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O vestiário como espaço de intimidade grupal

Crédito imagem: Ivan Storti/Santos FC

O futebol tem sido, cada vez mais, estudado multidisciplinarmente: há inúmeras pesquisas na área da biomecânica, fisiologia, treinamento físico, pedagogia, sistemas táticos, análise de desempenho, psicologia esportiva, dentre outras. Esta última, apesar de também mais frequente nos últimos anos, continua ocupando espaço de menor importância neste contexto.

Se à psicologia do esporte ainda é atribuído um papel secundário no âmbito do futebol profissional, dentro dela, me surpreende que os estudos sobre os processos de grupo tenham recebido pouca atenção ou manifestado tão pouco interesse. Em minha tese de doutorado, defendida em 2017, busquei justamente abordar os processos grupais em equipes do futebol profissional e um dos focos que pude dar em meu estudo se refere ao conhecimento, compreensão e análise da importância do ambiente de vestiário na configuração da tarefa grupal.

A ausência de compreensão ou da capacidade de reflexão crítica sobre o que acontece neste ambiente, do ponto de vista psicológico, parece pouco ter importado os dirigentes e integrantes de comissão técnica, sobretudo os treinadores que, na condição de líderes, tem que lidar diariamente com as situações e conflitos que emergem deste ambiente. Fortunas são gastas para contratar “grandes estrelas” e, cada vez mais, “grandes comandantes”, mas pouco se faz para que se relacionem bem e costumeiramente, como se diz dentre os “boleiros”, o “grupo racha”, “uma laranja podre contamina o grupo” ou o “treinador perde o grupo”. Vetores importantes da tarefa grupal como a comunicação, a afiliação/pertença, aprendizagem, cooperação, pertinência, por exemplo, quase nunca são problematizados. Assim como o conceito de papel e de vínculo.   

Neste aspecto, dois fatos explicitados pela mídia esportiva dias atrás me chamaram a atenção: as novas regras de convivência implementadas pelo recém contratado treinador do Flamengo e a notícia de que o vestiário do Manchester United estaria rachado em dois grupos, um deles pelos atletas que falam português (grupo esse comandado pela maior estrela da equipe, o “astro” Cristiano Ronaldo) e o outro pelos demais jogadores. Ambas situações têm estreita relação com o assunto que trouxe para discussão neste texto: o vestiário como espaço de intimidade grupal e determinante nas configurações vinculares do grupo.  

Inicialmente, é preciso destacar que um dos maiores empecilhos para ter as portas dos clubes abertas para que eu pudesse realizar a pesquisa de campo durante o doutorado foi justamente a necessidade metodológica de acompanhar o grupo em todos os espaços e situações em que atletas e comissão técnica se relacionavam e, dentre eles, o vestiário. Foram inúmeras negativas até que, após muita insistência, recebesse a autorização de três clubes (um de série A, outro de série B e outro de série C) para realizar minhas observações e entrevistas. Ainda assim, em um dos clubes houve a troca de treinador no decorrer de minha investigação e o recém-chegado treinador impediu minha presença no vestiário com a justificativa de que o vestiário era dele, ou seja, somente ele os atletas tinham acesso. Afinal, porque tanta resistência em permitir ao pesquisador o acesso ao vestiário?    

Via de regra, nos três clubes investigados o ambiente de vestiário era bastante tranquilo. Principalmente em dias de treinos. Os atletas permaneciam conversando com os companheiros próximos, ouvindo música ou em pequenos grupos brincando de algum jogo (futevôlei ou futmesa). Foram raros os momentos de tensão, preocupação e discussão. Tais comportamentos, por sua vez, foram mais presenciados em dias de jogos, quando os sorrisos eram substituídos por semblantes sérios, o relaxamento pela concentração, as falas/gritos e brincadeiras descontraídas pelo silêncio e conversas paralelas.

