristiano Ronaldo, imobilizados numa inesperada mediania. Mas, as mutações sócioculturais e tecnocientíficas do século XX, mais vastas, profundas e céleres do que em qualquer outro estádio histórico, não chegaram ao futebol e não o transformaram também?

Entre o futebol do Eusébio e do Coluna e o de hoje a diferença é enorme, no profissionalismo dos seus agentes, nas inovações tecnológicas (incluindo as da cibernética, da electrônica, da informática), nas instalações desportivas, nos cuidados médicos, na gestão dos clubes, nos vencimentos dos técnicos e dos jogadores, etc., etc. Mas o futebol perdeu em beleza o que ganhou em eficácia. Hoje, um futebol-espetáculo sem gols perdeu interesse e cada vez mais ele se faz em função dos resultados e do lucro e cada vez menos em função doutros valores. De acordo, aliás, com o sistema capitalista mundializado. Tenho saudades do futebol interpretado pelo Rogério (Benfica), pelo Vasques (Sporting), pelo Hernâni (Porto), pelo Amaro (Belenenses), que eu aplaudia, sem pensar nos números do placar…

Pierre Bourdieu não deixa de surpreender, quando não descobre, no desporto contemporâneo, a passagem paulatina do belo ao útil, conforme as exigências do capitalismo global. É verdade que acentuou “o fato de a carreira desportiva, que se encontra praticamente excluída do campo das trajetórias admissíveis para uma criança de origem burguesa (…) representar uma das únicas vias de ascensão social para as crianças provenientes das classes dominadas” (Questões de Sociologia, Fim de Século, Lisboa, 2003, p. 196). Mas o futebol é o que é, principalmente porque se transformou no fiel servidor do deus-lucro. Ele é efeito de uma normalização, em proveito da homeostase do capitalismo que domina o futebol.

A simbiose capitalismo-futebol, reconheço, trouxe um evidente progresso ao futebol, mas dando à instância econômica um posicionamento e uma funcionalidade de infraestrutura – que é praticamente idêntica em todos os países. Daí, o Brasil jogar como a Holanda, ou a Alemanha como o Uruguai, etc. Afinal, o poder que os comanda é o mesmo e portanto não reconhecer estes elementos invariantes, na promoção e institucionalização do futebol atual, é descambar numa retórica do abstrato, onde se criticam os efeitos, mas não se apontam as causas… nem de leve!

Pensar, hoje, a administração e a gestão do futebol não é procurar a verdade, mas o lucro. Para os administradores dos grandes clubes, os problemas maiores não são os de ordem táctica (como para Johan Cruyff), mas os que se prendem com a crise financeira em que o capitalismo se encontra submerso. Entretanto, mesmo com dívidas astronômicas, o Real Madrid e o Barcelona e o Manchester United ainda são os clubes mais ricos do mundo. A Liga dos Campeões, os direitos televisivos, a bilheteira, o “merchandising” são receitas a ter em conta. E, em tempo de crise, como é de lei no capitalismo, há sempre fortunas colossais que têm a sua raiz, na miséria…dos outros!

Vale a pena ler o magnífico trabalho do jornalista Carlos Rias (A Bola, de 27 de Julho de 2010) para contemplar o panorama financeiro do futebol europeu. Vale a pena ler Karl Marx, para entendê-lo.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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Os usos do futebol

Desde sempre a filosofia duvidou. A dúvida é o seu gesto instaurador. Por isso, com algumas exceções, nela tudo é anti-ordem e anti-poder. O Futebol, ao invés, procura sofregamente o apoio do Ter e do Poder e expande-se, desenvolve-se, com Ordem e Medida. Por outro lado, também o Ter e o Poder precisam do futebol para legitimar-se. De fato, as seleções nacionais de Futebol, as equipas mais representativas dos vários países representam interesses desportivos mas, sobre o mais, interesses midiáticos, interesses comerciais, interesses publicitários, interesses políticos. Os desempenhos das seleções e dos clubes encontram-se intimamente ligados aos desempenhos dos serventuários do grande capital. Chegou, portanto, a altura de questionar se o carácter eminentemente formativo do futebol (como desporto que é) não desaparece diante da lógica de outros interesses incapazes de assumir uma intervenção pedagógica global. É que o Ter e o Poder são declaradamente despóticos, ou seja, têm uma verdade indiscutível e o futebol, que os serve, transforma-se na expressão corporal dessa verdade.

