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O cruel mundo do futebol

Sempre falo que jogador de futebol que chega a uma equipe profissional passa, em sua trajetória, por situações que a maioria das pessoas não aguentaria. Entender o lado humano me faz ter mais cautela ao dirigir qualquer crítica: como falar que um atleta é ruim se ele passou cerca de dez anos nas divisões de base, avançando de categoria, em uma disputa mais acirrada que vestibular de medicina? O mau momento no profissional pode ser, talvez, relacionado as ideias do treinador ou a algum problema fora de campo, mas afirmar que fulano ou beltrano não tem qualidade, ainda mais quem chega a uma equipe grande, não me parece o mais correspondente a verdade.
A tragédia no CT do Flamengo colocou luz em problemas que quem acompanha o futebol mais de perto sempre soube. Porém, setores da sociedade que apenas veem os gols e acompanham os placares, não sabiam, de fato, o que um menino da base passa até virar um homem do profissional. Meu ponto aqui não é julgar o que houve no incêndio. As autoridades farão isso. Entretanto, quero destacar a força mental, a resiliência, a crença fortalecedora que todo garoto tem que ter para conseguir construir uma carreira no futebol.
Acompanhando reportagens em programas que não cobrem o dia a dia do futebol vimos garotos que saem de suas casas, com dez anos de idade, para morar em um centro de treinamento em outro estado. Em que pese alguns terem nos clubes cinco refeições diárias, ao passo que em suas casas teriam apenas duas, onde fica o carinho, o afeto e a proximidade familiar tão fundamentais para o pleno desenvolvimento humano? Por mais desestruturada que possa ser a família, de um jeito ou de outro ela resguarda esse menino estando próxima a ele.
O lamentável acidente aconteceu em clube gigante, que tem uma das melhores estruturas do país. O que dizer de clubes menores? As instalações, condições de higiene, a própria alimentação, o acompanhamento psicológico, são de qualidade? Tenho dúvidas…
Portanto, ao ver um jogador em uma equipe profissional o mínimo que posso ter por ele é respeito. Respeito pela trajetória, por passar por dificuldades que talvez eu não teria condições de enfrentar. Em algum momento todo jogador já foi o melhor da sua turma, do seu bairro, da sua escola. E em todos os momentos ele foi um touro na parte mental. Futebol profissional definitivamente não é para amadores.
 

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Sobre os descaminhos da vida

