Categorias
Colunas -

O fim do preparador físico no futebol?

Uma reflexão crítica sobre a visão tradicional da preparação física no futebol no século XXI

Crédito imagem: Felipe Oliveira/Esporte Clube Bahia

Desde que o futebol começou a se estruturar profissionalmente, em meados do século passado, surgiu a necessidade de se desenvolver abordagens mais científicas que dessem sustentação ao trabalho com atletas e equipes pelo mundo afora.

Neste percurso histórico, é inegável o papel ocupado pelo preparador físico em sua evolução, desenvolvendo a pedagogia do esporte e suas metodologias e, assim, qualificando os treinamentos que repercutiram também na qualidade do jogo em várias de suas dimensões.

Com o suporte de áreas específicas e gradativamente mais especializadas das ciências do esporte, tais como a fisiologia, a biomecânica, a nutrição, a bioquímica, entre outras, a preparação física desenvolveu-se de forma extraordinária.

Porém, com o passar do tempo e à luz dessa mesma evolução, outros aspectos – além do “físico” – foram ocupando espaços igualmente relevantes, contribuindo para os processos metodológicos do treinamento, notadamente os aspectos técnico-táticos e, mais recentemente, os mentais, emocionais e socioculturais.

Somado ao esgotamento das abordagens exclusivamente especialistas (mecanicistas, cartesianas) que insistem em separar as inseparáveis “partes física, técnica, tática e psicológica” na preparação de atletas, tudo isso fez com que muitos profissionais, atentos à evolução das ciências do esporte e do conhecimento de forma geral, começassem a fazer revisões substanciais e conceituais de suas práticas.

Hoje em dia, é evidente a busca por novos caminhos que substituam o modelo fragmentado e demasiadamente especialista do treinamento, adotando-se abordagens mais integradas e sistêmicas que contemplem toda a complexidade do treinamento e do jogo, favorecendo uma preparação mais adequada às novas exigências competitivas.

Desta forma, as abordagens tradicionais dos profissionais de preparação física, focando seus conhecimentos científicos quase que exclusivamente na compreensão e desenvolvimento dos aspectos biológicos do rendimento esportivo, expressos em mais força, mais velocidade, mais resistência, entre outras valências físicas ou fisiológicas específicas e complementares, começaram a se esgotar e já não conseguem atender plenamente às demandas que o alto rendimento no futebol (e em outras modalidades) exigem.

Atualmente, o futebol altamente competitivo pede outros conhecimentos, habilidades e, fundamentalmente, atitudes deste novo profissional especialista, não só para o futebol masculino, como também para o emergente futebol feminino. O principal deles refere-se ao entendimento mais ampliado do próprio jogo de futebol, dos aspectos humanos da motricidade esportiva, cuja performance atlética é apenas um de seus elementos, e onde todas as nuances técnico-táticas, mentais, emocionais, culturais e sociais não podem ficar de fora das suas intervenções, por mais específicas que possam parecer.

Portanto faz-se necessário compreender a performance atlética de forma muito mais ampliada do que se fez até aqui. Impõe-se, enfim, um novo olhar, uma nova visão, uma verdadeira mudança de paradigma.

O novo “preparador físico” ou a nova “preparadora física” (não seria o momento de mudar o nome destes profissionais?) devem possuir competências que permitam compreender a complexidade que é desenvolver o atleta e a atleta de forma integral e plena, dentro das características da equipe pela qual trabalha e devidamente balizadas por uma abordagem a mais interdisciplinar (ou transdisciplinar) possível (*).

Afinal, os jogadores e as jogadoras de futebol – condicionados(as) às regras e características do próprio ato de jogar – são seres humanos que se movimentam tendo como pano de fundo um propósito existencial (em que os profissionais se inserem) e que deve dar sentido a tudo que fazem. Este fenômeno precisa ser desvendado por todos os especialistas que trabalham com ele.

Dentro desta nova perspectiva, não se pode entender a preparação de atletas de futebol de forma isolada ou descontextualizada do ambiente onde a prática esportiva se realiza. Saber como se dão as relações do(a) atleta consigo mesmo(a), com seus companheiros(as), com o treinador(a) e sua comissão técnica, com o clube e, em última instância, com a sociedade e cultura em que vive, é fundamental para o resultado esportivo final que se busca em conjunto. Em outras palavras, não se pode mais pensar no específico, desconsiderando-se toda a complexidade que se constitui o(a) atleta em suas relações consigo mesmo(a) e com o mundo em que vive. Este é, talvez, o grande diferencial entre um preparador tradicional especialista e o novo ou nova profissional que começa a surgir; também especialista, mas com uma visão mais ampliada de seu papel diante do(a) atleta e da comissão técnica da qual é parte integrante.

Isto não quer dizer, entretanto, que este novo profissional deva abandonar certas especificidades, inerentes ao seu trabalho voltadas à performance atlética. Mas estas tarefas específicas devem vir sempre acompanhadas de uma abordagem que tenha como pressuposto uma sólida visão sistêmica ou abertura para entender, cada vez mais, toda a riqueza por trás da complexidade esportiva e humana, como também entender, em sua essência, o real significado ou sentido do ato de jogar futebol. Esta não é uma tarefa simples! Exige, sobretudo, muito esforço, com inteligência, maturidade, estudos e pesquisas. E mais: tudo isso devidamente alinhado ao seu próprio propósito de vida!

E se esse profissional não é mais o antigo preparador físico, como denominaríamos esse novo ou nova profissional emergente? Preparador(a) de performance atlética? Educador(a) do movimento? Motricista do esporte? O que você pensa sobre o assunto?

______________________

(*) Se tiver interesse neste assunto, recomendo a leitura do texto “Multi, inter e transdisciplinaridade – Os caminhos da produção do conhecimento no futebol”.

Categorias
Colunas -

A criticidade e criatividade do jogador de futebol: O que a rua tem a ver com isso?

Crédito imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Quanto à indagação título deste artigo, adiantamos nossa resposta: TUDO! É fácil notar a atuação técnica e política dos jogadores de futebol brasileiros, e é praticamente consenso ver, cada vez mais, a perda de criatividade ou a privação dos jogadores de desenvolvê-la e exercê-la, assim como temos visto, também, o cerceamento de posicionamentos críticos daqueles poucos que se propõem a manifestar-se, eximindo-se da responsabilidade de contribuir com a formação de atletas e sujeitos críticos.

Comecemos pela criticidade… ou a falta dela. Em texto anterior, tratamos do descabimento da realização da Copa América de Futebol em solo brasileiro e, principalmente, da oportunidade perdida pelos jogadores da seleção de se posicionarem criticamente em relação ao contexto pandêmico, inclusive, negando a participação nessa absurda, imprudente e desrespeitosa competição esportiva. Faltou capacidade, ou coragem, para um posicionamento crítico desta ordem.