O futebol concorre mesmo à interiorização, em cada dos seus agentes, dos vereditos imperiais do déspota. Não é por acaso que as práticas dopantes, nele, permanecem; não é por acaso que o alto rendimento é sempre acompanhado de produtos farmacêuticos, os mais sofisticados; não é por acaso que são, cada vez em maior número as doenças súbitas que atormentam os jogadores de futebol; não é por acaso que o desporto (e portanto o futebol) é uma atividade física ou, segundo alguns, um meio de educação física (e quanto mais físico o desporto for, mais acéfalo e acrítico será e mais servilmente representará a vontade do Ter e do Poder).

Por sua vez, o treinador, sempre que se refere aos jogadores que trabalham sob as suas ordens, repete, de forma exaustiva e massacrante: os meus jogadores. Como se, de fato, os jogadores fossem mesmo dele! Mas não é assim que pensa o déspota quando exclama: “meu povo”? O treinador, para ser um profissional exemplar, para a ideologia dominante, só tem de imitar o déspota. E assim como o Poder diz trabalhar para o povo, para mascarar a sua função constitutiva, a repressão – também os treinos, os estágios, as competições se resumem ao exercício de uma soberania astuciosa, que controla os atletas como quem comanda singelos títeres. Não são os agentes do futebol que fundam o futebol, mas o Ter e o Poder, com a sua libido dominandi, geradora de violência. De fato, a lei e a ordem, no futebol, nada têm a ver com a Justiça, mas com a delimitação do espaço onde se movimentam o senhor e o servo, dentro de uma competição insanável, que forma o devir histórico do futebol, de há cem anos a esta parte.

O pensamento único neoliberal (a ideologia dominante) é o que faz, no futebol e no mais: um mundo de riqueza, cercado de pobreza, por todos os lados, onde funcionam a liberdade, o livre comércio e o livre mercado, tão intimamente associados que delas surge, dominador, o capitalismo neoliberal. Que admira que, também no futebol, coexistam os ricos e os pobres, os senhores e os servos? O Real Madrid, o Barcelona, o Bayern de Munique, o Manchester United, o Chelsea, o Manchester City, a Inter, o Milan e poucos mais são os senhores; os demais são os servos. Aliás, este futebol é o que gera: senhores e servos. E produz assim uma certa imagem da essência da sociedade, onde os antagonismos, típicos do capitalismo, aparecem como causa de manutenção do status quo. O aumento galopante do desemprego, nos países desenvolvidos, está a empurrá-los à pobreza do Terceiro Mundo. Entretanto, o povo delira e aplaude o futebol promovido e organizado pelo mesmo neoliberalismo altamente competitivo que o leva à penúria e à ausência total de segurança social…

É um truismo afirmar que o capital capitaliza o futebol. De fato, o capital procura, acima de tudo, o lucro. O Cristiano Ronaldo não seria tão publicitado se as suas qualidades físicas (as outras pouco importam) não despontassem, na imprensa, no rádio e na televisão, de mãos dadas com determinados produtos… que é preciso vender! Em nenhum modelo invasor, ou inspirado de fora de um “ethos” livre e libertador, se descortina o escrupuloso respeito da dignidade das pessoas e da sua capacidade de, no desporto, serem sujeitos (ser sujeito é não sujeitar-se) e não objetos.

