No futebol contemporâneo, globalizado e acessível a todos que queiram aprender e evoluir, as informações e tendências circulam muito rápido. Com uma pouca pitada de esforço e curiosidade é possível acompanhar o que os melhores treinadores do mundo fazem e criam. Mas mesmo assim, o futebol brasileiro ainda evolui em um ritmo muito lento se comparado aos demais. Talvez porque a grosso modo ainda não tenhamos tanta curiosidade. Ou podemos ter sede de aprender, mas não beber das fontes corretas de conhecimento, aquelas realmente capazes de fazer nosso futebol melhorar. Podemos, em algum momento, ter a dose certa do desejo de aprender, adquirir conhecimentos válidos, porém pecar na interpretação e implementação dessas informações. Enfim, mesmo com um nível absurdo e inédito de conhecimento disponível, o nosso futebol parece estar sempre defasado ao que de melhor acontece na elite mundial.
Claro que tudo isso se dá por muitos fatores. Mas tenho observado alguns que tem me chamado a atenção. Há alguns anos passamos a devorar a literatura portuguesa, por exemplo. Entretanto com um pouco de atraso. Quando José Mourinho explodiu no cenário mundial obras e mais obras foram produzidas a respeito das ideias e principalmente da metodologia que ele usava para transporta-las do treino para o jogo. Só que esse atraso, somado a dificuldade até natural de absorver uma nova forma de enxergar complexamente o jogo e adaptá-la as especificidades do cenário brasileiro, fez com que não acompanhassemos essas tendências em tempo real.
Na prática, ainda estamos falando de modelo de jogo, princípios e sub-princípios de ataque, defesa e transições, sendo que a nata do futebol mundial está em um outro patamar. Ao passo que ainda tentamos enxergar no jogo amplitude, profundidade, compactação e etc, os melhores técnicos do mundo trabalham do indivíduo para coletivo. Explico: o foco hoje está em formar jogadores mais inteligentes, que resolvam os problemas do jogo com a máxima eficácia e menor gasto de energia possível.
Outro exemplo: estamos falando muito de intensidade. Equipes intensas, defesas intensas, ataques intensos e etc. Sendo que para nós intensidade ainda quer dizer correr muito; só olhamos para o aspecto físico do jogo. Porém o alto nível mundial fala de intensidade complexa, em que a parte física está aliada a técnica, a tática e a cognitiva. Um time intenso não precisa necessariamente correr mais do que o outro. Um jogador intenso não é o que mais se desgasta. Ou para você Lionel Messi não resolve os problemas do jogo na mais alta intensidade técnica e mental mesmo sendo um dos jogadores que menos corre em campo?!
Se falo tanto em complexidade não posso pontuar que se melhorássemos só em alguns pontos teríamos o melhor futebol do mundo. É sistêmico, multifatorial. Todavia, se nossos treinadores, auxiliares técnicos e preparadores físicos pudessem acompanhar em cima da pinta o que se faz na elite e tivessem já um conhecimento prévio adquirido para implementar e fazer uma réplica no nosso futebol, claro respeitando nossas especificidades e características, já estaríamos dando um bom passo para a evolução.
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O futebol e o futuro
Dizem que o mundo não será mais o mesmo com a pandemia da COVID-19. O futebol também não. Em um primeiro momento os gastos deverão ser contidos, menos pessoas frequentarão os jogos, menor será o consumo. A indústria do futebol terá o trabalho de manter e cativar o público que possui em vez de procurar aumentar a sua base de torcedores. Tudo bem que o futuro é incerto, mas não é o apocalipse. Questão de se reinventar.
Nesta quarentena este colunista viu a série “The English Game”, em exibição por determinada plataforma de serviços de filmes e séries por streaming. Recomendo fortemente, inclusive. Somos tão – e a cada dia mais – apaixonados por futebol que nos esquecemos que é uma criação relativamente recente dentro de uma linha do tempo. Um piscar de olhos de 160 anos, muito pouco dentro da história. O que reserva o futuro da modalidade? E-sports? Super atletas? Futebol “Disneyficado”[1] ou a escalada do futebol de bairro, comunitário, fenômeno que acontece atualmente no Reino Unido?
