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Adiamento Brasil e Argentina; Entenda

Como é de conhecimento do torcedor, o árbitro de futebol é essencial para o desenvolvimento da partida tomando decisões importantes e mantendo a disciplina.
Entretanto, mais do que isso, o árbitro também tem a função de assegurar a segurança dos atletas e as condições mínimas para o desenvolvimento do jogo. Tal disposição está prevista na regra 5 do futebol.
O adiamento da partida entre Brasil e Argentina, válida pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018, se deu em razão da chuva forte com relâmpago que, além de colocar em risco os atletas, acabou por empoçar todo o campo e inviabilizar o desenvolvimento regular da partida.
Por fim, urge destacar que o adiamento do jogo válido pelas eliminatórias teve grande repercussão por se tratar de um dos maiores clássicos do mundo, mas, adiamentos de partidas em virtude de eventos externos como calor, chuva e falta de segurança já ocorreram diversas vezes.

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A ascensão da insignificância

O livro A Ascensão da Insignificância, de Cornelius Castoriadis, traduzido para português pela Editorial Bizâncio, parece-me de grande atualidade. “Qual o exemplo que as sociedades do capitalismo liberal fornecem ao resto do mundo? O único valor que existe nelas é o dinheiro, a notoriedade mediática ou o poder, no sentido mais vulgar e irrisório do termo” (p. 70). Por outro lado, o trabalho da esmagadora maioria dos jornalistas, dos comentaristas, dos intelectuais são mais “justificadores da ordem estabelecida” (p. 97) do que um contra-poder ao poder do neoliberalismo vigente.
O defeito não é de hoje, de fato. Heidegger e Sartre chegaram ao ponto de manifestar entusiasmo incontido: Heidegger pela ditadura de Hitler e Sartre pelas ditaduras de Castro e Mao. Cornelius Castoriadis é da opinião que “temos de nos desembaraçar, ao mesmo tempo, da sobre e da subvalorização do intelectual. Existiram pensadores e escritores, que tiveram grande influência, na História, mas nem todos no melhor sentido” (p. 98).
Hoje, segundo o mesmo autor, o intelectual faz parte do sistema que o contrata, que o remunera, que o condiciona (p. 99). E, por isso, ”há traição da parte dos próprios críticos, quanto ao seu papel de críticos; há traição, por parte dos autores, quanto à sua responsabilidade e rigor; e há a vasta cumplicidade do público, que está longe de ser inocente, neste assunto, na medida em que aceita este joguinho e que se adequa àquilo que lhe é fornecido” (pp. 99/100). A sociedade não degenerou biologicamente, a tecnociência progride diariamente e, diariamente também, a medicina rasga novos horizontes – a sociedade degenerou, sim, etica e culturalmente, quando é de bom tom entoar ladaínhas ao conformismo diante do consumo, do deus-dinheiro, de um capitalismo demencial, da crise de sentido e significação.
Não, não recebo o termo “atual”, com grande carga afetiva, dando-lhe um significado de mau, de falso, de execrável. Digamos antes que nunca, como hoje, uma crise económica e social e política se tornou tão visível (até nas próprias religiões). Não é por acaso que vivemos a Sociedade do Conhecimento da Era da Informação! Nos meus tempos de rapaz (bem me lembro), havia um sentimento de firme estabilidade e de radical confiança em determinados valores – e valores que eram uma continuidade do mundo clássico e do cristianismo.
Vivíamos então, em Portugal, um regime político de ditadura e um clima social de catolicentrismo? Não o nego, mas quando se apontavam “os amanhãs que cantam”, no capitalismo ou no marxismo, uma grande esperança iluminava as palavras, porque se descortinavam Absolutos em que se acreditava: Deus (Senhor e Pai), a Razão, a Liberdade, a Democracia, a Luta de Classes. E o mundo, se era um mistério, não era um absurdo.
Só que uma igreja sem cristianismo e um cristianismo sem igreja; o desmoronamento paulatino de muitas das ideologias de esquerda; o descrédito dos caudilhos que se dizem marxistas; o triunfo da sociedade de consumo; o espírito quantitativista, sem uma réstea de solidariedade, do neoliberalismo que nos sufoca – tudo isto gerou um mundo onde os valores vitais de solidariedade e democracia desaparecem, diante dos valores numéricos, unicamente numéricos, do capital. Por isso, no nosso tempo, o ser humano é parte, não é pessoa. E, porque parte de um todo, ao serviço do lucro, a facilidade com que é explorado, manipulado e… sem consciência da sua eminente dignidade, dado que “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”.
A ascensão da insignificância, ou seja, da corrupção, do compadrio, do mediático, do conformismo, do absentismo e de um tipo de homem que se contenta com a pseudo-felicidade do ter que não sabe ser gerou um futebol que reproduz e multiplica uma sociedade economicamente desigual e de um saber onde a dimensão antropológica não conta. Cornelius Castoriadis escreve: “Deveríamos querer uma sociedade, na qual os valores económicos deixassem de ser centrais ou exclusivos, em que a economia voltasse a ser posta no seu devido lugar, enquanto simples meio e não enquanto finalidade última da existência humana” (p. 110).
Se não laboro em erro grave, tudo o que venho de escrever deveria ser escutado e posto em prática pelos dirigentes da Fifa e da Uefa e dos maiores clubes de futebol para que um dia acontecesse o anseado desenvolvimento desportivo.
É que o desenvolvimento supõe tudo para todos e não só para o Real Madrid, ou o Manchester United, ou o Manchester City, ou o Bayern de Munique, ou o Barcelona, ou o Chelsea. Mas não é próprio do neoliberalismo mundializado que nos governa dar tudo a meia dúzia de endinheirados, conluiados com o poder, e umas migalhas aos outros? Até no futebol se pode vislumbrar a sociedade em que vivemos.
Não é possível pensar o desporto sem um quadro de valores. Ser pessoa e agir como tal implica a referência a valores, incluindo os valores morais. Mas não é amoral o mundo empresarial que preside ao futebol? Verdadeiramente, o que tem a ver a moral com as vitórias e as derrotas nas competições desportivas?
Repito o que venho dizendo há muitos anos: o desporto de alta competição reproduz e multiplica as taras da sociedade capitalista. Esquecer isto é não compreender o futebol que entusiasma e apaixona o mundo de hoje.

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br
 

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O olimpismo: uma lição de vida?

