Aos que se sentiram incomodados com o título da coluna nesta semana, desculpas. Em referência ao “Mister” Jorge Jesus, o texto procurará refletir acerca dos potenciais resultados fora de campo que o Flamengo poderá ter. Pode parecer cedo vislumbrar quaisquer possibilidades, mas a coletiva de imprensa pós-jogo contra o Goiás (6 a 1) deixou boas impressões.
Em primeiro lugar, identidade. Item sempre mencionado nesta coluna. Jorge Jesus teve mais ideia da grandeza do clube e fez comentários a respeito disso, da torcida, sobre o estádio cheio, como a equipe joga, estilo de jogo. Por isso, é sugerida uma cultura de jogo de acordo com todo o histórico que o clube possui, palmarés e ídolos. Em como o flamenguista se identifica com o clube. Com o tempo, se isso continuar sendo feito, o “produto” da instituição ficará ainda mais valorizado, ídolos surgirão e um legado permanecerá. O mesmo acontece com a identidade do Santos de Sampaoli que o torcedor santista gosta: apresenta um excelente futebol, no entanto aparecem algumas derrotas – doloridas – pelo caminho.
Títulos ajudarão, sim. Se vierem, ótimo. Se não vierem, Jorge Jesus pode ser elemento fundamental para a desconstrução de uma ideia equivocada de que os títulos são a razão suprema da existência de uma instituição esportiva. Exemplos, alguns. A começar pela terra do “Mister”: o Sport Lisboa e Benfica não vence uma competição europeia há décadas, mas isso não é motivo para troca de treinador e de comissão técnica. Por muitos anos viu o protagonismo do Futebol Clube do Porto, mesmo assim optou-se pelo planejamento e continuidade de trabalho, que sugerem rotina e cultura. Não houve “comoção” nacional ou foi motivo para crises sem precedentes. Na Inglaterra, o Leeds United AFC por muito pouco não deixou de existir quando gastou uma fortuna que não tinha para conquistar um título de Liga dos Campeões da UEFA no início deste século. Ficou nas semifinais. Quase acabou. Até hoje luta para voltar à elite do futebol do seu país. A torcida do Leeds quer este retorno? Certamente. Mas não há dúvidas de que o medo foi maior quando estavam prestes a fechar as portas. Jorge Jesus durante treino do Flamengo. (Foto: Divulgação)
Com tudo isso, o efeito que Jorge Jesus pode ter para o Flamengo é semelhante ao que Ronaldo “Fenômeno” teve ao jogar no Corinthians. Este teve um efeito no marketing e comunicação enormes. Já o Mister será capaz de vez por todas escancarar para o futebol do Brasil que, identidade e cultura são o patrimônio máximo de uma instituição esportiva. Ele não tem nada a perder.
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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“Jogue na Inglaterra. Porque melhor do que ouvir “você tem futuro”, é ouvir “you have a future”.”
Confesso que penso muito antes de escrever um texto. Faço uma seleção mental de tudo que tem acontecido e pinço algo – ou positivo ou negativo – que me chama a atenção para destrinchar com certa profundidade em alguns parágrafos. E, quando observo o que acontece no gigante São Paulo Futebol Clube, tricampeão do Mundo, dono da terceira maior torcida do país, a maioria dos fatos é desabonadora.
Como acompanhar a coletiva de apresentação do atacante Raniel, ao lado do diretor Raí e do gerente Alexandre Pássaro, e achar que está tudo bem? Olha só, torcedor: não estou falando de ele ter sido reserva o ano todo no Cruzeiro. E também não estou falando da fortuna que custou – 13 milhões de reais (!). Ou melhor, tem a ver com grana sim. O dinheiro usado para pagar a equipe cruzeirense veio de um empréstimo de um empresário. Isso mesmo, uma pessoa física, com interesses que em algum momento podem ser conflitantes, tem o dinheiro que o gigante do Morumbi não tem. Está certo isso? Esse modelo de gestão tem alguma chance de dar certo? A ausência de conquistas recentes do São Paulo responde por si só.
Quero deixar bem claro que esse “modelo” de negócio tem sido uma praxe entre os clubes brasileiros. O próprio São Paulo fez isso no ano passado para contratar o meia Everton, que estava no Flamengo. O Tricolor representa aqui para mim um problema crônico, impregnado nos clubes brasileiros, que atende pelo nome de dirigente estatutário. As pessoas que têm a caneta nas mãos são apaixonadas pelo time, como o torcedor que está na arquibancada. Nada os difere. Nenhuma preparação, nenhum curso. Nada.
