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Carta aberta ao André Villas-Boas, treinador do F.C.Porto

Meu caro amigo,

esta carta parece, velada ou declaradamente, o resultado do mais puro oportunismo: o André é o mais que provável vencedor do Nacional de Futebol da Primeira Divisão e, digo-o sem receio, da Liga Europa; lidera uma das melhores equipas do futebol mundial – e cá estou eu a exibir o virtuosismo de um conhecimento que já é acessível a qualquer português amante do futebol. Ou seja, evitei prudentemente, há meses atrás, um prognóstico difícil, sobre o seu futuro, como treinador de futebol, e venho agora falar, de cátedra, do actual treinador do F.C.Porto.

Se assim fosse, as vozes dos profissionais da injúria não deixariam de retratar-me como personagem incómoda ou ridícula. Só que, contra a agressividade dos meus críticos, teria o André, ao meu lado. De facto, trabalhava o meu amigo na Académica de Coimbra, muito antes dos convites do Sporting e do Porto, e já eu lhe escrevia, sustentando que, num clube com as condições necessárias e suficientes, o André surgiria como um treinador de excepcional relevo e manifestando até insuspeitadas potencialidades.

Recordo que o surpreendeu o conteúdo da referida carta e foi lesto a telefonar-me:

“Gostava de saber por que me vê com um futuro brilhante, na profissão de treinador de futebol?”. E acrescentou ainda: “É que eu sinto que tenho tanto para aprender!”.

Libertando-me de uma linguagem esotérica, frequentemente exibicionista, respondi-lhe:

“Porque o meu amigo sabe liderar uma equipa, sabe comunicar com os jogadores que a constituem, sabe ler um jogo e vive de uma tensa e intensa vontade de vitória. Está aqui a base do êxito de um treinador de alta competição. Isto o que se vê, mesmo pela televisão. Com o apoio estrutural de um grande clube e com o que aprendeu com o José Mourinho, o meu amigo decuplicará o talento que mostra”.

Há poucos dias, numa das nossas conversas telefónicas, o André chegou mesmo a dizer-me: “O professor até acreditou em mim, antes de eu acreditar!”. Não é bem assim. Eu vejo o desporto e os desportistas com uma teoria que elaborei e que me norteia. Para mim, esta área do conhecimento, mais do que uma Actividade Física, é uma Actividade Humana, onde o físico-biológico se encontra integral, mas superado.

No futebol, portanto, o jogador deve desenvolver-se em equipa, sem ser reduzido à equipa. E assim o treinador, nos seus momentos de reflexão, poderá levantar, no mais íntimo de si mesmo, esta questão: qual o tipo de pessoa que eu quero que nasça dos jogadores que lidero? Reside aqui, no meu modesto entender, o momento essencial do treino.

É evidente que os livros de metodologia do treino (e são milhares, por esse mundo além) pouco se apercebem da intrínseca influência da preparação intelectual e moral de uma equipa. E, entre os factores de rendimento, dão ao físico-biológico lugar primacial. Ora, para mim, não só tudo é sistema, como só o sistema é real. Portanto, no treino, há que distinguir para associar e não separar para reduzir. Por isso, antes de tudo o mais, o jogador deve acreditar no que faz e transformar-se na expressão da fé que anima todo o clube, desde o mais humilde associado e funcionário até aos membros da Direcção. A crença gera biologia. O jogador que acredita que é um dos aspectos fundamentais da alma de um clube tem mais força e mais velocidade e mais resistência e mais impulsão etc. etc.

Meu querido amigo, não lhe falo de um anseio indefinido ou de uma superstição romântica – falo-lhe do espírito que deve animar um departamento de futebol profissional. Hoje, o próprio conhecimento científico é subjectivo-objectivo. O futebolista também está todo em tudo o que faz, mas o que dele sobrevive é a sua vontade de ser mais e de ser melhor.

Nada de novo lhe escrevi, nesta carta. É verdade! Tudo isto o meu amigo sabe, designadamente através da sua prática diária. Eu não passo de um simples teórico, mas que há 42 anos vem ensinando filosofia do desporto e aprendendo com o André e um ou outro colega seu, que fazem o favor de tentar dissipar muitas das minhas dúvidas.

O André está, entre os treinadores que eu conheci e conheço, ao lado dos que maior sensibilidade manifestam à necessidade de repensar o treino, à luz do pensamento complexo. Por isso, também no futebol a cultura é o primeiro factor de desenvolvimento. Leia um Camus, um Malraux, uma Hanna Arendt, uma Clarice Lispector, um Jorge Amado, uma Maria Zambrano, um Vergílio Ferreira, um Saramago, um Jorge Luís Borges e tantos mais; aprenda a saborear a arte de poetas como Pessoa, ou Sebastião da Gama, ou Sofia, ou Herberto Helder, ou Torga, ou Régio; escute atentamente a mensagem dos filósofos e dos sociólogos – e vai começar a saber mais de futebol!