Há algumas semanas, os jogadores de uma das equipes da primeira divisão do Campeonato Brasileiro de futebol resolveram se posicionar publicamente em relação ao atraso dos salários. E foram duramente criticados por isso. Poucos dias depois, o principal jogador da seleção brasileira manifestou-se nas redes sociais esbravejando, grosseiramente, inclusive, contra a posição de alguns torcedores que afirmaram a intenção de torcer para a equipe adversária da seleção brasileira, a Argentina, na final da Copa América. Tal jogador, que inquestionavelmente tem poder altíssimo como formador opinião, colocou-se como patriota, mas em momento algum questionou as mortes decorrentes da pandemia, as faltas de vacinas, as denúncias de corrupção do atual governo. Enfim, a criticidade do jogador de futebol brasileiro é, infelizmente, assim: cerceada ou inexistente.

No contexto do Esporte Olímpico, mas ainda no âmbito do futebol, se por um lado presenciamos declarações altamente críticas, coerentes e certeiras das jogadoras da seleção feminina, Marta e Formiga, especificamente, na seleção brasileira masculina de futebol notamos, novamente, um comportamento como se os jogadores fizessem parte de outro mundo, com total falta de empatia pelos atletas olímpicos de outras modalidades da delegação brasileira, que subiram ao palco de premiação com o agasalho do COB. Ao receber as medalhas usando o uniforme de um patrocinador da CBF, descumpriram as regras e termos assinados, sem pensar que esse ato poderia prejudicar os atletas de outras modalidades. Um dos medalhistas brasileiros da natação afirmou, inclusive, que “A mensagem foi clara: não fazem parte do time e não fazem questão. Também estão completamente desconexos e alienados às consequências que isso pode gerar a inúmeros atletas que não são milionários como eles”. Em resposta, o capitão da seleção brasileira masculina de futebol afirmou, dentre outras coisas, que não aceitam certas imposições. Parece não ter sido o caso em relação à participação na Copa América. Não é?

Mesmo se extrapolarmos para outras modalidades, e até outros países, o número de atletas que de alguma forma se manifestaram criticamente sobre algum tema foi insignificante, ainda que seus respectivos posicionamentos sejam muito válidos e devam ser bastante valorizados.

Passando para a esfera técnica do jogo e do jogador de futebol, vemos cada vez mais jogadores pouco criativos, preferindo o passe burocrático ao drible, perdendo a capacidade de resolver ou desequilibrar uma partida. Aqueles poucos que ainda se destacam pela sua criatividade e pela capacidade de improvisar no ambiente de jogo, à exceção de Neymar e mais alguns, têm sua criatividade também cerceada, tanto pelos treinos atuais, quanto pelos esquemas táticos e treinadores. Os esquemas táticos, inclusive, precisam ser melhor compreendidos por todos. Não estamos nos referindo à forma de se posicionar em campo, mas ao próprio conceito de esquema. No entanto, isso é tema para um próximo texto.

Ainda assim, faremos uma breve interrupção para conceituar criatividade, visto que o termo, muito usado, costuma ser mal apropriado, exatamente por carência de conceituação.

Ensina o pensador Arnold Gehlen, que o ser humano é a única criatura capaz de, entre uma sensação e uma ação, ter um hiato para considerar, refletir, pensar, ter consciência. Nesse hiato, que é um nada-fazer extremamente ativo, o ser humano cria, corrige, refaz, confirma etc., o que gera um comportamento que talvez produza algo novo, algo para mudar o modo de viver. Ou seja, nesse hiato ele cria cultura. E essa cultura será seu meio ambiente, seu nicho ecológico. É da natureza do ser humano criar, sendo que essa criação se dá nos hiatos, nos intervalos entre ações necessárias. É na desnecessidade, no nada-fazer que nos tornamos humanos.

Carl Jung , um desbravador do inconsciente humano, afirmou que “tudo o que o espírito humano criou, brotou de conteúdos que, em última análise, eram germes inconscientes.” (JUNG, 1984, p. 379). Mais adiante ele diz: “Mas é também da fonte viva dos instintos que brota tudo o que é criativo; por isto o inconsciente não é só determinado historicamente, mas gera também o impulso criador” (JUNG, 1984, p.382).

Ou seja, é da natureza humana criar. É de nossa natureza, especialmente, porque nascemos e perduraremos incompletos por toda a vida. O que nos dá a natureza para realizar a experiência de viver, é insuficiente. Se, por um lado, somos conservadores, como toda criatura viva deste planeta, de outro somos obrigados a ser criativos para preencher essas faltas. Quando um jogador cria algo que não estava determinado, não faz mais que ser coerente com sua natureza humana. Reconhecer isso em um jogador é reconhecer sua natureza humana.

Voltemos à reflexão sobre a criticidade e a criatividade, mas, a partir de agora, sob o prisma da pedagogia da rua. Afinal, como a rua nos ensina a ser mais críticos e mais criativos?

A rua é um campo de disputa aberto e, como tal, é repleta de momentos de tensão e discórdia. É livre, mas não isenta de acordos. É auto-organizada e gerida, via de regra, pelas próprias crianças e jovens. No âmbito da rua, cabem a elas, crianças, a organização do jogo, a proposição das regras, as condições para que essas regras sejam cumpridas e a definição acerca do modo como jogarão. Por exemplo, são elas, crianças, que definem se irão atacar ou defender, se irão passar ou driblar, se foi falta ou não, se tal ação ou gesto vale ou não etc.

Os conflitos, diferenças de opiniões, pontos de vista e de repertórios, e a necessidade de tomar suas próprias decisões e resolver os próprios problemas inerentes ao jogo, sem a presença de um adulto, fazem com que os jogadores se tornem mais questionadores e desenvolvam um comportamento crítico. Entretanto, é justamente a “pedagogização” dessa prática, necessária ao “levarmos a rua para o âmbito escolar”, e a atuação dos professores e professoras, que contribuirão, de fato, para que os estudantes se tornem mais críticos e reflexivos.

Ao mesmo tempo, ao se dotarem dessa liberdade, podem criar à vontade, driblar à vontade, ocupar o espaço do jogo como melhor entenderem, imaginar suas jogadas e seus gols e se divertirem enquanto jogam futebol. Por sua vez, as responsabilidades num campo de pelada, ou na rua – as que ainda existem – são muito menores que aquelas atribuídas às crianças e jovens que iniciam sua prática esportiva em escolas de futebol e/ou clubes. Junto com essas responsabilidades, há ainda a censura aos comportamentos criativos realizada por treinadores e professores, fato que, futuramente, revelará atletas mais inseguros, com baixa autoestima e com medo de executar gestos criativos.

_____________________

[1] (A dinâmica do inconsciente. C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 1984).

Categorias
Colunas -

A flexibilidade mental no futebol

Crédito imagem: Cesar Greco/Palmeiras

O alto rendimento não é uma condição natural para o ser humano. Se o nosso cérebro tende a levar o nosso corpo o maior tempo possível ao conforto e ao gasto mínimo de energia para manter o funcionamento e a sobrevivência, ter picos de performance físicos e emocionais não é uma condição simples de atingir. Por isso poucos disputam uma Olimpíadas. Por isso poucos jogam uma Copa do Mundo. Por isso poucos são profissionais de ponta…

Entrando no contexto do futebol profissional o ambiente automaticamente seleciona os mais bem preparados. A própria transição das categorias de base vai promovendo isso, fase após fase. E uma vez estando na ciranda dos profissionais, não só jogadores, mas também treinadores, auxiliares, preparadores, analistas, enfim, todos que são remunerados, vivem uma instabilidade que não é comum a quase nenhuma atividade laboral. 


