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Porque Tite é disparado o melhor técnico do Brasil

Sou muito crítico a categoria de técnicos brasileiros. Nunca generalizo, para não ser injusto. Mas vejo um atraso gritante dos nosso profissionais com relação ao que se faz no mais alto nível mundial. O fato de nenhum treinador do Brasil ser cotado para assumir nem ao menos um time médio europeu não me deixa mentir. E repare que me refiro a time médio. Um clube gigante mundial, então, acredito que nem se fizer uma listagem de vinte possíveis nomes colocará um profissional do nosso pais nesta lista.
Posto isso, e apesar disso, o nosso melhor profissional é Tite. Com suas qualidades, que são muitas. E com seus defeitos, que para mim são suportáveis. Coloco ‘defeito suportável’ porque no final das contas é isso que segura qualquer relacionamento. Seja ele pessoal, seja ele profissional – neste caso Tite (treinador) e eu (jornalista).
Entendo que o resultado em campo é fruto de um trabalho muito complexo do técnico. Amo estudar tática, estratégias, modelo de jogo, princípios e sub-princípios operacionais de ataque, defesa e de transições. Entretanto, quanto mais estudo tudo isso mais entendo que o jogo não se resume a isso. O trabalho de um técnico fica muito evidente com escalações e alterações, porém ele vai muito além disso.
Tite é um mestre na arte das relações interpessoais. Essa é sua principal virtude – em segundo lugar vem a competência em armar grandes defesas, um atributo que ele carrega desde o início de sua carreira. E a maneira com que Tite faz a gestão do ambiente se sobrepõe, por exemplo, à dificuldade em criar conceitos ofensivos. É nítido que a seleção brasileira apresenta dificuldades em furar boas defesas. Só que o trabalho de Tite é bom, apesar disso.
Vamos combinar, caro leitor: não existe técnico perfeito!
Reconheço que Tite em alguns momentos exagera nas figuras de linguagem, mas sua comunicação é muito boa. Também o seu trato diário com todos os funcionários, passando por massagistas, jogadores e chegando nos dirigentes é excepcional. E acredite: isso faz toda diferença! Isso faz sim uma equipe, ou uma seleção, ganhar. O bom técnico é aquele que tem boas competências profissionais técnicas, como entender de tática, metodologia de treino, ter boa leitura de jogo, mas também aquele que sabe liderar pessoas, gerir recursos humanos. E Tite é um mestre nisso.
E vamos lá: depois de Tite quem é o melhor aqui no Brasil? Tenho dificuldade para responder. Não vejo ninguém nem perto dele. Mano Menezes? Tem os mesmos problemas de ideias ofensivas e não é tão eficaz na gestão do ambiente. Renato Gaúcho? Não sinto firmeza na intenção do trabalho dele. O bom momento do Grêmio é muito mais fruto do que o clube produz do que do trabalho em si de Renato. Para mudar esse meu conceito gostaria de vê-lo triunfar em um outro cenário, onde ele não seja o maior ídolo da história. Enfim, Tite não está a altura hoje de dirigir um Manchester City, um Liverpool, um Barcelona. Mas é o melhor nome entre os profissionais nascidos em território brasileiro. Sabendo do conservadorismo da CBF em ser relutante a abrir a nossa seleção para um estrangeiro: fica Tite!
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Sobre o treinador-artista

Fernando Diniz, do Fluminense: a arte está no caminho. (Foto: Lucas Merçon/ Fluminense Football Club)

 
Existe um filósofo francês, chamado Michel Onfray, que escreveu um livro bem interessante, embora difícil, chamado A Escultura de Si. No livro, Onfray ensaia o significado e a importância de ‘fazer das nossas vidas uma obra de arte’.
Há uma certa passagem em que, citando um dos seus mestres (Nietzsche), Onfray exalta o filósofo-artista, cuja diferença estaria na ‘capacidade de inventar novas formas de existência’. Este trecho, em particular, é muito chamativo.
Na coluna de hoje, gostaria que fizéssemos uma adaptação, que não é tão distante assim: vamos pensar um pouco sobre o significado e a importância do treinador-artista. Vejamos.

