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Mais dois passos do futebol feminino em busca do empate

Na quarta-feira da semana passada (02/09/2020) o futebol feminino brasileiro fez história: a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou que pela primeira vez, duas mulheres serão as novas coordenadoras no comando dos principais assuntos relacionados ao futebol feminino no país.

Duda Luizelli, diretora de futebol feminino do Internacional, passará a ficar à frente da Coordenação da Seleção Brasileira Feminina, enquanto Aline Pellegrino, ex-capitã da seleção brasileira e responsável pela modalidade na FBF (Federação Paulista de Futebol), assumirá o cargo de coordenadora de competições da modalidade do futebol feminino que atualmente são quatro: o Brasileiro Feminino A-1, o Brasileiro Feminino A-2, o Feminino Sub-18 e o Feminino Sub-16. Com vastos currículos e por terem provado muita competência, o anúncio foi feito pelo presidente da CBF, Rogério Caboclo, que classificou a nomeação de ambas como “memorável”.

Em suas próprias palavras, Caboclo reiterou a importância desse passo para a modalidade no Brasil: “A partir de hoje, o futebol feminino do Brasil estará nas mãos de quem sempre trabalhou com a bola dentro e fora do campo. Pessoas que conquistaram seu espaço por terem feito tudo que podiam enquanto jogaram e trabalharam para estarem aqui como dirigentes. Hoje, as mulheres ganharam seu espaço pela competência que tem”.

Além das nomeações, a CBF também fez história ao anunciar que as atletas da seleção feminina brasileira de futebol passarão a receber os mesmos valores pagos aos homens em premiações. Segundo Rogério, a definição já havia sido determinada em março deste ano, resultado de um esforço conjunto na batalha pelo reconhecimento de igualdade salarial entre as seleções feminina e masculina. Tanto os valores a serem recebidos durante as convocações diárias, como também os provenientes de conquistas ou etapas alcançadas em Olimpíadas passarão a serem os mesmos.

A notícia teve grande destaque em jornais internacionais, exaltando a conquista que as nossas jogadoras conseguiram após tantos anos de luta e preconceito. Para efeitos comparativos, foi realizado um levantamento em 2017 que escancarou a desigualdade existente até então: enquanto os homens ganhavam R$ 500,00 por dia da CBF durante o período de treinos, as mulheres recebiam apenas metade desse valor. Para jogos fora do país, a diferença ultrapassava mil reais.

Apesar da importância dessa conquista, a batalha ainda não está ganha. Por exemplo, não obstante a determinação que as premiações a serem pagas pelo desempenho das seleções feminina e masculina nos Jogos Olímpicos de 2021 serão equivalentes, na Copa do Mundo de 2022 a proporção paga será a mesma, mas o total pago, não. Isso ocorre porque a Fifa ainda destina valores muito maiores aos times masculinos.

De qualquer maneira, o cenário diante das nossas atletas soa cada dia mais animador. Na mesma ocasião desses anúncios, a técnica da seleção brasileira Pia Sundhage fez a primeira convocação para a equipe principal feminina após o adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio para julho de 2021, por causa da pandemia de covid-19. A convocação chamou atenção por conter apenas jogadoras que atuam no Brasil, para evitar viagens internacionais em meio à pandemia. A convocação é para participar apenas de um período de treinamentos na Granja Comary, em Teresópolis, de 14 a 22 de setembro, semana em que o Campeonato Brasileiro será pausado.

De fato, essas conquistas foram muito celebradas e bem-vindas na comunidade desportiva nacional. Esse avanço só foi possível após muita luta, força de vontade e coragem para enfrentar tantos desafios até hoje.

O caminho ainda é longo: os pagamentos ainda não são igualitários e a busca pela mesma visibilidade que a seleção masculina possui ainda é um objetivo a ser perseguido. Resta a conscientização e o resgate em massa do espírito de orgulho que sentimos por nossas atletas, que tanto tiveram destaque na última Copa do Mundo.

É essencial nos atentarmos para a força que o futebol feminino vem demonstrando – e que tem muito mais a demonstrar. É cristalino o potencial a ser explorado na prática, tanto em termos de descoberta de novos talentos e a valorização de atletas excepcionais, como de resultados financeiros práticos em patrocínios, marketing, comercialização de produtos oficiais etc.

E tudo isso é apenas o começo!

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Covid-19 e a influência no desempenho das equipes europeias

A pandemia provocada pelo vírus COVID-19 alterou drasticamente as condições do futebol competitivo em todo o mundo, com o cancelamento ou adiamento da maioria das competições em andamento. Entre fevereiro e março de 2020, como toda população, os jogadores profissionais de futebol tiveram suas vidas restringidas e aderiram ao isolamento social. Sem a previsão de retorno, as comissões técnicas dos clubes elaboraram protocolos de treinamento individuais com intuito de manter a aptidão física dos atletas1.

