Uma revolução consiste, basicamente, em uma transformação fundamental de valores, buscando equilibrar o sistema de poderes entre oprimidos e opressores. Coisas que eram, de repente, deixam de ser. Tornam-se outras.
Na cultura e na economia, uma revolução demora para se consolidar. Ela acontece de forma lenta, porém constante. Nas instituições sociais e políticas, porém, ela é repentina. De uma hora para outra, tudo muda. Quando não conseguem pacificamente, os oprimidos vão à luta.
O futebol volta e meia convive com revoluções. Em sua maioria, elas afetam o jogo em si, seja através das regras – como a do impedimento – ou das táticas – como o WM e o futebol total.
O caso Bosman
Muito de vez em quando acontecem revoluções que afetam a estrutura do esporte.
Uma destas poucas foi liderada por Jean Marc Bosman, um atacante até então insignificante que jogava pelo também insignificante RFC Liège. Tão insignificante que hoje não mais existe.
O jogador reclamou na justiça belga o direito de livre transferência para outro clube no final do seu contrato. Buscava um salário maior, que um clube da segunda divisão – o Dunkerque – estava disposto a bancar. Eles só não estavam dispostos a pagar pelo preço da transferência que o RFC Liège estava pedindo. Bosman não só ganhou a causa como fez com que todo o sistema de transferência de jogadores fosse transformado pela Fifa.
Foi criada então a Lei Bosman, que alterou substancialmente o sistema de transferência de jogadores e revolucionou a relação de poderes entre o clube e seus atletas. Os atletas ganharam, os clubes perderam. A Fifa, que não tinha nada a ver com a história, continuou na mesma.
Cadeia de poder
A cadeia de poder do futebol mundial é bastante simples: a Fifa é o órgão principal, com poderes de alterar leis e definir o calendário de jogos. Quem compõe a Fifa são as confederações continentais, que por sua vez é composta por confederações nacionais. No caso brasileiro, existem ainda as federações estaduais.
Dentro dessa cadeia, os clubes não têm voz. São subjugados às diretrizes e delegações dos órgãos citados acima. Possuem, no máximo, papel consultivo. Uma certa opressão, por assim dizer.
Revolta dos oprimidos
Como todos os oprimidos, eventualmente os clubes começaram a buscar uma revolução. Um espaço para dar o seu grito de liberdade. E por liberdade entenda dinheiro.
Primeiramente criaram as ligas, campeonatos independentes formados e organizados pelos clubes e que atendem ao interesses dos próprios. E por interesses entenda dinheiro.
Depois, os maiores clubes europeus se uniram e criaram o G14, formado inicialmente por 14 clubes, mas que hoje conta com 18. E deve crescer mais ainda.
Apesar de parecer bastante com o Clube dos 13, ambos sendo uma organização formada pelos maiores clubes de um determinado perímetro geográfico, o G14 possui um papel um pouco diferente.
Enquanto o C13 cada dia mais se estabelece como uma liga, o G14 funciona como um sindicato. Foi criado para dar uma voz conjunta aos maiores clubes da Europa, um meio deles se inserirem na cadeia de poder do futebol mundial para ter poder decisório de forma a defender seus interesses. E por interesses entenda novamente dinheiro.
Liberação de jogadores
Um dos grandes conflitos entre os grandes clubes da Europa e a Fifa é a respeito da liberação de jogadores para as seleções nacionais.
De acordo com o G14, os clubes são obrigados a liberarem os jogadores para disputar partidas internacionais, muitas v
ezes insignificantes, e não recebem nenhuma compensação financeira por isso. Muito pelo contrário, acabam perdendo dinheiro, uma vez que jogadores voltam cansados e, não raramente, contundidos, ficando impossibilitados de atuar pelos seus clubes, ainda que estes continuem a pagar seus salários.
A Fifa, por sua vez, argumenta que já destina parte de sua arrecadação para o desenvolvimento de clubes pelo mundo todo, e que uma compensação financeira por convocações só ajudaria aos principais clubes de futebol, que por si só já são bastante ricos e não precisariam necessariamente de mais essa fonte de renda.
O problema é que, por vezes, a contusão de um jogador em um jogo pela sua seleção afeta substancialmente a performance do clube dentro do campeonato, o que também afeta diretamente em outras fontes de renda, como renegociação de patrocínios e possíveis classificações para competições mais rentáveis.
Charleroi, um novo caso
Foi exatamente o que aconteceu com o Charleroi, um time mediano que disputa a primeira divisão belga. É um novo caso que pode revolucionar novamente a relação de poderes dentro do futebol, desta vez entre os clubes e a Fifa.
O Charleroi ia muito bem no campeonato, beirando a classificação para a Champions League, muito por causa de Abdelmajid Oulmers, um talentoso meio-campo marroquino. Tanto talento lhe rendeu uma convocação para a seleção marroquina. Orgulho para ele e para o próprio Charleroi.
Mas eis que Oulmers volta da seleção seriamente contundido e fica oito meses afastado dos gramados. O Charleroi, que antes beirava a classificação para a Champions League, termina o campeonato se classificando apenas para a Intertoto, uma competição pequenininha que serve como pré-classificatório pra Copa da Uefa. É disputada por clubes que acabam os principais campeonatos nacionais europeus em posições intermediárias e por clubes de países de menor importância futebolística, como as Ilhas Faroe.
Indignados com a perda de um de seus principais jogadores, que conseqüentemente levou à perda de bastante dinheiro, o Charleroi resolveu acionar a Fifa na Justiça belga. Exige ser financeiramente ressarcido pelas conseqüências da convocação de seu jogador para o selecionado marroquino.
O G14, que há tempos ansiava por uma oportunidade de acionar a Fifa na justiça para conseguir mudar as regras da compensação financeira por convocações, viu o potencial da briga e ofereceu, voluntariamente, toda a sua ajuda ao Charleroi.
O caso agora está na Corte Comercial de Charleroi. Envolve o Charleroi, o G14 e a Fifa. Foi aberto no dia 5 de setembro de 2005 e a audiência está marcada para o dia 6 de março de 2006.
É uma briga maior do que parece. Mais do que a compensação financeira por convocações, o G14 busca maior representatividade dos clubes na tomada de decisões dos rumos do futebol mundial. Querem ter poder decisório em questões-chave, como a definição do calendário, pois isso afeta diretamente seus interesses. E por interesses, entenda mais uma vez dinheiro.
Caso vença a sua causa, o belga Charleroi transformará toda a estrutura do futebol, tal qual fez o também belga Bosman. Se no caso do segundo a estrutura foi obrigada a dar mais poderes aos jogadores, no caso do primeiro ela dará mais poderes aos clubes.
Busca-se, dessa forma, equilibrar o sistema de forças do futebol mundial entre os seus componentes.
Busca-se, enfim, uma revolução.
Hay que endurecerse sin perder jamás la ternura.
Oliver Seitz é relações públicas, pós-graduado em Administração para profissionais do esporte (FGV) e mestrando em Administração de Futebol pela Universidade de Liverpool.
Para interagir com o autor: oliver@universidadedofutebol.com.br