Em outro momento de reflexão este colunista lembrou-se de quando ficou por minutos a observar um cartaz com a foto aérea da modernização do estádio do Beira-Rio para a Copa do Mundo de 2014. Parecia o Coliseu, em Roma e fez lembrar das aulas de história, quando se dizia que lá aconteciam as corridas de brigas – entre outras coisas menos esportivas – que arrastavam as multidões. Aquilo durou séculos e certamente quem viveu aquele tempo deve ter imaginado que aquilo não acabaria.
Não quero que o futebol acabe. E não vai.
Se a modalidade for trabalhada com propósito, com a devida responsabilidade que possui em relação à sociedade e à formação de cidadãos, com respeito ao atleta e aos torcedores, o futebol sempre terá algo de bom para proporcionar. Em tempos de pandemia – sem ser romântico ou demagogo – observa-se (oxalá esteja correto) mais respeito e cuidado para com o próximo. Seja em relação à saúde, mas também na tolerância em relação às crenças e costumes. Sem esta diversidade a humanidade não avança, uma vez que novos pontos de vista e maneiras diferentes de pensar não surgem. Precisamos do outro para sermos pessoas melhores, e vice-versa. O futebol é sim capaz de ser um manancial dos bons exemplos que o mundo precisa, a partir do momento em que o indivíduo tiver em mente agir com bom senso e discernimento. Cada vez mais raros, não é mesmo?
Com tudo isso, quando tudo isso passar, certo que os calendários terão que ser ajustados, adequados e de certa forma, transformados. Mas antes que tudo isso seja feito devemos perguntar como queremos o futebol e o que queremos do futebol. Fuga da rotina? Válvula de escape? Oportunidade de negócio? Identidade, representação e pertencimento? As incertezas continuarão, mas não significarão o fim. Vai ser preciso se reinventar e vai ter que ser pra melhor.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Na luta não importa o tamanho do cão, mas o tamanho da luta no cão.”
Archie Griffin
[1] “Disneyficação do futebol: termo utilizado para caracterizar os grandes conglomerados empresariais que possuem clubes de futebol pelo planeta, em analogia à “Disney World” e seus parques temáticos filiais no mundo;
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A evolução do jogo no Brasil
O futebol brasileiro está na segunda divisão mundial. E se não abrir os olhos o quanto antes para a evolução será rebaixado para a terceira. E quando cito o futebol brasileiro me refiro a todos os seus ‘players’: gestores, treinadores, preparadores, jogadores e porque não falar de torcida e imprensa. Estamos atrasados na maioria dos aspectos dentro e fora de campo se compararmo-nos com a elite mundial. Mas quero nesse texto me fixar mais em alguns pontos de dentro das quatro linhas, mesmo sabendo que é difícil separar ‘campo e bola’ da gestão.
A discussão por aqui ainda está presa a esquema tático. Valorizamos e damos ênfase a disposição dos jogadores no espaço de jogo: falamos de 4-4-2, 4-3-3, 3-5-2 (obs: me permito aqui cometer o erro de não colocar o número 1 antes da primeira linha, pois infeliz e erroneamente não contamos o goleiro nesse dito ‘esquema’). Ao fixarmos um time em posições pré-determinadas não estamos sendo fiéis ao que de fato acontece em um jogo. Por exemplo, no mais alto nível são as transições (ofensivas e defensivas) que compõem boa parte das ações. E nelas é impossível visualizarmos esses esquemas táticos tradicionais iniciais e engessados que ainda tanto falamos no Brasil.
Para evoluirmos temos que pormenorizar as ações individuais e coletivas. Em grandes clubes europeus já há muitos anos a discussão está em como ganhar micro-segundos com e sem a bola, em como gerar situações de vantagens numéricas e qualitativas para defender e atacar, criar treinamentos que melhorem a posição corporal do jogador para dar e/ou receber um passe, desenvolver a inteligência do jogador para tomar melhores decisões, fazer com que os atletas consigam resolver os problemas do jogo com os dois pés e outras pequenas partes do jogo que estão em um nível extremamente avançado.