Por ser um jogo de equipe, manter a forma do atleta através do treinamento individual é um grande desafio, devido à dificuldade de adequar ao treino ações intensas específicas do futebol, como cabeceio, chutes, mudanças de direção, aceleração, desaceleração2. Além destes fatores, é muito difícil para o atleta ter a motivação necessária para manter diariamente uma intensidade satisfatória do treinamento prescrito a distância, sem a presença dos companheiros de equipe e comissão técnica.

Num segundo estágio, os jogadores começaram a treinar em pequenos grupos com estrita restrição de contato e o retorno aos campeonatos ocorreu após poucas semanas de preparação da equipe.

Fica evidente que os treinamentos aplicados durante a pandemia não foram suficientes para a preparação ideal do atleta, portanto, é esperada uma menor aptidão física, maior fadiga e elevado risco de lesões durante os jogos oficiais.

A mudança drástica que a pandemia trouxe em contextos “externos” como jogos, treinos e campeonatos, se fez também no “mundo interno” através dos pensamentos, sentimentos e comportamentos dos atletas e comissão técnica.

Um cenário completamente novo leva a mudanças transformadoras que modificam e influenciam a forma do indivíduo agir e reagir diante do que era habitual.

UEFA CHAMPIONS LEAGUE NA PANDEMIA

Paralisada em 11 de março, a Champions League retornou no dia 07 de agosto nas quartas de finais, com um novo formato, contendo sede única para as rodadas finais e partidas sem público. Classificados para esta fase estavam o Atalanta, Atlético de Madrid, Barcelona, Bayern de Munique, Lyon, Manchester City, Paris Saint-Germain e RBR Leipzig.

Os alemães Bayern de Munique e RBR Leipzig juntamente com os franceses Lyon e Paris Saint-Germain avançaram para as semifinais. Os alemães destacaram-se por sua organização tática e preparo físico enquanto os franceses pela qualidade técnica de seus jogadores. A final entre Paris Saint-Germain e Bayern de Munique foi realizada recentemente em 23/08, em que a equipe alemã sagrou-se campeã. 

O desempenho dos times alemães foi surpreendente, o novato RBR Leipzig chegou às quartas de finais eliminando um grande time espanhol, o Atlético de Madri e a campanha do Bayern de Munique foi irretocável, os números impressionaram, 11 jogos e 11 vitórias, primeiro clube a ganhar a campeonato com aproveitamento de 100%, 43 gols em 11 jogos, média de 3,91 gols por partida, a maior da história da Liga dos Campeões.

Vários fatores podem ter influenciado o sucesso dos alemães na competição, o principal é a volta às atividades coletivas relativa antecedência, se comparados aos adversários. Fatores como estratégias de treinamento adaptadas nas diferentes fases da pandemia e protocolos eficazes de segurança contra contaminação criaram um contexto para volta aos treinos e campeonatos, o que se acredita ter dado significativa vantagem às equipes alemãs.

Um fato interessante é que fora de campo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a Alemanha apresentou melhor enfretamento à COVID-19 em relação aos países dos times adversários nas quartas de finais: Itália, Inglaterra, França e Espanha, com menor número de mortos por milhão de habitantes, conforme demonstrado no infográfico ao lado.

O número de mortos na Alemanha é cerca de 7 vezes menor que no Reino Unido, 6 vezes que na Espanha e Itália e 4 vezes que na França.

Não há até o momento comprovação científica que a relação de óbitos pelo COVID-19 menor da Alemanha tenha trazido vantagens para o futebol, mas é possível conjecturar que este fato pode ter dado condições melhores de treinamento bem como maior tranquilidade para os atletas e familiares durante o ápice da pandemia na Europa.

Nessa capacidade do sistema nervoso de promover adaptações e superar situações difíceis reside a ajuda para lidar com as incertezas neste mundo em contínua mudança, fato que pode ter sido determinante para os alemães nesse confronto. Todo esse contexto pode ter propiciado melhores condições de treinos. No mundo esportivo, a tendência é que quanto mais e melhor se treina, mais bem preparado o atleta e toda uma equipe estará para enfrentar os desafios competitivos. Neurociência e desempenho costumam andar de mãos dadas.

Referências

1. Mohr M. et al. Return to elite football after the COVID-19 lockdown. Managing Sport and Leisure, 2020.

2. Bangsbo J. et al. Training and testing the elite athlete. Review. Journal of Exercise Science and Fitness, 2006.

1.Psic.: Teor. e Pesq. vol.17 no.2 Brasília May/Aug. 2001 – Artigo Plasticidade Neural: Relações com o Comportamento e Abordagens Experimentais.

HANSON, R. “O cérebro de Buda: neurociência prática para a felicidade.” (Tradução Bianca Albert) 1.ed São Paulo: Alaúde Editorial, 2012.

2.SWART, T. A neurociência da criatividade. Disponível em: <https://ssir.org/books/excerpts/entry/the_neuroscience_of_creativity#/>. Acesso em: 25 ago. 2020.