Divulgação: Fox Sports

 
Faz algumas semanas, mas não muito tempo, que tenho cultivado o hábito de não olhar redes sociais, nem assistir televisão, nem consumir qualquer tipo de informação antes de um certo horário – por volta das dez horas da manhã. Quando faço isso, tenho a sensação de que as primeiras horas do dia são realmente minhas, investidas em mim. Tenho tido algum sucesso neste sentido. Mas na última sexta, sem perceber, liguei a TV pela manhã. Era cerca de 8h30.
Nas primeiras linhas do adorável Variações Sobre o Prazer, Rubem Alves admite uma espécie de derrota para o livro que acabara de escrever. Segundo ele, o livro venceu porque, em linhas gerais, causou muito sofrimento ao autor. Todas as tentativas de escrever com ordem e coerência, um pouquinho que fosse, eram em vão, de modo que ele, assim como também fizera o filósofo Ludwig Wittgenstein, preferiu escrever o que lhe vinha à mente, ao invés de criar uma linearidade qualquer. Escreveu o que era possível de ser escrito naquele instante.
Durante o dia, impossível não se sentir tocado. Os depoimentos das famílias, os detalhes que surgiam, a impotência… a sobriedade e o respeito de um Marcelo Barreto, que conduzia a cobertura com absoluta responsabilidade, transmitindo uma confiança inquestionável. Quando me dei conta, havia me suspendido temporariamente de mim mesmo, pois não havia outro lugar que não fosse aquele, e se nós não estivéssemos lá de alguma forma, atentos ao que se passava ali, tudo aquilo viria até nós. As coisas são assim, às vezes.
Se Wittgenstein, Rubem Alves e tantos outros têm problemas em situações aparentemente menores, não teríamos nós também? Nas tragédias, principalmente. Talvez sejam duas dificuldades principais. A primeira é que situações raras e graves exigem imensa sensibilidade. Nós sabemos o que a gente sente, mas dos outros, sabemos pouco. Este exercício de empatia, para quem deseja se aventurar a viver a vida, não sai da primeira página do manual. A segunda dificuldade é que, passados alguns dias, é muito difícil dizer o que ainda não se disse. Muito já foi dito, muito ainda será. Mas há algo importante: mesmo que as coisas, em si, sejam parecidas, elas se dizem de inúmeras maneiras.
Por que nos sentimos tão impotentes de vez em quando? Não deve haver apenas um motivo. Devem ser vários. Imagino um deles: nossa racionalidade só vai até a página três. Dali em diante, nosso livro está em branco. E então não há muito o que fazer, por mais que tenham nos treinado para racionalizar, suprimir o coração e seguir os descaminhos do pensamento. É como se houvesse uma barreira, uma parede tão alta e resistente que nenhum argumento, mesmo o mais poderoso, pudesse superá-la. Aí recorremos ao coração. Não como se fosse um recurso secundário. Na verdade, é como se fosse a alternativa original.
Lidar com as nossas criações, sejam elas quais forem, é realmente muito difícil. Elas podem se tornar maiores do que nós mesmos. Isso denota uma espécie de pequenez, com quem precisamos conviver diariamente. O problema é que nós não sabemos disso quando somos muito jovens. Um garoto de quatorze ou quinze anos, que já não é mais criança, mas também é muito jovem para a vida adulta, não tem a obrigação de saber da vida em detalhes. Não deveria ter muitas obrigações, na verdade: se um garoto ou garota nessa idade abre mão da família, dos amigos, das alegrias inerentes à descoberta da vida, é porque carrega amores muito grandes. Deve sonhar muito alto.
Mas isso é maravilhoso. O sonho, pelo menos a priori, tem uma vantagem muito grande sobre o real: ele não tem limites. Não existem barreiras nem paredes – o sonho é livre! Talvez seja por isso que nossas ideias, vez ou outra absurdas, parecem igualmente maravilhosas. Não importa que elas estejam próximas ou distantes do real, elas nos confortam. O sonho faz da vida o que ela ainda não é: às vezes o próprio sonho é tão real que nós mesmos nos confundimos. Quando se sonha, nós somos quem somos ou somos quem sonhamos ser?
Blaise Pascal, filósofo francês, tinha um aforismo interessante sobre a pequenez. Ele dizia que os humanos são caniços– finos pedaços de cana – muito frágeis, mas com uma vantagem: são caniços pensantes (pensamento, aliás, que nos permite sonhar). Depois de uma certa idade, este sentimento de pequenez, de limitação e fragilidade perante a vida, só não nos toca se não quisermos – ou se não estivermos suficientemente atentos. Mesmo quem ousamos chamar de ídolos, mesmo as referências que tivermos na arte de viver, são pessoas exuberantes na aparência, mas igualmente frágeis. O que também significa que podemos, por um ou mais erros de cálculo, julgar-nos maiores do que somos. Se quem sonha carrega grandes amores, quem se vai sonhando, ama na mesma medida.
O futebol não é um fim. O futebol não se encerra em si mesmo. Não é como um cão que persegue o próprio rabo. Para se saber de futebol, o futebol não basta. O futebol é um meio. Nós queremos, através dele, chegar a algum lugar – talvez a nós mesmos. É uma criação, um caminho dentre tantos outros possíveis, que compartilhamos com tantos colegas. Alguns estão realmente próximos, outros distantes. Mas os sonhos são os mesmos. Por isso, em momentos de enorme tristeza, nosso sentimento é inconstante: por um lado, somos muito frágeis. Por outro, somos frágeis juntos. Se um de nós nos deixa, perdemos uma parte de nós mesmos. Se vários nos deixam, o que nos resta?
Nos resta seguir.
Para chegar ao sonho, é preciso voar. É preciso saber voar. Por enquanto, temos o privilégio de voar e retornar em segurança. Um dia, nosso voo será apenas de ida. E então, para manter-se o equilíbrio, alguém voará por nós. O que não significa que teremos ido embora.
Significa, então, que aquele voo é para sempre.