Se explicitamente o ambiente se mostrava “inofensivo” e pouco importante do ponto de vista dos processos de grupo, implicitamente se mostrou um ambiente de fundamental importância no futebol profissional já que o consideramos como o espaço de maior intimidade do grupo. Nele, local de exposição dos corpos – nus quando vestem os uniformes de treino e/ou jogo ou quando tomam o banho pós treino/jogo – e das conversas particulares e frequentemente das reuniões, discussões, desavenças e “lavagem de roupa de suja”, atletas passam grande parte do tempo da sua rotina profissional. Portanto, da mesma forma que acontecem momentos de descontração, brincadeiras, conversas informais e casuais, ocorrem também as ocasiões de muita seriedade como a discussão/resolução de conflitos grupais.

Em um dos clubes que pude investigar, a função de delimitar o armário de cada atleta era do roupeiro. Este afirmou que procurava colocar os jogadores que já são amigos e possuem afinidades com armários próximos. A partir desta distribuição de armários, os contatos e afinidades passam a ser maiores entre os jogadores que possuem armários vizinhos. O que deve ser analisado é que nos demais ambientes (campo, sala de musculação, refeitório etc.), as rodas de conversa são formadas segundo estes subgrupos. Ou seja, é no vestiário que começam a ser fortalecidas as relações vinculares e organizadas, como se diz no senso comum, as “panelas”.

Algumas frases interessantes foram ditas a mim, dentre as quais destaco duas: vestiário é “lugar sagrado para os jogadores“ e “no meu vestiário, nem diretor entra”. Proteger o ambiente que dá ao treinador e ao grupo que lidera uma certa segurança e que garante sua intimidade ao ponto de considerá-lo sagrado explicita a importância que o vestiário exerce na dinâmica grupal em equipes de futebol. Certamente não podemos desvincular também sua relação com o processo de coesão de grupo e com o desempenho da equipe. Ou seja, as manifestações comportamentais e vinculares que se processam no vestiário possuem relação direta com os resultados obtidos nas partidas.    

Ter um “bom vestiário”, no sentido de relacionamento interpessoal, significa possuir um grupo unido, coeso, “fechado”, blindado de questões exteriores ao contexto de treino e jogo que possam interferir negativamente no relacionamento entre eles e/ou rendimento nas partidas. O vestiário assume simbolicamente tudo o que compõe a rotina profissional de atletas e comissão técnica e, dessa forma, muito desse significado e do que acontece no vestiário se relaciona com o processo de formação de grupo. O vestiário se apresenta, portanto, como um ambiente em que se preservam os segredos circunscritos aos pequenos grupos e um espaço de intimidade intermediário entre o público e o privado. Privado na medida em que se refere às relações intimas e afetivas dos jogadores e público porque é de onde estes partem para ambientes de exposição.

Como procurei apresentar, o ambiente de vestiário deve ser melhor compreendido e levado mais a sério por todos que fazem parte da rotina profissional em clubes e equipes de futebol. Sobretudo aqueles que mais tempo passam nesse ambiente como, por exemplo, determinados dirigentes, integrantes da comissão técnica e um funcionário muito pouco citado neste contexto e o qual gostaria de destacar: o roupeiro. Afinal, são eles, este último em especial, que podem atuar como apoiadores ou sabotadores da constituição dos subgrupos e garantir a segurança socioemocional que este espaço de intimidade grupal representa para atletas e comissão técnica.      

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O jogo de futebol é tudo ao mesmo tempo

Crédito imagem: Franck Fife/AFP

Com a (curta) pré-temporada se encerrando e o começo das competições oficiais em mais um espremido calendário – desta vez por conta da Copa do Mundo – não serão raras as projeções para um ano todo com base em alguns poucos jogos deste início de ano. Pelo menos com bola rolando fica menos subjetivo do que o famigerado ‘time no papel’ – ah ‘no papel’ esse time é melhor do que aquele…como assim no papel?!

A graça do futebol está na complexidade! Na globalidade! 