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Entre as pessoas e as coisas no futebol: uma (re) apresentação

Quando comecei a escrever para a Universidade do Futebol, em junho de 2018, logo no primeiro texto citei diretamente um dos assuntos que achava mais importantes à época, e que acho fundamental até hoje: isso que podemos chamar de processo de humanização no futebol. É um dos temas que persigo há algum tempo, ainda que seja uma busca menos preocupada com a chegada do que com o percurso. O que é saudável, claro.

Não faz muito tempo, recebi um convite do professor João Paulo Medina para organizar uma espécie de grupo de estudos próximo disso que se entende por um olhar mais humanizado do futebol. Claro que fiquei lisonjeado, porque acredito num tipo de futebol que existe em razão do humano – e não apesar dele. Mais do que isso, acredito que é importante que nos formemos a partir da humanidade, com agá minúsculo mesmo, mas também dentro das humanidades da humanidade: se, por um lado, tornar-se profissional do futebol é algo que se faz no mundo (portanto, se faz do lado de fora de nós mesmos), tornar-se profissional do futebol também é algo que se faz a partir de si, da própria subjetividade, da própria história, dos nossos próprios limites e das nossas próprias contradições (portanto, se faz do lado de dentro de nós mesmos). Tratar dessas coisas é algo de fato muito agradável. Ao mesmo tempo, é algo que carece de cuidado e, especialmente, de refinamento.

Por isso, pelo menos por enquanto momento, quando penso no processo de humanização – e naquilo que o acompanha – acho importante fazer alguns recortes. Neste texto, vamos fazer pelo menos três deles, sobre os quais podemos falar aos pouquinhos. Mas vamos ilustrá-los brevemente aqui:

– em primeiro lugar, embora não seja uma novidade, é de fato significativo que tenhamos normalizado o fato tratarmos as pessoas enquanto objetos.

Ou seja, ao invés de nos tratarmos como pessoas, dotadas de uma subjetividade intransferível, basicamente nos tratamos a partir de premissas mais objetivas (portanto gerais, universais), o que significa que nossas relações são cada vez mais utilitárias, uma vez que nos vemos como coisas, não como pessoas. Se quiser ir além, perceba que não isso significa apenas que tratamos os outros como objetos (geralmente para atingir os nossos próprios fins) mas, mais importante do que isso, tornou-se comum que tratemos a nós mesmos como objetos, empresas de nós mesmos (e, na mesma linha, descartáveis por nós mesmos). É claro que isso não nasce do chão, é fruto de um conjunto de ideias e de visões de mundo e, a meu ver, são justamente essas ideias e essas visões de mundo que devemos retorcer se acreditamos num futebol mais humanizado e, obviamente, se acreditamos que uma vida mais humanizado é mais significativa do que uma vida coisificada.

– em segundo lugar, me chama a atenção o quanto se fala do processo de humanização, o quanto se fala da importância de formar pessoas, ao invés de apenas atletas, da atenção que supostamente damos a isso tudo, das performances com que às vezes se fala disso tudo, mas que costumeiramente escondem que entende que falar do humano no futebol é um algo muito legal, é muito bonito, às vezes muito agradável, mas na verdade é mais um enfeite, um adorno, até mesmo um pedágio: é um discurso socialmente aceito, às vezes necessário para projetar uma certa imagem de bom-mocismo, ainda que nem sempre esteja comprometido com a prática.

Por isso, na vida vivida, me parece que o humano continua sendo um enfeite, um adorno, até mesmo um pedágio e, como às vezes acontece com os pedágios, pode ser um pedágio caro, que nem todos estão dispostos a pagar. Talvez seja importante decidirmos se queremos nos manter no campo dos discursos, ou se estamos de fato interessados em avançar, todos os dias, na articulação de uma vida mais humanizada, que reconhece e admira a humanidade do humano na mesma medida em que percebe que tratar da humanidade do humano no futebol não é um gasto, é uma necessidade: um atleta pela metade geralmente não será melhor do que um atleta inteiro. E, hoje em dia, estar pela metade é a regra.

– em terceiro lugar, em arrastamento do ponto anterior, me chama a atenção como sempre fica subentendido que quando tratamos do humano, ou quando tratamos das pessoas enquanto pessoas, e não como coisas, somos geralmente reduzidos a uma certa dimensão teórica, de articulações teóricas, de devaneios teóricos e que, por muitas vezes, seriam apenas e tão somente teóricos – mas insustentáveis na prática.

Não por acaso, geralmente encontramos alguma dificuldade em exercer a nossa humanidade na prática, especialmente em um tempo de tantos conteúdos técnicos, de tantas formações, de tanto conhecimento, de tanta informação… mas de tão pouca humanidade. Ou seja, mesmo sabendo que as nossas práticas, ainda que sejam práticas, podem ser estéreis, ocas, vazias no sentido que mais importa, nós preferimos que elas continuem assim do que investir tempo e energia no sentido de algo mais potente.