Se o São Paulo pegasse esse dinheiro no banco os juros seriam maiores. Se pagasse o Cruzeiro com recursos próprios talvez atrasasse salários e/ou direitos de imagem. Compreenda que o caso Raniel é um sintoma da doença que tem o clube. A conta não fecha. Se gasta mais do que se arrecada. As dívidas não param. E repito: não estou entrando na área técnica. Porque se entrasse sobrariam argumentos reiterando que Raniel não tem esse valor de mercado. Mas aí teria que falar também da estranha contratação de Biro Biro, da mais estranha ainda liberação de Diego Souza ao Botafogo e o texto ficaria insuportavelmente longo.
São-paulino, esqueça os outros clubes e foque no seu. Resumindo: o poderoso Tricolor do Morumbi é tão mal administrado que tem que pedir dinheiro emprestado a uma pessoa física para contratar um reserva do Cruzeiro. Não cobre só o Cuca, só o Pato, só o Hernanes. Cobre quem está assinando por tudo isso.
Sou muito crítico a categoria de técnicos brasileiros. Nunca generalizo, para não ser injusto. Mas vejo um atraso gritante dos nosso profissionais com relação ao que se faz no mais alto nível mundial. O fato de nenhum treinador do Brasil ser cotado para assumir nem ao menos um time médio europeu não me deixa mentir. E repare que me refiro a time médio. Um clube gigante mundial, então, acredito que nem se fizer uma listagem de vinte possíveis nomes colocará um profissional do nosso pais nesta lista.
Posto isso, e apesar disso, o nosso melhor profissional é Tite. Com suas qualidades, que são muitas. E com seus defeitos, que para mim são suportáveis. Coloco ‘defeito suportável’ porque no final das contas é isso que segura qualquer relacionamento. Seja ele pessoal, seja ele profissional – neste caso Tite (treinador) e eu (jornalista).
Entendo que o resultado em campo é fruto de um trabalho muito complexo do técnico. Amo estudar tática, estratégias, modelo de jogo, princípios e sub-princípios operacionais de ataque, defesa e de transições. Entretanto, quanto mais estudo tudo isso mais entendo que o jogo não se resume a isso. O trabalho de um técnico fica muito evidente com escalações e alterações, porém ele vai muito além disso.
Tite é um mestre na arte das relações interpessoais. Essa é sua principal virtude – em segundo lugar vem a competência em armar grandes defesas, um atributo que ele carrega desde o início de sua carreira. E a maneira com que Tite faz a gestão do ambiente se sobrepõe, por exemplo, à dificuldade em criar conceitos ofensivos. É nítido que a seleção brasileira apresenta dificuldades em furar boas defesas. Só que o trabalho de Tite é bom, apesar disso.
Vamos combinar, caro leitor: não existe técnico perfeito!
Reconheço que Tite em alguns momentos exagera nas figuras de linguagem, mas sua comunicação é muito boa. Também o seu trato diário com todos os funcionários, passando por massagistas, jogadores e chegando nos dirigentes é excepcional. E acredite: isso faz toda diferença! Isso faz sim uma equipe, ou uma seleção, ganhar. O bom técnico é aquele que tem boas competências profissionais técnicas, como entender de tática, metodologia de treino, ter boa leitura de jogo, mas também aquele que sabe liderar pessoas, gerir recursos humanos. E Tite é um mestre nisso.
E vamos lá: depois de Tite quem é o melhor aqui no Brasil? Tenho dificuldade para responder. Não vejo ninguém nem perto dele. Mano Menezes? Tem os mesmos problemas de ideias ofensivas e não é tão eficaz na gestão do ambiente. Renato Gaúcho? Não sinto firmeza na intenção do trabalho dele. O bom momento do Grêmio é muito mais fruto do que o clube produz do que do trabalho em si de Renato. Para mudar esse meu conceito gostaria de vê-lo triunfar em um outro cenário, onde ele não seja o maior ídolo da história. Enfim, Tite não está a altura hoje de dirigir um Manchester City, um Liverpool, um Barcelona. Mas é o melhor nome entre os profissionais nascidos em território brasileiro. Sabendo do conservadorismo da CBF em ser relutante a abrir a nossa seleção para um estrangeiro: fica Tite!
Fernando Diniz, do Fluminense: a arte está no caminho. (Foto: Lucas Merçon/ Fluminense Football Club)
Existe um filósofo francês, chamado Michel Onfray, que escreveu um livro bem interessante, embora difícil, chamado A Escultura de Si. No livro, Onfray ensaia o significado e a importância de ‘fazer das nossas vidas uma obra de arte’.
Há uma certa passagem em que, citando um dos seus mestres (Nietzsche), Onfray exalta o filósofo-artista, cuja diferença estaria na ‘capacidade de inventar novas formas de existência’. Este trecho, em particular, é muito chamativo.