Depois da modernidade, poderá dizer-se, na esteira de Wittgenstein, que já se acumulou tanto conhecimento sobre o mundo e afinal está por criar uma sabedoria que nos ensine a viver. O Desporto surgiu, no século XIX, com inspiração elevada, como sabedoria de vida, através do olimpismo que Coubertin idealizou. Não há teórico, que se adentre nesta matéria, que não se confesse devedor ao pioneirismo deste aristocrata francês, discípulo do cónego Thomas Arnold e da filosofia moral tipicamente anglo-saxónica. Por outras palavras, eles dizem-lhe o que Dante disse de Vergílio: “Tu duca, tu signore e tu maestro”.
Em Les Assises Philosophiques de l’Olimpisme Moderne, que reproduz o texto de uma mensagem radiodifundida em 1935, Coubertin resume, em cinco pontos, a ideologia do olimpismo:
-O olimpismo é uma religião, a célebre religio athletae: “Cinzelando o seu corpo, pelo exercício, como o faz o escultor de uma estátua, o atleta antigo honrava os deuses. Fazendo o mesmo, o atleta moderno exalta a sua pátria, a sua raça, a sua bandeira”;
– O olimpismo supõe uma aristocracia dos atletas que compõem uma  elite baseada democraticamente na igualdade de oportunidades. Aqui se situa a famosa sentença: “Para que cem se entreguem à cultura física, importa que cinquenta pratiquem desporto; para que cinquenta pratiquem desporto, é preciso que vinte se especializem; para que vinte se especializem, bem é que cinco sejam capazes de surpreendentes proezas”.
-“Mas ser uma elite não basta, é preciso que esta elite seja uma  cavalaria”. E prossegue: “Mas ser uma elite não chega; é preciso ainda que essa elite seja uma cavalaria. Os cavaleiros são, antes de tudo, irmãos de armas, homens corajosos, enérgicos, unidos por um vínculo mais forte do que o da simples camaradagem”. O fair play é a sua regra.
-A ideia de trégua, “de generosa e pacífica emulação”.
-O culto da beleza. E assim os Jogos, com um suplemento artístico, ampliariam o seu projecto-esperança à complexidade humana.
Força é convir que, para 1935, as declarações de Coubertin não se revestiam de qualquer assomo de novidade. Elas reflectiam o espírito do tempo. Era então moda afirmar-se que a cultura física criava homens novos, de esplendorosas qualidades humanas. Recordo a minha leitura do livro de Houston Stewart Chamberlain, La Genèse du dix-neuvième siècle (tradução do alemão). Tratava-se de um livro de inspiração pangermanista, cuja tese rácica defendia que tudo o que na Europa havia de admirável, após o caos étnico da queda do Império Romano, era obra da raça pura dos germanos, dada a uma corajosa vida ao ar livre onde os jogos guerreiros predominavam.
O nacional-socialismo alemão tinha, neste livro, o seu “evangelho”. Mas já, anteriormente, outros escritores alemães, como Woltmam e C. Newman, tinham procurado explicar o Renascimento, com a infiltração do “fresco sangue germânico”.
Na minha pouquidade, sempre discordei, nas aulas que leccionei, no ensino público (e lecciono, hoje, no ensino privado), que a cultura física (e o desporto), por si só, fosse o factor de transformação individual e social. Já em finais da década de 60 eu sabia que qualquer fenómeno histórico resulta de uma complexidade de factores, agentes, ocorrências, condicionalismos. Na Revue des Deux Mondes (Février de 1902), em artigo intitulado «A força nacional do desporto », escreveu Coubertin : « O utilitarismo é a corrente dominante, na época que atravessamos”. E é mister que o Desporto nele se integre, “em nome das concorrências democráticas e do struggle for life”. Na Revue Universitaire (de 15 de Maio de 1892), não tergiversa: “Para mim, o verdadeiro herói olímpico é o adulto macho individual”. Como negar que Pierre de Coubertin procurou penetrar, no desporto, em determinado momento da sua vida, a corrente utilitarista inglesa?…
O utilitarismo clássico é obra, principalmente, de três filósofos: Jeremy Bentham (1748-1832), que escreveu An Introduction to the Principles of Morals and Legislation; John Stuart Mill (1806-1873), que deu à estampa On Liberty e Utilitarianism; e ainda Henry Sidgwick (1838-1900), que publicou The methods of Ethics. Segundo Gilbert Hottois, na sua História da Filosofia – da Renascença à Pós-Modernidade (tradução portuguesa do Instituto Piaget, 2003): “O utilitarismo inscreve-se na grande tradição do empirismo inglês, tanto do ponto de vista da concepção do mundo, da teoria do conhecimento, como do interesse crítico em relação ao político (…).
O utilitarismo só pode compreender-se com o desenvolvimento da Economia, que floresce em França e, mais ainda, na Inglaterra, a partir da segunda metade do século XVIII e no início do século XIX (Adam Smith e David Ricardo). A economia política, então a despontar, é uma das fontes mais importantes do pensamento moderno e contemporâneo” (pp. 189 ss.). Adam Smith, no seu célebre An enquire into the nature and causes of the wealth of nations, não vislumbra assomo de contradição na articulação entre os interesses individuais e os colectivos, numa sociedade onde a oferta e a procura possam actuar livremente, num mercado sem entraves.
Quem não vê, aqui, o liberalismo que Karl Marx meteu a ridículo? Ninguém contesta que o proletariado, no sentido que Marx deu à palavra, não existe já. Mas a extensão do poder do Estado, como hoje se verifica, não significa também, mesmo sem o subtil exercício dialéctico de alguns “fazedores de opinião”, que o neoliberalismo é, cada vez para mais gente, um venenoso perfume? Mas continuemos a resumir a filosofia do utilitarismo:
-A moral é uma disciplina empírica. O que é bem ou o que é mal é a  experiência a dizê-lo e não qualquer dedução, a partir de princípios.
– Os valores não são transcendentes. No utilitarismo, queimam-se  grãos de incenso ao relativismo cultural e histórico dos valores.
– São as ciências da natureza que permitem um cálculo rigoroso,  visando maximizar a felicidade e minimizar a infelicidade.
– Os actos avaliam-se, não pela pureza interior da intenção, mas pelas consequências que provocaram. Se tomarmos à letra a famosa distinção de Max Weber, entre ética da responsabilidade e ética da convicção, o utilitarismo assume declaradamente a primeira.
– Tendo Hume (1711-1776), o empirista e o agnóstico (e amigo íntimo de Adam Smith), como seu ascendente, o utilitarismo defende uma ética constatativa, uma ética do ser, do dado, do facto e não uma ética do dever-ser, do direito, da razão. Em Hume são as emoções, as paixões a grande fundamentação da ética. Ética do utilitarismo, precursora da de Bentham? Acima do mais, nascia a ética burguesa.
Ainda sobre David Hume, será de realçar que se trata de um filósofo atual: os representantes da fenomenologia, do neopositivismo e dos funcionalismos de vária ordem continuam a reclamar-se da sua paternidade. Porque o secularismo, o agnosticismo, o naturalismo e todas as reminiscências da religião das Luzes são hoje aceites e aprofundadas, por muitos homens da ciência e da política. John Stuart Mill, no seu Ensaio sobre a Liberdade, anuncia os primeiros clarões do liberalismo democrático: “O único objectivo pelo qual a força pode ser exercida legitimamente, em relação a um membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é com vista a impedi-lo ser nocivo aos outros”. Em que muito pese ao fundamentalismo socialista, o utilitarismo contribuiu ao reconhecimento dos Direitos do Homem, suas liberdades e garantias.
Mas o excesso de individualismo, uma declarada alergia ao papel do Estado na Educação, na Saúde, na Justiça, na Segurança, nas Finanças, no Trabalho, etc., deixaram os marginalizados, os excluídos, incapazes de entrar na competição em que o liberalismo (que é um capitalismo liberal) se movimenta. Poderíamos lembrar, a propósito, o darwinismo social que assenta na luta pela vida e no triunfo do mais forte, ou do mais apto, como expressão de efectivo progresso. Era a Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, no acto de gestação da democracia liberal e Pierre de Coubertin (1863-1937) olhava, para este sistema económico-político, com um sorriso de amena cumplicidade.
E, assim como o “homem livre”, segundo o Platão das Leis, deveria “viver, recreando-se, através de certos jogos e outras diversões”, sem alguma vez trabalhar – também o fair-play significa que são os nobres e a burguesia endinheirada os desportistas a que Coubertin se referia, por convicção própria, ou para escapar à ferina galhofa dos “desportistas” que o rodeavam. Para Coubertin, não existia senão um só Desporto, mas uma diferença insanável dividia, no dealbar do século XX, os desportos nobres (a equitação, a esgrima, o remo), praticados pelos “amadores”, que dispunham de ócio, e os outros desportos, onde os proletários e os camponeses auferiam algum dinheiro. Na vasta trajectória histórica do olimpismo, é de não esquecer o que aconteceu a Jim Thorpe que, nos Jogos de Estocolmo (1912), perdeu as medalhas ganhas, no atletismo, porque era profissional como jogador de baseball. Ele era índio, cumpria as suas tarefas agrícolas, com os vagares de quem é dono do seu tempo, mas o dinheiro era escasso.