Um técnico, por exemplo, que permanece anos e anos no alto nível, sendo que no Brasil a média de um profissional é de três meses no cargo, tem habilidades que vão além das técnicas e táticas. Há uma capacidade mental muito acima da média para “sobreviver” a esse caos. É claro que quem chega entre os melhores do país conquista uma situação financeira privilegiada. Mas chega um momento que “só” o dinheiro não basta e não satisfaz. Dentro da média de três meses em cada clube, como um treinador planeja sua vida pessoal? Como fixar residência? Como administrar o entorno familiar, no caso de esposa e filhos? Se forem filhos em idade escolar, como criar raízes mudando de colégio a cada trimestre?

Levanto essas questões para trazer o lado humano ao debate. Há um descarte absurdo de profissionais atualmente no Brasil. Bastam alguns resultados negativos e vem o clamor para uma demissão. Se já repeti insistentemente que temos que analisar trabalho, conceito, metodologia, liderança, comunicação, volto o olhar agora para o ser humano, que já teve que enfrentar pressões absurdas para chegar onde chegou. Vale muito um tratamento mais humanitário ao invés da troca pela troca, sem nenhum embasamento técnico de que a mudança é a melhor opção.

Categorias
Colunas -

É só trocar o treinador…

Maílson Santana – Fluminense FC

A cultura resultadista e imediatista do futebol brasileiro é uma fábrica de moer treinador. Sei que essa afirmação é batida, que já foi dita milhões de vezes e que no curto prazo a tendência não é de mudança…mas investigar as causas desse fenômeno e traçar alternativas com novas soluções são obrigações de quem quer um futuro diferente.Já começo cravando que não sou contra a demissão de treinador algum. Não é verdade que todo profissional tem que ficar pelo menos um ano no clube para ser realmente avaliado. O ponto aqui é: quem comanda as equipes (presidentes, diretores e gestores) possuem o conhecimento necessário para avaliar o processo, o trabalho, a evolução e, mais do que tudo, entender as circunstâncias do treinador em questão? 

Se as coisas não estão sendo bem feitas, deve-se trocar antes tarde do que muito mais tarde. Porém, insisto: tem que haver conhecimento para uma criteriosa avaliação. E não apenas paixão e amadorismo, como vemos no Brasil…

Demitir deve ser a exceção. E não a regra, como é no futebol brasileiro. Atualmente, a maioria dos técnicos tem conhecimento, capacidades técnicas e táticas, metodologia, liderança e habilidades interpessoais para comandar projetos longevos. Uma ideia de jogo e uma mentalidade de alto rendimento não são implementadas em um grupo de vinte e cinco jogadores da noite para o dia. E se existe solidez no processo, quem tem a caneta na mão não pode jogar tudo para o alto na primeira sequência negativa, apenas para dar uma resposta à torcida.

Enquanto dirigentes não buscarem esse conhecimento sistêmico e transdisciplinar do futebol e, mais do que isso, se eximirem das responsabilidades, a culpa continuará caindo toda no treinador. Por isso, não dá para crucificar o técnico que joga primeiramente para não perder. Se o que vale é a sobrevivência, ele dança conforme a música…A nossa cultura superestima a real interferência do treinador no resultado final. E isso vai sempre jogar contra. Não avaliamos trabalho, estrutura, orçamento, condições, nível do elenco e etc. Avaliamos vitórias e derrotas. E enquanto considerarmos bom só quem ganha continuaremos com esse nefasto ‘salve-se quem puder’…

Categorias
Colunas -

O ensino do futebol – uma alternativa à captação

Crédito imagem – Palmeiras/Divulgação

Com ou sem escola, as pessoas aprendem. Aprender é o destino de todos nós. O que a natureza nos dá é insuficiente para darmos conta dos problemas permanentes que nos acometem, de cujas soluções depende nossa adaptação ao mundo. As crianças, por exemplo, aprendem desde o nascimento: aprendem inicialmente com a mãe e com o restrito contato que pode manter com seu meio, aprendem com a família, aprendem com seu círculo de relações com outras crianças, outros adultos, objetos e natureza ao redor, aprendem com a escola, com a igreja e outras instituições. Com o desenvolvimento essas relações se ampliam. As crianças, assim como os adultos, aprendem permanentemente, pois, consciente ou inconscientemente, sentem que sempre falta algo que poderá ser preenchido com as aprendizagens.

O tema que motiva este artigo é o futebol e o modo como ele é aprendido pelas crianças e jovens, e como são encaminhados, para níveis mais refinados de práticas, aqueles que demonstram habilidades especiais para esse esporte. Quando descobertas por quem as procura para encaminhamentos destinados à profissão futura de futebolistas, elas passarão por um novo processo de aprendizagem do futebol, não mais daquela forma lúdica, brincada com seus companheiros, mas orientada, dirigida com fins específicos para uma prática, talvez, profissional dentro de alguns anos.

De maneira geral, essas crianças e jovens encaminhados para os clubes e uma futura carreira profissional, são fruto de descobertas feitas por caçadores de talentos espalhados por todo o Brasil. Trata-se de eventos acidentais. Algo parecido com o que se faz nos garimpos à procura de ouro. O problema é que ouro é ouro, está lá, pronto pela natureza, é só pegar. Criança não é ouro, é gente, muda o tempo todo, tem que aprender para viver. Antes de serem descobertos, esses talentos aprenderam futebol ao seu modo. Esse modo é conhecido por todos aqueles que brincaram com o futebol de rua, de campinhos, ou de qualquer lugar em que pudessem compartilhar o divertido jogo de bola com amigos. Quando são reconhecidos pelos caçadores de talentos, quase sempre esses profissionais atribuem à natureza as habilidades demonstradas pelos jovens jogadores. Ignoram o processo por que passaram e acham que são assim porque a natureza assim os fez, diferentes de todos os outros desde o nascimento. Portanto, para essa concepção, trata-se de não perder tempo ensinando, pois os que se tornarão jogadores profissionais são aqueles talentosos por natureza, nasceram para isso. O que precisam, de acordo com esse conceito, é de uma orientação segura que os torne capazes de cumprir as determinações de professores e técnicos. Portanto, somente acidentalmente serão descobertos pelos caçadores de talentos. As chances de descobri-los serão tão maiores quanto maior a rede de observação espalhada pelo território brasileiro. E isso tem sido feito pelos grandes clubes de futebol do Brasil.