Na coluna de hoje, gostaria que fizéssemos uma adaptação, que não é tão distante assim: vamos pensar um pouco sobre o significado e a importância do treinador-artista. Vejamos.
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Uma das primeiras diferenças do treinador-artista, talvez a primeira, está na sua relação com as emoções. Este treinador ou treinadora não deixa as emoções em um lugar secundário ou alheio, da mesma forma como sequer imagina suprimir as emoções, em nome de uma razão pura, como têm nos ensinado muitos cursos mundo afora. O treinador-artista, pelo contrário, está aberto às emoções. Por isso, está aberto a si mesmo, à sua própria humanidade, e então está aberto ao jogo e ao mundo.
Nas palavras do mesmo Onfray, que citei acima, o artista é aquele que ‘põe a emoção antes da reflexão’. Repare que não existe nenhum crime aqui: ninguém está falando em desligar a razão ou ‘desligar a ciência’, como alguém poderia interpretar. Na verdade, o que não se pode é desligar as paixões, suprimir os afetos – como jamais fizeram, diga-se, inúmeros dos maiores artistas de todos os tempos. O treinador-artista não é aquele que mata a reflexão. Talvez seja o que consulte as paixões primeiro. E então reflete.
Quando aceita as próprias emoções e, especialmente, quando deixa as emoções em um lugar privilegiado, quando simplesmente aceita sentir (por si e pelos outros), o treinador-artista não apenas admite um compromisso com a sua humanidade inteira, como também admite um compromisso com o treinamento das paixões. É mais ou menos disso que falamos quando falamos de uma pedagogia dos afetos. O treinador-artista sabe que haverá momentos de profundo pensamento, mas também haverá momentos de intuição, de rapidez, momentos que, às vezes, a mais fina razão não alcança. Por isso, a formação básica é emocional.
E o treinador ou treinadora-artista pode saber disso sem ter lido Daniel Goleman ou Daniel Kahneman. Mas eles sabem.
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Ótimo, vamos então refletir sobre a reflexão deste treinador-artista. Essa reflexão pode ser superficial? Não, não acho. O treinador-artista é aquele que consulta primeiro as emoções mas, ao mesmo tempo, é aquele que trabalha continuamente para refinar o próprio pensamento, sobre as coisas e sobre si. Ou seja, é um treinador/treinadora que não sabe apenas de futebol, que não lê apenas sobre futebol, que pensa além do futebol, que pensa muito além do futebol e que, por isso, pode pensar coisas extraordinárias sobre futebol, pode ‘inventar novas formas de existência’, como falamos acima.
Sendo mais específico, o que faz do treinador-artista acima da média é a capacidade de desenvolver um pensamento original, assim como de recriar este pensamento continuamente. O artista não está exatamente interessado em seguir as normas vigentes, isso todos já fazem, ele prefere criar as próprias normas (autonomia, portanto). Por isso, ele se pergunta: por que não usar meu goleiro para o ataque? Por que não usar as forças do adversário em nosso favor? Por que o jogador A não pode jogar nas funções X ou Y? Por que só se pode ‘driblar no último terço’? Por que os pontas não podem atravessar o campo quando quiserem para criar superioridades no setor da bola? Por que é preciso simetria no ataque? Enfim. A arte também parte da dúvida, mas talvez seja uma dúvida do coração.
A meu ver, isso é dramaticamente necessário, pois esses treinadores e treinadoras trazem uma outra cor ao futebol. Um dos problemas do nosso tempo é que as coisas, às vezes, parecem monocromáticas, parecem estar em um mesmo tom, as pessoas também, às vezes o próprio pensamento, as maneiras de pensar, tudo parece muito semelhante. De alguma forma, isso também mora no futebol. Às vezes, temos a impressão de que muitas equipes jogam muito parecido, com sistemas muito parecidos, com substituições que se repetem, que nossas equipes (incluo as minhas) sejam vez por outra tão obedientes, tão tementes à ordem, como se um grande prego fincasse cada jogador ao espaço (foi Valdano quem disse isso), de modo que nossos jogadores vão se esquecendo de jogar futebol, de jogar o jogo (são coisas diferentes), de desfrutar o jogo e, por isso, não apenas se esquecem, como talvez sequer imaginem que possam fazer arte.
O treinador-artista, portanto, não é necessariamente aquele que consegue fazer arte. Pode também ser aquele que sabe que ela existe e que ela é possível.