***

Texto inteiramente dedicado às memórias e às famílias dos garotos Arthur Vinicius, Athila Paixão, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson Santos, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Samuel Thomas Rosa e Vitor Isaías. Além deles, também Ronaldo Quattrucci e Ricardo Boechat.

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“Copona”

Não há dúvidas de que a Copa São Paulo de Futebol Júnior é o mais importante torneio de categorias de base do futebol nacional. Neste ano de 2019 tivemos a edição número cinquenta. Ao longo destas cinco décadas, tradições foram construídas, além de tabus, lendas e ídolos. É bastante história. Muita bola rolou. Muita água caiu, afinal é no mês de janeiro, que costuma ser chuvoso no território bandeirante.

Carinhosamente chamam o certame de “Copinha”. Não pelo tamanho, mas pela faixa-etária dos futebolistas. A “Copinha” é grandiosa, não apenas quantitativa ou qualitativamente, mas pelos atletas revelados e pelos gestos observados, cada vez mais raros: quem não se lembra da generosidade do Vasco da Gama com a delegação do Carajás; do Palmeiras que pagou a passagem de volta, de avião, para os acreanos do Galvez. Do São Paulo, vice-campeão em 2018 a aplaudir os campeões do Flamengo durante a cerimônia de premiação.

Faz-me esquecer José Maria Marín a embolsar a medalha de campeão na edição de 2012.

São Paulo Futebol Clube, campeão da Copa São Paulo de Futebol Júnior em sua edição de número 50. (Foto: Eduardo Carmim/Photo Premium)

 

A “Copinha” é uma “Copona”. Reúne o Brasil, suas diversidades, causas, lutas e sonhos atrás de um esférico que, como a vida, é imprevisível. Dizem que o futebol é a síntese da vida, que está bem no começo para estes garotos que, tão cedo, aprendem a lidar com a montanha-russa que é a vida boleira. Faz a “Copinha” ser ainda mais “Copona”. E, como todo bom torneio, precisa ser bem comunicado por agregar todos estes pormenores, além de ser autêntica. Genuína. Sincera.

Por isso que gostamos da “Copinha”! E o trabalho de comunicação em torno dela, a tratá-la pelo nome popular e carinhoso a ela dado, faz o torneio ser ainda mais querido. A coletiva antes do jogo final, com os capitães, no estádio da decisão, cria expectativas, gera incertezas e ansiedade. O janeiro da pauliceia, assim como o futebol e a vida, é uma montanha-russa: o tempo vira, a calmaria pode virar tempestade; depois da tempestade pode vir a bonança. O clima influencia o jogo, esfria ou esquenta: vide o que aconteceu na final, com a tempestade no segundo tempo.

Com tudo isso, em tempos que somos influenciados por muitos campeonatos estrangeiros, a “Copinha” é um alento de que temos um excelente produto a ser trabalhado, quer seja dentro de campo, para o futuro. Quer seja fora, por tudo o que significa, carrega e agrega para o futebol do Brasil. 

Em tempo: os parabéns para os organizadores da “Copa RS” organizada em dezembro, que, ao lado da “Copinha” de janeiro, proporcionam um calendário bacana para o futebol de base do Brasil: em dezembro o torneio gaúcho; em janeiro o paulista.

Em tempo II: este é o meu texto de número 80. Obrigado a todos que passam ou passaram por aqui. Muito obrigado!

 

