Hoje vou fugir do habitual texto sobre questões táticas do jogo, para dissertar a respeito de algo que, aqueles que trabalham com futebol e passam mais tempo convivendo com as pessoas desse meio (jogadores, treinadores, preparadores físicos, roupeiros, massagistas, fisioterapeutas, médicos, etc.) do que com suas esposas, filhos e pais, vão entender muito bem (e aqueles que não são, mas querem ou já quiseram ser, certamente também).
A motivação para escrever o que se segue, nasceu de uma pergunta feita por um jornalista de conceituada rede de televisão (que estava, havia alguns dias longe da família, para “cobrir” os acontecimentos de uma partida de futebol), a um de meus companheiros de trabalho.
Ele (o jornalista) queria entender como “nós do futebol” conseguíamos ficar tanto tempo trabalhando em cidades distantes e longe da família, vendo filhos ou esposa, apenas 10 ou 20 dias por ano, e passando a maior parte do tempo longe de casa.
A pergunta não foi feita para mim, mas fiquei pensando nela.
Mais tarde, procurei o preparador de goleiros, o massagista (um chileno-brasileiro de grande coração, com duas décadas de futebol) e depois alguns outros amigos do trabalho, e fiz a seguinte pergunta para cada um deles:
Se você soubesse a data exata em que o mundo vai acabar (se é que o mundo vai acabar), onde e com quem, você gostaria de estar e de passar seus últimos momentos?
Com exceção do meu amigo preparador físico, que disse que gostaria de estar em um lugar distante (que tem para ele, um significado particular) aproveitando uma grande festa, com uma multidão de gente (sem a presença de ninguém em especial), todos meus outros companheiros de trabalho não vacilaram em dizer que gostariam de estar perto de suas famílias (filhos, esposa, pais), aproveitando o máximo possível o tempo juntos.
Todos eles amam o que fazem.
Trabalham todos os dias com o mesmo grande entusiasmo do primeiro dia de trabalho. Cada um com sua história diferente, cada um com suas metas e sonhos particulares. Todos com o Futebol (aqui como nome próprio) em comum.
Mas tão certo quanto a necessidade explicita de trabalhar com aquilo que trabalham, há escondido no peito de cada um, um vazio impreenchível, camuflado a não sei quantas dores e hábitos, que vão sendo criados, sem que se perceba, para que possam simplesmente se acostumar.
Interessante e surpreendente para mim, até certo ponto, que além de ter o futebol como elemento em comum, e também as respostas parecidas para a minha pergunta, todos eles estavam bem distantes do lugar e das pessoas que gostariam de passar seus últimos momentos.
Então, se por um lado, cada um deles faz o que gosta profissionalmente, por outro tentam, mergulhando no trabalho, administrar aquilo que lhes falta de mais importante.
O que sei, é que todos, mesmo focados no que tem que ser feito, trazem consigo a companhia da saudade.
Skype, MSN, E-mail, telefones celulares… A tecnologia que cura os sintomas não apaga as causas da dor, da falta de outras pessoas.
Muitos dos meus companheiros de trabalho, no final das contas, dizem que com o tempo vão se acostumando com as ausências… Não sei. Penso que o que deve mesmo acontecer não é um “acostumar com a dor”, mas sim um “ter domínio sobre ela”.
Se me acostumo, nem percebo, esqueço que ela existe (e realmente, não acho que eles esqueçam). Se a domino, sei o tempo todo da existência dela, e apesar dela, caminho controlando-a.
Por incrível que pareça, algumas pessoas no futebol dizem que saudade e dor são sinais de fraqueza. Se tiver saudade, não serve!
Não sei. Acredito mesmo, que fraqueza é perder o controle de si, deixar de ser o que se é.
Talvez aqueles que evitem a dor, tenham medo de perder o controle sobre ela.
Não sei o que está certo ou o que está errado.
O que sei é que eu Rodrigo (treinador, e homem do futebol) não posso me acostumar com ela, porque senão, perco a noção de quando ela se agrava, e se virar sintoma de coisa grave, acabo por ficar sem saber que posso morrer…
O que posso dizer é que não nego a minha, porque não tenho medo dela. O que me resta, é tentar chegar mais cedo em casa depois do trabalho e aproveitar ao máximo o tempo, porque eu não sei quando o mundo vai acabar…
E por falar em “se acostumar”, encerro com um texto de Marina Colasanti. “Acostumaram” a dizer pela internet que ele (o texto) é de autoria de Clarice Lispector (escritora que dispensa comentários – é excelente!). Não é.
“Eu sei mas não devia” (Marina Colasanti – Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.)
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma
a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e
ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso
de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
Agente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.
Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br