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Se seguirmos a linha que fomos traçando ali em cima, você vai concordar comigo que o treinador-artista não é necessariamente aquele que ‘joga bonito’ – especialmente se associarmos o jogo bonito ao jogo ofensivo. Nem sempre. O treinador-artista é o que primeiro sente, que pensa por si, é um escultor de si mesmo e da equipe. Diego Simeone, por exemplo, é um artista. Por quê? Porque em uma cultura em que a maioria dos treinadores estão ávidos pela posse, ele pensou pelo avesso, abdicou da posse, e construiu um projeto a partir do caráter, da defesa, passando pela transição (Antoine Griezmann, aliás, evoluiu muito neste modelo). E fez disso uma arte, uma estética defensiva, que trouxe títulos e que, por isso, também trouxe terríveis insucessos. E continua sendo arte. Porque a arte não se mede nas vitórias, apenas.
Ou seja, não existe um modelo de jogo específico, uma estrutura específica, por onde o artista começa e segue. O treinador-artista olha para si, consulta suas emoções, reflete rigorosamente sobre elas, faz isso continuamente e, como em um susto, talvez descubra em si mesmo um conhecimento que ainda não havia encontrado, uma solução que parecia oculta, um saber seu (portanto, único) – e então leva este saber para o campo. Lá, no ateliê dos treinadores, ele refina suas ideias, confronta suas ideias com o jogo, com os atletas, com o tempo, com o espaço. Ali, se aprimora como treinador/treinadora e, ao mesmo tempo, se aprimora como artista.
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Por fim: é obrigatório, além de ser treinador ou treinadora, com tudo o que isso já significa, ser um treinador-artista? Não, claro que não.
Mas nenhum treinador nasce treinador. Treinadores tornam-se treinadores. Ou seja, precisam ser criados, pelo mundo e por si mesmos. Sendo um ato criativo, tendo de esculpir a si mesmo, deduzo que já exista um quê de artista (a ser continuamente trabalhado) em cada um dos treinadores.
Ainda que se trate de um grande segredo.
Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai lançaram candidatura conjunta para receberem o mundial de futebol masculino em 2030, ano em que se completarão 100 da primeira edição, no Uruguai, em 1930. Excelente poder contar com um evento como este na América do Sul. Oxalá corra tudo bem e que, de fato, sejam os países escolhidos. No entanto, é um desafio muito grande.
Megaeventos como estes levam inúmeros fatores em consideração, falar mais uma vez sobre eles é “chover no molhado”. Logística, deslocamento, oferta e demanda, disponibilidade de serviços, tudo isso é importante. Não é difícil perceber que existem muitas outras regiões do planeta que possuem estes temas resolvidos de uma melhor maneira.
Os exemplos dos países-sede das últimas edições nos leva a perceber que não é preciso ser um grande centro da modalidade para receber uma Copa do Mundo. Não que seja preciso, afinal o futebol é de todos, para todos, em todas as partes. Um parênteses, muito se questionou sobre a escolha do Qatar como país-sede. A questão foi em como o país do Golfo Pérsico foi escolhido para receber a Copa.
Ademais vale lembrar que, quando o Brasil foi o eleito para a Copa de 2014, havia um rodízio de continentes na escolha, e os brasileiros beneficiaram-se disso. Coincidência ou não, por motivos políticos ou mercadológicos este processo de escolha foi abolido não muito tempo depois.
Também vale pensar que a candidatura sul-americana seja apenas um blefe, uma especulação para animar o mercado da bola local, atrair investidores e mais patrocinadores e, com isso, aquecer a – incipiente – indústria do futebol por estas bandas, ainda abalada pela investigação do FBI e prisões de dirigentes locais. Exibição da candidatura da Inglaterra para receber as Copas do Mundo de 2018 ou 2022. (Foto: Divulgação)
Com tudo isso, antes de candidatar-se, pensar em uma candidatura exitosa passa por trabalhar a modalidade em serviço da população. Sem romantismos, tradição e história não convencem mais. Se fosse por isso a Inglaterra teria sido eleita sede em 2018. Ao mesmo tempo é preciso operar e saber atuar em ambiente competitivo e aberto, de ampla concorrência, o que a América do Sul – ainda – não sabe fazer.
Os resultados não mais podem dar origem aos projetos, e sim o contário.
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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“O futebol é como o mundo deveria ser: simples, com garantias de liberdade, igualdade e espaço para o talento individual.” Mario Vargas Llosa, escritor peruano
Aymeric Laporte, do Manchester City: condução e associação perfeitas para uma saída de três. (Reprodução: Sky Sports)
Durante um bom tempo, que terminou sem que notássemos, havia uma ideia mais ou menos clara no futebol brasileiro: quem joga com três zagueiros, joga para se defender melhor.