Pouco a pouco, superamos a divisão do jogo para treiná-lo: antes, para melhorar finalização, o centroavante ficava chutando vinte, trinta bolas no gol, sem um defensor para marcá-lo, tendo recebido um passe perfeito, muitas vezes até feito com a mão do treinador ou de um auxiliar, ficando cara a cara com o goleiro. Oras, no jogo é assim que acontece?! Ou em praticamente todos os lances, o passe não virá muito redondo e haverá pelo menos um marcador e quem sabe até um segundo fazendo cobertura?! Ou o clássico treino coletivo para melhorar o jogo onze contra onze. Nada mais aleatório e improdutivo… para aprimorar uma equipe, deve-se saber o que melhorar. Saída de bola? Transição defensiva? Infiltração dos meias na área? A partir de um foco específico se cria atividades, com muitas repetições do que se quer melhorar.

Exploro tudo porque o jogo de futebol reúne um mundo de variáveis! Ele é técnico, tático, físico, mental e, podemos ir longe dizendo que é também, social, espiritual, ecológico, antropológico e por aí vai…

Não é querer inventar a roda e nem trazer termos rebuscados. É só constatar o que de fato acontece nas quatro linhas. Todo mundo que joga, que assiste, vive isso. Talvez só não saiba declarar…

O futebol evoluiu muito nos últimos anos. Muito mesmo. Mas a essência é a mesma do início do século passado! Um jogador pode ter a técnica mais apurada, mas sem confiança ela não irá aparecer. Ou a melhor tática, a mais bem estudada, pode ser rompida pela genialidade de um drible improvisado de um atacante atrevido.

Um time com os melhores jogadores pode ser derrotado por um outro inferior tecnicamente, porém com as funções tão bem sincronizadas que ao invés de onze, a impressão que se tem é que eles estão com quinze em campo!

Por isso somos apaixonados pelo futebol! Pelo que acontece no campo! E não por ler uma escalação no papel.

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O jogador de futebol mercadorizado

Crédito imagem: Reprodução/Palmeiras

Finalizamos nosso último texto, sobre o futebol como negócio, levantando a bola para compreendermos o papel atribuído aos jogadores, e por vezes assumido por eles, de mercadorias, produtos, coisas. No momento atual do futebol brasileiro de abertura da “janela de transferências”, essa questão se torna mais evidente. Apesar de evidente, não está explícita e é pouco problematizada no contexto do futebol profissional. Por outro lado, recentemente, um atleta do Palmeiras, ao ser questionado se poderia jogar no rival, fez a seguinte declaração: “Sou uma mercadoria. Não sei o dia de amanhã.”

Há muitos anos, autores da Educação Física e das Ciências Humanas se dedicam à discussão do processo de coisificação do sujeito e, consequentemente, do atleta de futebol, o que o transforma numa máquina, numa coisa, num produto e mercadoria. Arlei Damo e José Florenzano são referências conhecidas por nós. Mas a psicóloga social Ana Quiroga e, principalmente, o precursor do termo, Perdigão Malheiro, já problematizavam, há décadas, sobre essa questão. Não se trata, evidentemente, de um fenômeno exclusivo do esporte. O tipo de sociedade que vivemos busca transformar todos nós em consumidores, clientes e em mercadorias. Vende-se, de ar a sonhos, nada escapa à ganância do lucro desenfreado. Porém, trata-se, neste ensaio, de colocar o fenômeno da mercadorização apenas no futebol.

No entanto, ainda que este termo tenha sido cunhado há anos e questionado e discutido desde então, ainda é muito comum a mídia esportiva, dirigentes, torcedores e até mesmo os próprios jogadores atribuírem aos atletas do futebol profissional a qualificação de mercadoria. Quantas vezes não se ouviu dizer, “fulano foi comprado”, “ciclano foi vendido”, “precisamos só trocar umas peças”, “tal jogador pertence e tal clube”, “quando não render mais, a gente vende ou descarta” etc. Tais falas explicitam o processo de transformar pessoas, seres humanos, em coisas. Afinal, como nos diz Florenzano, o futebol moderno está impregnado pelo discurso que associa o jogador a uma máquina, como uma peça de engrenagem, e que pode ser tranquilamente reposta/substituída quando vendida ou inutilizada.

