Como negócio, o esporte ainda precisa evoluir em vários aspectos. Poucos são tão latentes, contudo, quanto o respeito à rivalidade. O segmento ainda tem parcos exemplos de uso eficiente das dicotomias que ele mesmo cria.
Compare com a ficção, por exemplo: no cinema, no teatro ou na literatura, o desenvolvimento de um bom antagonista é trecho intrínseco na criação de qualquer personagem. Um herói é tão grande quanto os desafios que supera ou as reações que suscita.
A provocação no bar pode ser mais saborosa quando o time rival fracassa, mas até para que isso exista é fundamental que o adversário seja relevante. Não há rivalidade que sobreviva a um abismo.
É isso que acontece na Espanha. O rival local do Barcelona é o Espanyol, mas não há como sustentar um embate entre os dois catalães. A distância entre os faturamentos colocou as duas equipes em mundos absolutamente diferentes.
Hoje em dia, o adversário do Barcelona na Espanha é o Real Madrid. “Os dois disputam um campeonato à parte”, é o que se costuma dizer sobre o cenário de uma das principais ligas de futebol do planeta.
O patamar criado por Barcelona e Real Madrid tem uma série de explicações. Os dois faturam mais porque têm penetração em mais mercados e porque vendem mais, por exemplo. Mas nada desequilibra mais a conta do que a mídia.
Os direitos de mídia do Campeonato Espanhol são comercializados individualmente. Cada time é dono das partidas que faz como mandante, e também é responsável por vender essas imagens dentro e fora do país.
O resultado mais óbvio desse modelo é que os jogos de Barcelona e Real Madrid, times que têm mais relevância internacional, são mais interessantes e vendem mais – os dois respondem por mais de 50% do faturamento nacional com mídia. No curto prazo, isso não causa diferença relevante. Com o passar do tempo, contudo, há uma acentuação contundente no abismo financeiro entre os gigantes e os outros.
Os direitos de mídia incluem negociações com TV, internet e uma série de outras plataformas. Se um time ganha muito mais em cada uma dessas searas, sempre vai poder contratar os melhores atletas. E se contratar os melhores atletas, sempre vai ser tecnicamente mais forte. E se for tecnicamente mais forte, sempre vai gerar mais interesse. E se gerar mais interesse, sempre vai vender mídia por valores maiores. É um ciclo que limita muito as rivalidades.
Parece uma lógica muito simples, mas o esporte nem sempre se preocupa com o que é simples. Em vez de fortalecer a cadeia econômica, o importante é superar o rival. O que vale é ter assunto para a provocação no bar.
Na Espanha, Barcelona e Real Madrid polarizam títulos nacionais desde 2005. O campeonato nacional não é tão ruim quanto alguns insistem em dizer, mas os dois estão muito acima do restante da tabela. Isso cria uma indelével sensação de que não há competição.
O abismo entre os gigantes e o resto tem sido ainda mais problemático nos últimos anos. A economia espanhola enfrentou problemas, e os times locais precisaram buscar dinheiro em outros locais. Barcelona e Real Madrid venderam mídia e cotas comerciais em outros países, mas equipes menores não conseguem seguir esse caminho. E a distância só aumenta.
Na outra ponta está a Premier League. O torneio nacional da Inglaterra vende mídia coletivamente. Metade do montante amealhado é repartida igualmente, e a outra fatia é dividida de acordo com desempenho em campo (25%) e aparições na TV (25%).
A venda de mídia é apenas um aspecto em que a Premier League foi buscar inspiração no esporte dos Estados Unidos. As principais ligas norte-americanas vendem mídia em negociações coletivas. O dinheiro é dividido em porções parecidas, sempre priorizando a competitividade.
Até o draft, instituição tão presente no esporte norte-americano, é voltado à manutenção do equilíbrio. Os piores times de uma temporada são os primeiros a escolher atletas para o ano seguinte. Na teoria, isso faz com que todos tenham condições técnicas parecidas e que exista alternância de forças no torneio.
Com mais equilíbrio, qualquer jogo passa a ser mais interessante. Resultados são mais imprevisíveis, e rivalidades acabam acentuadas.