Bom, passados alguns anos, vejo dois movimentos importantes: I) aqui no Brasil, entre as séries A e B, estão mais raras as equipes que jogam com três zagueiros; II) aquelas que jogam, não são necessariamente taxadas de defensivas.
Neste texto, gostaria de trazer algumas ideias não sobre as consequências defensivas, mas sobre as consequências ofensivas do ato de jogar a partir de uma linha de três. Vamos pensando juntos.
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Há um fato curioso, especialmente quando pensamos no futebol praticado no Brasil: ainda que pareça cada vez menora incidência de equipes que jogam com três zagueiros de ofício, também parece ligeiramente mais natural ver equipes que começam a construção ofensiva a partir de uma saída de três. Ou, se você preferir, equipes que constroem a partir de uma saída lavolpiana. De alguma forma, essa pequena mudança reflete um pouco das violências que nosso pensamento futebolístico recebeu nos últimos anos. Não digo violência no sentido negativo do termo, mas violência como o movimento que viola nossas ideias médias e, por isso, faz com que elas mudem de forma.
E o que isso significa? Significa que está cada vez mais claro que é possível construir a partir de uma saída de três sem que se jogue com três zagueiros, por exemplo. Estamos mais do que habituados às equipes que utilizam o recuo de um dos volantes para a linha anterior, abrindo os zagueiros e criando, não raro, superioridades sobre os atacantes adversários. A ideia, portanto, é aumentar a largura desta primeira linha ofensiva, o que pode ter a contribuição de um jogador que está uma linha acima e, mais do que isso, este simples movimento também influencia a altura dos laterais – que agora estarão adiante.
Mas repare que o viés de todo este meu parágrafo é ofensivo, e é isso que me chama a atenção. Sinto que estamos mais interessados em olhar para as repercussões ofensivas da ‘defesa’, e portanto aqui está uma diferença razoável no olhar que temos construindo, pois quando se falava em equipes que jogavam com uma linha de três, imediatamente fazíamos uma associação defensiva, ao passo que, ainda que devagar, já temos um olhar mais dinâmico, que percebe o ataque na defesa e vice-versa.
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Uma consequência imediata do ataque a partir de uma saída de três está no comportamento dos laterais. Não por acaso, há quem inclusive mude o seu nome, chamando os laterais de alas. Vou manter o termo original, entendendo essa diferença como irrelevante.
Em condições normais, atacar a partir de uma linha de três faz com que os laterais subam imediatamente alguns metros, compondo agora uma das linhas de meio-campo. Isso também significa que, muito provavelmente, será o lateral quem dará largura para a equipe, quem abrirá o campo (às vezes em extensão máxima) para igualmente abrir a defesa adversária e, portanto, induzir alguma forma de desequilíbrio, seja se beneficiando de um possível espaço pelo lado, seja abrindo a defesa adversária para que se criem espaços por dentro. Para isso, repare bem, é provável que o lateral, ao contrário do que normalmente faz uma linha de quatro tradicional, busque o espaço para receber a bola às costas do ponta adversário desde no início da construção – o que pode vir a ser um problema interessante, especialmente se o adversário fizer marcações individuais no setor. Afinal, onde for o lateral, irá o ponta que o marca.
Este é um dos motivos porque o comportamento dos laterais, logo de cara, pode ser tão interessante a partir de uma saída de três. Mais abaixo, citarei outro.
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Existe uma questão situacional no ataque a partir de uma saída de três. Quantos atacantes têm o adversário? Lembro de um jogo entre Athletic Club x Schalke 04, o Athletic treinado por Marcelo Bielsa, em que ele alterou a escalação inicial assim que soube que o Schalke jogaria com dois centroavantes (Huntelaar e Obasi). É claro que a decisão tem uma preocupação defensiva (Bielsa gosta de jogar com sobra), mas também há uma repercussão ofensiva, porque jogar com uma linha de quatro significaria que, no início da construção, os dois zagueiros estariam em igualdade com os dois atacantes adversários.
Este pode ser um problema importante, facilmente resolvido se preenchermos um pouquinho mais a primeira linha. No caso daquele jogo, Bielsa trouxe um dos laterais (Aurtenetxe) para a linha dos zagueiros. Com uma saída de três, jogando os laterais metros acima, temos portanto uma situação de 3 v 2, que nos permite, em caso de boa circulação, avançar metros acima (falei melhor sobre isso neste texto). Mas quando eu digo que a saída de três é situacional, penso em uma outra questão: e se o adversário jogar com apenas um atacante? Vale a pena construir a partir de uma linha de três?