Nenhuma outra expressão soa tão agressiva e impactante quanto “plantel”, expressão designada atualmente para nomear um grupo de profissionais, os jogadores principalmente, de um clube esportivo. Tal expressão remete aos tempos feudais para denominar um “conjunto de escravos de um senhor, uma província, uma região, um país” (GEIGER, 2016). Obviamente, não estamos querendo comparar jogadores de futebol aos escravos, mas ressalvadas suas particularidades, levantar similaridades quanto à negação de seus direitos, sentimentos e subjetividade.

O Brasil é farto na produção de talentos para o futebol. Afinal, foi nosso povo mais vitimado, mais marginalizado, que reinventou o futebol, transformando o jogo que nos chegou dos ingleses em uma espécie de brincadeira de bola, onde a beleza e a sutiliza do gesto, a diversão, a alegria, a criatividade, despontavam soberanas. Não se passa um ano sem que surja um menino ou menina de quem digam que será craque, embora ainda jovem, quase criança. Quando isso ocorre, acompanhamos com ansiedade seu desenvolvimento, mas não sem apreensão. Por vezes nos perguntamos quanto tempo se passará até que os mercadores do futebol o destruam.

O caso mais recente é o do menino Endrick, jovem talento das categorias de base do Palmeiras, quinze anos de idade, pouco mais que uma criança. Notamos a cautela no trato com esse menino por parte do técnico da equipe palmeirense que disputa a Copa São Paulo, versão 2022, deixando-o no banco para participar somente da segunda etapa (até quando ele conseguirá manter essa cautela?). O menino é um artista da bola e o demonstra isso fartamente quando entra em campo. Porém, confrontando a cautela do técnico de Endrick, vemos os vídeos de suas melhores jogadas exibidos à exaustão na mídia, lemos os comentários feitos por alguns profissionais da imprensa, que fortalecem a ganância dos mercadores; notamos a ansiedade de dirigentes pelo que representa Endrick como mercadoria, valores absurdos em dólares e euros são colados à imagem do menino. Clubes e imprensa da Europa falam do jogador palmeirense, monitorando-o para uma possível negociação. Quanto tempo dura a estrutura psíquica de um menino submetido a tal pressão? Que medidas cautelares contra essa mercadorização, além de seu técnico, o protegerão? Família? Amigos? Dirigentes? Endrick é só um menino. Ele poderá viver sua vida de menino? Endrick é criativo. Ele poderá seguir sendo criativo? Para Endrick, o futebol ainda é uma brincadeira de bola. Ele poderá seguir brincando de bola? Por quanto tempo? Endrick tem vestígios de artista. Ele poderá se tornar um artista da bola?

Todos os anos surgem “Endricks”, “Neymares”, “Zicos”, “Maradonas”, em todo o mundo. Quantos, depois de tornados mercadorias, sobrevivem à arrasadora sanha dos mercadores do futebol? Inevitavelmente caem nas garras desses mercadores, que olham para pessoas e só veem cifras, lucros, negócios. Todos somos cifras, lucros, negócios para os mercadores, mas jogadores de futebol são tudo isso potencializados. Nesse mundo balizado pelo modo de produção capitalista, poucas mercadorias produzem lucros tão astronômicos quanto jogadores de futebol

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Times campeões não precisam ter os melhores jogadores

Crédito imagem: Gilvan de Souza/Divulgação

Período sem jogos não quer dizer período sem futebol. Sobretudo com a euforia causada por simples especulações: saídas e principalmente chegadas de jogadores são comemoradas muitas vezes como um título! Mas qual a real eficácia de um reforço bombástico? A empolgação do torcedor deve ser parâmetro para o dirigente fechar ou não um negócio? Admitindo que toda contratação é um risco, como minimizá-lo através de uma análise prévia bem estruturada? Perguntas complexas para algo ainda mais complexo e subjetivo que é o futebol…

Primeiramente quero deixar bem claro que para mim o mais importante no futebol é o binômio: jogador-torcedor. É a qualidade do jogador que faz do futebol um espetáculo. É a paixão do torcedor que alimenta a indústria e faz a roda girar. Porém isso não quer dizer que uma equipe de sucesso, que conquiste títulos, seja calcada apenas na qualidade individual dos seus jogadores e no sentimento desmedido de quem está na arquibancada.