Não devemos rasgar o que já fizemos no Brasil. No ‘futebol antigo’, fomos bem sucedidos. Entretanto, é necessário olhar para o mundo e ver o que se faz entre os profissionais que mais se destacam atualmente. Para termos resultados novos precisamos também de atitudes novas. Definição de insanidade para mim é fazermos as mesmas coisas e esperarmos resultados diferentes. Não sei se você tem percebido, mas o mundo mudou. E o futebol também…
Outro dia, o Jonathan Wilson (que escreveu, dentre outros livros, o conhecido ‘A Pirâmide Invertida) publicou um artigo interessante, no qual ele discute, desde o título, como a quarentena oferece um tempo fundamental para a inspiração de treinadores e treinadoras. Ele cita como exemplo Marton Bukovi, treinador húngaro do século passado, que teria criado o que chamamos hoje de falso nove justamente durante a Segunda Guerra Mundial.
Para muita gente, este é um período de atualização, ou mesmo de reciclagem. Sinceramente, não sou muito chegado no verbo atualizar (porque nem eu e nem vocês somos softwares), assim como não sou muito chegado no verbo reciclar – nem eu e nem vocês somos resíduos. Das palavras disponíveis, embora me agrade falar de inspiração, também acho que podemos falar de reflexão. Este é um período em que podemos muito bem refletir sobre os nossos saberes profissionais, sobre as coisas que nós sabemos e, principalmente, sobre as coisas que não sabemos (que são em maior número, afinal).
Deixem-me falar um pouco melhor sobre isso.
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Na minha pesquisa de mestrado, que estou prestes a terminar, tenho estudado justamente o processo de construção das filosofias de treinadores de futebol. A meu ver, este período de quarentena permite exatamente isso, refinar as nossas próprias filosofias. Assim como um carpinteiro talha a madeira, às vezes indefinidamente, em busca da perfeição, me parece que assim devemos nós tratar as nossas próprias filosofias. Aliás, este é um dos motivos porque tenho usado a palavra filosofias, no plural: estou convencido de que não é um processo singular, que uma filosofia estática e fechada não dá conta da complexidade da vida e que a construção de filosofias profissionais anda de mãos dadas com a vida que se vive, o que significa que, enquanto há existência, haverá filosofias.
Como filosofia, tenho adotado um conceito apresentado pelo francês Andre Comte-Sponville, na introdução de um livro chamado Apresentação da Filosofia. Ele diz, textualmente: ‘A filosofia não é uma ciência, nem mesmo um conhecimento; não é um saber a mais: é uma reflexão sobre os saberes disponíveis. É por isso que não se pode aprender filosofia, dizia Kant: só se pode aprender a filosofar.’
Me parece que com esse conceito podemos ir longe. Chamo a atenção, especialmente, para essa parte que diz que fazer filosofia não significa saber a mais. Basta olharmos à nossa volta (e olharmos no espelho) e veremos o quão ávidas e ansiosas as pessoas estão para saber cada vez mais, como se os saberes que nós carregamos conosco sempre fossem inadequados e insuficientes, mas também como se funcionassem como uma conta bancária, que será (supostamente) tão melhor quanto mais zeros tiver. Mas, na ânsia de acumular conhecimentos, nós nos esquecemos, como escreveu certa vez o Nietzsche, dos riscos da taça que acumula demasiado mel. Ou, se você preferir uma analogia do Schopenhauer, brilhantemente colocada no livro A Arte de Escrever, de nada adianta empanturrar-se de conhecimentos (de futebol ou de qualquer outra coisa) se não nos dermos o direito de digerirmos. A comida mal digerida pouco acrescenta ao corpo. As leituras mal digeridas, ou que não degustamos com a devida atenção, não nos fazem nada, saímos delas do mesmo jeito que entramos. A quantidade não basta.
Digerir, neste caso, pode muito bem significar refletir. Mas de novo, não é exatamente refletir sobre coisas novas, mas fazer como novas as coisas que estão mofando em nós mesmos: refletir sobre os saberes disponíveis! Neste período podemos retrucar a nós mesmos, encontrar as lacunas do nosso próprio modelo de jogo, dos nossos próprios métodos de treinamento, das nossas próprias análises de desempenho, das nossas próprias relações com os atletas e os profissionais que nos cercam. Se você preferir (e aqui recorro novamente ao Nietzsche, numa alusão que está no livro Sociedade do Cansaço, do Byung Chul-Han), este momento, na medida do possível, permite a contemplação, exercer a vida contemplativa, suspender os pensamentos. Não um momento de produtividade doentia, não um momento de explorarmos a nós mesmos, não é disso que se trata: é um momento em que, aos que podem, é dado do direito de parar, sentir a passagem do tempo, sentirmos a nós mesmos e, exatamente por isso, refletirmos sobre as coisas que sabemos e – de novo – sobre as que não sabemos. Outro dia, lendo um ótimo artigo do professor Desidério Murcho, me senti persuadido a admitir que, do ponto de vista lógico, é claro que as chances de estarmos equivocados sobre qualquer assunto são bem maiores do que as chances de estarmos inteiramente certos – não existem argumentos irrefutáveis, afinal.