Continua não sendo uma questão simples (não é causal), pois envolve inúmeros outros fatores: quais são as características dos meus zagueiros? Como a equipe adversária marca? Como nós queremos atacar? Qual o atual nível (inclusive de confiança) da nossa equipe para, eventualmente, ter um jogador a menos metros adiante? Repare como uma decisão envolve, na verdade, uma série de perguntas, um mosaico de questões que qualquer treinador leva a cabo quando trabalha.
Daí, aliás, a complexidade inerente ao ato de treinar.
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Uma contribuição bastante importante de Pep Guardiola, que talvez tenha ficado mais explícita após a sua chegada ao Bayern de Munique (quando trouxe Lahm para o meio), mas que certamente está nítida no Manchester City, é uma certa mudança na localização de laterais e pontas.
Em condições normais, quando atacamos a partir de uma linha de três, o lateral sobe metros e abre o campo, enquanto o ponta pode tanto entrar em diagonal (é o que eu prefiro) quanto pode ficar no mesmo corredor do lateral – ainda que isso signifique que um possa anular o outro. De qualquer forma, a ideia básica é: o lateral, provavelmente, será responsável por abrir o campo.
Guardiola (digo, especialmente ele) causou um certo transtorno quando sugeriu, ao invés disso, que o lateral partisse de dentro, enquanto o ponta recua metros, ocupando, em certa medida, o espaço do lateral. Ou seja, se meu zagueiro pela direita, em condições normais, teria o lateral como opção imediata de passe por fora, agora a opção imediata não mais será o lateral, mas o ponta (que, não se esqueça, provavelmente estará às costas do ponta adversário). Com jogadores fortes no 1 v 1, como Arjen Robben, Douglas Costa, Frank Ribery, Leroy Sané, Raheem Sterling e vários outros, essa realmente se tornou uma opção muito interessante ao longo do tempo, uma vez que permitiu, simultaneamente, reforçar o corredor central, criando pelo menos duas superioridades (numérica e posicional), ao mesmo tempo em que potencializou a qualidade dos pontas, permitindo que pudessem driblar em espaços menos congestionados a priori. Junte a isso a possibilidade de que os pontas tenham pés invertidos (canhoto pela direita e vice-versa), e os cenários podem ser ainda mais interessantes, especialmente para equipes que pretendem atacar por dentro.
No caso de Guardiola, não se esqueça que isso também acontece quando ele ataca com apenas dois zagueiros, neste 2-3-5 que ele usa de vez em sempre. Mas, retomando o que escrevemos lá em cima, o 2-3-5 também é fluido (como qualquer outro sistema), e a fronteira que o separa de um 3-2-5, por exemplo, pode ser tênue, quase invisível.
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Também é importante, como já esbocei acima, considerar o perfil dos zagueiros em questão. Não apenas o perfil de hoje, mas o perfil futuro, o perfil que queremos despertar pelo modelo de jogo. Veja o caso de Aymeric Laporte, por exemplo: um zagueiro que talvez fosse mais condutor, com técnica e velocidade que lhe permitiam tranquilamente jogar pela esquerda em uma linha de três, mas que agora também desenvolve uma capacidade admirável de quebrar linhas em passes curtos ou longos, o que dá ainda mais fluidez ao ataque do City. É o tipo de qualidade despertada pelo modelo.
Laporte é um ponto fora da curva, mas o perfil de quem joga nessa primeira linha é importante. Se quero um ataque mais direto, basta um jogador que dê chutões ou preciso desenvolver alguma precisão, alguma localização para este passe? Se quero que meu zagueiro pela esquerda (da linha de três) conduza mais a bola no início da construção, é preferível que ele seja destro ou canhoto? No caso de um ataque apoiado, tenho zagueiros que se sentem confortáveis conduzindo ou passando a bola? Se sim, como podemos aproveitá-los ao máximo? Se não, como podemos desenvolvê-los? Algum dos volantes têm perfil para recuar alguns metros e construir o jogo desde o início? Algum deles têm perfil para resolver um problema a partir de um drible, se preciso? Repare, mais uma vez, como treinar uma equipe flerta com a arte não apenas de responder, mas de fazer perguntas.
No caso de quem joga por dentro, especialmente quando pensamos nessa saída lavolpiana (um dos volantes se junta à linha de zagueiros), é importante que este jogador tenha um bom passe, goste de passar a bola, goste de passar a bola bem, tenha interesse em distribuir o jogo. Imagine o que pode ocorrer, por exemplo, se este jogador se sente desconfortável para receber a bola de costas, correndo o risco de ser pressionado. Daí a importância, aliás, de fazermos com que nossas ideias conversem com os jogadores que temos, com as nossas possibilidades, que pensemos longe, mas que este horizonte seja alcançável, realista.