Essa prática de descoberta acidental de talentos guarda, em seu núcleo, um problema incorrigível. Por acreditar no talento nato, ela ignora a história do menino ou da menina que mostra habilidades especiais. Antes de serem descobertos viveram um processo no jogo de bola. Trata-se de um processo de aprendizagem. Ele envolve as condições de nascimento, envolve, também, claro, as condições biológicas, envolve a família, o lugar de nascimento, a cultura desse local, a liberdade para jogar, alimentação etc., etc. A caça ao talento ignora o modo como o jogo de bola foi praticado pelo menino ou menina, ignora o grupo infantil, essa pequena sociedade lúdica onde jogar bem é fator importante de identidade e inclusão, ignora o método da educação da rua. Por ignorar tudo isso, ao ser levado para um clube, o menino ou menina sofrerá brusca interrupção nesse processo educacional para o jogo de bola. Tudo que viveu até então será ignorado. É como se tivesse que começar do zero. E, então, um novo processo, que nada tem a ver com o anterior, é iniciado. É aí que se dá o nó da questão. A criança era criativa, divertida, jogava maravilhosamente, mas só naquele contexto de liberdade, de “irresponsabilidade”, de ludicidade, em seu grupo, no seu contexto. Quando chega ao clube, é outro contexto, não há mais sua pequena sociedade, o lúdico praticamente morre, nada de liberdade, pois os torneios exigem não perder, e assim por diante. Ela terá que se adaptar ao novo contexto e começar um novo processo. O que fazer com o que passou? O que fazer com sua história até então? E os fracassos se sucedem. Os poucos que sobrevivem a essa terrível seleção, chegarão aos subs 17, 19, 20, 23 adaptados a um futebol que nem de longe lembra o que jogaram quando aprenderam na rua. E o talento tão decantado será “provado” por raros. E esses raros continuarão alimentando a tese do talento natural. Quantos seriam os talentos caso fosse respeitado o processo que produziu tão maravilhosas habilidades? Não é de estranhar serem tão raros os talentos?

Suponhamos agora um outro caminho, que, por sinal, é trilhado por muitos professores e professoras, não só no futebol, mas em outros esportes, nas artes e outras produções culturais. Porém, fiquemos somente com o futebol. Consideremos que a educação da rua, excepcional na formação das habilidades para o jogo de bola com os pés, não seja interrompida. Claro, alguns questionarão essa rua, dizendo que, em boa parte do país, ela não existe, a não ser para os adultos e os veículos. É verdade, porém, falamos de uma cultura da rua, uma cultura da vida, e não exatamente do espaço entre calçadas. Trata-se de uma metáfora para aqueles espaços em que as crianças brincam entre elas, aprendem entre elas, definem papéis, firmam identidades, definem prioridades, desenvolvem habilidades de acordo com a cultura de cada uma dessas pequenas sociedades lúdicas, enfim, onde formam uma pequena sociedade lúdica.

Esta segunda hipótese abre algumas boas perspectivas e alternativas que corrigem o problema nuclear da hipótese do investimento na seleção natural, na busca acidental de talentos. Quando um observador observa crianças ou adolescentes jogando bola, ele colherá apenas um breve momento das práticas deles. Mesmo que a observação se estenda por alguns dias, ela só poderá perceber uma pequena mostra das possibilidades dessas crianças e adolescentes. Pelo contrário, quando inserida num processo educacional, a criança terá a oportunidade de evoluir em suas habilidades. Considerando que o ritmo de desenvolvimento é extremamente variável de criança para criança, aquilo que uma delas apresenta de habilidades para o jogo aos 10 anos, por exemplo, só poderá ser alcançado por outra aos 12 anos. Quando chegarem ao final da adolescência, talvez não tenham nenhuma diferença, ou poderão tê-la a favor de qualquer das duas; trata-se de algo imprevisível.  

A respeito dessa segunda hipótese, isto é, o ensino como alternativa à captação, aqui já chamada de seleção natural, comecemos por um dos casos possíveis: a aprendizagem informal do jogo de bola e o encaminhamento por observadores a clubes profissionais. Nesse caso, a criança ou jovem já sabe jogar bola bem, em nível suficiente para ser levada para um clube. É diferenciada, destaca-se das demais. O clube que a acolhe entende que ela pode chegar ao alto nível de rendimento, tornar-se profissional de futebol. Mas ela corre o risco de ter o desenvolvimento de suas habilidades interrompido pelo método orientador das atividades do clube. Como evitar isso? O clube só poderia evitar esse problema se tomasse como orientadora de seu método a educação da rua, dando continuidade ao processo vivido pela criança até então. Porém, o clube não é a rua, e nunca será; não há como transplantar a rua para o clube, são contextos diferentes. Porém, embora não seja possível transformar o clube em rua, é possível compreender o processo de educação da rua e transformá-lo em uma pedagogia da rua. Não há estudos a respeito disso, porém, boa parte dos que trabalham na área do futebol profissional viveram a rua como experiência educacional em suas infâncias. A rua registra elementos como a formação do grupo, chamado por mim de pequena sociedade lúdica, registra, dentro desse grupo, a constituição da identidade de seus membros, a distribuição de papéis, a importância de, de acordo com cada papel, desenvolver habilidades para o jogo de bola, registra a importância do refinamento do jogo de bola dentro do grupo, e assim por diante. A rua é um cenário lúdico e tem características de descompromissos fora do grupo, oferecendo espaço para a criação, liberdade para a experimentação, não punição para os erros, incitação ao refinamento dos gestos etc. O clube que compreender as características da rua, tendo profissionais competentes para transformar esse processo educacional em metodologia e pedagogia, pode, não replicar a rua, mas dar prosseguimento ao processo ao integrar os elementos nucleares da rua na formação dos meninos e meninas das equipes de base.

Vamos a um segundo caso. As crianças que não aprendem o futebol na rua, mas em escolas de futebol. Antes relembremos que rua é mais que um espaço entre calçadas; é um fenômeno cultural, um grupo de crianças que brinca, não importa o espaço. Um grupo que forma uma pequena sociedade lúdica sem necessitar de orientações de adultos. Portanto, mesmo quando vão aprender futebol em uma escola, essas crianças possuem uma história, participam de sua sociedade lúdica em casa, no pátio do prédio, no intervalo entre as aulas da escola regular etc. Que essa história não seja ignorada. Elas sabem brincar e suas brincadeiras poderiam alimentar de conteúdos o ensino do futebol, desde que houvesse uma adaptação. Essa adaptação consideraria que a rua não é perfeita, tem seus vícios, que poderiam ser evitados na pedagogia da rua. Toda educação sistemática deveria começar por aquilo que as crianças já sabem, aquilo que elas trazem de fora da escola.