Assim como vários colegas, tenho aproveitado as horas livres para assistir alguns jogos antigos. Outro dia mesmo, assisti a Real Madrid x Barcelona (2×6), de 2009, o jogo em que Lionel Messi foi de fato apresentado ao mundo como… falso nove! É muito interessante perceber não apenas o estrago que os seus movimentos fizeram na defesa do Madrid, especialmente nos zagueiros (Cannavaro e Metzelder, salvo engano meu), mas também como mesmo o jogo de posição mais ortodoxo talvez precise de pelo menos uma ponta solta, de um elo livre que circule por diversas alturas do campo, criando superioridades no setor da bola e atraindo a marcação para espaços valiosos. Talvez o exemplo definitivo disso esteja precisamente num outro jogo do Barcelona, a final da Champions League de 2010/2011, contra o Manchester United, em que o FCB jogou num nível de fato superlativo e Messi transitava tranquilamente por zonas muito mais baixas do campo.
Mas perceba que assistir jogos ou lives nas redes sociais, ou ler outros livros e artigos, ou escrever outras coisas, não precisam ser atividades que fazemos para empilhar conhecimentos. Devemos fazer nos relacionando com as coisas, construindo ativamente, de criarmos afinidade com o jogo a que assistimos, o livro que estamos lendo, as coisas que escrevemos, o modelo que construirmos (que nunca estará pronto), os nossos comportamentos em transição defensiva, os nossos procedimentos de recuperação e prevenção de lesões, enfim: não é uma questão de saber mais, é uma questão de saber melhor. Saber melhor sobre os saberes que não sabemos, mas também e especialmente saber melhor sobre os saberes que já sabemos – são esses os que nos dão as maiores rasteiras.
Por fim, reparem como este tempo de pausa no futebol escancara as bizarrices dos calendários em geral. Não é possível exigir do profissional do futebol que tenha tempo e condições de refletir com qualidade quando há jogos em cima de jogos, viagens em cima de viagens, críticas em cima de críticas (via de regra, sem muito fundamento). Some a isso o fato de que profissionais do futebol (e do esporte, em geral) são pessoas absolutamente normais, com uma vida normal, com família e amigos e responsabilidades particulares, e é claro que as horas do dia não serão suficientes para pensar com qualidade (e isso não se restringe ao futebol, diga-se) No calendário, segue a lógica da digestão, de que falamos acima: estamos empanturrados e comendo.
E a indigestão, como se sabe, talvez não seja exatamente amiga da inspiração.
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Sessão nostalgia
A Teoria da Comunicação Estratégica do Esporte (Pedersen, Miloch & Laucella, 2007) sugere que o conteúdo do esporte é infinito. E como é! Exemplo disso é este tempo de quarentena em que as emissoras de TV especializadas em conteúdo esportivo reprisam partidas antigas. Às vezes elas têm a narração e reportagens da época, outras vezes permanecem somente com as imagens e a interação é ao vivo, com uma equipe de transmissão atual. Os canais no YouTube dos clubes e federações têm seguido a mesma linha. Os resultados têm sido espetaculares. Quem dera o rádio pudesse fazer o mesmo também.
É uma espécie de sessão nostalgia. É parte de um drama que constrói a história de uma organização esportiva ao resgatar os ídolos, de relembrar uma narrativa fundamental para fundamentar seus valores e princípios. Isso dito não apenas de uma seleção nacional, mas de um clube e também do próprio veículo de comunicação. De mostrar aos mais novos que há uma história, que lá atrás muita gente fez de tudo para que o melhor acontecesse, que há um motivo e um porquê para tudo o que sentimos. Que nada é por acaso e em vão.