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Uma das primeiras diferenças do treinador-artista, talvez a primeira, está na sua relação com as emoções. Este treinador ou treinadora não deixa as emoções em um lugar secundário ou alheio, da mesma forma como sequer imagina suprimir as emoções, em nome de uma razão pura, como têm nos ensinado muitos cursos mundo afora. O treinador-artista, pelo contrário, está aberto às emoções. Por isso, está aberto a si mesmo, à sua própria humanidade, e então está aberto ao jogo e ao mundo.
Nas palavras do mesmo Onfray, que citei acima, o artista é aquele que ‘põe a emoção antes da reflexão’. Repare que não existe nenhum crime aqui: ninguém está falando em desligar a razão ou ‘desligar a ciência’, como alguém poderia interpretar. Na verdade, o que não se pode é desligar as paixões, suprimir os afetos – como jamais fizeram, diga-se, inúmeros dos maiores artistas de todos os tempos. O treinador-artista não é aquele que mata a reflexão. Talvez seja o que consulte as paixões primeiro. E então reflete.
Quando aceita as próprias emoções e, especialmente, quando deixa as emoções em um lugar privilegiado, quando simplesmente aceita sentir (por si e pelos outros), o treinador-artista não apenas admite um compromisso com a sua humanidade inteira, como também admite um compromisso com o treinamento das paixões. É mais ou menos disso que falamos quando falamos de uma pedagogia dos afetos. O treinador-artista sabe que haverá momentos de profundo pensamento, mas também haverá momentos de intuição, de rapidez, momentos que, às vezes, a mais fina razão não alcança. Por isso, a formação básica é emocional.
E o treinador ou treinadora-artista pode saber disso sem ter lido Daniel Goleman ou Daniel Kahneman. Mas eles sabem.

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Ótimo, vamos então refletir sobre a reflexão deste treinador-artista. Essa reflexão pode ser superficial? Não, não acho. O treinador-artista é aquele que consulta primeiro as emoções mas, ao mesmo tempo, é aquele que trabalha continuamente para refinar o próprio pensamento, sobre as coisas e sobre si. Ou seja, é um treinador/treinadora que não sabe apenas de futebol, que não lê apenas sobre futebol, que pensa além do futebol, que pensa muito além do futebol e que, por isso, pode pensar coisas extraordinárias sobre futebol, pode ‘inventar novas formas de existência’, como falamos acima.
Sendo mais específico, o que faz do treinador-artista acima da média é a capacidade de desenvolver um pensamento original, assim como de recriar este pensamento continuamente. O artista não está exatamente interessado em seguir as normas vigentes, isso todos já fazem, ele prefere criar as próprias normas (autonomia, portanto). Por isso, ele se pergunta: por que não usar meu goleiro para o ataque? Por que não usar as forças do adversário em nosso favor? Por que o jogador A não pode jogar nas funções X ou Y? Por que só se pode ‘driblar no último terço’? Por que os pontas não podem atravessar o campo quando quiserem para criar superioridades no setor da bola? Por que é preciso simetria no ataque? Enfim. A arte também parte da dúvida, mas talvez seja uma dúvida do coração.
A meu ver, isso é dramaticamente necessário, pois esses treinadores e treinadoras trazem uma outra cor ao futebol. Um dos problemas do nosso tempo é que as coisas, às vezes, parecem monocromáticas, parecem estar em um mesmo tom, as pessoas também, às vezes o próprio pensamento, as maneiras de pensar, tudo parece muito semelhante. De alguma forma, isso também mora no futebol. Às vezes, temos a impressão de que muitas equipes jogam muito parecido, com sistemas muito parecidos, com substituições que se repetem, que nossas equipes (incluo as minhas) sejam vez por outra tão obedientes, tão tementes à ordem, como se um grande prego fincasse cada jogador ao espaço (foi Valdano quem disse isso), de modo que nossos jogadores vão se esquecendo de jogar futebol, de jogar o jogo (são coisas diferentes), de desfrutar o jogo e, por isso, não apenas se esquecem, como talvez sequer imaginem que possam fazer arte.
O treinador-artista, portanto, não é necessariamente aquele que consegue fazer arte. Pode também ser aquele que sabe que ela existe e que ela é possível.