Ser profissional de baseball arrancou-o à miséria. Em Estocolmo, o rei Gustavo V, maravilhado com o desempenho do Jim Thorpe, desceu ao terreno, segurou-lhe as duas mãos e, em voz emocionada, exclamou: “Você é o maior atleta do Mundo!”. Era, de facto, o maior atleta do Mundo e um homem, dizem, de trato fraterno e de saudável exuberância. Mas não era um gentleman…
José María Cagigal, no seu livro Oh! Deporte (anatomia de um gigante) editado em 1981, pela Miñon S.A., de Valladolid, reproduz o conceito de amador do Amatheur ,Athletic Club: “É amador o gentleman que nunca participou numa competição pública; que nunca defrontou profissionais, tendo recebido dinheiro por isso; que nunca foi professor, ou monitor, remunerado de exercícios deste jaez; que não seja operário, artesão ou jornaleiro”. Esta definição manteve-se até 1880, data em que a última clásula (ser operário, artesão ou jornaleiro) foi extirpada. Cagigal, no mesmo livro, sustenta que eram os companheiros de Coubertin os que deitavam um breve e desdenhoso aceno ao desporto profissional e não o criador do olimpismo moderno. De facto, trinta e cinco anos depois, Coubertin desabafava, nas suas Memórias Olímpicas: “Sempre o amadorismo! (…) Hoje, posso afirmar, francamente, que este assunto nunca me importou (…).
Vendo o interesse que lhe dedicavam os meios desportivos, dediquei-lhe a máxima atenção, mas sem grande convicção. O meu conceito de Desporto sempre se distinguiu de um grande número, talvez a maior parte, dos desportistas. Para mim, o Desporto é uma religião com igreja, dogmas, culto, mas sobretudo com sentimento religioso e, por isso, parecia-me tão pueril condenar o desportista que recebesse algum dinheiro pela prática do Desporto, como condenar, como incrédulo, o sacristão da paróquia porque tem um vencimento, para assegurar o serviço do santuário” (Publicaciones – Comité Olímpico Español, 1965, pp. 108 ss.). A cultura ocidental, vivendo sempre do sangue tumultuoso de novas experiências, distingue-se das demais culturas principalmente pelo seu grau de secularização… que eu defendo, embora ancião, com fogosa irrequietude. E por quê? Porque as demais culturas se colocam antes e por cima da condição humana. “ É aqui que a ilusão cultural provoca os maiores estragos: quando acreditamos que somos humanos apenas porque temos uma cultura e não por natureza, sempre que encerramos a dignidade do Homem na sua origem étnica, religiosa, nacional ou imperial. Deixamos então de entender a palavra cultura como um aperfeiçoamento livre de nós próprios, mas como uma entrega da consciência a um primado determinista” (Jérôme Bindé, Para onde vão os Valores?, Instituto Piaget, Lisboa, 2006, p. 60).
Podemos admitir então que Pierre de Coubertin desdenhou, por fim, a sociedade vertical, classista e hierárquica da Inglaterra vitoriana? Julgo que não! Ela perdura na composição dos vários COI’s, constelados de fidalgos e de nomes da alta burguesia… europeus! Depois, o facto de o olimpismo se apresentar como religião tal significa, como o assevera o Dalai-Lama, uma crença “que tem como um dos seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de realidade metafísica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma idéia de paraíso ou nirvana” (Uma Ética para o Novo Milénio, Sextante, Rio de Janeiro, 2000). E aqui a metafísica ou a espiritualidade residem na Pátria, na Raça, na Bandeira, como vimos acima e, como em todas as religiões, na hierarquia que as proclama e as explica.
A linguagem habitualmente turibular com que o COI é incensado diz-nos que o culto da personalidade nele habita, como afinal nas demais religiões. Mas também a alta competição faz regressar, inevitavelmente, o utilitarismo que é, bem vistas as coisas, a filosofia do liberalismo e ainda um fair-play de clamorosa insensibilidade. Neste passo, transcrevo um texto do escritor brasileiro Rubem Alves, sobre os Jogos Olímpicos: “São um evento assombroso. Começa com aquela festa linda, comovente, festa de fraternidade e de paz. Norte-americanos e iraquianos desfilaram no mesmo desfile, sem que Bush tentasse matar os atletas do Iraque, como terroristas disfarçados. Ele estava jogando golfe. O grande símbolo: uma oliveira cheia de folhas! Dizem os poemas sagrados que a pomba que Noé soltou ao final do dilúvio voltou com um ramo de oliveira no bico. Que bom que seria se aquela oliveira anunciasse o fim do dilúvio de loucuras bélicas, que está destruindo o mundo! Algumas dessas festas ficam inesquecíveis.
Lembro-me do ursinho que marcou as Olimpíadas de Moscou. No encerramento, o ursinho chorou: lágrimas que escorriam pelo seu rosto. Sei muito bem que o urso não tem rosto, urso tem é focinho, mas seria feio dizer: lágrimas escorriam pelo seu focinho. Do jeito como as coisas vão, em breve se dirá que os bichos têm rosto e os homens têm focinho. Aí chega o primeiro dia. Vai-se a fraternidade. Agora é briga. Briga pelo pódio. O pódio é motivo de briga. Nas Olimpíadas não há lugar para fraternidade, porque fraternidade significa todo mundo junto brincando de roda e nos Jogos Olímpicos não há cantigas de roda. No pódio só cabem três. Cada atleta quer mesmo é que o outro se dane. Ah! A suprema felicidade do velocista dos cem metros, quando sabe que o recordista baixou no hospital acometido de uma súbita cólica renal, na véspera das finais. E as ginastas rezam, enquanto as adversárias executam os seus números: Tomara que ela escorregue…” (ostra feliz não faz pérola, Planeta, São Paulo, 2008, p. 141).
Não sei se do legado literário que Coubertin nos deixou não possa fazer-se o resumo seguinte:
-O olimpismo é uma religião, um livre acto de consciência, responsavelmente assumido.
-O atleta olímpico faz parte de uma elite que resulta da igualdade de oportunidades.
-O olimpismo revivesce nos ideais de cavalaria, porque pretende reabilitar a coragem ao serviço de uma espiritualidade que lhe dá sentido.
-A trégua olímpica há-de reflectir um homem, fisica e psicologicamente ágil e forte, capaz de converter-se e de converter os outros à causa da Paz. Só os fortes constróem a Paz.
-O olimpismo, embora não queira crucificar a vida na cruz do conceito (acusação de Garaudy a Platão, no seu livro Palavra de Homem) não esquece que estará para breve o colapso do Desporto, se este não assumir os vários domínios da vida humana, incluindo a literatura e os outros meios de comunicação artística.
Só que o individualismo (e, por extensão, a alta competição) forma o código genético da filosofia utilitarista e da democracia neoliberal, em que estamos imersos. Faço minhas as palavras do Prof. Carlos Diáz, na sua Breve historia de la filosofía (Encuentro Ediciones, Madrid, 2002):
“La posmodernidad se mueve a gusto en lo que llama egoísmo asociativo, individualismo responsable o simplemente ética de los negocios. Buena ética, hacer buenos negocios, good ethics make good business, la bonne affaire de l’éthique y otros eslóganes similares abundan por Europa” (p. 260). A crise financeira que se abateu sobre o mundo todo mostrou que não há mesmo ética nos negócios. Até por esta razão muito simples: se o neoliberalismo rejeita, como discurso infecto ou bafiento, qualquer anseio totalizante e solidário do mundo social, tudo é visto de forma a reafirmar-se a autoridade indiscutível do capital sobre o trabalho e o seu direito a gerir e a governar a produção social das riquezas.
Um outro ponto me interessa salientar: o mercado apresenta-se, hoje, como o fundamento fiável da democracia e, assim, a política desliza para infrapolítica onde as preocupações com o bem comum são olhadas com um olhar lateral. A política como forma exigente de viver um compromisso sério, ao serviço dos outros, designadamente os mais necessitados, é bandeira que o neoliberalismo dificilmente desfralda.
Aqui, poderá levantar-se o olimpismo como contra-poder ao poder das taras dominantes, como foco irradiador de um mundo novo, que tente erradicar da face da Terra um individualismo sinónimo do mais empedernido egoísmo. Foi isso o que Coubertin tentou fazer, embora a “episteme” do seu tempo e as marcas de classe da sua prática. Façamos, com o espírito de Coubertin, o que Coubertin não podia, não sabia fazer…

