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Sobre o desenho e características do 4-1-3-2

Jorge Jesus, treinador do Flamengo: geralmente em 4-1-3-2 durante o ataque. (Foto: Reprodução/Fox Sports)

 
É claro que muita coisa já foi falada e escrita sobre este Flamengo, treinado por Jorge Jesus e auxiliares, mas existe uma questão de que não se falou muito, e sobre a qual gostaria de discutir aqui hoje. Como é característico do próprio Jesus, já há algum tempo, o Flamengo normalmente se organizava, em fase ofensiva, num 4-1-3-2. Não é um 4-3-1-2 (losango), nem um 4-4-2 mais tradicional, as duas linhas de quatro (isso acontece na defesa, não no ataque) mas um 4-1-3-2. Embora me seja claro que os sistemas dizem menos do que imaginamos (mais importante do que os sistemas são os modelos nos quais eles se apoiam), também me agrada o fato de se tratar de uma distribuição bastante original: afinal, são poucos os times que se organizam dessa forma.
Neste texto, não pretendo falar especificamente do Flamengo (vou citá-lo algumas vezes), mas sim deste sistema, de algumas das suas características, para podemos avaliá-lo melhor. Evidente que estou aberto para seguirmos o debate nos comentários.

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Como escrevi no começo, acho importante fazermos uma separação entre o 4-1-3-2, de que falaremos aqui, e o 4-3-1-2, quando o meio-campo se organiza em losango (sobre o qual já escrevi aqui e aqui). Embora sejam sistemas parecidos na aparência, acho que têm características razoavelmente diferentes, que pesam de alguma forma ao longo do jogo.
Quando pensamos no losango, vocês concordam que pensamos num sistema que tem, de partida, três alturas diferentes no meio-campo? Um volante, dois meias mais abertos (às vezes mais, às vezes menos) e um meia central. Este meia, portanto, está mais adiantado, é um elo entre os setores de meio-campo e ataque, normalmente a construção ofensiva passando por ele. Mas são duas características bastante claras: o meio-campo organizado em três alturas diferentes e, portanto, um meia central que ocupa um espaço entre os meias mais abertos e os atacantes.
Mas quando pensamos no 4-1-3-2, acho que falamos de algo diferente. Em primeiro lugar, falamos de apenas duas alturas diferentes, concordam? Um volante, que sustenta o equilíbrio coletivo durante o ataque, e uma linha de três meias, geralmente composta pela projeção de um falso segundo volante (como é Gerson), sem que haja, necessariamente, a figura de um camisa dez. Ou melhor, este jogador existe (como é um Everton Ribeiro), mas ele não necessariamente parte de dentro, como normalmente fazem os camisa dez, mas pode partir de fora, pode partir de qualquer um dos lados. Especialmente neste Flamengo, sinto que uma das fortalezas estava exatamente em uma certa fluidez ofensiva neste corredor central, uma certa liberdade para que Arrascaeta, Gerson, Éverton, Bruno Henrique e Gabriel pudessem se movimentar de acordo com a situação proposta pelo jogo. Este tipo de liberdade (e esta é uma opinião bastante pessoal) não me parece possível no losango, por motivos que posso discutir em outro texto. A meu ver, o bom ataque no losango exige certas localizações por parte dos jogadores de meio-campo.
Portanto, se falamos do 4-1-3-2, falamos de um sistema com algo próximo de duas linhas de meio-campo, três jogadores mais adiantados sustentados por um outro meio-campista (daí a importância de um William Arão, por exemplo), com os corredores laterais possivelmente abertos e o corredor central ocupado pelos meias e atacantes.