O maior defeito dos técnicos da Fifa e da Uefa é abusarem de uma aturdidora profusão de palavras e sentirem-se incapazes das grandes sínteses que tentam compreender o humano. Ora, o futebol é, repito, uma Actividade Humana e onde, portanto, a vida tem mais força do que a lógica. Estudar futebol é, sobre o mais, aprender com a vida.

Por isso, meu amigo, se me der essa honra, vamos continuar a falar ao telefone. Para eu saber mais de futebol? Não sei se em Portugal haverá alguém que tenha lido mais obras, sobre futebol, do que eu. Só se for o Dr. Jorge Castelo. Na minha biblioteca de, em números redondos, 4000 livros, contam-se às dezenas! Eu consigo aprendo muito de futebol porque falamos de ciências de um novo tipo.

Quando um jogo começa, qual a ciência que explica o que se está a passar no campo? Eu chamo-lhe ciência da motricidade humana. Mas há tanta gente que me lança um olhar misericordioso, quando me ocupo destes assuntos. Resta-me a sua compreensão e a de alguns amigos. No meu caso, pode crer, a sua compreensão revigora-me: é que eu estou convicto que está a nascer, no meu amigo, um dos grandes treinadores do futebol português – e, neste mundo globalizado, que é o nosso, do futebol internacional.

Por fim, não escondo que o F.C.Porto de Jorge Nuno Pinto da Costa é o melhor seminário para ampliar e aprofundar o muito que o meu amigo sabe e é. Aconteceu o mesmo com o Dr. José Mourinho. Parecendo que não, a história deste Clube não é carismática, é estrutural.

Não findo esta carta sem felicitá-lo, pela sua vitória na Supertaça Cândido de Oliveira, no Nacional de Futebol da Primeira Divisão, na Taça da Europa e na Taça de Portugal. O meu amigo parece pertencer àquela categoria de homens, privilegiados da fortuna, profissionais do triunfo, que existem apenas para que o Mundo quotidianamente se ocupe deles. Que assim permaneça, durante muitos e muitos anos…

Seu

Manuel Sérgio
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

 

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Sbórnia

Reservei esse espaço para contar um relato histórico, com um tom irônico e que, qualquer semelhança talvez seja mera coincidência. Talvez! É o caso da Sbórnia*, um país da Idade Média onde se praticava um esporte primitivo ao futebol.

Naquele país e naquele tempo havia, como hoje, agremiações, atletas, uma entidade soberana, que controlava o esporte, e uma emissora de televisão – sim, eles possuíam satélites e viviam em uma sociedade muito avançada, embora pouca gente a conheça com maiores detalhes.

Mesmo sendo uma sociedade evoluída, ninguém conseguia entender como a entidade de administração do esporte e a emissora de televisão detinham tanto poder sobre as agremiações e os atletas.

As agremiações eram extremamente populares. As pessoas vestiam a camisa, compravam produtos, discutiam sobre os jogos em um volume enorme em seus cotidianos. Estas instituições implicavam em um fascínio sem igual no imaginário daquele povo.

Os atletas, por sua vez, também exerciam um poder social incrível. Jovens chegavam a cortar seus cabelos para imitar os ídolos. Se vestiam e falavam tal e qual os seus astros preferidos, imitando-os sempre que julgavam interessante.

Mesmo com todos esses ingredientes, nem clubes, nem atletas, conseguiam negociar bons contratos com a televisão e se mostravam estranhamente passivos aos desmandos da entidade de administração do esporte.

A TV mudava horário de jogos para períodos complicados para que o público fosse às arenas – isso sem falar na saúde física e mental dos jogadores, que era indiretamente afetada. Além disso, pagava proporcionalmente pouco para retransmitir os espetáculos disputados nos campos do país.

Ora, se os clubes e os atletas eram o centro das atenções, por qual motivo não exerciam poder suficiente para brigar por aquilo que acreditavam? A realidade, segundo historiadores, é que os mesmos não tinham capacidade de se reunir e lutar por interesses comuns. Desta maneira, os demais agentes, que se apresentavam de maneira mais organizada, sobrepunham seus anseios perante os verdadeiros personagens do espetáculo.

Ufa. Mas ainda bem que isso tudo aconteceu há muito tempo e em um local muito, mas muito distante do nosso. Vivemos um tempo diferente, com saberes e inteligências distintas, não é, caro leitor?


*Sbórnia é um lugar fictício, criado pelos humoristas gaúchos Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez para o espetáculo “Tangos e Tragédias”, onde, segundo eles, está depositado todo o lixo cultural do mundo.

Para interagir com o autor: geraldo@universidadedofutebol.com.br