Não são poucos os casos de equipes recheadas de craques que nada ganharam. Ou então aquele time que no começo da temporada realizou duas ou até três contratações de impacto, criou uma expectativa gigantesca no torcedor, mas quando a bola rolou não houve o chamado encaixe. Apesar de sabermos que o futebol é coletivo-onze em campo e muitos outros profissionais nos mais diferentes departamentos- temos a tendência de individualizar o jogo. Pela nossa cultura. Pela nossa história. Pelos nossos inúmeros craques do passado e do presente. Fecho todo esse raciocínio com dois exemplos do futebol paulista: na última grande conquista do Corinthians, o Brasileirão de 2017, o time foi taxado como a quarta força ao ser confrontado “no papel (!)” com seus maiores rivais. A mais recente glória do Palmeiras, a Libertadores 2021, foi obtida mesmo com o clube tendo menos jogadores “decisivos (!)” do que os concorrentes Atlético-MG e Flamengo. Citações práticas de que no caos e na complexidade do futebol o todo, de fato, é maior do que a soma das partes.

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A temporada já começou!

Crédito Imagem: Reprodução/EC Bahia

Pré-temporada mesmo curta, não deixa de ser pré-temporada. E como tudo evolui, já não vemos, pelo menos nos grandes clubes brasileiros, aquelas longas sessões físicas, que só desgastam o jogador, sobretudo no aspecto emocional, e que pouca relação tem com o jogo em si. 

E junto com esses já iniciais trabalhos com bola, talvez no terceiro, quem sabe até no segundo dia de treinos, vêm as ideias do treinador. Todo profissional tem suas preferências conceituais. Simplificando o conceito de Modelo de Jogo, movimentos preferenciais de como se comportar na defesa, no ataque e nas transições. Exemplo: ao perder a bola, qual comportamento será padrão dos jogadores: buscar retomá-la rapidamente ou retroceder de maneira compacta para proteger o próprio alvo?

Mas se todo bom técnico tem suas ideias, os excelentes tem flexibilidade para adaptá-las ao contexto e principalmente aos jogadores que estão a disposição. Recorro ao mesmo exemplo da transição defensiva: um treinador pode gostar de executar uma ‘contra-pressão’ (gegenpressing), mas se no elenco que ele tem não há jogadores rápidos, com boa leitura de ocupação de espaços, capazes de assim que a posse for perdida pressionar rapidamente o adversário portador da bola e fechar as linhas de passe mais próximas, pode ser mais vantajoso contemporizar e voltar para marcar atrás da linha de bola.

Essa flexibilidade e esse entendimento são fundamentais para o treinador que está chegando e também para aquele que continua no mesmo clube. Por exemplo, não é só o português Paulo Sousa que precisará esmiuçar o seu elenco no Flamengo, entendendo as características individuais de cada jogador e ver como as conexões entre eles cria coisas novas e antes inimagináveis, como o próprio Abel Ferreira, mesmo permanecendo no Palmeiras, terá jogadores diferentes e sobretudo um contexto diferente, já que agora ele é o bicampeão da Libertadores e isso afeta tanto o ambiente interno como o externo.

A graça do futebol ainda está na imprevisibilidade. Amo números e defendo com unhas e dentes a integração deles a tudo o que acontece dentro das quatro linhas. Entretanto, a habilidade humana de potencializar o todo utilizando da melhor maneira cada uma das partes sempre será insuperável.

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SAF e a cultura organizacional dos clubes de futebol brasileiros

Crédito imagem: Reprodução/Sérgio Santos Rodrigues/Instagram

Pouco tempo após a sua criação e aprovação constitucional, o torcedor brasileiro já começa a incorporar em seu vocabulário a sigla SAF – Sociedade Anônima de Futebol. Muitos clubes brasileiros já iniciaram os trâmites legais e organizacionais para deixarem o formato associativo e adotar o novo formato empresarial. Na modalidade SAF, clubes de futebol podem ser “vendidos” total ou parcialmente para um ou mais investidores e, com os recursos financeiros acertados no negócio, esperam ter suas dívidas quitadas e aportar maiores investimentos em infraestrutura e contratação de atletas qualificados. Nesse mundo ideal, muitos torcedores e dirigentes já esperam ansiosos para comemorar os próximos títulos dos principais campeonatos e copas nacionais e internacionais.