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A comunicação na tragédia

Um incêndio no centro de treinamentos utilizado pelas equipes de base do Flamengo matou dez garotos e deixou pelo menos três feridos no dia 08 de fevereiro, no Rio de Janeiro. Além disso, serviu como gatilho para escancarar erros de procedimento e de comunicação de autoridades e do próprio clube. A ferida criada pelo episódio talvez nunca seja fechada, mas poderia causar menos danos de imagem se tivesse sido conduzida de maneira diferente. A despeito de ter criado um comitê unicamente para lidar com a crise advinda da tragédia, a diretoria rubro-negra empilhou erros em seus posicionamentos públicos.
Em primeiro lugar, essa análise não contém julgamento técnico ou de responsabilidade, avaliação que compete à Justiça e aos entes adequados. Ainda que um incêndio dessa proporção jamais possa acontecer sem boas doses de negligência, é preciso fazer uma investigação minuciosa e cautelosa, desprovida de conceitos pré-concebidos. Já se sabe que o espaço não tinha alvará ou autorização para o fim a que se dedicava; já se sabe que os contêineres usados para alojar os garotos estavam longe de ser a estrutura mais segura e/ou adequada; já se sabe que havia um déficit de janelas, saídas de emergência e planos de evacuação; já se sabe que não houve treinamento e/ou preparação dos moradores para casos assim.
Também não existe aqui um julgamento sobre o comportamento do Flamengo com as vítimas e suas famílias. Desde o incêndio, a diretoria do clube tem priorizado essas ações e priorizado esforços para lidar com a dor dos que ficaram. O presidente falou pessoalmente com os parentes e participou ativamente da condução desse momento tão difícil para essas pessoas. Além da dor, muitos dos meninos já eram arrimos de famílias.
No entanto, uma instituição do tamanho do Flamengo não pode se limitar a lidar com os que foram diretamente afetados e com a investigação conduzida por entes competentes. Existe um despreparo na gestão de crise e um erro no senso de proporção que um evento assim possui.
O Flamengo não pode ser tratado como uma empresa qualquer. Trata-se de uma instituição beneficiada há anos por recursos públicos – renúncias fiscais, planos de renegociação de dívida, aportes de estatais e acesso a mecanismos de financiamento de projetos esportivos e culturais, por exemplo. Uma das principais justificativas para a destinação desses recursos é o impacto social das equipes de futebol.
Também existe no Flamengo um trabalho de socialização fundamental para a sociedade brasileira. As escolinhas e os times de base atuam em espaços que o Estado não consegue preencher, e isso intensifica sobremaneira o impacto do incêndio. Aquele local em que dez garotos morreram aglutinava os sonhos de centenas de famílias – a proporção da tragédia só não foi maior porque os treinos da tarde anterior haviam sido cancelados em função das chuvas no Rio de Janeiro.
Por tudo isso, o Flamengo tem obrigação de ser assertivo em momentos de crise. É fundamental que o clube fale, que se exponha ao contraditório e que faça isso de forma humilde, sem fugir das responsabilidades e das dores.
A comunicação do Flamengo deveria ter começado com um pronunciamento, algo que o clube só fez muitas horas depois. Deveria ter continuado com uma entrevista coletiva aberta, com acesso irrestrito a documentos e materiais relacionados ao licenciamento do espaço.
Os tropeços são especialmente relevantes porque o Flamengo é um clube que vem se organizando nos últimos anos, aprimorando processos e lidando com um passivo gerado por administrações anteriores.
O exemplo do Flamengo é apenas o mais bem acabado, mas a crítica vale para todos os times brasileiros. Quem tem um protocolo ou um comitê pronto para lidar com crises? Quem está pronto para atuar nos momentos em que a comunicação é mais necessária e precisa ir além das redes sociais?
Num momento em que o mundo está cada vez mais acostumado a posts rasteiros e rasos, o Flamengo tinha uma chance clara de mostrar que uma instituição desse tamanho pode até sentir grandes impactos, mas não pode ficar atônita e precisa saber reagir. Isso vale para qualquer revés, em campo ou fora.
A grandeza das instituições está justamente no comportamento delas em momentos chave da história. O Flamengo, infelizmente, perdeu uma grande oportunidade no episódio do incêndio. Ali morreram coisas que vão muito além dos dez garotos.
 

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Cadê a evolução, Felipão?!