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

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Guardiola: uma vitória de Mourinho?

Tenho o hábito de perguntar aos meus alunos de Motricidade Humana, designadamente aos de Desporto, o que pretendem ser eles, findo o seu curso universitário. Em 1982 (precisamente há trinta anos!) levantei igual questão ao José Mourinho, era ele aluno do primeiro ano da licenciatura em Educação Física e Desporto do Instituto Superior de Educação Física de Lisboa. Respondeu-me, aprumado e sem reticências: “Quero ser treinador de futebol”.
Olhei para ele, com simpatia, dada a convicção manifestada por um jovem de 18 anos de idade, mas não deixei de acrescentar: “Então não se esqueça que, para saber de futebol, é preciso saber mais do que futebol”.
O atual treinador do Real Madrid muitas vezes lembra o conselho que naquele momento me ocorreu e tem mesmo a generosidade de afirmar que nunca mais o esqueceu, ao longo da sua vida.
No seu primeiro ano de treinador, no F.C. Porto e no primeiro livro de Luís Lourenço, sobre o seu amigo José Mourinho, não tive receio em escrever no prefácio que o José Mourinho estava para o treino como Pelé e Maradona para a prática do futebol.
Embora já me tenha enganado muitas vezes, desta vez não me enganei. Líder nato, inteligente, perspicaz, corajoso, em constante busca por mais informação e fazendo da sua equipa a sua segunda família – a aposta nos seus êxitos era um risco reduzido.
No entanto, ao fim de treze títulos (poderão ser catorze, se os catalães vencerem a Taça do Rei, no próximo dia 23 de Maio), no espaço de quatro anos, e ao leme de uma equipa que realizou exibições memoráveis – Josep Guardiola, de 41 anos de idade, pode também apresentar um currículo admirável.
Quando, no passsado dia 27 de Abril, ele surpreendeu o mundo, ao anunciar, emocionado, que terminará o seu vínculo profissional ao Barcelona, no final da presente época, o seu nome já se encontrava gravado a letras de oiro, na História do Barcelona e na História do Futebol.
Discípulo de Cruyff, vivendo de uma filosofia política que é a alma da Catalunha, antigo jogador internacional de futebol e pessoa de estudo constante – Josep Guardiola surge a não temer cotejo com qualquer treinador de futebol. Mesmo com o primeiro de todos, o José Mourinho…
No anúncio da partida de Camp Nou, teve a seu lado Iniesta, Xavi, Puyol, Valdés, Piqué, Fabregas, Busquets e Pedro. Faltou Messi, três vezes Bola de Ouro sob a liderança de Guardiola, que explicou assim a sua ausência: “Preferi não estar presente na conferência do Pep, porque sei que os jornalistas dariam grande relevo à minha emoção e eu não queria que o fizessem”. Mas no treino Messi e Guardiola abraçaram-se, num abraço que parecia não ter fim. Como o referiu, na conferência de imprensa: “Vou continuar a ser treinador, mas não quero voltar em breve”.
Orientar o Barcelona cansa. Principalmente, quando se tem de competir com o Real de Mourinho e de Cristiano Ronaldo. Talvez resida na saída do Pep Guardiola do Barcelona uma das grandes vitórias do José Mourinho: é que o Barcelona, sem o Guardiola, não será o mesmo, na próxima época.
Com 42 anos de idade, Tito Vilanova, o seu sucessor, é “um homem da casa”; conhece, por dentro e por fora, o Barcelona. Mas não sei se tem o génio de Guardiola! No meu modesto entender, sem o Guardiola, o Barcelona, em 2013, arrisca-se a ser, de novo, o segundo do Campeonato Espanhol.
Jacques Derrida, no seu livro Spectres de Marx (Galilée, Paris, 1993), adianta que, com o neoliberalismo mundializado, se chegou ao fim, não da História, como queria Fukuyama, mas de uma certa história. No Barça, a história de Cruyff e de Guardiola findou. Outra virá, mais tarde, ou mais cedo. Aliás, no Barça, continua a jogar Lionel Messi. No entanto, o clube, uma das expressões do povo da Catalunha, viverá muito para além de qualquer jogador ou treinador, que o servirem.
O ex~presidente Joan Laporta deixou, na Imprensa, um agradecimento sentido a Guardiola: “Obrigado, Pep, por tudo o que nos deste”. Tudo é tempo e outros tempos hão-de vir. Mas, para já, o Mourinho vai ganhar.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br
 

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O todo é mais do que a soma das partes ou o jogo Barcelona-Santos