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Outra coisa que gostaria de discutir com vocês são as possíveis vantagens do 4-1-3-2 em transição defensiva. Especialmente para as equipes que desejam fazer sucessivas pressões pós-perda, acho que existe uma vantagem importante deste sistema na comparação, por exemplo, com o losango: no 4-1-3-2, uma vez que existe essa linha de três, da qual falamos acima, há uma possibilidade importante de se fazer aqueles escalonamentos, as coberturas que tão necessárias do ponto de vista defensivo, especialmente para as equipes que marcam por referências zonais. No caso do losango, isso não é necessariamente verdadeiro, porque o camisa dez, de que também falamos anteriormente, está normalmente adiantado em relação aos meias. Neste caso, no instante da perda da posse, seria preciso que ele (estando mais adiantado) fizesse as primeiras tentativas de pressão – o que permitiria a cobertura. Mas caso isso não aconteça, caso este camisa dez (no sentido genérico) já estivesse superado, então o meia mais aberto deveria pressionar o adversário, sob o risco de também ser superado, deixando um enorme espaço às costas. Neste caso, não sei se vocês concordam, entra uma outra questão fundamental (que também me faz relativizar o valor dos sistemas, quando isolados): as características dos jogadores para cada sistema.
No caso do losango, estes dois meias abertos, via de regra, devem imprimir algum tipo de intensidade (do ponto de vista fisiológico), especialmente se a ideia da equipe for pressionar alto. Neste ano, citei aqui o exemplo da Sampdoria da última temporada, na qual estes dois meias mais abertos eram responsáveis pelas pressões aos laterais adversários, no começo da construção. Para usar um desses termos que temos importado (e que prefiro traduzido), acho bastante indicado que esses meias tenham alguma característica área-à-área, que sejam capazes de ir e vir com frequência, ou então pode ser que espaços valiosos ao longo do jogo fiquem descobertos (como os lados contra equipes cujos laterais sabem construir, como o próprio Flamengo).
Por outro lado, no 4-1-3-2, sinto que é bastante importante haver não necessariamente dois, mas um jogador com essas características. Gerson, como dissemos, é um exemplo. Tem alguma facilidade para conduzir a bola da defesa ao ataque, para ajudar na construção já no campo adversário, para finalizar se preciso, para pressionar após a perda. Para equipes que atacam em 4-1-3-2 e se defendem em 4-4-2 (como é o próprio Flamengo), é preciso haver pelo menos um jogador capaz de compor a segunda linha quando a equipe baixa o bloco e depois adiantar-se na fase ofensiva. Os outros dois meias, por sua vez, podem não ser jogadores exatamente intensos do ponto de vista fisiológicos, podem não ir e vir a todo instante, mas devem ser rápidos de outro ponto de vista cerebral, devem ser os jogadores inteligentes, que saem de fora para dentro, abrem os corredores para os laterais, movimentam-se livremente pelo corredor central, cuidam com o tempo e com o espaço. Reparem que são características um pouco diferentes de um 4-2-3-1 ou num 4-3-3 – apenas para ficarmos nesses exemplos. Como disse no início, os números dizem menos do que pensamos, mas dizem alguma coisa.

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Outra coisa, ainda nessas coisas que me agradam neste sistema, é o fato de ter dois atacantes, de fato. Nos últimos anos, talvez nos últimos quinze anos, para ser mais preciso, sinto que fomos normalizando o fato de atacar com apenas um jogador na área. Os próprios 4-2-3-1 e 4-3-3, que citei acima, são exemplos. Em linhas gerais, geralmente há um jogador a mais no meio-campo (por dentro ou por fora) e um jogador a menos na área, o que supostamente valoriza a construção – ainda que isso não seja necessariamente verdadeiro. Da mesma forma, fica claro que ter apenas um jogador na área raramente permite anular a sobra do adversário: são geralmente situações de dois zagueiros contra um atacante. Talvez vocês se lembrem de um texto sobre Marcelo Bielsa, que escrevi aqui, no qual lembrei de um certo cuidado, que imagino que ele ainda tenha, para manter superioridades numéricas nesse setor quando se defende (pulando de dois para três zagueiros quando enfrentava equipes que jogavam com dois atacantes, por exemplo).
No caso do 4-1-3-2, mesmo se pensarmos no exemplo do Flamengo, mais uma vez caímos em uma mistura do sistema com as características dos atletas. Bruno Henrique e Gabriel estão fazedores de gols, ainda que não sejam necessariamente jogadores de área. São coisas diferentes. Ambos têm alguma facilidade de movimentação, podem deslocar-se para os lados ou mesmo recuar alguns metros (para atrair os zagueiros, inclusive), e fazem isso exatamente porque não são atacantes que apenas pisam na área, mas que pisam na área e que, diversas vezes, pisam na área ao mesmo tempo. Este é o grande problema para os zagueiros, justamente por correr-se o risco de morrer a sobra. O lance do gol de empate do Flamengo contra o River Plate, marcado por Gabriel, é um exemplo interessante neste sentido: não foi Bruno Henrique que pisou na área junto de Gabriel (foi Arrascaeta), mas o simples fato de haver um comportamento já suficientemente treinado foi central para matar a sobra do River e gerar o gol a partir de uma certa superioridade posicional (Arrascaeta e Gabriel estavam melhor posicionados do que os defensores do River no lance).