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Se seguirmos a linha que fomos traçando ali em cima, você vai concordar comigo que o treinador-artista não é necessariamente aquele que ‘joga bonito’ – especialmente se associarmos o jogo bonito ao jogo ofensivo. Nem sempre. O treinador-artista é o que primeiro sente, que pensa por si, é um escultor de si mesmo e da equipe. Diego Simeone, por exemplo, é um artista. Por quê? Porque em uma cultura em que a maioria dos treinadores estão ávidos pela posse, ele pensou pelo avesso, abdicou da posse, e construiu um projeto a partir do caráter, da defesa, passando pela transição (Antoine Griezmann, aliás, evoluiu muito neste modelo). E fez disso uma arte, uma estética defensiva, que trouxe títulos e que, por isso, também trouxe terríveis insucessos. E continua sendo arte. Porque a arte não se mede nas vitórias, apenas.
Ou seja, não existe um modelo de jogo específico, uma estrutura específica, por onde o artista começa e segue. O treinador-artista olha para si, consulta suas emoções, reflete rigorosamente sobre elas, faz isso continuamente e, como em um susto, talvez descubra em si mesmo um conhecimento que ainda não havia encontrado, uma solução que parecia oculta, um saber seu (portanto, único) – e então leva este saber para o campo. Lá, no ateliê dos treinadores, ele refina suas ideias, confronta suas ideias com o jogo, com os atletas, com o tempo, com o espaço. Ali, se aprimora como treinador/treinadora e, ao mesmo tempo, se aprimora como artista.

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Por fim: é obrigatório, além de ser treinador ou treinadora, com tudo o que isso já significa, ser um treinador-artista? Não, claro que não.
Mas nenhum treinador nasce treinador. Treinadores tornam-se treinadores. Ou seja, precisam ser criados, pelo mundo e por si mesmos. Sendo um ato criativo, tendo de esculpir a si mesmo, deduzo que já exista um quê de artista (a ser continuamente trabalhado) em cada um dos treinadores.
Ainda que se trate de um grande segredo.
 

 

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Sem romantismo

Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai lançaram candidatura conjunta para receberem o mundial de futebol masculino em 2030, ano em que se completarão 100 da primeira edição, no Uruguai, em 1930. Excelente poder contar com um evento como este na América do Sul. Oxalá corra tudo bem e que, de fato, sejam os países escolhidos. No entanto, é um desafio muito grande.

Megaeventos como estes levam inúmeros fatores em consideração, falar mais uma vez sobre eles é “chover no molhado”. Logística, deslocamento, oferta e demanda, disponibilidade de serviços, tudo isso é importante. Não é difícil perceber que existem muitas outras regiões do planeta que possuem estes temas resolvidos de uma melhor maneira.

Os exemplos dos países-sede das últimas edições nos leva a perceber que não é preciso ser um grande centro da modalidade para receber uma Copa do Mundo. Não que seja preciso, afinal o futebol é de todos, para todos, em todas as partes. Um parênteses, muito se questionou sobre a escolha do Qatar como país-sede. A questão foi em como o país do Golfo Pérsico foi escolhido para receber a Copa.

Ademais vale lembrar que, quando o Brasil foi o eleito para a Copa de 2014, havia um rodízio de continentes na escolha, e os brasileiros beneficiaram-se disso. Coincidência ou não, por motivos políticos ou mercadológicos este processo de escolha foi abolido não muito tempo depois.

Também vale pensar que a candidatura sul-americana seja apenas um blefe, uma especulação para animar o mercado da bola local, atrair investidores e mais patrocinadores e, com isso, aquecer a – incipiente – indústria do futebol por estas bandas, ainda abalada pela investigação do FBI e prisões de dirigentes locais.

Exibição da candidatura da Inglaterra para receber as Copas do Mundo de 2018 ou 2022. (Foto: Divulgação)

 

Com tudo isso, antes de candidatar-se, pensar em uma candidatura exitosa passa por trabalhar a modalidade em serviço da população. Sem romantismos, tradição e história não convencem mais. Se fosse por isso a Inglaterra teria sido eleita sede em 2018. Ao mesmo tempo é preciso operar e saber atuar em ambiente competitivo e aberto, de ampla concorrência, o que a América do Sul – ainda – não sabe fazer.