Por quatro golos, sem resposta; com duas bolas nos postes dos adversários; e 72% de posse de bola – o Barcelona “esmagou” o Santos, no jogo final do Mundial de Clubes. Porque me considero luso-brasileiro (não legalmente, mas pelo coração), eu fui, naquele jogo, que contemplei pela TV, um “torcedor” do Santos.
No entanto, findos os primeiros 45 minutos, já a superioridade do Barça era tão evidente, que não me restava senão aceitar desportivamenter a derrota e refletir sobre as razões de tamanho desnível entre os dois clubes, incluindo entre os jogadores de maior valia técnica, o Messi e o Neymar: as rajadas impetuosas do Messi foram o corolário do dinamismo organizacional de uma equipa onde o todo é mais do que a soma das partes; a ineficácia do Neymar foi o resultado do trabalho de uma equipa onde o todo é menos do que a soma das partes.
Em qualquer complexidade sistémica, fomenta-se a relação todo-partes de modo que esta dialética permita a emergência de qualidades que, por si sós, nem as partes nem o todo possuem. O que era Barcelona, sem o Messi? Muitíssimo menos do que hoje é. O que era o Messi, sem o Barcelona? Igual ao Neymar!
Este, em entrevista televisiva, afirmou, convicta e humildemente, que o Barcelona acabara de dar ao Santos uma aula de bom futebol. E não só de bom futebol, mas também doutros temas que é preciso saber no futebol, como em qualquer outra área do conhecimento.
Entendo agora por que o escritor catalão Enrique Vila-Matas, um dos grandes escritores da atualidade, faz parte de um grupo de intelectuais que, periodicamente, se reúne com Pep Guardiola…
Não, não estou a dizer que o Enrique Vila-Matas sabe mais de futebol do que o Guardiola. Sabe menos! Mas da relação entre os dois (porque o futebol é uma atividade humana e não só uma atividade física) o Guardiola enriquece os seus conhecimentos do futebol e o Enrique encontra novos motivos (incluindo os estilísticos e os retóricos) para os temas da sua prosa.
Hoje, em qualquer comunidade científica, a multi e a interdisciplinaridade são procedimentos básicos. Por que o não são, na esmagadora maioria dos clubes de futebol? Porque se desconhece que só sabe de futebol quem sabe mais do que futebol (e de medicina quem sabe mais do que medicina e de direito quem sabe mais do que direito e de economia quem sabe mais do que economia, etc., etc.).
Não há área do conhecimento que não se desenvolva, sem uma sistemática relação com as demais áreas do conhecimento. A complexidade do real exige a complexidade do pensamento e da ação. E o futebol é bem mais do que a técnica e a tática.
Estou certo que o Pep Guardiola sabe tudo isto o que venho de escrever e acredito que já tenha tentado recriar o futebol que lidera, como trabalho que cria conhecimento. Há uma revolução a fazer no futebol.
Estou certo que já começou, no Barcelona. Se não laboro em erro grave: está prestes a começar no Sport Lisboa e Benfica de Luís Filipe Vieira, Domingos Soares de Oliveira e… Jorge Jesus!
“Todo o conhecimento, mesmo o mais físico, é uma produção bio-antropológica, social, cultural, noológica” (Robin Fortin, Compreender a Complexidade, Instituto Piaget, p. 241). Que o mesmo é dizer: no futebol, a preparação física depende dos grandes objetivos que animam a equipa.
O próprio jogador genial encontra-se em rede com os seus colegas. Compreende-se o Messi, sem o Xavi e o Iniesta? Mas também o todo é menos do que a soma das partes, se se desconhece o papel das emoções, no comportamento de uma equipa de futebol.
Ainda há pouco um aficionado do Barcelona me garantia que o seu clube apresenta uma indelével marca política (que não partidária): “O Barcelona, mais do que os ideais de um clube, representa os grandes anseios políticos da Catalunha”. Talvez seja por isso que muitos dos jogadores que a publicidade mais idolatra, das outras equipas, pareçam viver num mundo fictício, convencional, artificial, gritando um clubismo declamatório e balofo, nos órgãos da Comunicação Social e saltitando nas revistas cor-de-rosa, de mãos dadas com jovens artistas (ou desportistas) de quem se contam grosseiras anedotas.
Ao invés, o Messi, o Xavi e o Iniesta, não sendo monges nem deixando de ter vida afetiva, dão bem a entender que, mesmo nas suas horas de ócio, não deixam de cuidar do seu “treino invisível”. De facto, fogem daquilo que não interessa, para brilharem (com luz inusitada) naquilo que verdadeiramente lhes interessa.
O Barcelona é a melhor equipa de futebol do mundo. E por que? Em primeiro do mais, porque, nela, o todo é mais do que a soma das partes. E aqui as partes não são só a técnica e a tática e o físico – mas também o intelectual e o moral. E até os aspetos epistemológicos, que o Pep Guardiola também já mostra entender.

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

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O individual e o coletivo: pequena reflexão filosófica

Todos sabem e o repetem: uma equipa de futebol não são onze jogadores. E é verdade: onze jogadores, com o mesmo treinador e as mesmas camisolas não constituem automaticamente um “team” de futebol. Para haver um coletivo, é preciso haver uma determinada qualidade, no relacionamento entre todos os elementos que constituem um departamento de futebol, incluindo os atletas superdotados e supertreinados. E ainda uma determinada quantidade onde a qualidade se concretize e realize.

Uma equipa não é um dado imediato. É o resultado concreto de um trabalho que se realizou em conjunto e deliberadamente. A mera aglomeração de jogadores, mesmo que discutindo problemas e tomando decisões, não faz imediatamente uma equipa. Porque o coletivo não nasce de um instante, é obra permanente de constituição e de exercício. Ele faz-se porque se vai fazendo…

Não pode exigir-se aos “torcedores” uma profunda capacidade reflexiva e crítica. Eles vão aos jogos, acima do mais, para aplaudirem as vitórias dos seus clubes. Dificilmente compreenderão (e aceitarão) que uma equipa recém-formada, mesmo com atletas de reconhecido valor, só pela conjunção de fatores favoráveis poderá render tudo o que está ao seu alcance. E os dirigentes, pressionados pelos sócios, assumem por vezes posicionamentos, onde a paixão obnubila a razão, onde a sensatez mal se vislumbra.

Ouçamos, a propósito, José Barata-Moura: “O característico de uma visão imediata do real é precisamente esta permanência do disperso, no separado, no isolamento dos diferentes elementos que a experiência nos fornece ou impõe. Neste sentido, poderemos verdadeiramente dizer que uma visão imediata da realidade objetiva constitui, no fundo, uma visão abstrata, isto é, uma visão do mundo onde aspetos essenciais foram deixados ou postos de parte, não apenas em virtude de uma legítima e necessária delimitaçãio (.), mas com o intuito, deliberado ou não, de (.) proceder a uma certa absolutização do parcelar, do momentâneo, do finito” (Totalidade e Contradição, Livros Horizonte, p. 121).

Hão-de ser os investigadores, os estudiosos (despidos da máscara rude dos que se julgam donos da verdade, teorizando só e sem relação interdisciplinar com a prática), a propor: não é com onze jogadores que se faz uma equipa, mas com onze jogadores que se relacionam e se subordinam às exigências do todo. O Marx dos Grundisse pode aqui ser invocado: “A sociedade não consiste em indivíduos, mas expressa a soma das ligações e relações que esses indivíduos têm entre si”. E assim uma equipa coesa não nasce de um dia para o outro. Faz-se e… demora tempo!

Quando se tem em conta as contradições de que o todo se compõe, percebe-se o processo moroso onde a unidade não exclui, antes exige, a estrutura dialética dos contrários… internos e externos à própria equipa. Aliás, são as contradições que permitem o desenvolvimento do todo. E assim um grande jogador só o é, em função do seu vínculo às necessidades da equipa.