Aprendo a cada dia estudando e analisando futebol que não há certo ou errado. E até o jogar bonito e o jogar feio são relativos. Vai depender do gosto. Do ponto de vista. O cumprimento da lógica pura e simples do jogo dita que você deve fazer mais gols que o seu adversário. E isso pode ser atingido de diversas maneiras.
O Palmeiras foi campeão brasileiro no ano passado com muitos méritos. O técnico Luiz Felipe Scolari foi cirúrgico e perspicaz em diversos pontos. Fora de campo trazendo paz, confiança e segurança para os atletas. E dentro das quatro linhas implementando ideias simples de jogo. Ideias de fácil assimilação. Que com muita conversa e pouco treino podem ser aplicadas. O Verdão se defendia, e ainda se defende, sempre com muitos jogadores – sempre de quatro a seis jogadores atrás da linha de bola. Dessa forma, dificilmente você vai levar contra-ataque, por exemplo. Para atacar, o padrão de comportamento é a verticalidade, o ataque direto e rápido. Está com a posse? Bola longa para o centroavante disputar a primeira bola e gerar alguma situação para os jogadores que vem de trás. E como o Palmeiras conta com jogadores de altíssimo nível como Dudu, Bruno Henrique, William (machucado) e agora Ricardo Goulart isso pode funcionar muito bem. Como já funcionou no ano passado na conquista do título nacional. E pode continuar funcionando.
O ponto, porém, é a falta de repertório da equipe. É claro que não tenho a pretensão de achar que Felipão, no auge dos seus 70 anos e já com um currículo extremamente vitorioso, vá trazer para sua equipe conceitos como terceiro-homem, viajar junto, mobilidade, amplitude e outros tantos que compõe o jogo de posição de Pep Guardiola. Ou então importar o gegenpressing de Klopp, que une pressão, pressing, temporização e outros conceitos para atacar o contra-ataque rival.
Mas acredito que esse Palmeiras pode mais. Para situações de desvantagem no placar, como contra o Corinthians no final de semana, aliada a desvantagem emocional como contra o Boca Juniors na Libertadores e Cruzeiro na Copa do Brasil, ambas no ano passado, o cruzamento na área não pode ser a única opção.
Insisto que não há certo ou errado no futebol. O Palmeiras jogar simples e objetivamente tem muito valor, sim senhor. Entretanto vejo uma equipe de futebol como algo sempre em construção. Em evolução. E se não há crescimento há queda. O mais do mesmo no futebol é perigoso porque seu adversário está crescendo e está te estudando. A estagnação no jogar é o primeiro e mais crucial passo para a queda.
 

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Sobre as ‘competências sociais’ de treinadores em geral

Julian Nagelsmann, treinador do Hoffenheim: as relações estão no centro do processo. (Divulgação: ZDF)