São muitas as escolas de futebol espalhadas pelo Brasil. Centenas ou milhares. Algumas ligadas a franquias de grandes clubes de futebol profissional. De maneira geral, essas escolas de futebol fazem o que também ocorrerá nas equipes de base dos clubes de futebol: interrompem o processo de aprendizagem lúdica das crianças, ignoram sua história. Vamos supor que uma escola de futebol decida praticar a pedagogia da rua para ensinar futebol aos seus alunos. Os elementos para construir essa pedagogia ela tem. Inclusive, foram descritos em parágrafos anteriores deste artigo. Essa escola de futebol terá, talvez, que enfrentar a resistência de muitos pais que querem ver seus filhos replicando o que fazem jogadores profissionais de futebol. Será uma questão de esclarecer os pais no momento da matrícula a respeito da linha pedagógica da escola e de manter reuniões periódicas com eles. Vamos supor também que os professores dessa escola de futebol sejam competentes, esclarecidos e compreendam a educação da rua, portanto, capazes de orientar as práticas por uma metodologia da rua. E que o problema com os pais esteja superado. Para constituir essa pedagogia da rua, a escola de futebol levará em conta as brincadeiras que as crianças já conhecem. Levará em conta os conteúdos típicos da pedagogia da rua no que se refere ao futebol, ou seja, brincadeiras como o bobinho, a repetida ou rebatida, o três dentro, três fora, a pelada e o controle, entre outras. Levará em conta liberdade e a “irresponsabilidade” necessárias à criatividade, levará em conta a importância de estimular a formação de uma pequena sociedade lúdica entre os alunos e, para incrementar essa pedagogia, o envolvimento dos alunos em outras atividades culturais, como vídeos, músicas, passeios, trilhas na natureza e outras.

Vamos agora a um último caso, ainda em torno da pedagogia da rua. Isso não quer dizer que não haja outros casos possíveis, mas é o possível para este breve artigo. Temos que discutir o que se faz, atualmente, nas equipes de base do futebol brasileiro. Como esse universo é muito extenso, minha crítica dirige-se apenas àquelas equipes em que o processo educacional da rua é interrompido e substituído por imposições de práticas produtoras de medo, excesso de regras, chantagens, defender-se a qualquer custo, excesso de responsabilidade, não perder acima de tudo, eliminação do lúdico e de toda a criatividade, entre outros fatores. O resultado de tais procedimentos é a inibição gradativa das habilidades, da criatividade e do lúdico que caracteriza qualquer jogo. Lembrem que o futebol é considerado um jogo e, como tal, precisa ser lúdico, caso contrário já não será jogo e sim uma tarefa estafante e enfadonha. Um clube profissional de futebol corre o risco de, consideradas as proporções, ter um jovem de 20 anos de idade menos habilidoso para o futebol que quando ele chegou ao clube aos 12 ou 13 anos de idade. Como fazer para que isso não ocorra?

Estou sugerindo que os responsáveis pela formação de jogadores nas divisões de base considerem a seguinte lógica: se os meninos e meninas participantes dessas divisões foram escolhidos por suas habilidades, elas não caíram do céu. Foram construídas nas relações deles com o jogo de bola. O jogo de bola, como disse o Prof. Alcides Scaglia, na verdade muitos jogos, e da família dos jogos de bola com os pés, é uma atividade lúdica. Jogo e lúdico são a mesma coisa. São atividades produzidas quando predomina, em nós, a dimensão lúdica. E o que é a dimensão lúdica? É um dos aspectos do ser humano que se manifesta sem compromissos externos, em troca de nada. É uma espécie de fazer por fazer, de graça. Por isso tem graça. Quando jogam bola na rua, as crianças não têm qualquer compromisso fora do grupo do jogo de bola. É uma pequena sociedade que não tem que prestar contas para nada que esteja fora dessa sociedade. Elas jogam por jogar, embora, nas suas fantasias, imaginem-se jogando em um grande clube, marcando gols decisivos, fazendo defesas aplaudidas. Esse jogar por jogar permite arriscar, pois nada fora daquele jogo as cobrará, nada as exigirá, nada será feito que não possa ser refeito. Essa liberdade, esse salvo-conduto para o risco, permite tentar o novo, a criação. Não há jogo sem risco. No entanto, nas divisões de base, correr o risco tem consequências graves. Se der certo, tudo bem, mas se der errado – e a chance de dar errado é sempre enorme – a punição pode ser grave, pode significar perder o lugar na equipe, pode comprometer a sonhada carreira profissional.

Nas divisões de base, portanto, assim como nas escolas de futebol, não se deveria cobrar vitórias e títulos. Eliminar essa cobrança significaria tirar o peso da responsabilidade que inibe a criação. Que a expectativa por vitórias e títulos fique para depois, para a vida adulta, para a vida profissional, quando o jogador ou jogadora terá consciência suficiente para dar conta disso, terá maturidade, terá habilidades e modo de jogar consolidados.

Nessas divisões de base o núcleo das atividades práticas deveria ser a educação da rua, ou seja, as equipes de base deveriam pautar suas práticas por uma pedagogia da rua, fundada na educação da rua, dando continuidade ao modo como esses e essas jogadoras aprenderam a jogar bola. Nas divisões de base o jogo ainda deveria ser o jogo de bola.

Considero, portanto, que uma pedagogia da rua é possível, em escolas de futebol, nas equipes de base dos clubes de futebol profissional ou em qualquer outra instituição. Quantos jovens que poderiam ser jogadores profissionais extremamente habilidosos não perdemos por apostar, quase sempre, na descoberta acidental, na tal captação?

Os jovens precisam de tempo para revelar suas habilidades. Precisam de orientação, de paciência, de quem lhes dê atenção e os observe com humanidade. Não são máquinas, são seres humanos. É difícil enxergar seus sentimentos, mas é possível considerar suas expectativas, seus medos, seus sonhos, e dar um tempo para que se revelem, cada qual a seu tempo. A pressão por resultados é insuportável e uma espécie de guilhotina de habilidades. Perdemos centenas, milhares, milhões de jovens que poderiam ser alegres e nos alegrar com suas habilidades para o jogo de futebol. Estamos agindo como Herodes, isto é, matando o talento antes que ele se revele, simplesmente porque alguns observadores, como ungidos por Deus, determinam quem é e quem não é capaz de jogar futebol. A pedagogia da rua não pensa só no futuro jogador de futebol profissional, pensa, antes de tudo, no ser humano, no cidadão, nos direitos humanos. Não educa, prioritariamente, para formar o futebolista, mas para formar a pessoa, de modo que, também, o jogador profissional seja, mais que isso, um cidadão digno. A pedagogia da rua propõe que eduquemos as crianças e jovens para o futebol e para a vida, e que possam ser educados em seus lugares de origem, em vez de serem obrigados a migrar pelo território brasileiro e para fora do Brasil. A educação desses jovens com bolas nos pés objetiva, entre tantas coisas, evitar que passem por eventos que lembrem, inevitavelmente, o tráfico de seres humanos.

Categorias
Colunas -

O técnico perfeito não existe

Crédito imagem – Flamengo/site oficial

A busca pela perfeição sempre esteve presente nas atividades humanas. E isso não é negativo. Mirar a excelência é premissa para o alto desempenho de qualquer profissional. A ‘boa’ ambição é aquela que foca na performance para que o resultado seja o melhor possível.

Trazendo para o futebol temos isso muito aflorado. Até porque se trata de uma competição. Quem chega no alto nível tem uma vontade de vencer intrínseca já muito bem sedimentada. 