A boa notícia é que humanizar o futebol e a vida vivida não começam (e não terminam) em blá blá blás teóricos, mas é algo essencialmente prático, é uma forma de estar no mundo, de relacionar-se com o outro, de organizar um processo de treino, de aplicar um determinado treinamento, de olhar para nós mesmos, nossos atletas e colegas de trabalho, de abrir-se ao movimento do mundo, de fazer, de pensar, de sentir. Este, aliás, é um ponto prático de atenção: se normalizamos apenas uma ou duas formas de estar no mundo, como as pessoas não-normativas (não raro geniais), que fogem à norma, podem ser quem são? Como esperar que pássaros voem em gaiolas pequenas? É preciso criar normas, mas também é preciso recriá-las.

Para isso, neste primeiro momento, convidei sete pessoas para ampliar meus próprios limites e os limites deste debate: Aline Castro, Annie Kopanakis, Gabriel Puopolo, Gabriela Montesano, Luis Felipe Nogueira, Lucas Leonardo, Thais Toledo. São elas que, por ora, dividem comigo o espaço deste grupo, no qual nos propomos a um falar e um fazer no futebol (é o que nos une, afinal), mas um falar e um fazer por um olhar humanizado, plural, contingente, imanente – dentro e através de todos esses entes, de todos esses ismos, de áreas diferentes, com histórias diferentes. É um pouco do que gostaria de propor a cada semana de agora em diante.

E claro que contamos com vocês nessa jornada.

Continuamos em breve.

***

PS: Daqui em diante, todos os textos meus na Universidade do Futebol são dedicados à memória da querida colega Leticia Fava, que partiu tão cedo, mas que deixa com a gente memórias de muita atenção e de muito carinho, que sempre guardamos em todos os momentos. 

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O que tem de errado no Palmeiras?

O torcedor do Palmeiras não está satisfeito. E isso por si só já mostra uma evolução na maneira de ver futebol. Não é possível falar que não há resultado no trabalho de Vanderlei Luxemburgo. Porém a torcida já não se contenta “só” com isso. É preciso mais. A cobrança é por desempenho. Por um melhor rendimento. Por isso me alegro em ver essas críticas vindas da arquibancada, hoje virtual. O ganhar por ganhar já não basta. Estamos crescendo!


O futebol tem muitos elementos e a generalização não combina com uma análise mais aprofundada. Isso porque dizer simplesmente que o trabalho de Luxemburgo é ruim fica raso, superficial e não condizente com a verdade. Prefiro apontar que o time tem hoje uma séria dificuldade na construção ofensiva. Mas reconheço que a defesa é muito sólida, que há um mérito em colocar jovens para jogar e que a gestão do ambiente é bem feita por toda a comissão técnica. Viu, como não dá pra chegar e falar que tudo é ruim?


O problema do ataque do Palmeiras existe, mas ele fica potencializado porque o clube investiu alto em nomes para esse setor. A afirmação frequente é: com esses jogadores era pra jogar melhor. Novamente, recorro a questão da complexidade. É claro que o Palmeiras tem bons jogadores. Mas eles estão no lugar certo e na hora certa? E aqui não me refiro a posição dentro de campo, e sim transcendo para falar do clube como um todo. Qual o grau de ‘fome’ de alguns jogadores do elenco? O ‘ciclo’ de alguns já teria que ter chegado ao fim para o bem deles mesmo e do próprio Palmeiras?

Analisando grandes vencedores no futebol mundial vemos sempre uma oxigenação em seus elencos de um ano para o outro. O Palmeiras foi ‘obrigado’ a reformular seu elenco, mas sem ser algo pensado para o sucesso. Foi forçado e natural ao mesmo tempo. Explico: forçado porque jogadores caros, que não eram titulares, foram negociados. E natural porque uma molecada excelente vinda da base teria que ganhar espaço por razões óbvias de qualidade acima da média está cada vez mais no campo.

Um time vencedor não é composto necessariamente pelos melhores jogadores. Analisar o momento de cada um, o que eles já ofereceram e ainda podem – ou não – oferecer, enxergar e diferenciar potencial de crescimento e tendência a zona de conforto, enfim, são vários fatores a serem analisados na formatação de um elenco. Há uma carência de ideias ofensivas no trabalho de Vanderlei Luxemburgo. Entretanto o problema pode estar não apenas no treinador.