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Bom, acho que temos o suficiente para uma conversa inicial. Num outro momento, posso falar dos possíveis problemas deste sistema (como o fato de eventualmente não ter alturas diferentes na segunda linha de meio-campo ou o possível espaço deixado às costas da linha de três na transição defensiva).
Para finalizar, apenas acho importante lembrar algo que também já escrevi em outros momentos: que o modelo/sistema de uma equipe não necessariamente é adequado à outra, que é preciso usarmos a criatividade (e não o comodismo) a nosso favor, e que as inspirações, que temos em todo o lugar, não podem fazer com que nos afastemos de nós mesmos, mas sim que fiquemos ainda mais próximos de nos tornarmos quem somos.
A meu ver, é nessa diversidade que o futebol se enriquece.
 

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O jogo conceituado taticamente

Venho tentando traduzir o que há de moderno no jogo atual para o melhor entendimento da escola brasileira de futebol. Caminho neste propósito há anos e devido aos momentos especiais que vivemos atualmente no Brasil, minha motivação tem algo de mais especial ainda.
Já tive muitas dificuldades para fazer a leitura do que acontecia na evolução do futebol, pois minha formação se origina de momentos em que o futebol não tinha a rica literatura de hoje para nos instruir. Nos defrontávamos com dúvidas, cujas respostas tinham de ser dadas por nós mesmos em treinos e jogos.
Éramos treinadores habituados a guardar o segredo das descobertas, pois achávamos que somente nós o sabíamos. Cada treinador camuflava seus conhecimentos, o que se tornava um grande entrave para o desenvolvimento do futebol brasileiro como um todo.
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o futebol europeu se mobilizava em várias frentes. Uma delas era encontrar formas de confrontar o jogo das individualidades, característico dos sul-americanos. Diversos núcleos de pesquisas foram instaurados e coisas novas e boas surgiram.
O FC Barcelona e a Universidade do Porto apresentaram ao mundo duas formas parecidas de conceber o treino e o jogo de futebol. No Barcelona, um importante personagem, o Professor Paco Seirul-lo, e na Universidade do Porto, o pesquisador e Professor Victor Frade construíram os métodos Integralista e da Periodização Tática, respectivamente, que revolucionaram o modo de lidar com esse jogo. Os dois baseados no conhecimento sistêmico.
Hoje, com a comunicação escancarada, os conhecimentos técnico, prático e científico do futebol estão disponíveis a todos. Além disso, as gerações modernas de treinadores chegam com o perfil de estudiosos e muito interessados no conhecimento e compartilhamento das descobertas em geral.
Com o advento dos novos métodos, não se concebe mais que as soluções táticas do jogo moderno sejam entregues exclusivamente às cabeças e aos pés dos jogadores. Algo tem de reger suas ações em campo à busca de uma fluência de jogo mais qualificada e inteligente.
No Brasil ainda estamos perambulando em dúvidas quanto ao que devemos fazer com o jogo, como e por quê fazer!? Permanecemos ignorantemente na dependência da competência dos nossos jogadores, senão em tudo, mas em grande parte das demandas táticas do jogo. A mente da comunidade futebolística brasileira permanece super conectada ao poder das individualidades.
O paradoxal nisso é que o jogador continuará sempre sendo a maior estrela na festa do futebol, mas a forma como ele deve escancarar seu protagonismo agora é diferente da de décadas atrás. As individualidades clamam por apoio das táticas coletivas que lhes dão segurança e lógica ao jogo.
As dificuldades que enfrentamos nos tem feito gastar tempo e energia justificando erros em nossa forma de jogar ao invés de nos direcionarmos de corpo, alma e mente para a aceitação e o entendimento do jogo moderno.
Talvez porque o novo obrigatoriamente nos tira de uma zona de conforto com a qual aprendemos a conviver por muitos anos. Agora não dá mais para esperar. O que o brasileiro precisa saber, vez por todas, é que o quanto antes percebermos as mudanças, mais rapidamente encontraremos fórmulas para as transformações.