Os resultados não mais podem dar origem aos projetos, e sim o contário. 

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

O futebol é como o mundo deveria ser: simples, com garantias de liberdade, igualdade e espaço para o talento individual.
Mario Vargas Llosa, escritor peruano

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Entre o acerto e o erro: o futebol através da intencionalidade

Ao ver uma partida de futebol nos deparamos com uma constelação ampla de significados. Significados estabelecidos pela nossa cultura, pela nossa forma de compreender e enxergar o mundo. Quando nos propusemos a olhar para um determinado fenômeno agimos constantemente de forma dialógica. Ou seja, ao definirmos algo como é também dizemos que algo não é. E no futebol não é diferente. A escolha em interpretar um jogo de futebol por meio de erros e acertos elucida bem a afirmação anterior. Desde o inicio da manifestação cultural do jogo, julgamos as ações com os erros e acertos que identificamos. Um processo linear de causa e efeito.
As atribuições que fazemos por meio dessa maneira de contemplar os processos da manifestação cultural do futebol não nos permite em muitos momentos refletir a cerca do que estamos dizendo que ele não é. Um bom exemplo seria a afirmação: O futebol não existe! Uma afirmação que em um primeiro momento pode parecer infame, mas, que nos permite ao mesmo tempo adentrar em uma reflexão mais profunda sobre uma perspectiva diferentealternativa sobre a relação homem, sociedade e natureza. E é a partir desse ponto então que pretendo por luz ao que me interessa. Ir de encontro à essência das coisas, o caminho entre os vales do acerto e do erro no futebol.
Caindo entre esses dois extremos é possível perceber que já não encontramos mais como respostas as coisas mesmas, o acerto ou o erro. Ao olhar adiante e ao redor não é lúcido compreender as ações escolhidas pelos protagonistas por meio de uma ótica racional. A lógica já não carrega com tanta certeza as descrições de experiências vivenciadas nesse ponto. Mas afinal, o que é possível encontrar em um caminho limpo de erros e acertos. Ou melhor, dizendo, o que é que enxergamos ao olhar uma partida de futebol sem tomar como epistemologia as variantes lineares da causa e do efeito.
Posso afirmar nesse momento que partimos então de uma perspectiva ontológica. Um ponto de vista que não busca DEFINIR a forma como é SER praticante de um jogo de futebol. Isso pelo fato de compreender que ao contrário de tentarmos definir o que algo (alguém) é, devemos perceber COMO algo (alguém) é. Constantemente e inevitavelmente em situação. Definimo-nos com a situação. Até mesmo achando que não estaríamos nos definindo, nos definimos ao escolher não definir. Sendo no mundo. Ser-no-mundo. Implicações que ao primeiro contato espantam e confundem. Implicações que abrem uma nova janela. A janela da intencionalidade, que permite a quem olha, o desnude de um mundo (jogo) fascinante!
Uma manifestação coletiva de pessoas que por meio de suas intencionalidades (movimentos humanos) transcendem as possibilidades de atuação no mundo da técnica. Respondem de formas variadas as relações: sujeito-sujeito, sujeito-ambiente, sujeito-objeto, tudo complexamente em ritmo, harmonia. Ouso até afirmar que o futebol é a corporeidade em plena existência. É no futebol e com o futebol que materializasse a corporeidade. As teias que permeiam todas as relações saltam de tal modo que podemos comparar o invisível de uma obra de arte ao mesmo sentido. Ao jogar futebol, construímos a arte do que não existe, pois, o futebol não existe.
Agora, pare, respire e enxergue o futebol, única e exclusivamente pelo canal da intencionalidade. Pergunte a si mesmo se as intenções de todos os envolvidos poderiam ser coletadas e explicitadas através de acertos e erros. Questione o que está por de trás da cortina do gesto técnico. Olhe atentamente. Perceba o que está por de trás de sua manifestação. O futebol não existe. Ah, o futebol não existe. Vejo um quadro. Um campo verde. Pessoas. Uma bola. Movimento humano. Linhas brancas de formas retangulares. Um círculo no meio do quadro. Conseguiu imaginar? Isso é a consciência. A consciência é sempre de algo (alguém). Consciência e intencionalidade, o que podem falar sobre o futebol?
O futebol não existe. Experimente descrevê-lo assim. Atreva-se a pensar os gestos como intencionais e inevitavelmente entrelaçados a uma consciência de algo ou alguém. Estabeleça antes de qualquer pré-conceito um fundamento sobre essa relação. E lá está! Um sujeito. Sujeitos. Sujeitos que se movimentam por através das mais diversas intencionalidades. Ah! O FUTEBOL NÃO EXISTE! Agora eu percebi! Existem humanos! Humanos juntos! Humanos, movimento, intencionalidade e consciência….ai, sim! O futebol existiu.
 