 
Quando o Hoffenheim anunciou a efetivação de Julian Nagelsmann (hoje, já acertado com o Red Bull Leipzig), há quase três anos, houve uma espécie de surpresa, uma incredulidade epidêmica. Na época, Nagelsmann tinha apenas 28 anos – o mais jovem treinador da história da Bundesliga. Naqueles dias, por sinal, lembro-me bem de ter enviado um e-mail para o Hoffenheim, claro que não para falar da nova contratação, mas para saber um pouco sobre as categorias de base: Alexander Rosen, diretor de futebol à época, disse algo neste sentido, que a confiança em um treinador jovem de Nagelsmann refletia uma espécie de filosofia do clube, de investimento em talentos próprios e etc. É interessante lembrar (embora não seja meu foco aqui), que apesar de muito jovem, Nagelsmann só não era mais velho do que dois atletas daquele grupo.
Além de nos impressionar como treinador – já premiado, trabalho absolutamente elogiável – Nagelsmann também nos trouxe algumas declarações bastante interessantes. Uma delas parece ter ressado especialmente: em linhas gerais, Nagelsmann disse que treinadores precisam dominar 30% de competências táticas e 70% de ‘competências sociais’. Deixo abaixo, em tradução livre, um comentário do próprio Julian (numa ótima entrevista, por sinal) quando perguntado sobre a declaração:
“Se você é o melhor treinador do ponto de vista técnico, mas não tão bom com personalidades, então você não terá o sucesso necessário. Você será bem-sucedido, mas não estará no topo do jogo. Se você é ótimo com personalidades, mas não tem nada para oferecer tecnicamente, então também será difícil. Mas se você tem um nível básico de compreensão técnica e suas competências sociais são muito boas, então você será muito bem sucedido. Uma boa compreensão técnica e apenas o suficiente sobre personalidades também funciona durante um certo período de tempo, mas quanto mais tempo você trabalha com um time, mais importante se torna o relacionamento com seus jogadores.
Se você quer sucesso a curto prazo, o conhecimento técnico é suficiente, mas para o sucesso a longo prazo, você tem que ter uma ideia de como lidar com pessoas, como fazê-las trabalhar em conjunto, como lidar com questões particulares dos jogadores – clarear suas mentes, ser empático é muito importante. Usei a porcentagem de 30 a 70, mas também pode ser de 40 a 60, e isso depende da situação. Quanto pior é um clube, mais empatia você tem que ter. Quanto mais bem sucedido for todo o clube e melhor for a atmosfera, então você poderá se concentrar mais no material. É sempre uma relação em favor da competência social, no entanto.”
Pensando como treinador, meu sentimento lendo este trecho é sempre ambivalente: de um lado, acho admirável a lucidez de Nagelsmann, especialmente sobre um tema que até hoje é escanteado (especialmente na prática, a despeito da retórica). Por outro lado, me causa uma certa surpresa que fiquemos tão impressionados com algo que, no fim das contas, é óbvio: para além de todos os saberes, o futebol se faz por pessoas. O estudo, o refinamento racional diligente são necessários, mas eles, sozinhos, têm um alcance limitado do humano. O cultivo de relações saudáveis ao longo do tempo é um desafio que enevoa a atividade de treinadores, treinadoras e quaisquer profissionais que se dedicam ao esporte, independentemente do contexto.
Mas no que pensamos quando pensamos em relações saudáveis? Veja bem, este é um ponto importante: cultivar boas relações não é sinônimo de idealismo ou submissão, por exemplo. Não significa ser bonzinho ao longo do tempo (aliás, a perfeição moral, como busca humana, não parece uma ideia exatamente interessante). Significa outra coisa: se olharmos para a história, para um sujeito como Maquiavel, por exemplo, encontramos um pensamento bastante interessante sobre as fragilidades de ser moralmente estável ao longo do tempo (algo próximo do que ele chamaria de virtu, ainda que em uma outra conotação, essencialmente política). Para treinadores e treinadoras que desejam construir bons vínculos é preciso repensar os reais benefícios de uma única roupagem moral ao longo do tempo. Quem é moralmente uno, é previsível. E quem é previsível se afasta da sorte (da fortuna, se você preferir).
Evidente que isso não nos autoriza à ignorância gratuita. Não, é claro que é preciso apoiar-se no respeito mútuo, na construção de firmes laços de confiança com jogadores e todo o clube, só que isso não se faz pela docilidade perene (menos ainda no esporte): daí a importância de subjetivar as relações. Assim como os princípios do treinamento nos alertam para a individualidade biológica, também é preciso atentar-se para uma espécie de individualidade relacional, as nuances próprias das personalidades envolvidas em cada relação, o que exige grande necessidade de observação (muitas vezes discreta), diversas experiências na vida vivida e, como bem observou Nagelsmann, uma enorme dose de empatia. Para humanizar as relações, é preciso colocar-se rotineiramente no lugar do outro.
Humanizar as relações sem romantizá-las é um desafio feroz. Maria Lúcia Homem, neste excelente vídeo, faz um comentário bastante pertinente (que indico especialmente aos papais e mamães) sobre a natureza da maternidade: as relações entre pais e filhos estão cercadas de ambivalência. Ou seja, não existe amor puro, nem ódio puro. Existem diversos espectros, lugares que ocupamos e que nos ocupam a cada momento, muitas vezes para além do nosso controle racional. A mesma ambivalência (ainda que em intensidades diferentes) acontece nas nossas relações profissionais, acontece no futebol. Haverá momentos de alegria e proximidade, outros de profunda frustração, solidão ou raiva. Mediar todos esses laços, ao mesmo tempo em que se é parte deles, é um dos grandes mistérios a serem descobertos, sentidos por treinadores e treinadoras. Não bastasse a complexidade da tarefa em si, lembre-se ainda de que esses laços não são visíveis.
Tornar-se treinador ou treinadora não é uma equação, não se faz a partir de 70/30 ou 60/40: se faz aberto, lançado em um turbilhão relacional. É uma participação observante, um campo minado capaz de lindas recompensas quando atravessado, mas que, evidentemente, exige absoluto zelo. Principalmente, é um desafio que não se concretiza em teorias previamente lidas ou pela retórica isolada. É algo que se faz, fortemente, a partir da experiência. Experiência de vida – que, como nos sugere Nagelsmann, independe da idade!
O que exige, além de olhar para fora, um profundo olhar para si.
 