Não existem praticantes de invulgar capacidade individual, desinseridos da equipa. Também o praticante está situado num espaço e num tempo e é daí que ele surge como atleta de eleição. Efetivamente, cada atleta, em plena competição, é um dos momentos de uma totalidade em devir, é o imediato que, para compreender-se, há-de saber integrar-se num mais amplo e complexo sistema de relações.

Com isto, não se defende que um Messi, ou um Cristiano Ronaldo, ou um Neymar, devam morrer, na férrea prisão de uma tática castradora, mas que nela se devem criar condições para que o atleta se realize. Ser um atleta genial é sem dúvida distinguir-se pelos primores técnicos, pela inteligência tática e pelo alto rendimento, em relação aos demais colegas de equipa, mas é também estar essencialmente em relação com todos eles.

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

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Educar para o desporto

Já o escrevi inúmeras vezes: o desporto é o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo. Daí que haja desafios a ter em conta, para que o desenvolvimento desportivo aconteça, de acordo com os objectivos pedagógicos da prática desportiva. Grande parte da educação acontece na rua, nos jornais, no cinema, na televisão, no computador. Ora, a informação o que mais distingue, no desporto, é o desempenho dos atletas mais cotados, os seus carros, as suas espaventosas companheiras e… os erros dos árbitros!

Na América do Norte, há pouco tempo, teve enorme sucesso o filme Forrest Gump, em que um simpático idiota é transformado num herói. E, no entanto, o seu comportamento, nos estádios do futebol americano, é de uma antipatia doentia pelos árbitros. Na sua introdução ao livro Dumbing Down: Essays on the Strip-Mining of American Culture, John Simon faz notar que toda a gente, nos EUA, sabe quem são Cassius Clay, Tiger Wood, Roger Federer, etc., etc., mas poucos são os que já ouviram falar de Darwin, Dickens, Dante ou Shakespeare.

Quer isto dizer que a informação se ocupa unicamente de um desporto (ou pseudo-desporto) que reproduz e multiplica as taras da sociedade e não de uma prática desportiva donde despontem valores de forte carácter antropológico.

Depois a escola, tão preocupada se encontra em desenvolver as qualidades físicas dos seus alunos (o que não está mal), que esquece que, para praticar desporto, as qualidades físicas não bastam, pois que as qualidades morais são também indispensáveis. Temos de reconhecer que, embora as excepções, os professores são tentados, pelo sistema que os governa, a serem conservadores e conformistas, no que respeita a conteúdos. E muitos deles aderem, julgando que cumprem escrupulosamente os seus deveres profissionais.

Ora, por detrás da actividade docente dos professores de Educação Física e Desporto, há um corpo de conhecimentos científicos caquético, obsoleto, doentiamente envelhecido, contra o qual vêm lutando alguns profissionais desta área, mas que não conseguem ultrapassar a ignorância de muitos políticos, nem e a teimosia dos “especialistas” (?) que fazem e propõem os currículos escolares. E por que digo eu que “há um corpo de conhecimentos científicos caquético, obsoleto, doentiamente envelhecido”? Porque o paradigma por que se regem está declaradamente errado, ou seja, manifestam não saber que a área da educação física e desporto só como ciência social e humana pode entender-se, investigar-se, compreender-se.

Os órgãos da Comunicação Social, hoje, ocupam-se da crise financeira que abala o mundo. E ouvem, a propósito, alguns economistas e financeiros, lançando um grito de alarme: “O pior da relação entre os mercados financeiros e a economia real ainda está para vir. O paradigma não vai mudar, já mudou. O mundo é um grande mercado sem Estado de Direito”.

Augusto Mateus ponderou: “A actual crise já resulta de um novo paradigma económico, moldado por uma globalização financeira pouco regulada”. Sem fazer mais citações, julgo que todos elas abundam nesta opinião: o novo paradigma económico não tem valores de cooperação e solidariedade.

Com o desporto actual sucede outro tanto: há demasiada ausência de valores! Daí que, na escola, a Educação Física e o Desporto devam fazer dos valores um dos seus temas preferidos. Até por esta razão: sem valores, há golos e defesas, há passes e remates, há técnicas e tácticas – mas não há desporto!

Educar para o desporto é educar tendo em vista a complexidade humana e não só o físico e o biológico! Julgo que a primeira obrigação do árbitro é isto mesmo: defender os valores que animam o desporto! Porque, com eles, há lealdade, há companheirismo, há respeito pelo adversário.

Verdadeiramente, o árbitro, quando o é de facto, é um desportista exemplar, porque é o primeiro defensor da pureza da prática desportiva. E seria bom que as nossas alunas e os nossos alunos, desde jovens, se habituassem a respeitar o árbitro, porque na escola aprenderam que o desporto, sem valores, não é desporto! Educar para o desporto é educar para valores!

O futebol é uma modalidade desportiva como as demais. Deve ter por isso uma missão prioritária: promover a formação de valores. Bem antes ainda do desenvolvimento das qualidades físicas! Aliás, eu tenho, para mim que, na alta competição, o treinador, antes dos treinos, deve fazer a si mesmo a seguinte questão: qual o tipo de homem que eu quero que nasça do treino que vou liderar? Porque é com valores e com homens com valores que o desporto tem rosto humano!


*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

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Para quê a Filosofia?

São muitos os que questionam, por vezes desdenhosamente: para quê a Filosofia? Nunca lhes passou pela cabeça interrogarem: para quê a Geologia, ou a Matemática, ou a Física, ou a Geografia?…

A Filosofia exige profunda reflexão e, nos dias em que vivemos, reflectir parece-nos algo de perfeitamente inútil. Imaginemos que uma pessoa pergunta: que horas são? Se substituir esta pergunta por estoutra: o que é o tempo? Só filosofando poderá encontrar o caminho da resposta.

Suponhamos ainda que uma pessoa é habitualmente mentirosa. Se alguém, a propósito, perguntar: o que é a verdade? Também só filosofando poderá aproximar-se de uma resposta. Por vezes, quando me questionam: para que serve a Filosofia? Sou tentado a responder: para não aceitar como óbvias e evidentes todas as coisas, todas as ideias, todas as atitudes, sem uma profunda reflexão.

A fundamentação teórica e prática do Homem, da vida, da Sociedade e da História: eis aí a grande função da Filosofia – que não é ciência, mas uma reflexão crítica sobre os procedimentos e os conceitos científicos; que não é religião, mas uma reflexão crítica sobre as origens e as formas das crenças religiosas; que não é sociologia nem psicologia, mas uma interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. É útil, ou inútil, a Filosofia?

Num tempo, como o nosso, onde não há tempo para a reflexão, a Filosofia defende o direito de ser inútil. Platão definia a Filosofia como o verdadeiro saber, o qual deverá aplicar-se em benefício dos seres humanos. Descartes afirmava que a Filosofia é o estudo da sabedoria, para que os seres humanos melhor vivam, alcancem a saúde e descubram novas artes e novas técnicas. Kant ensinou que a filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma, para saber o que pode conhecer, o que deve fazer, visando a felicidade humana. Marx declarou que a Filosofia havia passado demasiado tempo, contemplando o mundo e que era tempo de transformá-lo. Marx queria dizer, na sua, que é preciso des-construir a sociedade injusta e que, para tanto, as palavras não bastam. Merleau-Ponty referiu que a Filosofia é um despertar, para ver mais e transformar para melhor o nosso mundo. Só transformando poderemos ser plenamente conscientes de nós mesmos. Como se vê, tudo inutilidades…

Os jornais, a rádio, a televisão, a internet, os telefones móveis, as tecnologias digitais proclamam, sem cansaço, que estamos no rumo certo, em direcção às Sociedades do Conhecimento da Idade da Informação. Filosoficamente, nasce a dúvida metódica: será que todos se encontram no caminho certo, para as Sociedades do Conhecimento?