Na América do Sul, o futebol brasileiro é a Espanha. O país pentacampeão mundial adotou um modelo individual de negociação de mídia. Cada clube tem direito de fechar com a emissora que julgar mais conveniente.
Em primeiro lugar, isso esbarra em um absurdo legal. No Brasil, as duas equipes envolvidas em um jogo são donas da imagem. Portanto, se uma tiver acordo com a emissora X e outra fechar com o canal Y, o jogo depende de um acordo entre todas as partes para poder ser exibido.
Esse cenário bizarro só não aconteceu no Brasil porque todos fecharam com a Globo. A proposta da emissora carioca inclui qualidade técnica das transmissões, alcance nacional e índices de audiência.
Mas também incluiu, a partir da adoção da venda individual, uma enorme valorização do produto. O valor pago por mídia no futebol brasileiro disparou nos últimos anos, mas a evolução não foi igual para todas as equipes. Aliás, aconteceu exatamente o contrário.
Se os times souberem equacionar dívidas e trabalhar ativos locais (categorias de base, por exemplo), a tendência é que o futebol brasileiro comece a acompanhar um processo semelhante ao da Espanha. Quem fatura menos pode equilibrar as coisas em um ano ou dois, mas quem ganha mais sempre tem estabilidade no topo.
O que torna esse cenário ainda mais enfático é a comparação com o principal mercado concorrente. A Argentina mudou em 2009 o modelo de venda de mídia do futebol. A TV estatal pagou 600 milhões de pesos (cerca de R$ 300 milhões) por um contrato de dez anos com o campeonato nacional, e esse total foi distribuído entre as equipes.
Não é por acaso que o Campeonato Argentino se tornou imprevisível e equilibrado. Não é por acaso que as equipes nacionais rapidamente perderam força em disputas com os brasileiros.
A discussão em torno de venda de mídia não é nova, mas serve como gancho para analisar duas novas gestões em dois dos maiores clubes do futebol brasileiro. Flamengo e Palmeiras iniciaram em 2013 com presidentes neófitos, esperanças renovadas e discursos bem diferentes.
Flamengo e Palmeiras estão entre os maiores contratos de mídia do futebol brasileiro. Por consequência, faturam muito mais do que os rivais. Ainda assim, não frequentam o tal panteão dos ricos.
É claro que o equilíbrio no futebol mundial também pode ser explicado por fatores externos. Times como Chelsea, Manchester City e Paris Saint-Germain não estavam entre os maiores faturamentos da Europa, mas receberam injeções de mecenas e se tornaram fortes.
No entanto, o mais comum é a r
ealidade do dinheiro prevalecer em médio e longo prazo. Se eu ganho muito mais do que você, sempre vou ter condições de desequilibrar a competição entre nós.
O prazo para a criação desse cenário depende apenas de organização. Não adianta um clube faturar mais se o dinheiro estiver totalmente comprometido com contas e contratos de períodos anteriores.
O desafio de Flamengo e Palmeiras, portanto, é arrumar a casa. Se os dois forem bem geridos, a tendência é que o mercado os empurre. Ambos têm potencial para muito mais do que fizeram nas últimas temporadas.
O problema é que não há um modelo a ser seguido. O Corinthians, exemplo mais recente de evolução no futebol brasileiro, saiu do limpo com um planejamento baseado no varejo. Além do impulso da TV, a equipe do Parque São Jorge fatura mais porque vende mais produtos.
Flamengo e Palmeiras até poderiam tentar o mesmo caminho, mas teriam um risco enorme causado pela desaceleração da economia. O Brasil pode não entrar em crise nos próximos anos, mas não dá sinais de que manterá o ritmo de ascensão.
O grande mérito do Corinthians foi montar um modelo que era perfeito para o momento econômico do Brasil. O time alvinegro aproveitou o cavalo que passava encilhado. Flamengo e Palmeiras ainda precisam de muitos ajustes internos antes de pensarem em oportunidades. Mas quando estiverem prontos, a dúvida é qual mercado eles encontrarão.
Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br