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Aqui, acho que temos algumas boas ideias iniciais. Em breve retomo a este tema, especialmente pensando sobre as outras fases do ataque iniciado por uma linha de três.
Continuamos em breve.
Marketing Esportivo e, especificamente o do e no futebol, é o tema central desta coluna. No entanto ela não busca tratar exclusivamente seus aspectos teóricos e práticos, afinal o marketing envolve gestão, comunicação, planejamento estratégico, recursos humanos e projetos. Bastante coisa mas, na verdade, por exemplo o que esta coluna julga ser mais importante: envolve método e execução.
Ledo engano pensar que o marketing (ou o seu departamento) irá sanar todos os problemas de receitas do clube, conseguir o “patrocínio master” e fazer a instituição aparecer nos mais diversos meios de comunicação e colocá-la no ranking da “Deloitte” ou na lista de 50 ou 100 mais da “Forbes”.
Blá, blá, blá.
Marketing apenas segue as orientações de uma organização (esportiva), clube ou federação. Se ela está uma bagunça, o “marketing” vai ser bagunçado igual. Se não houver governança, planejamento estratégico, execução através de método, transparência; comunicação, missão, visão, valores compartilhados e explícitos; metas e resultados, o “marketing” vai ser “um cone em campo”.
Foto promocional da Copa União de 1987. (Foto: Divulgação)
“Marketing” é área fundamental para qualquer organização, mas precisa estar conectada com todo o clube. E vice-versa, desde os futebolistas até os mais diversos setores de colaboradores. Não se trata de clube-empresa especificamente, mas de qualquer organização – com ou sem fins lucrativos – para realizar, com excelência, aquilo que se propõe a fazer.
Talvez o mais difícil neste processo todo nem sejam os resultados, mas sim estruturar a equipe ideal para obtê-los.
Com tudo isso, nesta centésima edição, quero agradecer a todos os leitores desta coluna que vez ou outra dão uma vista d’olhos por aqui, que compartilham ou não das ideias destas linhas. Sou muito grato pela atenção e tempo dispensados na leitura.
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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” Eduardo Galeano, escritor uruguaio (1940-2015)
Seu time tem mais posse de bola do que o adversário. Troca mais de sessenta passes na partida. Chuta mais de quinze vezes ao gol. Tem como centro de gravidade do jogo o campo de defesa do oponente – ou seja a bola fica mais tempo perto do gol do adversário do que do seu próprio gol. Porém, o resultado positivo não vem. Seja um empate ou até mesmo uma derrota, porque mesmo com esse “domínio” do jogo é possível, por exemplo, tomar um gol de contra-ataque.
A situação descrita acima cai perfeitamente para um time do futebol brasileiro. E hoje se enquadra, também, na seleção do técnico Tite. O que vimos no confronto contra a Venezuela pela Copa América foi um retrato fiel do que acontece nos gramados pelo Brasil: uma ausência gigante de conteúdos ofensivos.
Preciso contextualizar que a cultura, a escola do futebol brasileiro sempre pregou o individualismo ao invés do coletivo. O nosso próprio futebol de rua, com a sua peculiar pedagogia, sempre foi pautado pelos confrontos individuais. E por muitos anos isso fez com que tivéssemos o melhor futebol do mundo. Nossos craques resolviam. O treinador deveria minimamente armar a defesa. E deixar o talento decidir lá na frente.
Não sei se alguém ainda não percebeu, mas o mundo mudou. E o futebol também. Nossa pedagogia da rua encolheu. Nossa metodologia de treinamento e conceitos táticos não evoluíram, assim sendo foram superados. Hoje não cabe mais deixar o craque resolver com a bola nos pés. É preciso conceito, ideia, princípios e sub-princípios para atacar. São conceitos coletivos que fazem com o que o jogador de qualidade apareça individualmente. Coisas que são intuitivas, mas que também podem ser treinadas e condicionadas, como ultrapassagens, mobilidade, apoios, terceiro homem, viajar junto para gerar desmarque, enfim, ideias coletivas que fazem com que uma equipe ataque com qualidade.
Criou-se uma falsa ideia de que para jogar bem é preciso ter posse de bola. Discordo. A posse é um meio. E não um fim nela mesmo. E a análise de qualquer estatística deve ser encarada qualitativamente. Quais finalizações foram realmente limpas e com perigo real ao adversário? As trocas de passes foram predominantemente para frente ou só para o lado e para trás? A circulação de bola foi realmente efetiva ou quem mais participou foram os zagueiros com passes distantes do gol adversário? Cumprir a lógica do jogo e realizar as ações necessárias para a vitória com o menor gasto possível de energia é o essencial. Independentemente da porcentagem da posse de bola.