Lembro-me do pai deste colunista praticamente obrigar-me a ver as reprises dos jogos do Brasil na Copa de 1970, que a TV Bandeirantes passava nas semanas que antecederam o Mundial FIFA de 1994. Era uma maneira de dizer para se dar o devido valor: esta é a nossa história, é o que somos. Foi uma oportunidade de enxergar – e respeitar – o processo de uma maneira diferente, como um todo. De procurar compreender que é importante saber de onde se vem, o que se é e onde se quer chegar. E toda essa reflexão pode e deve ser transportada para as discussões atuais sobre a nossa sociedade: o que fomos como nação, o que somos e o que queremos para as futuras gerações, dos nossos filhos e netos.
É, portanto, esta sessão nostalgia da TV e das redes sociais, oportunidades – mesmo que inocentes – de olharmos e relembrarmos o passado. Desta maneira, talvez, possamos dar o devido valor e respeito ao que é realmente importante e deixarmos de lado tudo o que for supérfluo, ou seja, aquilo que nos fará “bater a cabeça” e não nos levará a lugar algum.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Campeões não são feitos em academias. Campeões são feitos de algo que eles têm dentro deles mesmos: um desejo, uma visão, um sonho. Eles têm que ter a habilidade e o desejo, e o desejo tem que ser mais forte que a habilidade.”
Muhammad Ali
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Sobre os tempos
Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu;
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora;
Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.
Eclesiastes 3: 1-8
Por conta da COVID-19 o futebol está parado em praticamente o mundo todo. Campeonatos, transferências, as atividades corriqueiras da bola. As diárias discussões no rádio, TV e internet caíram bastante, até mesmo porque pouca coisa acontece. Ao mesmo tempo o conteúdo histórico é infinito e, percebe-se isso haja vista a programação dos veículos de comunicação, dos podcasts nestes tempos que precisamos nos resguardar e proteger a quem mais amamos. Em tempos que nos faz repensar sobre muita coisa, rever valores e os relacionamentos com quem nos é importante. Sobre como caminha a humanidade e para onde ela irá.
Assim também é no futebol. Tempos de rever para onde leva a ambição desmedida que coloca em risco a vida dos futebolistas e suas famílias. Dos torcedores também. Da urgência pelo respeito e pelo bom senso na condução das relações pessoais e profissionais a fim de preservar o que temos de mais importante: nosso bem-estar e paciência. De agir com profissionalismo e sensatez.
Estes tempos nos escancaram que não se tem o controle de todas as coisas, muito pelo contrário, estamos expostos e suscetíveis. Assim sendo, os resultados em campo também não estão no controle, afinal todos querem vencer. É preciso lidar com as situações e, com muito trabalho e paciência, superar e seguir. O que é mais importante: a vitória descabida e imediata (efêmera e insustentável) ou a certeza do propósito (porque você é o que é), a noção do pertencimento, a sua identidade, de saber de onde se veio, onde se está e para onde se vai?
Existir, simplesmente.
Diante disso, apesar da incerteza destes tempos, que sejam eles para quebrarmos paradigmas e tabus a fim de preservarmos o futebol e os seus elementos mais importantes: o atleta e o torcedor. Há quem diga que este cenário é difícil de acontecer, mas há tempo pra tudo e, para o bom convívio e entendimento, já não cabem mais as velhas práticas, sejam elas nas relações pessoais, profissionais, na gestão do esporte e, especificamente, na do futebol. O contrário significaria retroceder. E acredito que estes tempos, atuais, não queiram nos ensinar isso: retroceder. Nunca.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Vamos trocar de roupa rapazes e mesmo que o tempo esteja inclemente e vocês caírem,
tem coisas piores na vida do que um simples tombo na grama, e a vida é mesmo um jogo de futebol.”
Walter Scott (1771-1832)
poeta e romancista escocês
Na última semana, conversando com um atleta que treina comigo, chegamos em um ponto muito interessante, que gostaria de compartilhar com vocês na coluna de hoje. Basicamente, conversávamos sobre o jogo de paredão, sobre as possibilidades pedagógicas do paredão, e lá pelas tantas chegamos a um ponto em comum, sobre o qual eu escrevo melhor na segunda parte deste texto.
Aqui, gostaria de conversar um pouco sobre duas coisas: primeiro, sobre uma certa ideia de complexidade e, depois, sobre uma possibilidade pedagógica específica do paredão.