A Constituição da Unesco sublinha a nítida ligação entre a dignidade humana e “a ampla difusão de cultura e a educação da humanidade, para a justiça, liberdade e paz”. Assim, os direitos e as liberdades fundamentais situam-se, inevitavelmente, no seio das Sociedades do Conhecimento. Foi Peter Drucker que criou, em 1969, o termo “sociedade do conhecimento” (cfr. The Age of Discontinuity Guidelines to our Changing Society, Harper & Row, Nova Iorque). Só que a implementação da “sociedade do conhecimento” supõe educação ao longo da vida e… para todos!

“Interrogar a nossa condição humana é (…) interrogar primeiro a nossa situação no mundo. Uma afluência de conhecimentos, nos finais do século XX, permite aclarar de um modo completamente novo a situação do ser humano, no universo”. Daí que não será exagero adiantar que a Sociedade do Conhecimento não está no horizonte de todas as pessoas, de todos os povos. Passo agora a palavra a Edgar Morin: “O século XXI deverá abandonar a visão unilateral, definindo o ser humano pela racionalidade (homo sapiens), ou pela técnica (homo faber), ou pelas actividades utilitárias (homo oeconomicus), ou pelas necessidades obrigatórias (homo prosaicus). O ser humano é complexo (…). O homem da racionalidade é também o da afectividade, do mito e do delírio. O homem do trabalho é também o homem do jogo. O homem empírico é também o homem imaginário. O homem da economia é também o do consumo” (Os Sete Saberes para a Educação do Futuro, Instituto Piaget, 2002).

Para quê a Filosofia? Para que o código genético da Sociedade do Conhecimento seja povoado de interrogações, na boca de todos; para que não seja impossível questionar os ditadores (que os há também, na velha democracia em que vivemos); para que ninguém falte ao encontro marcado com a liberdade, “porque não há machado que corte a raiz ao pensamento”. Para quê a Filosofia? Para que as palavras voltem a ter significado, na práxis de emancipação de todos e de cada um! Para que o conhecimento científico seja pensado, como merece!

Segundo Luc Ferry, no seu livro Aprender a Viver (Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2009, pp. 23 ss.) são três as dimensões da filosofia: a inteligência daquilo que é (teoria), a sede de justiça (ética) e a busca da salvação (sabedoria). No caso particular do “desporto-rei”, importa perguntar também: o que é o futebol? Trata-se de um desporto e, como tal, um aspecto particular da motricidade humana.

Ora, o ser humano em movimento intencional há-de distinguir-se por uma filosofia, isto é, por uma inteligência, por uma ética e por uma sabedoria. Para que o futebol tenha sentido – para que o futebol se transforme num exemplo de militância cívica. Mesmo nos anos fatigados em que as chamas do inconformismo começam a esmorecer, é preciso acreditar que o futebol é uma lição de obra colectiva, visando um mundo diferente.

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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Teoria Crítica e Desporto

Dois termos fundamentais ressaltam da Teoria Crítica (Escola de Francoforte): o esclarecimento e a emancipação. Há quem acuse os filósofos desta Escola de um pronunciado hegelianismo, hipervalorizando a ideia como elemento actuante na História e, assim, de retorno ao idealismo. O que se passava, porém, é que alguns filósofos, como Adorno, Horkheimer, Benjamim, Marcuse, Erich Fromm e o próprio Habermas, viam na emancipação da razão a emancipação da própria sociedade. Não viam na Filosofia tão-só um processo de compreensão, mas também um processo de atuação.

Eram todos “iluministas”, ao seu modo, mas paradoxalmente destacaram-se por uma crítica frontal a toda a herança cultural do projecto iluminista da modernidade, fundamentado na razão e na ciência e que, segundo eles, se transformou em força de opressão e de alienação. Theodor Adorno, no livro Educação e Emancipação (Paz e Terra, S.Paulo, l995) escreve, depois de sublinhar que a função do desporto ainda não foi devidamente analisada por uma psicologia social e crítica: “O desporto é ambíguo. Por um lado ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao racismo, por intermédio do fair-play, do cavalheirismo, do respeito pelo mais fraco. Por outro, em algumas das suas modalidades e procedimentos, ele pode estimular a agressão, a brutalidade, o retrocesso, principalmente no caso dos espectadores e até dirigentes, que não conhecem as grandes conquistas do processo histórico” (pp.l26).

Para este filósofo, a ausência de teoria e de reflexão é uma das características mais visíveis do nosso tempo e, por isso, do desporto. Para ele, “a formação cultural e desportiva converte-se agora numa semi-formação socializada, na omnipresença do espírito alienado” (p.389). Esta pseudo-formação decorre de um tempo que parece alfabetizar, mas… para que prevaleça o status quo! Um neo-liberalismo explorador, um sexualismo sem freios, uma violência omnipresente – parecem ser, hoje, coisas absolutamente normais.

Ora, alfabetizar é consciencializar. No próprio Direito do Desporto, esta modalidade (o futebol) deve entender-se, antes do mais, como cultura, como crítica radical ao que de incoerente e retrógrado apresenta a organização desportiva. As aulas, nos cursos universitários de desporto e nos cursos de treinadores, não podem resultar em mera “educação bancária” (Paulo Freire), mas em trabalho onde há prática e teoria, socialmente transformadoras; não podem ser apenas um processo biológico, mas também processo libertador.

O desporto, a dança, a ergonomia, a reabilitação hão-de ser uma provocação, visando o esclarecimento do mundo que nos rodeia. Hão-de ser, sobre o mais, consciencialização, decisão e compromisso. O futebol, ao alfabetizar corporalmente deve também transformar-se em crítica do mundo envolvente e recriação crítica do mundo a construir.

Pelo futebol (um exemplo, entre outros) o praticante, o técnico, o dirigente e o próprio espectador deverão sentir que se humanizam, num processo histórico de produção do homem pelo homem. A própria arquitectura jurídica do desporto deverá exprimir-se na combatividade do inconformado, diante da exploração, da opressão, da cobardia, da inércia, do absentismo.

Relembro aqui o que encontrei em Jurgen Habermas, no seu livro Pensamento Pós-Metafísico: “a racionalidade não tem tanto a ver com a posse do saber, mas com o modo como os sujeitos, capazes de falar e de agir, empregam esse mesmo saber” (p.69).

De que vale saber Anátomo-Fisiologia, Bioquímica, Psicologia, Sociologia, Direito, etc., etc., se a teoria não é esclarecimento e emancipação? Se o desporto não é educação problematizadora e transformadora? Não há desporto verdadeiro que não deva transformar-se em práxis, ou seja, teoria e prática, em acção empenhada! Embora o desporto, o mais publicitado e propagandeado, como o futebol, seja, muitas vezes, o que sabemos: um pretexto para abafar o pensamento crítico! Mesmo quando aplaudido por alguns políticos que se dizem progressistas, socialistas, ex-comunistas e ex-revolucionários.