 

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Sobre o ataque iniciado por uma saída de três

Aymeric Laporte, do Manchester City: condução e associação perfeitas para uma saída de três. (Reprodução: Sky Sports)

 
Durante um bom tempo, que terminou sem que notássemos, havia uma ideia mais ou menos clara no futebol brasileiro: quem joga com três zagueiros, joga para se defender melhor.
Bom, passados alguns anos, vejo dois movimentos importantes: I) aqui no Brasil, entre as séries A e B, estão mais raras as equipes que jogam com três zagueiros; II) aquelas que jogam, não são necessariamente taxadas de defensivas.
Neste texto, gostaria de trazer algumas ideias não sobre as consequências defensivas, mas sobre as consequências ofensivas do ato de jogar a partir de uma linha de três. Vamos pensando juntos.

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Há um fato curioso, especialmente quando pensamos no futebol praticado no Brasil: ainda que pareça cada vez menora incidência de equipes que jogam com três zagueiros de ofício, também parece ligeiramente mais natural ver equipes que começam a construção ofensiva a partir de uma saída de três. Ou, se você preferir, equipes que constroem a partir de uma saída lavolpiana. De alguma forma, essa pequena mudança reflete um pouco das violências que nosso pensamento futebolístico recebeu nos últimos anos. Não digo violência no sentido negativo do termo, mas violência como o movimento que viola nossas ideias médias e, por isso, faz com que elas mudem de forma.
E o que isso significa? Significa que está cada vez mais claro que é possível construir a partir de uma saída de três sem que se jogue com três zagueiros, por exemplo. Estamos mais do que habituados às equipes que utilizam o recuo de um dos volantes para a linha anterior, abrindo os zagueiros e criando, não raro, superioridades sobre os atacantes adversários. A ideia, portanto, é aumentar a largura desta primeira linha ofensiva, o que pode ter a contribuição de um jogador que está uma linha acima e, mais do que isso, este simples movimento também influencia a altura dos laterais – que agora estarão adiante.
Mas repare que o viés de todo este meu parágrafo é ofensivo, e é isso que me chama a atenção. Sinto que estamos mais interessados em olhar para as repercussões ofensivas da ‘defesa’, e portanto aqui está uma diferença razoável no olhar que temos construindo, pois quando se falava em equipes que jogavam com uma linha de três, imediatamente fazíamos uma associação defensiva, ao passo que, ainda que devagar, já temos um olhar mais dinâmico, que percebe o ataque na defesa e vice-versa.

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Uma consequência imediata do ataque a partir de uma saída de três está no comportamento dos laterais. Não por acaso, há quem inclusive mude o seu nome, chamando os laterais de alas. Vou manter o termo original, entendendo essa diferença como irrelevante.
Em condições normais, atacar a partir de uma linha de três faz com que os laterais subam imediatamente alguns metros, compondo agora uma das linhas de meio-campo. Isso também significa que, muito provavelmente, será o lateral quem dará largura para a equipe, quem abrirá o campo (às vezes em extensão máxima) para igualmente abrir a defesa adversária e, portanto, induzir alguma forma de desequilíbrio, seja se beneficiando de um possível espaço pelo lado, seja abrindo a defesa adversária para que se criem espaços por dentro. Para isso, repare bem, é provável que o lateral, ao contrário do que normalmente faz uma linha de quatro tradicional, busque o espaço para receber a bola às costas do ponta adversário desde no início da construção – o que pode vir a ser um problema interessante, especialmente se o adversário fizer marcações individuais no setor. Afinal, onde for o lateral, irá o ponta que o marca.
Este é um dos motivos porque o comportamento dos laterais, logo de cara, pode ser tão interessante a partir de uma saída de três. Mais abaixo, citarei outro.