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Camisa Pesa

O Corinthians acertou patrocínios de milhões de reais, o principal deles por dezenas de milhões. O Palmeiras renovou o seu por mais dezenas de milhões. Também do ramo financeiro, um banco deixou de patrocinar o futebol profissional nesta temporada. A modalidade em seu alto nível é cada dia mais cara e precisa destas receitas como nunca antes. As receitas proporcionam, obviamente, equipes mais competitivas, que é o que a torcida quer. É por isso o tema bastante abordado pela imprensa, sobretudo neste início de temporada.

Nos clubes, os departamentos responsáveis correm atrás de anunciantes, mas nada é muito simples. A espontaneidade no acordo e a ativação dos patrocínios somente é situação distante. Há interesses econômicos e comerciais nisso tudo. E, claro, também políticos. De um lado, as organizações esportivas com um bom produto a ser oferecido. Do outro, os patrocinadores que enxergam um leque com inúmeras possibilidades. Entre os dois, a quantificação do valor do mercado: qual a credibilidade das partes envolvidas, dos torneios e o real tamanho destas possibilidades.

Na montagem, à esquerda Leila Pereira (Crefisa) e Maurício Galiote, Presidente do Palmeiras; à direita, Andrés Sánchez, Presidente do Corinthians e Ricardo Guimarães (BMG) (foto: Twitter Palmeiras e Sergio Barzagui/Gazeta Press)

 

Atualmente os títulos de um clube não garantem exclusivamente a credibilidade de uma organização esportiva. Antes deles, considera-se a idoneidade dos membros envolvidos na sua direção, a responsabilidade social que possui (as causas da sociedade em que o clube atua) e a quantidade de pessoas alcançadas (não em número de torcedores, mas de torcedores envolvidos com as causas do clube). Sem falar da identidade e em como o clube a comunica.  

Uma das análises sobre a importância na discussão do tema é que, além de o futebol ter ficado caro, os clubes brasileiros não possuem marcas mercadologicamente fortes e precisam muito destas receitas vindas com anunciantes nas camisas. Essa desvalorização é resultado de décadas de gastos irresponsáveis e ações nem um pouco profissionais por parte dos gestores do esporte. Entretanto, isso começa a querer mudar. Tal mudança só será observada através de profissionalismo e transparência. Por profissionalismo entende-se não apenas remunerar alguém, mas este alguém ser ético nas ações; atuar em equipe que trabalha com método para atingir os resultados a serem alcançados. Simultaneamente a credibilidade é concedida à instituição e, com isso, a marca tende a ser forte, capaz de atrair muito mais recursos, não apenas anunciantes de camisas.

Portanto, a camisa vai ser muito mais pesada quando o trabalho do clube tiver propósito e valor, método e transparência na execução do que fora proposto para cumprir com o objetivo dele. Já que, convenhamos, o esporte e a instituição são muito maiores do que um departamento – que opera sob enorme pressão – para arrumar patrocinadores.

 

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A defesa de faltas laterais: vantagens e desvantagens da altura do posicionamento da linha defensiva – Parte 1: defesa posicionada na linha/dentro da área

Em uma das publicações anteriores, levantamos uma discussão a respeito de escanteios ofensivos e sobre a constante evolução que o futebol vive, fruto da necessidade dos treinadores de criarem conceitos e variantes à sua ideia de jogo que lhes permita obter vantagem significativa sobre o adversário.
Desta vez o tema é a falta lateral/central defensiva e suas diferentes possibilidades de posicionamento da defesa, o que obviamente, irá gerar diferentes repercussões e interações, as quais sem dúvida vale a pena pensar à respeito.
Fazendo uma análise sobre o modo como as equipes no futebol mundial vêm defendendo cobranças de falta lateral/central, podemos afirmar que a maioria das equipes do mundo (da categoria de base ao profissional) posicionam seus jogadores em cima da linha da grande área. Essa tendência se aplica tanto para equipes que defendem homem-a-homem como por zona, como podemos ver na imagem abaixo.

França, campeã do mundo, defendendo uma falta lateral.