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O bom jogador de hoje

Quando somos crianças e jogamos futebol nos mais diversos ambientes, o melhor da turma é aquele que tem o gesto técnico mais bonito, mais apurado: o melhor é aquele que dribla mais, que chuta melhor, que faz mais gols e etc. Se pegarmos o futebol profissional “antigo” – de cerca de quinze, vinte anos atrás – isso quase sempre também acontecia. O grande jogador era aquele que mais aparecia pra torcida, que dava ‘caneta’ nos adversário, que dava chapéu e por aí vai.
Essa máxima não se alterou por completo. Explico: o talento sempre vai prevalecer. O jogador que desequilibra será bem-vindo no futebol de qualquer época. Mas duas coisas importantes mudaram: esse jogador talentoso passou a ser ainda mais reverenciado quando usa sua técnica em prol da equipe e aquele jogador que pouco aparecia, que não tinha um jeito de tocar na bola e até de correr tão plasticamente dentro do padrão, mas que apresenta uma eficácia gigantesca pra resolver problemas, passou a ser mais valorizado.
O contexto tecnológico nos permite observar jogos e jogadores do mundo todo. É possível contabilizar jogadas e movimentos com e sem a bola de todos. E mais: se algum lance nos impressiona voltamos rapidamente a imagem e destrinchamos todos os pormenores. Diferentemente de antes que um “olheiro”, por exemplo, ia pelos campos desse mundo e tinha uma, no máximo, duas impressões do jogador.
Esse avanço na análise nos leva a saber quais jogadores resolvem os problemas de maneira mais eficaz em todas as fases do jogo. Nos permite observar quem faz a leitura correta das jogadas. Conseguimos saber quem toma as melhores decisões. Quem se comunica melhor com o jogo, companheiros de equipe e tira vantagem disso diante dos adversários. Com isso, os treinamentos tendem a evoluir e se não é possível e talvez nem mais necessário aprimorar o gesto técnico em sua plasticidade é totalmente inteligente criar mecanismos para os jogadores terem respostas mais rápidas e eficientes ao que o jogo apresenta.
Esse ponto específico da tecnologia com o avanço da análise quantitativa e qualitativa é um fractal de vários aspectos do jogo que mudaram. Há inúmeros outros. Mas a valorização de jogadores que no “futebol antigo” eram tidos, talvez, como ‘desengonçados’  ao correr, passar, driblar e chutar, mas que com um olhar mais criterioso e amplo nos revelam coisas surpreendentemente positivas e complexas é uma das grandes vitórias do futebol tido como moderno.

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O conteúdo construtivo

Dia desses recebi um link de um grande portal de notícias que falava sobre a queda de audiência dos canais por assinatura especializados em esportes. Em época de isolamento social, com os campeonatos paralisados e os atletas em quarentena, e ao passo que crescem as novas mídias e o envolvimento com as redes sociais, era natural que o número de pessoas ligadas na TV diminuísse. Entretanto, a queda deste número nos leva a repensar o futebol enquanto da sua gestão e marketing.

Em primeiro lugar, o conteúdo do futebol é infinito, haja vista o sucesso de audiência dos jogos antigos e todas as discussões que são levantadas em torno das reprises. Análises, reflexões, o que era bom e o que não era. O que podia ter sido feito de diferente e o que não. Percebem-se debates de muito fundamento e que nos dão a oportunidade para um olhar crítico sobre o cenário atual.

Ao mesmo tempo, nos faz refletir sobre as rasas discussões que acontecem na maioria dos programas esportivos nas grandes mídias de massa: rádio e televisão. Debates que não levam nada a lugar algum, que querem prever o futuro, que não analisam, não refletem, só exploram e ficam em cima dos problemas, não propõem soluções e, com isso, não agregam, não constróem, não servem – nos dois sentidos, o de trabalhar em favor de e o de encarregar-se de algo – à sociedade.

É necessário que o futebol, através das entidades de administrações da modalidade (federações e confederação) e das instituições de prática esportiva (clubes), reflitam sobre os seus papéis. Como o futebol quer ser visto? Como os clubes e as federações querem ser lembrados? Geradores da discórdia, da intriga, da malícia, do tráfico de influência e do jogo de interesses? A cada dia notamos mais de tudo isso nas ligações de poder em todos os setores deste país, o que acaba por gerar mais desgosto e ojeriza entre todos. Certamente não querem ser lembrados assim.

 

Garrincha no início dos anos 1960 ao lado de crianças após um treino do Botafogo FR. (Foto: Reprodução/Divulgação)

 

Nestes tempos em que tudo está parado é oportunidade para romper paradigmas, pensar diferente e crescer. Seguir adiante e em frente, que é o sentido da vida. É natural. Impossível pensar o Brasil sem o futebol, elemento fundamental na formação da nossa identidade nacional.

Com tudo isso, numa época em que os nossos valores e a nossa nacionalidade estão abalados com tanta intransigência e intolerância, o esporte que tanto amamos possui uma boa parte no dever da recondução para que se construa o país que realmente queremos: justo e sustentável. Que o bom senso e o respeito sejam indiscutíveis e inegociáveis. A partir daí não há dúvidas de que o conteúdo gerado será de muito mais valia, críticos capazes de gerar as inquietações necessárias às transformações que tanto queremos.

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Em tempo, uma citação que se relaciona com esta semana do 21 de Abril:

Se todos quisermos, poderemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-lo.”
Joaquim José da Silva Xavier, o ‘Tiradentes’ (1746-1792),
rtir da Independência do Brasil e herói da Inconfidência.