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Existe uma questão situacional no ataque a partir de uma saída de três. Quantos atacantes têm o adversário? Lembro de um jogo entre Athletic Club x Schalke 04, o Athletic treinado por Marcelo Bielsa, em que ele alterou a escalação inicial assim que soube que o Schalke jogaria com dois centroavantes (Huntelaar e Obasi). É claro que a decisão tem uma preocupação defensiva (Bielsa gosta de jogar com sobra), mas também há uma repercussão ofensiva, porque jogar com uma linha de quatro significaria que, no início da construção, os dois zagueiros estariam em igualdade com os dois atacantes adversários.
Este pode ser um problema importante, facilmente resolvido se preenchermos um pouquinho mais a primeira linha. No caso daquele jogo, Bielsa trouxe um dos laterais (Aurtenetxe) para a linha dos zagueiros. Com uma saída de três, jogando os laterais metros acima, temos portanto uma situação de 3 v 2, que nos permite, em caso de boa circulação, avançar metros acima (falei melhor sobre isso neste texto). Mas quando eu digo que a saída de três é situacional, penso em uma outra questão: e se o adversário jogar com apenas um atacante? Vale a pena construir a partir de uma linha de três?
Continua não sendo uma questão simples (não é causal), pois envolve inúmeros outros fatores: quais são as características dos meus zagueiros? Como a equipe adversária marca? Como nós queremos atacar? Qual o atual nível (inclusive de confiança) da nossa equipe para, eventualmente, ter um jogador a menos metros adiante? Repare como uma decisão envolve, na verdade, uma série de perguntas, um mosaico de questões que qualquer treinador leva a cabo quando trabalha.
Daí, aliás, a complexidade inerente ao ato de treinar.

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Uma contribuição bastante importante de Pep Guardiola, que talvez tenha ficado mais explícita após a sua chegada ao Bayern de Munique (quando trouxe Lahm para o meio), mas que certamente está nítida no Manchester City, é uma certa mudança na localização de laterais e pontas.
Em condições normais, quando atacamos a partir de uma linha de três, o lateral sobe metros e abre o campo, enquanto o ponta pode tanto entrar em diagonal (é o que eu prefiro) quanto pode ficar no mesmo corredor do lateral – ainda que isso signifique que um possa anular o outro. De qualquer forma, a ideia básica é: o lateral, provavelmente, será responsável por abrir o campo.
Guardiola (digo, especialmente ele) causou um certo transtorno quando sugeriu, ao invés disso, que o lateral partisse de dentro, enquanto o ponta recua metros, ocupando, em certa medida, o espaço do lateral. Ou seja, se meu zagueiro pela direita, em condições normais, teria o lateral como opção imediata de passe por fora, agora a opção imediata não mais será o lateral, mas o ponta (que, não se esqueça, provavelmente estará às costas do ponta adversário). Com jogadores fortes no 1 v 1, como Arjen Robben, Douglas Costa, Frank Ribery, Leroy Sané, Raheem Sterling e vários outros, essa realmente se tornou uma opção muito interessante ao longo do tempo, uma vez que permitiu, simultaneamente, reforçar o corredor central, criando pelo menos duas superioridades (numérica e posicional), ao mesmo tempo em que potencializou a qualidade dos pontas, permitindo que pudessem driblar em espaços menos congestionados a priori. Junte a isso a possibilidade de que os pontas tenham pés invertidos (canhoto pela direita e vice-versa), e os cenários podem ser ainda mais interessantes, especialmente para equipes que pretendem atacar por dentro.
No caso de Guardiola, não se esqueça que isso também acontece quando ele ataca com apenas dois zagueiros, neste 2-3-5 que ele usa de vez em sempre. Mas, retomando o que escrevemos lá em cima, o 2-3-5 também é fluido (como qualquer outro sistema), e a fronteira que o separa de um 3-2-5, por exemplo, pode ser tênue, quase invisível.