 

Embora seja comum posicionar os jogadores assim, trata-se de um conceito pouco debatido. Parece-me, inclusive, que as bolas paradas além de serem pouco discutidas, sofrem de certo preconceito no mundo do futebol, sendo raramente valorizadas. Prova disto é o pouco tempo de treino destinado durante a semana (normalmente treinada apenas na véspera do jogo), pela maioria dos treinadores.

Fato é que, quer queira ou quer não se queira, elas fazem parte do jogo e, mais do que isso, as bolas paradas decidem jogos e campeonatos. Simplesmente por este motivo elas merecem valorização e aprofundamento teórico e prático.

Por isso, analisaremos este tema de maneira mais aprofundada para saber se realmente a estratégia de posicionar a equipe na linha (ou dentro) da área é a mais adequada para se sobrepor ao rival, já que algumas equipes, há alguns anos vêm adotando um posicionamento diferente do habitual. Minha análise se baseará apenas no posicionamento, excluindo parâmetros fundamentais como disciplina, agressividade, ataque à bola, imposição no duelo defensivo, coragem, sincronismo, velocidade no preenchimento dos espaços, etc.

As vantagens associadas ao posicionamento defensivo na linha da área:

– Facilita a organização e disposição dos jogadores, uma vez que a linha da grande área serve como referência de posicionamento, proporcionando fácil visualização e ajuste;

– Proteção da profundidade, teoricamente fazendo com que a defesa dificilmente tome uma bola nas costas, já que estando mais próxima do gol, diminui o campo para o adversário;

– Devido a estar facilmente em linha, a defesa pode utilizar a regra do impedimento ao seu favor.

Compilação de lances positivos em que a defesa, posicionada na linha/dentro da área apresenta solidez defensiva.

Talvez seja por isso que assistimos a tantas equipes defendendo desta forma. Contudo, por mais que as equipes tenham disciplina, boa agressividade no ataque à bola e entrada na área no tempo correto (conseguindo afastá-la), também é verdade que, semanalmente, assistimos gols e chances perigosas criadas principalmente a partir de faltas laterais/centrais. Para além da qualidade ofensiva da equipe que ataca, a criação de chances de gol pode estar associada à algumas repercussões que o posicionamento na linha, ou dentro da área gera.

As desvantagens associadas ao posicionamento defensivo na linha/dentro da área:

Inevitavelmente quando a defesa está posicionada na linha da grande área (de forma intencional, mesmo tendo a possibilidade de adiantá-la) leva a que, com a “viagem” da bola a defesa termine a jogada dentro da grande área, produzindo uma aglomeração de jogadores (defensores e atacantes) que limitam/restringem a ação do goleiro neste tipo de bola, impedindo de socá-la, ou agarrá-la, enfim, intervir de maneira direta.

Simplesmente, se cria a possibilidade dele ficar “vendido” no lance, a espera de algum desvio, ou acontecimento para reagir.

Talvez por isso ouvimos por aí orientações do tipo “cobra em direção ao gol porque se ninguém desviar ela entra” ou até mesmo “joga na área e espera pela confusão”, pois realmente nestes casos a bola fica muito “viva” e como o goleiro tem (em vários casos) sua ação limitada, qualquer desvio, cabeceio, rebote pode significar gol.

Atlético de Madrid dentro da área muito antes do apito, na defesa de uma falta lateral, contra o Real Madrid. Uma falta lateral que custou a primeira Champions para Simeone (2015/2016)

 

Se esta desvantagem vale para equipes que fazem a “invasão” da área apenas no momento da batida, ela aumenta significativamente para equipes que invadem antes, ou marcam já dentro da área, antes mesmo do apito do árbitro.

Compilação de gols sofridos e chances criadas a partir de faltas laterais, com equipes posicionando a defesa em cima da linha, ou, dentro da área.

 

Como vimos, o posicionamento na linha/dentro da área (tal como tudo no futebol) tem seus pontos positivos e negativos, cabendo ao treinador refletir se os riscos compensam os benefícios e optar por esta estratégia, ou por outra.

Nesse sentido, no próximo artigo trarei outra possibilidade de posicionamento na defesa das faltas laterais, que irão gerar outras repercussões, tanto positivas como negativas. Ideias que igualmente visam obter maior solidez defensiva e, por consequência, reduzir significativamente a margem de risco associada às faltas laterais.