Crédito imagem: Ivan Storti/Santos FC
O futebol tem sido, cada vez mais, estudado multidisciplinarmente: há inúmeras pesquisas na área da biomecânica, fisiologia, treinamento físico, pedagogia, sistemas táticos, análise de desempenho, psicologia esportiva, dentre outras. Esta última, apesar de também mais frequente nos últimos anos, continua ocupando espaço de menor importância neste contexto.
Se à psicologia do esporte ainda é atribuído um papel secundário no âmbito do futebol profissional, dentro dela, me surpreende que os estudos sobre os processos de grupo tenham recebido pouca atenção ou manifestado tão pouco interesse. Em minha tese de doutorado, defendida em 2017, busquei justamente abordar os processos grupais em equipes do futebol profissional e um dos focos que pude dar em meu estudo se refere ao conhecimento, compreensão e análise da importância do ambiente de vestiário na configuração da tarefa grupal.
A ausência de compreensão ou da capacidade de reflexão crítica sobre o que acontece neste ambiente, do ponto de vista psicológico, parece pouco ter importado os dirigentes e integrantes de comissão técnica, sobretudo os treinadores que, na condição de líderes, tem que lidar diariamente com as situações e conflitos que emergem deste ambiente. Fortunas são gastas para contratar “grandes estrelas” e, cada vez mais, “grandes comandantes”, mas pouco se faz para que se relacionem bem e costumeiramente, como se diz dentre os “boleiros”, o “grupo racha”, “uma laranja podre contamina o grupo” ou o “treinador perde o grupo”. Vetores importantes da tarefa grupal como a comunicação, a afiliação/pertença, aprendizagem, cooperação, pertinência, por exemplo, quase nunca são problematizados. Assim como o conceito de papel e de vínculo.
Neste aspecto, dois fatos explicitados pela mídia esportiva dias atrás me chamaram a atenção: as novas regras de convivência implementadas pelo recém contratado treinador do Flamengo e a notícia de que o vestiário do Manchester United estaria rachado em dois grupos, um deles pelos atletas que falam português (grupo esse comandado pela maior estrela da equipe, o “astro” Cristiano Ronaldo) e o outro pelos demais jogadores. Ambas situações têm estreita relação com o assunto que trouxe para discussão neste texto: o vestiário como espaço de intimidade grupal e determinante nas configurações vinculares do grupo.
Inicialmente, é preciso destacar que um dos maiores empecilhos para ter as portas dos clubes abertas para que eu pudesse realizar a pesquisa de campo durante o doutorado foi justamente a necessidade metodológica de acompanhar o grupo em todos os espaços e situações em que atletas e comissão técnica se relacionavam e, dentre eles, o vestiário. Foram inúmeras negativas até que, após muita insistência, recebesse a autorização de três clubes (um de série A, outro de série B e outro de série C) para realizar minhas observações e entrevistas. Ainda assim, em um dos clubes houve a troca de treinador no decorrer de minha investigação e o recém-chegado treinador impediu minha presença no vestiário com a justificativa de que o vestiário era dele, ou seja, somente ele os atletas tinham acesso. Afinal, porque tanta resistência em permitir ao pesquisador o acesso ao vestiário?
Via de regra, nos três clubes investigados o ambiente de vestiário era bastante tranquilo. Principalmente em dias de treinos. Os atletas permaneciam conversando com os companheiros próximos, ouvindo música ou em pequenos grupos brincando de algum jogo (futevôlei ou futmesa). Foram raros os momentos de tensão, preocupação e discussão. Tais comportamentos, por sua vez, foram mais presenciados em dias de jogos, quando os sorrisos eram substituídos por semblantes sérios, o relaxamento pela concentração, as falas/gritos e brincadeiras descontraídas pelo silêncio e conversas paralelas.
Se explicitamente o ambiente se mostrava “inofensivo” e pouco importante do ponto de vista dos processos de grupo, implicitamente se mostrou um ambiente de fundamental importância no futebol profissional já que o consideramos como o espaço de maior intimidade do grupo. Nele, local de exposição dos corpos – nus quando vestem os uniformes de treino e/ou jogo ou quando tomam o banho pós treino/jogo – e das conversas particulares e frequentemente das reuniões, discussões, desavenças e “lavagem de roupa de suja”, atletas passam grande parte do tempo da sua rotina profissional. Portanto, da mesma forma que acontecem momentos de descontração, brincadeiras, conversas informais e casuais, ocorrem também as ocasiões de muita seriedade como a discussão/resolução de conflitos grupais.
Em um dos clubes que pude investigar, a função de delimitar o armário de cada atleta era do roupeiro. Este afirmou que procurava colocar os jogadores que já são amigos e possuem afinidades com armários próximos. A partir desta distribuição de armários, os contatos e afinidades passam a ser maiores entre os jogadores que possuem armários vizinhos. O que deve ser analisado é que nos demais ambientes (campo, sala de musculação, refeitório etc.), as rodas de conversa são formadas segundo estes subgrupos. Ou seja, é no vestiário que começam a ser fortalecidas as relações vinculares e organizadas, como se diz no senso comum, as “panelas”.
Algumas frases interessantes foram ditas a mim, dentre as quais destaco duas: vestiário é “lugar sagrado para os jogadores“ e “no meu vestiário, nem diretor entra”. Proteger o ambiente que dá ao treinador e ao grupo que lidera uma certa segurança e que garante sua intimidade ao ponto de considerá-lo sagrado explicita a importância que o vestiário exerce na dinâmica grupal em equipes de futebol. Certamente não podemos desvincular também sua relação com o processo de coesão de grupo e com o desempenho da equipe. Ou seja, as manifestações comportamentais e vinculares que se processam no vestiário possuem relação direta com os resultados obtidos nas partidas.
Ter um “bom vestiário”, no sentido de relacionamento interpessoal, significa possuir um grupo unido, coeso, “fechado”, blindado de questões exteriores ao contexto de treino e jogo que possam interferir negativamente no relacionamento entre eles e/ou rendimento nas partidas. O vestiário assume simbolicamente tudo o que compõe a rotina profissional de atletas e comissão técnica e, dessa forma, muito desse significado e do que acontece no vestiário se relaciona com o processo de formação de grupo. O vestiário se apresenta, portanto, como um ambiente em que se preservam os segredos circunscritos aos pequenos grupos e um espaço de intimidade intermediário entre o público e o privado. Privado na medida em que se refere às relações intimas e afetivas dos jogadores e público porque é de onde estes partem para ambientes de exposição.
Como procurei apresentar, o ambiente de vestiário deve ser melhor compreendido e levado mais a sério por todos que fazem parte da rotina profissional em clubes e equipes de futebol. Sobretudo aqueles que mais tempo passam nesse ambiente como, por exemplo, determinados dirigentes, integrantes da comissão técnica e um funcionário muito pouco citado neste contexto e o qual gostaria de destacar: o roupeiro. Afinal, são eles, este último em especial, que podem atuar como apoiadores ou sabotadores da constituição dos subgrupos e garantir a segurança socioemocional que este espaço de intimidade grupal representa para atletas e comissão técnica.