Ora, hoje, o futebol, preso nas mãos férreas de um capitalismo imoral, não é uma prática libertadora e construtiva, mas uma cilindragem opressora e destrutiva. De prática autocontrolada pelos “homens do futebol”, no seio do futebol, passou-se a uma prática heterocomandada longe e contra os “homens do futebol” que deixam de ser os agentes da sua profissão, para surgirem, na praça pública, como réus de crimes que não cometeram. De que podem acusar-se o Dunga, o Carlos Queirós, o Maradona e outros mais, treinadores vacilantes e de muito pouca eficácia, no Mundial-2010? Na ausência de liderança? Na canhestra leitura de jogo? Na incomunicabalidade treinador-jogadores? São ítens a sublinhar, designadamente pelos presidentes das respectivas federações, que escolhem e contratam os treinadores. Mas… pouco mais! Se é pacóvio apontar qualquer determinismo sociológico, nesta “floresta de enganos” que é o desporto (e portanto o futebol) também não nos é lícito julgar a competência de um profissional, como se na totalidade, que é uma equipa, fosse ele o único elemento a ter em conta.

O quarteto mais avançado da seleção argentina, no Mundial da África do Sul (Tevez, Messi, Higuain, Di Maria), tem admiráveis jogadores de valor intacto. Diante da seleção da Alemanha, nas quartas de final, pareciam simples principiantes, submissos pela força e a robustez dos teimosos lutadores que são Lahm, Schweinsteiger, Khedira e os demais das linhas recuadas e a velocidade e os primores técnicos dos jogadores da linha avançada que, quando disparavam a correr, bebendo o vento, quais Pégasos imparáveis, não havia argentino que os segurasse. Será o Maradona o único e o principal culpado, pela derrota? E será o Joachim Low a causa, excluindo outras, do jogo triunfal da Alemanha, no dia 3 de julho de 2010?

Entre informar e imbecilizar a distância é mínima e não se analisa o trabalho global de uma equipe desportiva senão dentro do todo que ela é e do todo onde ela se insere. Os prodigiosos progressos da genética e da biologia molecular permitem-nos conceber os laços indestrutíveis entre a física, a química e a biologia, dado que é pela organização, e não unicamente pela matéria, que a vida se distancia do mundo físico-químico. Por isso, diante do inêxito do futebol brasileiro, ou do português, no último Mundial, há que levantar as perguntas seguintes: as entidades que superintendem, no futebol brasileiro e no português prepararam-se, problematizando-se e reorganizando-se, para o Mundial da África do Sul? E sabem os Srs. Dunga e Queirós que todo o progresso, ao nível do conhecimento, é inseparável da consciência do erro? Onde erraram eles? O que mais me surpreende é, em plena consciência do fracasso, predominar a tendência conservadora, no futebol brasileiro e no português. Talvez por que o futebol se destina, principalmente, a satisfazer as exigências do mercado.

A questão é pertinente: pode encontrar-se num desporto absolutamente mercantilizado algum compromisso com algo mais do que um espetáculo lucrativo? É que não conheço um capitalismo eticamente viável. Ora, é à luz de um futebol (repito-me) totalmente mercantilizado que é possível compreender, hoje, os usos que dele se fazem. E termino antecipando que o Brasil será o campeão mundial de 2014 ! Por quê? Porque nascem no Brasil os melhores futebolistas do mundo, se os avaliarmos do ponto de vista técnico e da intuição. E, no Brasil também, há treinadores para fazerem o resto…

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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Carta aberta ao Doutor José Mourinho

Caro amigo e colega,

Quando escrevi o prefácio do primeiro livro do nosso querido Luís Lourenço, sobre o meu amigo, logo adiantei, sem receio, que o José Mourinho seria para o treino e orientação, de uma equipe de futebol, o que foram, para a prática deste jogo, o Pelé e o Maradona.

Eu sei que, por vezes, quando me refiro à sua pessoa, posso acentuar excessivamente (para os meus leitores) a riqueza da sua personalidade, descurando a dimensão relacional, ou seja, esqueço que o seu pai, o Manuel Fernandes, o Bobby Robson, o Louis Van Gaal, foram seus mestres na arte de bem liderar uma equipe de futebol.