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Sobre os jogos do passado e o risco do anacronismo

O Brasil de 1970: um desses times para muito além do anacronismo. (Foto: Divulgação/Reprodução: Daily Maverick)

 
Outro dia, no meu perfil numa dessas redes sociais, escrevi rapidamente sobre este hábito, especialmente cultivado em razão da quarentena, de analisar jogos antigos, de clubes e seleções. É uma questão não exatamente problemática em si: pelo contrário, eu mesmo tenho assistido e produzido algum material sobre alguns desses jogos. Até porque, como disse o Ángel Cappa, treinador argentino, citado lá no Pep Guardiola: A Evolução, “o futebol do futuro está no passado”.
É claro que uma frase dessas acaba sendo capciosa, porque pode sugerir um certo saudosismo – o que não é verdade. Os que leem as coisas que eu escrevo sabem que, a meu ver, muito disso que se chama, às vezes com uma certa ansiedade, de ‘futebol moderno’, pode ser menos ‘moderno’ do que parece, menos ‘evoluído’ do que parece. Pode ser uma mera aparência, uma ressignificação própria deste tempo, às vezes refém de interpretações potencialmente equivocadas. É aqui, aliás, que gostaria de traçar alguns limites nessas análises de jogos do passado.
Basicamente, há dois riscos muito evidentes nessas aventuras: vamos chamar o primeiro problema de problema da profundidade. E vamos chamar o segundo problema de problema do anacronismo. Eles não estão separados.
No caso do problema da profundidade, o que fica subentendido (ou, às vezes, o que é dito literalmente) é que não havia muito conhecimento e, portanto, não havia muita ‘profundidade’ nas análises e no entendimento do futebol que se tinha no passado – como se tudo o que se disse e tudo o que se fez fosse apenas um amontado de crendices e superstições, que não teriam nenhuma validade hoje em dia. Ao mesmo tempo, também fica subentendido que a nova geração de analistas, treinadores e profissionais do futebol em geral, da qual nós supostamente fazemos parte, essa sim estaria preparada com ferramentas adequadas de conhecimento, seria capaz de enxergar mais e melhor do que os ‘antigos’ e, portanto, teria mais ‘profundidade’ no entendimento do jogo em comparação a um passado não muito distante.
Sinceramente, é um raciocínio que me soa pretensioso e absurdo em muitos níveis. Mas gostaria de chamar a atenção especialmente para um ponto: uma das grandes diferenças no processo formativo das novas gerações que trabalham com futebol talvez esteja nisso que chamamos de processos formais de ensino-aprendizagem. Hoje, tanto treinadores quanto analistas de desempenho, preparadores físicos, gestores, jornalistas e curiosos têm à sua disposição cursos e mais cursos formais, nos quais geralmente há uma literatura disponível para pesquisa, registros escritos do que se pretende discutir. Num passado recente, há cerca de vinte anos, isso não era uma prioridade, o saber de treinadores e profissionais em geral era, via de regra, um saber da experiência. O que fica subentendido em algumas dessas análises que não me descem muito bem é que os saberes formais são muito mais importantes e significativos do que o saber da experiência, e que aqueles que se baseiam nas próprias experiências seriam, automaticamente, exemplos de ‘atraso’ e de ‘superficialidade’ (um equívoco enorme, mas não vou me alongar neste ponto por aqui).
É justamente a pretensão decorrente de um ou outro processo formal de aprendizagem, associada com uma certa ansiedade profissional (de mostrar, o mais rápido possível, que não fazemos parte do grupo dos ‘atrasados’), que faz aparecer o segundo problema, que é o problema do anacronismo. Basicamente, o sujeito anacrônico é aquele que alimenta expectativas e projeta cenários de uma dada época para outra. E quando não as encontra, julga a outra época a partir da régua do seu próprio tempo. Isso fica claro quando se diz, por exemplo, que uma equipe X era ‘desorganizada’, que uma equipe Y ‘não tinha amplitude’ ou que um atleta Z foi profissional numa época em que ‘era mais fácil jogar futebol’. É claro que o sujeito que assiste regularmente ao futebol de hoje pode sentir-se desconfortável ao assistir um jogo antigo, como um jovem guitarrista de hoje em dia talvez ache lenta uma melodia do Jimi Hendrix, ou um jovem cineasta ache enfadonho um filme do Ingman Bergman. Mas o problema não está no jogo, nem na música, nem no filme: está no vício adquirido pelos nossos olhos, pelos nossos ouvidos e pelo nosso corpo, demasiado acostumados a certos estímulos, e incapazes de simplesmente apreciar os outros sem julgá-los (erradamente) pela régua do nosso tempo.
Aqui, aliás, está um ponto bastante central, que posso até retomar em breve: é preciso um certo cuidado para não transformarmos impressões subjetivas em supostas verdades absolutas (exemplo: o ‘futebol antigo’ era mais ‘lento’). Se defendermos, como parece que queremos defender, uma superação disso que chamamos de inatismo e disso que chamamos de empirismo, se queremos realmente investir em métodos e pedagogias baseadas nisso que chamamos de interacionismo, então precisamos considerar que o conhecimento se faz na inter-ação, na relação sujeito/objeto, de modo que o olhar e a ação dos sujeitos não devem ser ignorados, mas são determinantes na construção dos nossos conhecimentos. Daí que seja um absurdo, aliás, sugerir que o futebol deve se apoiar somente na ‘objetividade’ – é um entendimento deturpado do que significa construir conhecimento e, na mesma esteira, das atribuições humanas na articulação de conhecimento numa sociedade encharcada de informação, como é a nossa.
Mas sobre isso, falamos em breve.
 