O problema é só valorizarmos o primeiro colocado. Apenas quem ganha tudo e sempre – mesmo sabendo que isso é impossível – é quem tem valor. Torcida, imprensa e até dirigentes cobram dos profissionais os melhores resultados. Tudo para ontem. E na maioria dos casos a estrutura e condições oferecidas estão longe de serem de ponta. E nessa cobrança desenfreada, nessa impulsividade e, principalmente, na falta de capacidade de avaliação se o trabalho está sendo bem feito ou não, muitos profissionais extremamente qualificados ficam pelo caminho. 

Mesmo sem resultados no curto prazo, um treinador pode estar criando ideias coletivas e sinergias entre os jogadores que vão aparecer muito em breve. Temos paciência no futebol brasileiro não só para esperar, mas ao menos falar sobre isso?! Não creio…

Tite, técnico da seleção, referência por ser o que melhor alia capacidades técnicas com habilidades relacionais, foi criticado veementemente quando o Brasil perdeu a final da Copa América para a Argentina. Não estou pregando que a crítica não deva existir. Pelo contrário. A crítica pontual, embasada, que toca realmente ‘na ferida’ é super saudável e necessária. Mas dizer que um profissional não serve apenas por um jogo me parece muito simplista, ainda mais lidando com algo tão complexo como o futebol.

Se no Campeonato Brasileiro tivermos os vinte melhores técnicos do mundo ainda continuará sendo apenas um o campeão. E quatro deles serão rebaixados…como não valorizar a longevidade de Luis Felipe Scolari e Vanderlei Luxemburgo neste mercado tão competitivo?! Ou as habilidades relacionais de Renato Gaúcho e Abel Braga, que muitas vezes são mais importantes do que qualquer conceito tático?! E tantos outros profissionais que já mostraram virtudes, mas foram engolidos por essa cultura resultadista…


O técnico perfeito não existe. Sempre há algo a melhorar. Saber olhar qualidades mesmo quando os resultados não estão acontecendo não é trivial. O primeiro passo para isso é observar o jogo com o óculos da complexidade e deixar as lentes do imediatismo um pouco de lado.

Categorias
Colunas -

Uma alternativa à captação?

Crédito imagem – Fluminense/site oficial

Imagine um menino de sete ou oito anos viajando o país, ele foi convidado por alguns dos maiores clubes de futebol do país para participar de avaliações, estão interessados em seu futebol. Se aprovado, o garoto dará o primeiro grande passo para se aproximar do sonho – muitas vezes mais da família do que dele – de se tornar um jogador de futebol. Enquanto vai tentando a sorte, o menino perde uma, duas, três semanas de escola, mas, a prioridade é a bola. Desse modo, segue o garimpo do futebol… Aprovando poucos, descartando muitos e criando um exército de andarilhos mirins.

Esse exército pode chegar a centenas de milhares. Quem tenta em um gigante também bate na porta dos menores, até parar em projetos nos quais é preciso pagar para jogar e viver, ou em alojamentos sem nenhuma condição de receber crianças de maneira digna.

Até os clubes mais reconhecidos por seu trabalho nas categorias de base no Brasil apostam suas fichas na captação — o garimpo — de jogadores. O objetivo é ENCONTRAR os melhores jogadores o mais cedo possível. A visão em relação ao que é processo de formação acaba sendo ainda bastante enviesada, o argumento para a escolha pelo ENCONTRAR é que reunindo apenas crianças da própria cidade o nível esportivo das equipes seria muito mais baixo. Por um lado é verdade quando dizem que as crianças estão sem tempo e espaço para brincar, que não é possível mais ficar tanto nas ruas, que os carros e a violência atrapalham, e os celulares são um concorrente e tanto… Diante de tantos obstáculos, é mais cômodo selecionar quem já chega “pronto” — estamos falando aqui de crianças e 8, 9 anos — mas esse não é o único caminho. É possível DESENVOLVER os melhores jogadores.

Como argumentar que não há material humano suficiente em São Paulo, no Rio, Brasília, Salvador, Fortaleza ou Belo Horizonte? Cada uma dessas cidades tem quase tanta gente, ou mais, quanto o Uruguai! Em cada capital brasileira, há ao menos tanta gente quanto na Islândia! Se o futebol deles foi bom e organizado o suficiente para manter seu melhor jogador — o meia Gilfy Sigurdsson — até os 16 anos, por que isso também não pode acontecer em qualquer estado brasileiro?

Defender que o nível dos jogadores de uma equipe formada apenas por crianças da própria cidade seria ruim é esquecer de duas coisas. Primeiro, para as crianças, o resultado de jogos e campeonatos está longe de ser prioridade. Segundo, o responsável por fazer uma equipe forte e por melhorar o nível de jogo do jogador é justamente quem está reclamando de sua qualidade de quem pode proporcionar experiencias ricas, de quem pode ensinar a jogar. Se há dificuldades, a solução é enfrenta-las, se o repertório motor das crianças já não é o mesmo, o trabalho nas escolas e, posteriormente, nas categorias de base pode ser o caminho para propiciar seu enriquecimento.

O futebol tem um potencial enorme para ajudar a transformar o país, o primeiro passo talvez seja o de olhar de maneira mais humana para o desenvolvimento de seus talentos, priorizando a formação e menos a captação. Ao invés de reduzir a idade da formação, como muitos defendem, e alojar jovens de diferentes partes do país cada vez mais cedo, clubes e federações poderiam concentrar seus esforços em dar oportunidade para que crianças e jovens se desenvolvam localmente. É preciso trabalhar com um número maior de jovens jogadores? Que tal estabelecer filiais, clubes ou escolas de futebol onde interessar, trabalhando com crianças, formando os seres humanos que futuramente irão integrar os elencos da base e até ocupar outras funções no clube ou virarão torcedores apaixonados? Tudo ao seu tempo, respeitando os momentos certos para o desenvolvimento das coordenações gerais e da especialização dos jovens jogadores. É possível fazer diferente!

Nos dias 19, 20 e 21 a Universidadade do Futebol realiza de maneira gratuita o seminário – O ensino do futebol | Uma alternativa à captação. Inscreva-se para garantir o seu certificado.

Categorias
Colunas -

O que aprendi com as Olimpíadas

Crédito imagem – COI/Site oficial

O futebol é o tema central desse espaço, mas ele está sob um guarda chuva maior que é o esporte e tudo que envolve competição. E por mais que cada modalidade tenha suas particularidades é possível tirarmos ideias que são genéricas. Principalmente as relacionadas ao campo mental. 

Temos o jogo travado no campo, na quadra, na pista, na piscina e etc. E temos também o jogo da mente. E as Olimpíadas do Japão nos trazem grandes reflexões sobre para onde está caminhando o atleta de alta performance nesse mundo pandêmico e que se transforma em uma velocidade jamais vista. 

