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Despachando Kevin

– Próximo! Nome e idade.

– Beltrán, Kevin. 14.

O agente celestial olha por sobre os óculos. O caso do menino boliviano já era notícia no Céu.

– Meu filho… Vou te confessar, bem baixinho: Tem horas aqui em cima que nem nós entendemos o que o Chefe pretende com isso. Eu adoraria dizer algo para você que te confortasse, explicasse melhor… Mas não sei. Só posso te falar que, com tanta gente lá embaixo que eu não vejo a hora de despachar, fico estarrecido quando vem alguém como você pro meu departamento…

– Não tem aqueles que nem vão subir pro Céu?

– Tem, né. Mas alguns casos a gente gosta de ter uma conversinha aqui em cima. Só para despachá-los lá pro tacho do… Ops, dá justa causa por aqui falar o nome.

– Mas, então. O que eu fiz para estar aqui?

– Nada, filho. Nada. Mas nosso Chefe trabalha muitas vezes assim. É só ler O Livro. São várias histórias que ele conta e ensina. Pena que os homens não aprendem. Vamos ver agora.

– Eu precisava ter morrido?

– Claro que não. Pelo que vi do seu caso, nosso Chefe ficou desde 1960 protegendo gente nos estádios sul-americanos. Era para ter muitos outros por aqui. Mas só agora ele resolveu dar um toque nas pessoas. Para ver se as autoridades tomam jeito. Para ver se os organizadores conseguem evitar que arsenais entrem nos estádios. Para ver se os torcedores aprendem a fazer festa. A respeitar.

– Mas por que eu?

– Eu não sei. Só espero que as pessoas saibam que alguma coisa precisa ser feita. Ainda que muitos inocentes paguem por esse crime. Que não foi acidente. Não se brinca com fogo. Gente que vai pagar barato – ou deixar de pagar caro por um ingresso – por algo que não se discute. Nem com advogado.

– Foi o menino mesmo que fez isso?

– Não sei. Aqui realmente adotamos a presunção de inocência. Embora, lá no Brasil, estão criando também a presunção da culpa. É muito difícil a gente entender o mundo lá debaixo. Mas deve ter sido. Não acho que alguém diga que é culpado sem ter culpa.

– O que vocês podem fazer para a minha família?

– Confortá-los. Abençoá-los. Independente da fé. Ou mesmo que a tenham perdido com o amor que veio para cá. Só espero que lá no mundo o clube cujo torcedor foi irresponsável (independente da idade) pague alguma coisa à sua família. A renda do jogo de volta deveria ser inteira para os seus pais. É o preço mínimo por algo que não tem preço. Mesmo que não tenha público no estádio, é necessário que se tenha vontade pública de fazer algo para a sua família.

– Não quero que ninguém sofra como os meus pais. Não quero vingança. Só justiça. Ou que outros não morram como eu. Por nada. Por mais que o San José fosse tudo para mim, não era para isso que vivi. Não é por isso que morri.

– Filho, há muitos anos trabalho aqui. Quase todo mundo que chega à minha mesa fala a mesma coisa. Não era a hora, não estava preparado, tinha ainda tanta coisa a fazer… Entendo cada caso. Mas você, meu filho, devo confessar. Ainda vou entender os desígnios e a vontade do Chefe.

– Mas você não disse que é uma lição para os homens?

– Eu acredito Nele. Mas não nos filhos Dele. Vai passar toda essa comoção. As autoridades vão falar grosso. Alguns vão pagar contas que não são deles. Adversários vão querer sangue e os pontos. Inimigos vão querer tudo e de tudo como justiceiros sem piedade. Mas quem mais queria o que realmente importa não terá o calor do seu abraço, filho.

– Eu sei.

– Pena que poucos parecem saber disso, filho. Por eles devemos também orar. É o que nos resta.

– É… [longo silêncio]. Então, meus documentos estão aqui, senhor.

– Pode passar, filho. O paraíso é aqui. Não precisa de papelada. Nem provas.

 

Para interagir com o autor: maurobeting@universidadedofutebol.com.br

*Texto publicado originalmente no blog do Mauro Beting, no portal Lancenet.

 

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Violência

A morte do torcedor boliviano Kevin Espada no jogo entre San José e Corinthians na semana passada repercutiu imensamente nos meios de comunicação a partir de um debate sobre punições, acusados, culpados, violência e assim por diante.

O caso, na realidade, está um pouco mais na origem, que é a cultura da violência do futebol sulamericano. Não que isso seja uma particularidade nossa – até porque assistimos em diversas partes do mundo casos similares, com alguma frequência, de grandes tumultos entre torcedores de diferentes agremiações.

Por aqui, permanece algo evidente pelo modelo arcaico de gestão, tanto dos ambientes onde são disputados os jogos, quando se cria um clima que permeia o limiar da guerra, quanto pela benevolência dos dirigentes com as torcidas organizadas, que só é quebrada quando ocorrem tragédias como esta de Oruro.

A grande diferença, talvez, seja o clima de guerra e violência que se instala a cada jogo. Isso é caracterizado pelo armamento pesado dos policiais até a estrutura dos estádios, onde muitos torcedores ficam quase que enjaulados em pequenos espaços.

Enfim, o relato não serve para justificar a atitude dos torcedores corintianos, tampouco isentá-los de culpa. Qualquer punição, se bem aplicada, servirá como medida educativa para que esta e outras torcidas se respeitem mais. E que as nossas organizações do futebol trabalhem, acima de tudo, medidas preventivas mais eficazes…

Para interagir com o autor: geraldo@universidadedofutebol.com.br