Porém, é necessário lembrar que o Campeonato Brasileiro da série A, por exemplo, vai continuar apenas com uma vaga para campeão e outras quatro vagas para o descenso à série B. Sendo assim, teremos muitos clubes em que a adoção da SAF não trará nenhuma possibilidade de títulos relevantes, mas ao menos os possibilitará competir em certo pé de igualdade e, quem sabe, manter-se na divisão principal. Em um paralelo com a empregabilidade, às vezes precisamos fazer um curso de idioma e uma pós-graduação, não para conseguir um melhor salário, mas apenas para mantermos nossos trabalhos.

Os clubes bem estruturados e com torcidas gigantes talvez não adotem o modelo SAF, pois já conseguem realizar relevantes aportes de investimento pelo modelo associativo. Mas, tudo leva a crer que os clubes médios e pequenos que não adotarem o novo modelo ficarão para trás, pois terão muitas dificuldades em captar recursos financeiros de patrocinadores, os quais tenderão a buscar modelos de negócio mais confiáveis.

É importante enfatizar que os clubes que já adotaram ou adotarão o modelo SAF estão em diferentes patamares organizacionais e patrimoniais. Para um investidor essa informação é relevante, pois clubes estruturados oferecem menor risco no negócio, o que possibilita investir maiores valores e prever lucros com maior precisão. Já os clubes menos estruturados e endividados tendem a aceitar negociações desvantajosas, pois nenhum investidor experiente irá apostar suas fichas em um negócio de alto risco. Portanto, clubes que se prepararam melhor para esse novo modelo terão mais chance de prosperar e, quem sabe, romper a bolha dos seletos clubes campeões das grandes competições.

Porém, existe um componente fundamental para análise e que somente por meio dela, um clube se organiza e se estrutura de maneira eficaz: a cultura organizacional. Assim, também chegamos ao ponto de reflexão principal deste texto: uma empresa bem-sucedida não suportaria certos tipos de cultura institucional presentes em muitos clubes de futebol brasileiros.

As empresas são e continuarão a ser locais de convivência entre pessoas das mais variadas características culturais e comportamentais, mas, todas elas devem estar em sintonia para que os objetivos corporativos sejam alcançados. Em nosso país, é relativamente comum presenciarmos clubes com elencos de atletas altamente qualificados realizarem campanhas medíocres, muitas vezes culminando com o rebaixamento à série B e aos consequentes prejuízos financeiros milionários. Mesmo sendo um esporte, a certo grau de previsibilidade é algo fundamental em qualquer negócio.

Toda empresa de sucesso possui procedimentos operacionais muito claros, além de protocolos diversos que orientam seus colaboradores a agirem em diferentes situações. Com isso, a empresa vai construindo um “memorial de ações”, representado pelos manuais técnicos e de conduta, que servem como balizadores do trabalho diário. Quando situações inusitadas ocorrem, rapidamente essas passam a constar nestes manuais. Tudo isso contribui para o engajamento dos colaboradores e para o desenvolvimento de uma cultura institucional viva e eficiente.

Agindo dessa forma, independente da saída ou entrada de novos colaboradores, a empresa mantém um funcionamento coeso com a sua história e com os seus valores, o que gera credibilidade perante seus consumidores, fornecedores, parceiros e à sociedade como um todo. Lamentavelmente, muitos clubes de futebol possuem um funcionamento caótico nesse sentido. Apesar de avanços ocorridos nas últimas décadas, com a profissionalização de diversos setores dos clubes, ainda existe muita interferência política e amadorismo na captação e contratação de colaboradores para certas funções.