O ponto que mais me chamou a atenção – e aqui falarei de conceitos e não de pessoas – foi ainda a simplicidade. Ganhadores de medalhas olímpicas negando qualquer tipo de pressão que a magnitude desse evento naturalmente carrega afirmando que fizeram apenas o que estão habituados. Provas individuais afloram muito isso. Afinal, é mais vantajoso pensar que alí estão os olhares de todo o mundo e que qualquer falha será notada por milhões de telespectadores, que o resultado obtido pode ser a única chance de uma mudança radical de patamar de vida ou que trata-se apenas de mais uma ‘volta de skate’, mais uma ‘corrida na pista’ ou mais uma ‘nadada’?!

Não é trivial esquecer o entorno e focar apenas na tarefa a ser desempenhada, mas notei que quem tem essa habilidade é porque valoriza e tem um processo muito bem sedimentado. Contando que um ciclo olímpico tem quatro anos, são quarenta e oito meses de preparação. A competição irá refletir o preparo prévio de cada um. Atletas que acreditam na repetição, na melhora contínua, na auto avaliação de erros e acertos tendem a se dar melhor quando ‘é pra valer’. O estado de confiança não se gera apenas com otimismo e pensamento positivo. Isso também ajuda, entretanto sem um processo por trás se torna ineficaz.

E por fim destaco a capacidade de superação. Ninguém nasce campeão. Ninguém nasce o melhor do mundo. Ninguém nasce medalhista olímpico. E todo sucesso teve inúmeros fracassos anteriores. Várias derrotas que alguns encaram como o fim da linha e outros como oportunidades de fazer diferente. A habilidade de se levantar é fundamental para chegar no topo. E se a maioria quer resultado rápido, dá para afirmar que vai colocar a medalha no peito aquele que foca na tarefa, que acredita no processo prévio e que não se abala com as derrotas, entendendo que elas são fundamentais para pavimentar o caminho de glórias futuras.

Essas habilidades mentais que observei e pincei atentamente nesses dias de Jogos Olímpicos servem para qualquer modalidade, incluindo o futebol, e também para a vida de cada um de nós. Se o esporte reflete a sociedade, vamos nos inspirar nos vitoriosos. Se alguém conseguiu, qualquer um consegue!

Categorias
Colunas -

Princípios Pedagógicos – Não é só futebol e nem deve ser

Crédito imagem – Jogos estudantis da Bahia/Divulgação

O futebol por si só é gigante, mas não é nem maior e nem mais importante que outras dimensões da vida. Você concorda com essa afirmação? Na vida de quem é apaixonado(a) por futebol, é muito provável que esse fenômeno produzido pela cultura humana ocupe grande parte dos pensamentos e momentos mais marcantes de nossas histórias. Quem trabalha com futebol, especialmente, sabe bem o quanto este mercado te exige de dedicação e trabalho para que se alcance algum destaque. No entanto, o futebol por si só, o jogo bem jogado, o jogo bem analisado, a equipe bem treinada, os alunos e alunas desenvolvendo suas habilidades, a escola e o clube crescendo, são coisas importantes que almejamos e trabalhamos para que aconteçam. Contudo, se investigarmos mais a fundo sobre esse “core business” do nosso dia a dia, veremos que eles não podem estar isolados de outras dimensões da vida, tão ou mais fundamentais quanto ele.

Quando queremos que nosso trabalho prospere, ao redor da prosperidade sempre há pessoas e relações que a oportunizaram. Não podemos desejar o nosso sucesso no futebol sem considerar o processo de construção desse sucesso. Por trás de um título, por exemplo, há sempre diversas histórias de superação, companheirismo, esforço, autoconhecimento, sabedoria, amor, enfim, faculdades humanas extraordinárias que podem justificar o sabor da conquista, até mais do que um significante troféu na galeria da escola ou do clube. Da mesma forma, quando contribuímos na formação de um jovem ou uma jovem para que conquiste seu sonho de ser atleta, ou qualquer outro sonho, pelo menos eu, não estou preocupado apenas em fazer bem o meu trabalho e se reconhecido por isso. Há uma intenção genuína de ajudar o próximo. Uma das melhores formas que tenho de contribuir com a sociedade é a partir das minhas aulas e treinos, pois são os melhores momentos que tenho para influenciar positivamente a vida dessas pessoas. Contudo, eu não conseguiria fazer isso apenas ensinando futebol. Eu preciso “ensinar mais que futebol”. E é este o último princípio pedagógico que trataremos nesta série de artigos.

Da mesma forma que o futebol me possibilitou conhecer muito do que está no seu palco, evidente a todos apaixonados por este esporte, também me possibilitou conhecer os seus bastidores, o seu processo de construção. E esse processo de construção sobre tudo o que há de bom no futebol, pode estar presente na construção de coisas para além do futebol. O que eu quero dizer com isso?

Todas aquelas faculdades humanas presentes no processo de conquista de uma competição esportiva, citadas no início deste texto, podem ser importantes na construção de outras coisas na vida. Por exemplo, no futebol, nada se ganha sozinho ou sozinha. Há sempre muita gente envolvida trabalhando, melhor ou pior, mais ou menos, mas todos em busca de um objetivo comum. Essa capacidade de trabalho em equipe em prol de um objetivo favorece apenas o sucesso no futebol ou também para mais dimensões da vida? Em um matrimônio, por exemplo, saber tomar decisões em conjunto também faz parte do sucesso dessa relação? Quando você está em uma equipe e precisa tomar uma decisão em conjunto, você pode ter sua opinião superada por outra. Você precisa compreender que naquele momento a opinião que irá prevalecer não será a sua. Como você lidará com isso? Saber lidar bem com essa situação é algo que se aprende ou já nascemos sabendo? Por que não desenvolver a minha aula ou treino de futebol de modo a ajudar uma criança ou adolescente a saber também lidar melhor com esse tipo de situação?

Exemplos de situações presentes no futebol, que para você ter sucesso o processo te exigirá conhecimentos importantes para a vida, não faltam. No próprio jogo, a coragem de arriscar, o pensamento estratégico, a solidariedade, a ética, a empatia, a gana de vencer, saber aprender com as derrotas, enfim, elementos que são imprescindíveis para jogar bem a vida também estão presentes na vida cotidiana, para viver bem, e vice-versa. Isto quer dizer que o jogo de futebol, a minha aula e meu treino não estão desassociados da vida das pessoas que os frequentam. São parte dela como quaisquer outras. Porém, naquele momento, eu, enquanto educador, tenho uma grande influência sobre essas pessoas. Considerando ainda mais o meu caso, que pode ser o seu também, a maioria delas está na infância ou adolescência, logo, em etapas cruciais da formação humana. Portanto, eu não posso deixar passar a oportunidade de fazer com que a minha aula, além de ensinar a gostar de futebol, ensinar bem futebol a todos e a todas, também ensine mais que futebol.

Em meio às atividades de aula ou treino, em que os objetivos específicos são relacionados ao conhecimento do jogo, eu sei que no processo de aquisição desse conhecimento específico, terei a oportunidade de ensinar coisas que são importantes para além do futebol. Muitas vezes eu nem preciso sair do contexto do jogo, às vezes preciso. O que é interessante ficar claro é que esse conteúdo que transcende a prática esportiva precisa estar na consciência e, por vezes, planejado pelos(as) professores(as) e treinadores(as), escolas e clubes, em seus currículos de formação. Alguém pode questionar: “Mas como em meio às minhas atividades específicas eu vou ensinar autoconhecimento, por exemplo? Eu não tenho tempo para isso!”