Emmanuel Levinas, no livro Totalidade e Infinito, afirma que a transcendência só é possível quando saímos do absoluto do mesmo. Todos nós somos natureza e cultura, memória e profecia. Isaac Newton afirmou a um seu admirador: “Se consegui ver mais longe, foi porque me coloquei sobre os ombros de gigantes”. Mas é evidente que, no gênio (como você é, enquanto treinador de futebol) os paradigmas tradicionais, por todos aceitos, rapidamente envelhecem, para despontar, no lugar do normal e do habitual, o que o ser humano em movimento intencional tem de insólito, de perpetuamente renovado, de imortalmente juvenil.

Nenhum gênio vê as coisas, como normal e habitualmente, se veem. Se assim fosse, ele deixaria de ser gênio. Se assim fosse, não haveria nele as sementes do futuro.

Há, de fato, um futebol, antes e depois de José Mourinho. E por quê? Porque todos os treinadores que o precederam e que fizeram escola não sabiam de futebol? De modo nenhum! Alguns deles até sabem mais de futebol do que o meu amigo. Só que, ao saberem só de futebol, descambam no erro da especialização, ao jeito do cartesianismo e do positivismo, e ficam a saber pouco de futebol.

O treino, que o meu amigo repudiou e em que Matveev pontificava, traz-me à lembrança o Herberto Helder de Photomaton & Vox, onde pode ler-se: “Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um bocado do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes menor. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objetivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer, de tão cortada nos dois lados. Só algumas pessoas compreenderam”.

Era no físico, no biológico, no somático, que o treino tradicional investia, sobre o mais. E o meu amigo, logo desde o primeiro ano na universidade, como Luís Lourenço o sublinhou, na sua tese de mestrado, era à luz do paradigma da complexidade que pretendia orientar o treino dos seus jogadores e, por isso, num jogador de futebol, como pessoa, ou numa equipe de futebol, como totalidade, é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem conhecer as partes.

Por outro lado, o José Mourinho sabia (sabe) também que, de um ponto de vista sistêmico-organizacional, o todo é maior do que a soma das partes, ou seja, a operacionalização do futebol faz-se com o individual contextualizado num todo, onde cabem a equipe, os jogadores que a compõem, os treinadores e os seus métodos, o clube e a sociedade donde o clube emerge. É porque tudo tem a ver com tudo que o diálogo é transversal ao todo. E assim o jogador faz-se, evolui, como pensamento em ato, onde movimento significa o que eu sou como pensamento da equipe. Cada jogador, numa equipe, é a expressão corporal do pensamento de um todo.

José Gil, a propósito do teatro-dança de Pina Bausch, no livro Movimento total – o corpo e a dança, fala-nos de uma “géstica do pensamento”. Numa equipe de futebol, percebe-se o que pensam os jogadores, através da sua motricidade. A Inter (de Milão) eliminou da Champions League o famoso Barcelona de Guardiola, de Xavi e de Messi. Para mim, hoje, o Xavi e o Messi não temem cotejo com o que de melhor o mundo do futebol apresenta. Só que o meu amigo é o melhor treinador do mundo. E, assim como os gênios Picasso, Dali, Miró inventaram novas linguagens plásticas, também o meu amigo inventou a linguagem onde os seus jogadores se transformam na expressão corporal do gênio do seu treinador. E desta forma nasce a compreensão de uma inesperada cultura tática, a consciência de um grupo, a certeza de uma solidariedade… inabaláveis!

Nietzsche, no seu livro Para além do bem e do mal, refere que há uma relação inseparável entre a linguagem e a experiência – é que só se sabe aquilo que se vive! Os seus jogadores seguem-no, o pensamento do José Mourinho paira por sobre a sua motricidade, porque eles sabem que, mesmo não correndo, nem saltando, nem rematando com eles, o meu amigo vive tão intensamente o que fazem, em campo, que tem dos seus atos uma experiência física e orgânica.

No fim dos jogos é manifesto, ao contemplar o seu cansaço, que teve do jogo uma tensa e intensa experiência corporal. A fadiga, no meu amigo, é outra forma de sentir a sua equipe.

Estou certo de que, neste momento, a alegria dos jogadores da Inter, a sua abnegação, a sua grandeza de ânimo, decorre também da admiração que nutrem pelo gênio do seu treinador. Porque são treinados por José Mourinho.