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Força mental no futebol

É possível analisar um jogo de futebol a partir de várias maneiras e pontos de vista. Podemos falar da parte técnica, tática, física, emocional e até social, espiritual e daí por diante. Nunca julgo o que é certo ou errado. Prefiro olhar o que funciona e o que não funciona. Até o que é bonito e feio é relativo pois depende de conceitos pré-estabelecidos por cada um.
Um ponto que para mim tem grande relevância e em vários momentos das discussões é deixado de lado é o aspecto mental do jogo. A personalidade de um jogador, de um técnico e até a personalidade coletiva de uma equipe é fundamental para o resultado final. Em campo se vê o lado mais marcante de cada um. E isso pode ser positivo, mas também negativo. Se é em campo o que se é na vida. Por exemplo, um jogador quando pressionado irá reagir dentro das quatro linhas da mesma maneira que reagirá na vida pessoal quando também estiver pressionado, independentemente da natureza dessa pressão.
Fazendo um exercício prático disso que estou colocando: Romário seria o centroavante que foi se tivesse uma maneira diferente de encarar a vida? Ou ainda Emerson Sheik faria o que fez na final da Libertadores de 2012 pelo Corinthians contra o Boca Juniors se fosse uma pessoa acanhada e tímida? Eu poderia citar inúmeros exemplos, não só esses de reações positivas, mas também outros de jogadores que se apequenam e somem frente a situações-problemas do jogo.
Uma equipe é campeã por inúmeros fatores e o emocional é um deles. Procurar entender o comportamento global de um jogador é fundamental para decidir contratá-lo ou não. Um atleta é bom de fato quando responde de maneira assertiva as situações que para ele se apresentam. Muitas vezes, vai decidir partidas e campeonatos não o que tem o gesto técnico mais apurado e sim aquele que tem uma mentalidade forte e inabalável.
 

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Relacionamentos duradouros

Durante esta época de quarentena é comum este colunista estar à frente da TV, que está por reprisar jogos antigos. É bacana porque o telespectador não se lembra apenas do jogo, mas onde estava, com quem, qual era o contexto e as situações. São incontáveis as recordações que estas reprises despertam. O romantismo vem à tona e são inevitáveis as comparações: que naqueles tempos as coisas eram de um jeito e hoje são de outro.

Para um comunicador do esporte, algo que chama a atenção são as marcas envolvidas no futebol em outros tempos. Não as das placas de publicidade, mas nas camisas dos clubes. Relacionamentos duradouros entre marcas e clubes são vínculos até hoje lembrados e celebrados como exemplos de “marketing esportivo”, mesmo sabendo que isso é apenas uma – muito – pequena parte do que se entende como “marketing esportivo”! Dizem que havia um trabalho de relações públicas por trás disso tudo, blá, blá, blá, tal e coisa, coisa e tal, havia já a ativação, dentre outros instrumentos de comunicação. Feito um exercício de raciocínio, percebe-se que passos mais firmes neste trabalho foram dados no final dos anos 1980. Em outras modalidades, sim, o extinto Banco Nacional valeu-se muito de Ayrton Senna nas ações de comunicação.

Entretanto tudo era muito novo naquela altura e o potencial comercial que o futebol proporcionava era pouco conhecido e explorado, uma vez que estava muito mais sob controle de gestões amadoras e voltadas “pra dentro”, não para o mercado. Estas marcas expostas nas camisas por várias temporadas seguidas – popularmente conhecido como “patrocínio master” – eram sim para exposição da marca e exploração comercial, mas realizados mais através de contatos internos dos próprios clubes do que propriamente um plano estratégico para colaborar com as imagens da instituição esportiva e da marca patrocinadora.

Flamengo e Corinthians de 1993 com patrocinadores exemplos de “relacionamentos duradouros”. (Foto: Reprodução/Divulgação)

 

Com o passar do tempo percebe-se que o interesse neste “patrocínio master” pelo setor privado adquiriu uma nova dinâmica. Está cada vez mais difícil obtê-lo. Levantam-se algumas hipóteses do porquê disso: que o futebol está cada vez mais caro, que o retorno é baixo por conta das possibilidades de comunicação entre patrocinador e patrocinado, além da falta de instrumentos de governança nas entidades esportivas que promovam a transparência necessária para que a empresa saiba onde o recurso financeiro que ela fornece está sendo investido.