A primeira e talvez mais importante das mudanças deve acontecer na cabeça do treinador brasileiro. Dar contribuição à visão detalhista e/ou individual do jogo com a abordagem global e/ou coletiva. Enxergar de vez o jogo como algo que tem vida – começo, meio e fim (finalidade). Os princípios e conceitos táticos do jogo, quando devidamente conectados, nos apresentam uma lógica bem distinta e mais eficiente da que conhecemos.
Para construirmos o jogo moderno será necessário repaginar nossos métodos de treinamentos. Ensaiar as manobras táticas coletivas pra defender e atacar com qualidade não será possível concebendo o treino e o jogo à moda antiga.
Considero imensurável a contribuição que Jorge Jesus e Jorge Sampaoli estão nos dando neste momento.
Se abrirmos mão das nossas vaidades e arregaçarmos as mangas da busca do conhecimento, prontamente veremos também os brasileiros fazerem coisas ainda mais bonitas com as nossas equipes. Nenhum estrangeiro conseguirá se perpetuar no futebol brasileiro, pois adaptados às peculiaridades da nossa cultura, somente nós.
Já tivemos muitos treinadores forasteiros comandando equipes brasileiras, principalmente sul-americanos. Nunca vimos transformações tão significativas como as que apresentam Flamengo e Santos.
Vamos aproveitar, caros colegas. Vamos crescer!
Coisas muito boas estão sendo feitas pelos treinadores Jorge Jesus e Jorge Sampaoli, mas vejo coisas menos boas também. Digo isso, com a certeza de quem estuda taticamente os jogos de equipes brasileiras e estrangeiras todos os dias há vários anos. Vejo também o Bahia, o Grêmio, o Bragantino, o Athletico-PR e alguns outros times brasileiros com jogos conceituados e interessantes, mas com falhas também. Normal!
Como fruto que sou da cultura futebolística brasileira percebo alguns aspectos que ainda atrapalham o sucesso dos nossos treinadores. Por exemplo, não fomos estimulados a estudar! Não precisava! O jogador fazia tudo! Esse entendimento era geral!
Cansávamos de assistir no Brasil aos debates da comunidade futebolística sobre a importância do treinador no contexto de um jogo.
– Será que é mesmo necessária a presença do treinador à beira de campo?
– Treinador ganha jogo?
Ouvíamos muito disso, e mais…
Hoje, Sampaoli e Jesus fazem um verdadeiro carnaval em suas áreas técnicas e são idolatrados também por isso.
– Jogam junto com suas equipes! É o que dizem!
Flamengo e Santos jogam bem porque o fazem sob a regência de ideias de jogo conceituadas e devem treinar muito bem. Seus treinadores são bons, além de estarem em clubes gigantes com muitos bons jogadores às mãos, têm bons conceitos do jogo moderno e sabem aplicá-los. Se ficassem quietinhos em seus espaços não alterariam em nada a qualidade do jogo das suas equipes. Talvez fossem até melhores do que são. Mas enfim, se faz parte das suas personalidades que permaneçam assim!
De qualquer forma, deixo aqui um alerta aos treinadores brasileiros, principalmente aos mais jovens:
– Não pulem igual malucos à beira de campo achando que isso vai fazer seus times jogarem o fino da bola! Sejam vocês mesmos e aprendam a construir jogos conceituados taticamente sob ideias de jogo espelhadas na maneira moderna de se jogar. Nós temos um celeiro de ótimos jogadores em nossas terras que vão ajudá-los em muito nessa empreitada.
Nestas minhas investidas na tentativa de escrever algo sobre futebol aprendi uma coisa: depois que você publica um texto, perde o direito sobre ele. Serão tantas as interpretações, às vezes até na contra-mão do que o autor desejou expressar, que diversos entendimentos poderão surgir.
Espero que as minhas ideias cheguem ao público com a compreensão pelo menos parecida daquilo que sempre procurei expressar em todos os meus anos de futebol.
Prezo com profissionalismo e paixão pela Escola Brasileira de Futebol como a expressão cultural e esportiva mais importante do nosso Brasil e em toda a minha existência não quero deixar dúvidas quanto a isso!
Até uma próxima!