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Em primeiro lugar, um dos motivos por que me agrada muito o jogo de paredão está justamente nisso que podemos chamar de simplicidade. Para brincar de paredão, precisamos apenas de uma parede e de uma bola. Quando pequenos (e mesmo quando mais velhos), todos nós jogamos bola com a parede em algum momento. Eu mesmo, quando garoto, adorava fazer meus campeonatos, a cada lance fazendo um jogador diferente, atacante quando a bola ia e goleiro quando a bola voltava, às vezes um jogador brasileiro, às vezes estrangeiro, e aí já vão nos ficando claras a potência e os caminhos para onde o mundo do jogo pode nos levar.
Mas não vamos perder o fio: a priori, o paredão parece um jogo muito simples. Mas, na verdade, não o é. Vejam bem, uma das palavras mais repetidas pelas recentes gerações de treinadores e profissionais do futebol (porque de fato é uma das palavras que mais nos foram faladas na última década) é a palavra complexidade. O que eu não sei é se é uma palavra muito bem digerida. Complexo, como vocês sabem, vem do latim complexus, significa aquilo que é tecido junto. Ou seja, a complexidade não está exatamente na dificuldade de um determinado problema (como se as coisas mais complexas fossem simultaneamente as mais difíceis), mas sim nas relações entre as partes desse problema. No caso do futebol, por exemplo, um determinado jogo não é complexo porque é mais difícil, mas é complexo porque contempla, ao mesmo tempo, as várias dimensões do jogo (tática, técnica, física, psicossocial). Aliás, essa é uma vantagem indiscutível do jogo enquanto método, na comparação com os treinos analíticos, por exemplo.
Neste sentido, pensem comigo o seguinte: jogar paredão pode ser simples (pelo senso comum), mas na verdade pode ser extremamente complexo. Ou melhor, o paredão é um jogo complexo com a aparência da simplicidade. Porque, jogando com a parede, eu trabalho simultaneamente uma dimensão técnica (por motivos óbvios), uma dimensão tática (porque preciso gerir o espaço para cumprir ações técnicas), uma dimensão física (porque estou em movimento e com bola, fazendo deslocamentos frontais e laterais, podendo subir ou baixar a intensidade) e uma dimensão mental, proporcional ao desafio que me proponho no jogo (passar a bola em cinco toques pode ser simples, mas passar a bola em apenas um toque, com o pé não-dominante e sem deixar a bola quicar, pode fazer um jogador qualquer se sentir o pior jogador do mundo, de modo que existe uma psicologia ali, como existe em qualquer outro lugar).
Então este é o primeiro ponto que gostaria de colocar: o complexo pode estar no simples, o complexo deve ser visto como sinônimo de difícil e, mais do que isso, o complexo (enquanto sinônimo de difícil) não deve ser visto como melhor – porque de fato pode não sê-lo. Na montagem de uma sessão de treino, por exemplo, fazer um treino complexo não significa, necessariamente, escolher jogos hiper complicados, cheios de alvos e regras de difícil compreensão. Pelo contrário, do ponto de vista pedagógico, os melhores jogos costumam ser os mais simples.
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A segunda coisa que gostaria de dizer tem a ver lá com o começo do texto. Conversando com esse meu atleta, ele me disse uma frase, que na verdade não vou me lembrar ao certo, mas que faz todo o sentido. Foi algo próximo do seguinte: no paredão, a bola volta do jeito que vai – não tem segredo.
Não sei vocês, mas eu enxergo até uma certa poesia nisso. Do ponto de vista pedagógico, essa ideia é particularmente interessante, e por um motivo especial. Em pequenos jogos, especialmente com um certo número de jogadores (digamos de quatro em diante), podemos muito bem terceirizar as responsabilidades pelos nossos insucessos. Podemos jogar mal e dizer que o problema foi um companheiro nosso, ou foi um adversário nosso, ou foi o árbitro que estava mal intencionado, ou foi a bola que estava redonda demais e etc etc. Assumir as próprias responsabilidades é um aprendizado que, às vezes, vem com o tempo (ou, como a vida nos mostra, às vezes não vem).
