Foi fim de abril. Dia 28. Mas de 1940.
Zico, Agostinho, Jango, Sebastião, Brandão, Dino, Lopes, Servílio, Teleco, Joane e Carlinhos foram escalados por Del Debbio para entrar pela primeira vez no gramado do estádio Municipal paulistano. O Bailarino Servílio marcou o primeiro gol alvinegro no campo de todos os paulistanos. Um pouco mais de todos os corintianos que ali viram os grandes times da primeira metade dos anos 1950. Deram a volta olímpica no IV Centenário da capital, no Paulista de 1954. Deram fim ao tabu sem vitórias em Paulistas contra o Santos, em 1968. Deram muitos murros no concreto. Derrubaram grades. Amaldiçoaram traves. Imaginaram sapos, porcos, peixes, todos os bichos enterrados. Viram uma fila do tamanho do amor ao Corinthians tirar outras voltas olímpicas até 2009. Quando o torcedor comemorou invicto o título paulista. Quando pôde, enfim, celebrar um estádio que foi “dele” por usucapião. Uso campeão mesmo sem título.
Quer algo mais corintiano?
O Pacaembu. Esse é mais que corintiano.
Mais que o velho campo da Ponte Grande. Que o Parque São Jorge. Que a Arena de Itaquera. O Paca é Corinthians. É “Saudosa Maloca” que vai tocar neste fim de semana contra o Flamengo. De despedida de uma casa que será sempre um pouco mais alvinegra.
Outro rival ganhou mais títulos no estádio. Mas pergunte a cada canto do mais lindo estádio de espírito do Brasil. A cada porta estreita que não tem cabimento para tanta paixão: quem é o “dono” daquilo ali?
Até quem não quer saber sabe. Ele vai dizer que não “pode” ser “dono” do Pacaembu quem ficou de 1954 a 2009 sem dar volta olímpica no estádio Paulo Machado de Carvalho (nome de enorme são-paulino…). Fato. Mas, desde que o Corinthians voltou a ser Timão, em 1977, foi na casa tricolor que o alvinegro encontrou o lar de conquistas brasileiras (três das cinco). As Copas do Brasil foram celebradas fora de São Paulo. O último Rio-São Paulo também foi no Morumbi. Os Paulistas, até 2009, fora do Pacaembu. Os Mundiais, fora.
Mas a Libertadores tinha mesmo de ser dentro. Lá onde todos diziam que “nunca serão” eles foram. E, mesmo se fosse do Boca para fora, ainda assim os corintianos seriam no Pacaembu o que eles são pela vida. Vencedores sem títulos necessários. Campeões por serem apenas o que são. Sem os dentes. Feios. Sem educação. Sem um monte de coisa, como adoram falar os rivais.
Mas com algo que é deles de tão público. Algo que é do povo que é tão deles. Vão dizer que Itaquera tem muita ajuda de todo o povo – e tem mesmo. Vão dizer que o Pacaembu também foi apropriado mas é de todo munícipe – e é mesmo.
Mas também por isso o povo é Corinthians. É público. É popular. É Pacaembu. É Corinthians.
Que as autoridades e movimentos de moradores que impediram o melhor negócio para todos que seria remodelar o estádio para ser eternamente corintiano agora convivam com o barulho silencioso da ausência de Corinthians no Pacaembu.
Os domingos serão mais tranquilos e seguros. O odor do filé miau das churrasqueiras de calçadas será outro. Aquela onda sonora de gols e uuuus! irá cessar. Aquela horda humana de gente de todos os credos e cores (ou melhor, apenas uma fé e duas cores) não estará mais pelas ruas que sobem e descem como a vida e o Corinthians.
Estará tudo mais pacífico. Harmonioso.
Menos vivo. Menos humano. Menos corintiano.
É o último jogo antes de o Corinthians ter, enfim, uma casa quase do seu tamanho.
É o primeiro jogo de uma saudade imensa de dias ali vividos, logo, sofridos.
Vai ficar em cada canto do campo um elástico de Rivellino, um calcanhar de Sócrates, uma sentada na bola de Luizinho, uma cabecinha de ouro de Baltazar, um cruzamento de Cláudio, uma antecipação de Domingos, uma falta de Marcelinho, uma celebração de joelho de Neto, uma gota de suor de Zé Maria, uma gota de sangue de Wladimir, uma bolada em Palhinha, uma ordem de Brandão, um dedo no time de Luxemburgo, uma mão na boca de Tite, uma ponte de Gilmar, uma espalmada de Ronaldo, um pênalti defendido por Dida, aquelA defesa do Cássio, aquela cabeçada do Paulinho, aquela mordida do Sheik, um desarme de Gamarra, um toque de Belangero, um lançamento de Zenon, um passe de Rincón, uma risada de Vampeta, uma careta de Tévez, uma chuteira branca de Casagrande, uma celebração de Viola, um coração de Idário, um gol de Teleco, o fenômeno Ronaldo, um pé de Basílio, um voto da Democracia Corinthiana. Um pouco de todo corintiano.
Um muito da vida desse bando que leva a loucura para Itaquera. Mas deixa na maloca do Pacaembu o que Adoniran escreveu com o coração alvinegro que tinha, e a sensibilidade de todas as cores. Um bardo que bradava pelas coisas de São Paulo. Uma voz que saberia preservar eternamente o Pacaembu.
Como cantou em “Saudosa Maloca”:
Si o senhor não “tá” lembrado
Dá licença de “contá”
Que aqui onde agora está
Esse “edifício arto”
Era uma casa véia
Um palacete assombradado
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímo nossa maloca
Mais, um dia
Nóis nem pode se alembrá
Veio os homi c’as ferramentas
O dono mandô derrubá
Peguemo todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Aprecia a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada táuba que caía
Duia no coração
Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei:
Os homis tá cá razão
Nós arranja outro lugar
Só se conformemo quando o Joca falou:
“Deus dá o frio conforme o cobertor”
E hoje nóis pega a páia nas grama do jardim
E prá esquecê nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida,
Dim dim donde nóis passemos os dias feliz de nossas vidas
Saudosa maloca,maloca querida,
Dim dim donde nóis passemo os dias feliz de nossas vidas.
Onde o corintiano passou dias felizes da vida. Até mesmo os infelizes.
Dia de pegar a páia nas gramas do jardim e plantar o coração na nova casa.
Que ninguém deixe ninguém mandar derrubar o Pacaembu.
Que todos mantenham o Pacaembu no lugar que ninguém vai tirar: aqui dentro.
*Texto publicado originalmente no blog do Mauro Beting, no portal Lancenet.