Outros clubes já estão bastante profissionalizados em todas as suas áreas, mas devido à pressão por resultados rápidos, promovem mudanças constantes no quadro de atletas e de profissionais das comissões técnicas, o que contribui para o desenvolvimento de uma cultura organizacional fraca e volátil, incapaz de estabelecer uma relação harmoniosa com a missão, objetivos e valores contidos no planejamento estratégico do clube.

Assim como certos elementos da cultura existentes em nossa sociedade são passados através das gerações e formam o que podemos chamar de uma “identidade nacional”, a cultura de uma empresa é mantida e fortalecida pelas ações dos colaboradores mais antigos, as quais são ensinadas e transmitidas aos recém-contratados. Um clube com mudanças frequentes no quadro de colaboradores terá dificuldade para desenvolver uma cultura organizacional reconhecível e confiável. Como resultado desse cenário, existe a possibilidade de cada indivíduo assumir um comportamento que mais lhe beneficia. Em outras palavras, os egos se sobressaem perante o sentido coletivo e o caos acaba reinando na instituição.

O fato é que os clubes que irão adotar o modelo SAF precisam estar atentos às necessidades técnicas, culturais e econômicas contemporâneas, reavaliando suas estruturas de trabalho com vistas ao desenvolvimento de uma cultura organizacional que forneça o suporte necessário a todo trabalho nele desenvolvido. Somente na direção de um pensamento sistêmico é possível criar um elemento integrador entre todas as áreas e colaboradores do clube: do marketing à comissão técnica, do presidente ao massagista. Dessa forma, o clube passa a ser reconhecido como uma instituição comprometida com o esporte e com a sociedade, gerando a confiança dos sócios, torcedores, imprensa e deles: os investidores.

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Perspectivas de 2022 para o futebol brasileiro

Crédito imagem: Vitor Silva/Botafogo

Fazer projeções em algo tão subjetivo, aleatório e caótico como o futebol pode ser uma das missões mais ingratas e com maiores probabilidades de erro do mundo! Porém, ao mesmo tempo, é condição obrigatória para quem se propõe a analisar o esporte mais praticado no planeta buscar justamente os elementos mais concretos que aumentem as tais probabilidades de êxito. 

No futebol brasileiro é muito claro que, mais do que nunca, terão sucesso os clubes mais estáveis política e financeiramente. Tanto que em um primeiro momento o que chama a atenção quando um clube “vira” empresa é o montante de dinheiro injetado. Contudo o mais fundamental, e que norteará um caminho longevo de conquistas, é a estabilidade e o profissionalismo que esse dinheiro com o nome e sobrenome do dono-investidor exige. Uma breve recapitulada em quem vem conquistando algo relevante no Brasil já aponta como rota o profissionalismo na gestão da política interna com a boa administração financeira, em buscar mais receitas e gastar não mais do que é possível.

Dentro das quatro linhas, com a figura destacada dos treinadores, pontuo qualidades como flexibilidade, resiliência e comunicação para uma comissão técnica ter mais chances de triunfar. Flexibilidade para se adaptar ao contexto, ao cenário e, sobretudo, às características dos jogadores a disposição para a partir deles dar vida a ideias e conceitos de jogo. Resiliência para não se abalar em momentos de instabilidade (e eles com certeza existirão) já que o futebol brasileiro, e todos os seus agentes, é pródigo em moer, triturar e dispensar profissionais na primeira intempérie que acontece. E, por fim, a comunicação que é fundamental para amenizar essas críticas, que são externas, mas também internas: treinadores que são hábeis em gerir bem o que transparece dos seus trabalhos conseguem um prazo maior para mostrar o que realmente importa que é a própria competência do trabalho. Sem uma comunicação assertiva nem o profissional mais qualificado consegue ser bem-sucedido no instável futebol brasileiro.

Não há receita em algo tão subjetivo como o futebol e a verdade de hoje se torna falsa amanhã. Posso fazer a projeção do ano que for, mas no longo prazo estou certo de que o que fará a diferença, como é em toda área da vida, é a preocupação individual com a melhoria contínua, a excelência no dia a dia, e uma mente blindada para continuar perseverando mesmo quando o mundo toda duvida de você. Um feliz ano a todos nós!