No caso do paredão, não bastasse esse viés da parede como espelho (ou seja, ela reflete precisamente a qualidade do nosso passe, ou do nosso chute), existe também essa dimensão educativa, da responsabilidade que nos cabe, da impossibilidade de fugir da raia. E aqui voltamos ao lugar onde havíamos começado, na complexidade que pode haver num jogo tão simples, porque para muito além de chutar uma bola na parede, podemos criar inúmeras variações, que nos permitam avançar em todos os aspectos do jogo, e que, para muito além disso, nos permitam avançar além do jogo, nos permitam ir mais longe do ponto de vista humano – desde que nós mesmos nos demos a permissão de enxergar essa possibilidade. O paredão ou qualquer outro jogo não tem apenas um valor em si, mas tem um valor dependente do sentido que damos a ele. Isso faz toda a diferença.
Nos jogos que jogamos e, tecido junto!, na vida que vivemos.
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PS: nenhuma vida é dispensável. Pandemias não existem no diminutivo. Se possível, fique em casa. Cuide da própria saúde e da saúde dos outros.
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O Corinthians e suas aflições
Que Tiago Nunes teria dificuldade nesse início de trabalho no Corinthians já escrevi, falei, repeti e tudo mais…porém, assusta muito a dificuldade de a equipe evoluir em aspectos básicos do jogo. Não há nem a possibilidade de reclamar de falta de treinos, já que a equipe fez apenas dois jogos em dezoito dias. E, quando não há evolução mesmo com tempo e treinamentos é porque há mais coisas envolvidas.
Os jogadores corintianos compraram a ideia de Tiago Nunes. Eles querem uma equipe mais ofensiva. Agrada, dos mais jovens aos mais experientes, a ideia de ter um time que privilegie o ataque. Está descartada qualquer possibilidade de corpo mole – possibilidade levantada por muitos sempre que o resultado não vem. Porém, os conteúdos ofensivos apresentados nos jogos ainda carecem de muitos ajustes. Princípios básicos como apoio, mobilidade, penetração e profundidade não aparecem no jogar corintiano. E o que é pior: os bons conteúdos defensivos, deixados de herança por Fábio Carille, não são mais vistos, por talvez não serem mais estimulados.
Tiago Nunes chegou com carta branca da diretoria para realizar as mudanças que julgava corretas. Vale lembrar que ele foi contratado em novembro, mas só assumiu em janeiro. Dispensas de jogadores consagrados como Ralf e Jadson foram aceitas, porque empolgava a todos – incluindo a direção – a ideia de uma equipe dinâmica, intensa e ofensiva. Tiago também realizou ajustes na relação com diversos setores como análise de desempenho, departamento de inteligência e na comunicação com as categorias de base. A tal da ‘cartilha’ já tão falada, que organiza horários de refeições e sono dos atletas, também foi instituída com o aval de quem está acima do treinador.
Tudo isso não interfere diretamente no resultado de campo. Mas entra na relação do treinador com o ambiente do clube em que ele está. Tiago Nunes tem que ter a flexibilidade para ‘conversar melhor’ com o que é o Corinthians. Inclusive, as próprias entrevistas dele tem que ser mais ‘corintianas’. Quando Tite, por exemplo, entendeu isso seu trabalho cresceu. Tiago não deve nunca abandonar suas convicções. Mas adapta-las ao que foi e ao que é o Corinthians é fundamental para que no futuro o treinador e o clube formem um só, aliando desempenho e resultado.
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Conteúdo Ilimitado
Em notícias de alguns dias, a “Amazon” demonstrou interesse em ter a sua marca colocada na camisa do Flamengo. Quer seja pela fase, pela popularidade do clube, pela penetração maior dos seus produtos no território brasileiro, vários fatores justificam este interesse. No entanto, concentrar-se apenas nestes motivos seria ingenuidade.
Ao passo que avançam as discussões da Lei Geral do Esporte (que pode conferir os direitos de transmissão dos jogos para a equipe que tem o mando de jogo), a gigante da internet vê no Rubro-Negro carioca (e vice-versa) oportunidades financeiras e de propriedade bastante promissoras. Afinal, não seriam apenas os jogos transmitidos, mas sim todo e qualquer conteúdo relacionado ao clube: o dia a dia, variedades e outros produtos, a exemplo da série com a seleção brasileira masculina nos bastidores da Copa América de 2019. Com base na Teoria da Comunicação Estratégica do Esporte (Pedersen, Laucella e Miloch), o conteúdo gerado pelo futebol é infinito, e a “Amazon” se basearia nisso.