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Também é importante, como já esbocei acima, considerar o perfil dos zagueiros em questão. Não apenas o perfil de hoje, mas o perfil futuro, o perfil que queremos despertar pelo modelo de jogo. Veja o caso de Aymeric Laporte, por exemplo: um zagueiro que talvez fosse mais condutor, com técnica e velocidade que lhe permitiam tranquilamente jogar pela esquerda em uma linha de três, mas que agora também desenvolve uma capacidade admirável de quebrar linhas em passes curtos ou longos, o que dá ainda mais fluidez ao ataque do City. É o tipo de qualidade despertada pelo modelo.
Laporte é um ponto fora da curva, mas o perfil de quem joga nessa primeira linha é importante. Se quero um ataque mais direto, basta um jogador que dê chutões ou preciso desenvolver alguma precisão, alguma localização para este passe? Se quero que meu zagueiro pela esquerda (da linha de três) conduza mais a bola no início da construção, é preferível que ele seja destro ou canhoto? No caso de um ataque apoiado, tenho zagueiros que se sentem confortáveis conduzindo ou passando a bola? Se sim, como podemos aproveitá-los ao máximo? Se não, como podemos desenvolvê-los? Algum dos volantes têm perfil para recuar alguns metros e construir o jogo desde o início? Algum deles têm perfil para resolver um problema a partir de um drible, se preciso? Repare, mais uma vez, como treinar uma equipe flerta com a arte não apenas de responder, mas de fazer perguntas.
No caso de quem joga por dentro, especialmente quando pensamos nessa saída lavolpiana (um dos volantes se junta à linha de zagueiros), é importante que este jogador tenha um bom passe, goste de passar a bola, goste de passar a bola bem, tenha interesse em distribuir o jogo. Imagine o que pode ocorrer, por exemplo, se este jogador se sente desconfortável para receber a bola de costas, correndo o risco de ser pressionado. Daí a importância, aliás, de fazermos com que nossas ideias conversem com os jogadores que temos, com as nossas possibilidades, que pensemos longe, mas que este horizonte seja alcançável, realista.

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Aqui, acho que temos algumas boas ideias iniciais. Em breve retomo a este tema, especialmente pensando sobre as outras fases do ataque iniciado por uma linha de três.
Continuamos em breve.
 

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Um obrigado “cem” tamanho

Marketing Esportivo e, especificamente o do e no futebol, é o tema central desta coluna. No entanto ela não busca tratar exclusivamente seus aspectos teóricos e práticos, afinal o marketing envolve gestão, comunicação, planejamento estratégico, recursos humanos e projetos. Bastante coisa mas, na verdade, por exemplo o que esta coluna julga ser mais importante: envolve método e execução.

Ledo engano pensar que o marketing (ou o seu departamento) irá sanar todos os problemas de receitas do clube, conseguir o “patrocínio master” e fazer a instituição aparecer nos mais diversos meios de comunicação e colocá-la no ranking da “Deloitte” ou na lista de 50 ou 100 mais da “Forbes”.

Blá, blá, blá.

Marketing apenas segue as orientações de uma organização (esportiva), clube ou federação. Se ela está uma bagunça, o “marketing” vai ser bagunçado igual. Se não houver governança, planejamento estratégico, execução através de método, transparência; comunicação, missão, visão, valores compartilhados e explícitos; metas e resultados, o “marketing” vai ser “um cone em campo”.

Foto promocional da Copa União de 1987. (Foto: Divulgação)

 

“Marketing” é área fundamental para qualquer organização, mas precisa estar conectada com todo o clube. E vice-versa, desde os futebolistas até os mais diversos setores de colaboradores. Não se trata de clube-empresa especificamente, mas de qualquer organização – com ou sem fins lucrativos – para realizar, com excelência, aquilo que se propõe a fazer.

Talvez o mais difícil neste processo todo nem sejam os resultados, mas sim estruturar a equipe ideal para obtê-los.

Com tudo isso, nesta centésima edição, quero agradecer a todos os leitores desta coluna que vez ou outra dão uma vista d’olhos por aqui, que compartilham ou não das ideias destas linhas. Sou muito grato pela atenção e tempo dispensados na leitura. 

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 Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

 A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
Eduardo Galeano, escritor uruguaio (1940-2015)