Com tudo isso, é muito bonito lembrarmos as camisas e as marcas daqueles relacionamentos duradouros. Entretanto, não nos iludamos que muitos daqueles relacionamentos eram espécie de encontros arranjados, contatos internos dentro dos próprios clubes. A marca da empresa era promovida, mas a do clube, não. Especialistas do amor e conselheiros amorosos dizem que a base da duração em um relacionamento é a confiança mútua. Hoje são raros estes relacionamentos duradouros.

Então alguma coisa tem que mudar.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

De modo algum; nós desafiamos o agouro; há uma providência especial na queda de um pardal. Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo: se ninguém conhece aquilo que aqui deixa, que importa deixá-lo um pouco antes? Seja o que for!
Hamlet (Shakespeare)

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Sobre os jogos não assistidos (e as coisas que não sei)

Inglaterra de 1966: um exemplo das (várias) equipes que ainda não vi – mas que também me formam. (Foto: Divulgação/Reprodução: diário Mirror)

 
Foi na semana passada, acho que quarta ou quinta-feira, que me apareceu um dos textos mais bonitos a que tive acesso nessa quarentena: este breve ensaio do escritor espanhol Arturo Pérez-Revarte, publicado aqui no Brasil por este excelente caderno virtual que é o Estado da Arte, do Estadão.
Ao longo do texto, o autor vai desenhando um caminho que lembra não apenas dos livros que leu e que lhe formaram ao longo da vida, mas especialmente dos livros que não leu. Sendo que os livros que ele não leu (e que provavelmente não lerá) foram e são tão importantes na sua formação quanto aqueles que já estão lidos. Repare, aliás, no recorte neste ‘livros que não leu’: não se trata apenas dos livros que sabemos que existem mas que não estão conosco. Na verdade, se trata especialmente dos livros que sabemos que existem, que compramos ou pegamos emprestado (ou qualquer outra coisa), que ficam na nossa biblioteca por dias, semanas e anos e que, mesmo assim, acabamos não lendo.
É mais ou menos o que ele diz aqui:
“Quando compreendi que nunca leria todos os livros que gostaria de ler, e aceitei essa realidade com resignada melancolia, mudou minha vida de leitor. Fez-se mais plena e madura, do mesmo modo em que, na primeira guerra que eu conheci, reconhecer que eu também poderia morrer mudou minha forma de ver o mundo. Os livros que eu nunca lerei me definem e me enriquecem tanto como aqueles que eu li.”
O texto inteiro é muito bonito, mas especialmente essa parte é muito significativa. Não pude deixar de pensar neste período em que todos nós, profissionais do futebol em geral, temos assistido alguns ou vários jogos do passado. Seja como passatempo ou como ferramenta de estudo consciente, nos está sendo dada a chance tanto de assistir a jogos que já havíamos visto (agora, com outros olhos) como também de assistir a jogos e equipes que ainda não havíamos visto, talvez não como gostaríamos, mas que, de alguma forma, fizeram e fazem parte da nossa própria formação. E ainda que nos seja possível viver ou reviver esses momentos, é claro que o tempo de vida que nos resta (aliás, é impossível não reconhecer a nossa fragilidade humana, especialmente neste período sombrio) não será suficiente para assistirmos a todos os jogos ou todas as equipes ou todos os atletas que gostaríamos de assistir. A nossa formação é e será pela metade, nunca será por inteiro e – aqui está o ponto em que devemos nos apoiar – isso não é um problema, mas é precisamente a chave de uma vida com sentido. Afinal, do que vive uma vida já completa?
Se não podemos assistir a todos os jogos, nem ler todos os livros, nem escrever todos os textos, nem conhecer todas as pessoas e, portanto, nem fazer tudo o que gostaríamos de fazer, então o nosso processo formativo, profissional e existencial, não precisa se voltar para um ponto de chegada, para um determinado cais, porque ele acontece no caminho, entremeado, acontece pelo meio. Lendo o ‘Variações Sobre o Prazer’, do Rubem Alves, no dia em que escrevo esta coluna, encontro uma citação do Guimarães Rosa, neste livro estupendo que é o Grande Sertão: Veredas, que traduz muito melhor do que eu isso que quero dizer. “O real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia…”
Neste período de tanta incerteza, em que seguimos em frente sem muita convicção, talvez seja importante admitirmos este outro lado, e inclusive procurar a beleza nele, pois nós não nos fazemos e não nos faremos (no futebol ou em qualquer outro lugar) somente pelas coisas que temos conosco – o que temos, afinal, é muito pouco. As coisas que sabemos são muito breves perto da infinitude do saber, a nossa grandeza às vezes é muito mais compridez (o Fernando Pessoa disse algo assim, não?) e talvez o nosso peso seja breve perto do peso do mundo. Mas veja bem: isso não é motivo de lamento! É motivo de profunda admiração. As coisas que eu não sei me fazem tanto quanto as (poucas) coisas que eu sei. Se soubesse mais, talvez eu seria menos.
E admirando o que nos falta, talvez encontremos a nós mesmos.