Simultaneamente, o clube vê nesta parceria uma plataforma que aumenta o poder de barganha face a grupos de mídia concorrentes, além de ela oferecer projeção e difusão internacional, o que contribuiria a posicionar a marca “Flamengo” em um mercado global. Não se trata da internacionalização da marca, que talvez possa vir em um outro momento, mas sim ter o seu emblema ao lado de outros exponentes do mercado para potencializar a imagem de grandeza à organização esportiva (Flamengo).
Portanto, imaginar que a exposição da marca da camisa é o principal interesse de um investidor em um clube de futebol, é não se dar conta do conteúdo ilimitado que uma equipe profissional, de torcida numerosa e renomado palmarés é capaz de proporcionar. Inclusive se, daqui alguns anos, o Flamengo queira se dar ao luxo de não ter nenhuma marca estampada em seu manto, a fim de valorizá-lo, poderá assim fazer.
Em tempo: acredito que todos os torcedores sonham em ter a camisa do seu clube sem qualquer marca.
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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Nenhuma emissora de televisão parece se importar com os torcedores, os seguidores de um time. Mas sem o barulho e a cantoria dos torcedores, o futebol não seria nada. Futebol se trata de paixão. Sempre será sobre paixão. Sem paixão, o futebol está morto. Sem os torcedores, o futebol seria apenas 22 homens correndo atrás de uma bola. Uma merda, em outras palavras. São os torcedores que tornam o futebol importante.”
Faixa da “Curva Nord”, ultras da Internazionale, de Milão/ITA,
em referência a passagem do livro ‘The Football Factory’, de John King
(foto abaixo)
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Zona de conforto e liderança no futebol
A performance de um time dentro de campo é resultado de tudo o que acontece dentro do clube. Sei que é difícil o torcedor entender que cobrar só o jogador e/ou o treinador não faz muito sentido, porém cada vez mais tenho pra mim que o resultado final dentro das quatro linhas é fruto das relações entre todos os departamentos que compõe a estrutura do clube. Ou seja, o massagista, o roupeiro, o nutricionista, o psicólogo, enfim, todos que trabalham no dia a dia são responsáveis por a bola entrar ou não. E é dentro desse conceito integral e sistêmico que quero falar sobre zona de conforto e liderança no futebol.
O viés competitivo tem que estar presente 24 horas no dia a dia de um time. Se o treino não for intenso, o jogo não será intenso. Se os jogadores não tiverem fome de vitória nas pequenas atividades do dia a dia não será um estádio cheio que vai criar esse comportamento em uma partida importante. Não existe mágica. E nisso entra o papel fundamental que um treinador tem que ter para a geração de um ambiente propício a conquistas. Cabe a ele estimular diariamente o desconforto necessário que as grandes vitórias pedem.
Em uma época que se debate muito a gestão das pessoas não só no futebol, mas também no mundo corporativo, o papel do técnico na gestão desse ambiente tem um peso muito grande. E dentro do conceito que acredito – como coloquei no primeiro parágrafo – que todos são responsáveis pelo desempenho do time, cabe ao treinador deixar todos ‘desconfortavelmente’ prontos pra vitória.
É claro que acima de um treinador tem no mínimo um diretor de futebol e um presidente. E eles têm que ter também uma liderança inquestionável, firme e pautada na vitória. Se houver qualquer fraqueza o ambiente sente. Os jogadores sentem. E aí todo o sistema entra em colapso. Já tivemos times campeões com salários atrasados, mas nunca com uma liderança fraca. Sim, dirigente forte segura até crise financeira. Do outro lado, já vimos times com as contas em dia, mas derrotados dentro de campo. Não quero aqui defender má gestão e sim colocar que uma liderança eficaz extrapola a questão de grana. É muito mais do que isso. O jogador tem que saber quem manda no processo. E acreditar nisso. O lado financeiro é apenas um elemento. Mas o todo é maior do que a soma das partes.
Sair da zona de conforto dói. Mas é lá que as grandes vitórias são construídas. Em um grupo de pessoas, os líderes têm um papel fundamental nisso. Fazer todos os departamentos respirarem conquistas não é algo simples. Por isso, em todo campeonato só temos um campeão.