Há neles o culto, não de uma arrogância truculenta e agressiva, mas de um futebol que é sinal de inteligência e de vontade e de criatividade. Afinal, um futebol que não é só atividade física, nem é só educação física, mas o ímpeto da luta, o ardor do ideal – em suma, educação integral.

A Inter vai ser campeã da Europa! Dou-lhe os parabéns, por isso. “Mas (dir-me-ão) o jogo final ainda está por disputar”. O Bayern de Munique é, de fato, adversário dificílimo. Mas a Inter tem uma vantagem: os seus atletas não são adestrados só para repetir, mas convidados também para sofrer e para criar. O futebol é uma imaginação com regras. A diferença entre as várias equipes, para além dos aspectos econômico-financeiros, situa-se, na qualidade dos jogadores, capazes de repetir com imaginação (há quem só repita, sem imaginação). E na qualidade do treinador que orienta a repetição e estimula a imaginação.

É que no futebol jogado há mais caosalidade (de caos) do que causalidade (de causa). Diante do caos, a imaginação é essencial – a imaginação do Doutor José Mourinho. Por isso, eu ousar antecipar a vitória do seu clube, no campeonato europeu de futebol.

Saber mais é ser mais, não é repetir o que está nos livros. Dizia o Padre António Vieira: “isso não é saber, é lembrar-se”.

E termino, adiantando que o vejo como remédio seguro às patologias que afligem o Real Madrid…

Ex corde

Manuel Sérgio

(texto adaptado ao português escrito no Brasil)

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A falta de evolução ofensiva do Corinthians

“O que você fez até hoje te trouxe até aqui. Para alcançar outros patamares é preciso fazer coisas diferentes e melhores”. Essa frase tão conhecida no mundo do coaching e tão verdadeira e de fácil aplicação na nossa vida serve hoje para o Corinthians. A equipe do técnico Fábio Carille teve um padrão de atuação e performance suficientes para ganhar o Campeonato Paulista, passar pelas quatro primeiras fases da Copa do Brasil e pela fase inicial da Copa Sul-Americana. Para desafios maiores, o time terá que produzir mais. Principalmente, na parte ofensiva.
A solidez da defesa corintiana não é novidade. As linhas compactas, invariavelmente em bloco médio e baixo, marcando por zona, flutuando sempre em bloco para o lado da bola já vem da década passada. No ano passado, com a saída de Carille, isso se perdeu um pouco, mas com alguns treinos, conversas e vídeos rapidamente o técnico do Timão retomou o padrão em 2019. O problema atual reside com a bola nos pés. Em momentos ofensivos – sejam eles de organização e/ou transição.
A discussão deve ir muito além sobre quem deve ser o centroavante. É claro que com um camisa 9 em boa fase as coisas tendem a ficar mais fáceis. Porém, não podemos resumir a falta de poderio ofensivo do Corinthians a má fase de Boselli, a queda e lesão de Gustagol e a indefinição de posição de Vágner Love. Faltam ideias, conceitos e modelos de ataque aos comandados de Fábio Carille.
O desenho da equipe do meio pra frente ainda está indefinido. Não se tem muito clara qual a posição de Ramiro, que atuou enquanto Júnior Urso estava lesionado, não se sabe quem são os meias pelos lados do campo – Clayson tem sido o mais consistente – e por dentro, Sornoza tem jogado por estar numa fase menos pior do que Jadson e só agora ambos têm a concorrência de Régis, que estreou contra o Grêmio. Saliento a importância das peças individuais porque todo modelo deve ser construído a partir dos jogadores. É insano para qualquer treinador tentar impor suas ideias sem respeitar as características de quem vai executa-las.
Fábio Carille sabe muito bem que passou da hora de evoluir individual e coletivamente os mecanismos ofensivos do time. Seja qual for a maneira mais usual de atacar – posicional, jogo direto, contra-ataque, etc – ela deve estar somatizada nos jogadores, assimiladas como comportamentos para que sejam bem executadas em campo. Hoje, com esse jeito aleatório de atacar, o Corinthians será engolido por equipes melhor preparadas.