Sou um apaixonado pelo futebol-espectáculo. Mas, como seria mais apaixonante ainda, numa sociedade mais justa, mais solidária, mais livre!

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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Carta aberta ao André Villas-Boas, treinador do F.C.Porto

Meu caro amigo,

esta carta parece, velada ou declaradamente, o resultado do mais puro oportunismo: o André é o mais que provável vencedor do Nacional de Futebol da Primeira Divisão e, digo-o sem receio, da Liga Europa; lidera uma das melhores equipas do futebol mundial – e cá estou eu a exibir o virtuosismo de um conhecimento que já é acessível a qualquer português amante do futebol. Ou seja, evitei prudentemente, há meses atrás, um prognóstico difícil, sobre o seu futuro, como treinador de futebol, e venho agora falar, de cátedra, do actual treinador do F.C.Porto.

Se assim fosse, as vozes dos profissionais da injúria não deixariam de retratar-me como personagem incómoda ou ridícula. Só que, contra a agressividade dos meus críticos, teria o André, ao meu lado. De facto, trabalhava o meu amigo na Académica de Coimbra, muito antes dos convites do Sporting e do Porto, e já eu lhe escrevia, sustentando que, num clube com as condições necessárias e suficientes, o André surgiria como um treinador de excepcional relevo e manifestando até insuspeitadas potencialidades.

Recordo que o surpreendeu o conteúdo da referida carta e foi lesto a telefonar-me:

“Gostava de saber por que me vê com um futuro brilhante, na profissão de treinador de futebol?”. E acrescentou ainda: “É que eu sinto que tenho tanto para aprender!”.

Libertando-me de uma linguagem esotérica, frequentemente exibicionista, respondi-lhe:

“Porque o meu amigo sabe liderar uma equipa, sabe comunicar com os jogadores que a constituem, sabe ler um jogo e vive de uma tensa e intensa vontade de vitória. Está aqui a base do êxito de um treinador de alta competição. Isto o que se vê, mesmo pela televisão. Com o apoio estrutural de um grande clube e com o que aprendeu com o José Mourinho, o meu amigo decuplicará o talento que mostra”.

Há poucos dias, numa das nossas conversas telefónicas, o André chegou mesmo a dizer-me: “O professor até acreditou em mim, antes de eu acreditar!”. Não é bem assim. Eu vejo o desporto e os desportistas com uma teoria que elaborei e que me norteia. Para mim, esta área do conhecimento, mais do que uma Actividade Física, é uma Actividade Humana, onde o físico-biológico se encontra integral, mas superado.

No futebol, portanto, o jogador deve desenvolver-se em equipa, sem ser reduzido à equipa. E assim o treinador, nos seus momentos de reflexão, poderá levantar, no mais íntimo de si mesmo, esta questão: qual o tipo de pessoa que eu quero que nasça dos jogadores que lidero? Reside aqui, no meu modesto entender, o momento essencial do treino.

É evidente que os livros de metodologia do treino (e são milhares, por esse mundo além) pouco se apercebem da intrínseca influência da preparação intelectual e moral de uma equipa. E, entre os factores de rendimento, dão ao físico-biológico lugar primacial. Ora, para mim, não só tudo é sistema, como só o sistema é real. Portanto, no treino, há que distinguir para associar e não separar para reduzir. Por isso, antes de tudo o mais, o jogador deve acreditar no que faz e transformar-se na expressão da fé que anima todo o clube, desde o mais humilde associado e funcionário até aos membros da Direcção. A crença gera biologia. O jogador que acredita que é um dos aspectos fundamentais da alma de um clube tem mais força e mais velocidade e mais resistência e mais impulsão etc. etc.

Meu querido amigo, não lhe falo de um anseio indefinido ou de uma superstição romântica – falo-lhe do espírito que deve animar um departamento de futebol profissional. Hoje, o próprio conhecimento científico é subjectivo-objectivo. O futebolista também está todo em tudo o que faz, mas o que dele sobrevive é a sua vontade de ser mais e de ser melhor.

Nada de novo lhe escrevi, nesta carta. É verdade! Tudo isto o meu amigo sabe, designadamente através da sua prática diária. Eu não passo de um simples teórico, mas que há 42 anos vem ensinando filosofia do desporto e aprendendo com o André e um ou outro colega seu, que fazem o favor de tentar dissipar muitas das minhas dúvidas.

O André está, entre os treinadores que eu conheci e conheço, ao lado dos que maior sensibilidade manifestam à necessidade de repensar o treino, à luz do pensamento complexo. Por isso, também no futebol a cultura é o primeiro factor de desenvolvimento. Leia um Camus, um Malraux, uma Hanna Arendt, uma Clarice Lispector, um Jorge Amado, uma Maria Zambrano, um Vergílio Ferreira, um Saramago, um Jorge Luís Borges e tantos mais; aprenda a saborear a arte de poetas como Pessoa, ou Sebastião da Gama, ou Sofia, ou Herberto Helder, ou Torga, ou Régio; escute atentamente a mensagem dos filósofos e dos sociólogos – e vai começar a saber mais de futebol!

O maior defeito dos técnicos da Fifa e da Uefa é abusarem de uma aturdidora profusão de palavras e sentirem-se incapazes das grandes sínteses que tentam compreender o humano. Ora, o futebol é, repito, uma Actividade Humana e onde, portanto, a vida tem mais força do que a lógica. Estudar futebol é, sobre o mais, aprender com a vida.

Por isso, meu amigo, se me der essa honra, vamos continuar a falar ao telefone. Para eu saber mais de futebol? Não sei se em Portugal haverá alguém que tenha lido mais obras, sobre futebol, do que eu. Só se for o Dr. Jorge Castelo. Na minha biblioteca de, em números redondos, 4000 livros, contam-se às dezenas! Eu consigo aprendo muito de futebol porque falamos de ciências de um novo tipo.

Quando um jogo começa, qual a ciência que explica o que se está a passar no campo? Eu chamo-lhe ciência da motricidade humana. Mas há tanta gente que me lança um olhar misericordioso, quando me ocupo destes assuntos. Resta-me a sua compreensão e a de alguns amigos. No meu caso, pode crer, a sua compreensão revigora-me: é que eu estou convicto que está a nascer, no meu amigo, um dos grandes treinadores do futebol português – e, neste mundo globalizado, que é o nosso, do futebol internacional.

Por fim, não escondo que o F.C.Porto de Jorge Nuno Pinto da Costa é o melhor seminário para ampliar e aprofundar o muito que o meu amigo sabe e é. Aconteceu o mesmo com o Dr. José Mourinho. Parecendo que não, a história deste Clube não é carismática, é estrutural.

Não findo esta carta sem felicitá-lo, pela sua vitória na Supertaça Cândido de Oliveira, no Nacional de Futebol da Primeira Divisão, na Taça da Europa e na Taça de Portugal. O meu amigo parece pertencer àquela categoria de homens, privilegiados da fortuna, profissionais do triunfo, que existem apenas para que o Mundo quotidianamente se ocupe deles. Que assim permaneça, durante muitos e muitos anos…

Seu

Manuel Sérgio
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.