Lembre-se que o jogo faz parte da vida assim como as outras atividades humanas. Um maior autoconhecimento, por exemplo, fará alguém viver melhor em todas as situações de sua vida, bem como também o fará jogar melhor futebol. Por exemplo, uma criança é tímida, acanhada e entra numa escola de futebol. Uma ação simples para que essa criança comece a se sentir mais à vontade naquele grupo é incentivar para que as crianças da equipe comemorem juntas sempre que fizerem um gol. Este momento de celebração em grupo tende a fazê-la se sentir bem e pertencente àquele grupo, o que poderá ajudá-la a se soltar mais ao longo das aulas. Caso ela se transforme nas aulas nesse sentido, você acredita que ela jogará futebol melhor ou pior? Por outro lado, você acredita que ela será a mesma criança tímida fora desse ambiente? Pode ser que não fique tão à vontade quanto nas aulas de futebol, mas carregará consigo as transformações internas que as aulas lhe proporcionaram.

Em outra ocasião, podemos ter uma situação-problema do futebol, em que a intervenção do(a) educador(a) será fora do contexto de jogo. Uma atleta está passando por uma lesão que a tirou de jogos importantes da temporada. Será que a treinadora poderá realizar diálogos com ela que a farão persistir e se dedicar na sua recuperação e com isso voltar a campo em outro momento, em plena forma, confiante do seu potencial de jogar em alto rendimento? Caso esse processo seja cumprido com êxito e, de fato, ela volte bem aos campos, será que esse problema específico da vida dessa atleta não a terá transformado para ser mais capaz de reconhecer situações difíceis em que é necessário recuar para reconstruir o sucesso? Nesse sentido, gostaria de reforçar que o diálogo também é uma intervenção essencial para que essas transformações mais profundas aconteçam. Eles podem ser usados fora do ambiente de aprendizagem da aula ou do treino, mas também dentro, para trazer à consciência todas as situações do futebol, que no fim, não são apenas do futebol.

Com essa mensagem encerramos mais uma série de artigos. Espero que tenha gostado! Que essa minha intervenção pedagógica tenha te transformado de alguma forma e que essa transformação lhe inspire a transformar as vidas das suas alunas, alunos ou atletas, utilizando-se desses princípios pedagógicos também, assim como o Prof. João Batista Freire me inspirou ao escrevê-los.

Um forte abraço e até a próxima!

Categorias
Colunas -

Lições e alertas do skate olímpico

A disputa do skate nos jogos olímpicos chamou atenção do público pela pouca idade de muitos dos atletas. Entre eles, o destaque foi Rayssa Leal, brasileira medalhista de prata que cativou o mundo com seu carisma, sorriso e leveza. Aos 13 anos e 204 dias completados ela se tornou uma das medalhistas olímpicas mais jovens de todos os jogos e também uma das grandes histórias da atual edição.

Rayssa é conhecida como a fadinha do skate, por ter viralizado nas redes ao aparecer com sete anos em um vídeo fantasiada de fada acertando manobras e desde então foi crescendo no esporte até alcançar a conquista na última semana. A alegria que esbanjou ao longo da competição foi um forte sinal de como a experiência dos jogos para ela, e aparentemente, para a maioria dos seus colegas, foi divertida e positiva. Entretanto a “invasão de menores” que o skate proporcionou pode ter algumas consequências negativas no longo prazo que merecem ser discutidas.

O resultado de Rayssa e de tantos e tantas jovens atletas pode se explicar muito menos pela pouca idade do que pelo estágio de desenvolvimento da modalidade, ainda estreante no programa olímpico e pelas próprias características do esporte, que não exige tanto das aptidões físicas, a potência, velocidade e força, demandando mais da habilidade dos competidores. Entretanto, a mensagem que pode ficar para o público é a de que quanto antes começarem os treinamentos, melhores os resultados esportivos. É aí que mora o perigo.

Isso não é verdade nem para o desempenho nos esportes e muito menos para a vida desses jovens.

O treinamento especializado, quando acontece antes do momento adequado, é classificado por pesquisadores como especialização precoce, e é altamente prejudicial para o desenvolvimento das crianças, inclusive em relação ao desempenho esportivo. De modo geral, a especialização precoce acontece quando o esporte passa a ser uma obrigação para a criança, os resultados viram a prioridade e existe uma sobrecarga física e mental sobre ela.

Nessas situações a prática esportiva pode ser entendida como um trabalho. As consequência desse tipo de relação com o esporte observadas com maior frequência são a extenuação mental e o abandono da prática, ou seja, muitos talentos acabam sendo desperdiçados. Para o desenvolvimento dessas crianças outros prejuízos podem ser listados, como o distanciamento escolar, por exemplo.

Isso quer dizer que crianças não podem praticar esportes? Absolutamente não, podem e devem!

Quando observamos a relação dos e das skatistas nesses jogos olímpicos com o esporte, o que se pôde perceber é que muitos deles pareciam estar aproveitando o momento, se divertindo, inclusive com a performance dos rivais – que são mais colegas do que rivais! Ou seja, o grande ponto não é quando começar um esporte, mas sim como. Se a prática é prazerosa, sem obrigações, ela é benéfica para o desenvolvimento e potencializa o talento, como Rayssa demonstrou tão bem. Crianças devem brincar, não trabalhar.

O limite de idade

Para diminuir a precocidade dos seus participantes nos jogos olímpicos, a Federação Internacional de Ginástica (FIG) estipulou o limite para 15 anos e em 1997, subiu a idade para 16 anos. Temos aqui a ponderação de que a medida cerceia, de certa maneira, o direito de atletas talentosos a colocar suas habilidades à prova quando estiverem à altura da competição. Por outro lado, a medida ajuda a prevenir a especialização precoce e seus impactos negativos na vida dos jovens atletas. Quanto mais cedo for permitido que crianças disputem competições adultas e alcancem resultados excepcionais, mais cedo adultos irão buscar extrair o máximo delas, o que costuma ser trágico para seu desenvolvimento. Sob a ótica da garantia dos direitos das crianças, o limite mínimo de idade nas competições adultas acaba sendo, em geral, positiva.

E aqui, vale lembrar que estamos nos pautando pela priorização dos direitos das crianças. Se pensarmos exclusivamente no resultado de uma competição, talvez especializar possa até fazer sentido em alguns momentos… É possível ganhar de diversas formas, mas muitas vezes, algumas simplesmente não valem a pena.

Que Rayssa, e que todas e todos que venham depois dela continuem por aí voando, felizes. Vencedores ou não.

Colaborou com o desenvolvimento dessa coluna Marcelo Massa, doutor em Iniciação esportiva, Treinamento a longo prazo e Talento esportivo pela Universidade de São Paulo – USP.