O rondo espanhol, bobinho brasileiro: antes e acima de tudo, um jogo. (Reprodução: the18.com)
Há algumas semanas, escrevi sobre alguns dos espaços do futebol de rua. Naquele texto, propus discutirmos a rua como espaço de metáfora, de liberdade e de descoberta.
Descoberta, para mim, é descoberta de si e descoberta do jogo. Afinal, aqui está uma das grandes divergências recentes entre os profissionais do futebol, especialmente quando pensamos no treinamento. Alguns dos colegas defendem um olhar que coloca a técnica no centro do processo (podemos chamar de tecnicismo), outros colegas colocam a tática no centro do processo, enquanto outros colegas, dentre os quais eu me incluo, colocam o jogo no centro do processo – jogo este contempla a tática, a técnica, tudo o mais.
É claro que não precisamos de muitas teorias para pensar o óbvio: o futebol é jogo. Mas, sendo jogo, o futebol não é tão óbvio assim. São muitos os autores que se dedicaram, por vezes durante toda a vida, a pensar e trabalhar com a compreensão do jogo e do ato de jogar: Johan Huizinga, Roger Caillois, Tizuko Kishimoto, Ludwig Wittgenstein, João Batista Freire, Alcides Scaglia – apenas para citar alguns.
Hoje, escrevo sobre o jogo, especialmente na lembrança da disciplina Pedagogia do Jogo, ministrada pelo professor Alcides Scaglia, aqui na FCA Unicamp. Por enquanto, deixo três pontos iniciais para pensarmos melhor sobre que falamos quando falamos do jogo.
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O jogo, em primeiro lugar, é suspensão. Suspensão do quê? Suspensão temporária da realidade. Quando jogamos, quando nos entregamos ao jogo, entramos em um outro estado, que podemos chamar estado de jogo, e fazemos uma breve pausa no real. Entramos portanto em um outro mundo, em um tempo e um espaço bastante particulares, mas fazemos isso com uma condição: nós levamos conosco elementos do real. Ou seja, nós saímos do real, entramos em uma espécie de ficção, mas fazemos isso a partir do real. Não por acaso, quando jogamos por inteiro não sentimos a passagem do tempo, ou então sentimos uma outra passagem do tempo, uma outra dimensão, sobre a qual não temos muito controle – ainda que pensemos o contrário. Na verdade, não é que nós jogamos o jogo, parece mais que o jogo joga conosco, parece que Senhor do Jogo (como nos disse João Batista Freire) é quem está no domínio, e é a ele que nos reportamos, deliberadamente ou não.
Pensar no jogo como suspensão temporária do real tem uma implicação pedagógica bastante importante, pois quem joga não joga com uma ou outra parte do corpo (como pensa o tecnicismo), mas joga por inteiro, joga como se é. Por isso, como defendi neste texto, processos formativos baseados no jogo tendem a ser humanizadores, porque exigem do jogador que se revele por inteiro, nas suas qualidades e defeitos. Por isso, treino e jogo devem falar uma língua parecida.
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Em segundo lugar, o jogo é incerto, é imprevisível. Quem aceita jogar o jogo aceita entregar-se à incerteza, à contingência, à surpresa, à dúvida, à novidade, ao caos, ao equilíbrio caótico, à ordem nascida do caos. Este é um dos motivos, dentre tantos outros, por que uma excelente semana de treinamentos, conduzida por um excelente treinador e uma excelente comissão, pode terminar em um jogo terrivelmente ruim. Porque o futebol é modalidade coletiva de invasão (ou seja, existe um adversário interessado em nos anular inteiramente) e porque no jogo não há relações causais – as relações são outras. A não é causa de B. A narrativa do jogo é menos causal e menos antrópica (menos controlada pelo homem) do que nós imaginamos.
Sendo incerto, o jogo não está definido por antecipação. Não existe uma forma (ao menos legítima) de antecipar o que irá se passar no jogo, pois o jogo é construído ao vivo, por quem joga e pelo próprio jogo. Ou seja, o jogo é histórico, ele se faz ao longo da história, inclusive da história que se constroi naquele tempo/espaço específicos. Ao mesmo tempo, isso não impede que uma dada equipe, quando joga, apresente padrões, e aqui entra o trabalho, por exemplo, da análise de desempenho. A análise não diz o que irá, com certeza, acontecer no jogo, pois o jogo é imprevisível, mas a análise identifica padrões e, em certa medida, aposta, investe que esses padrões possam aparecer durante o jogo. Quando? Não sabemos.
Este é um motivo importante porque não basta dedicar-se aos pormenores do futebol. É preciso, antes, dedicar-se ao jogo. É preciso abrir-se à incerteza, é preciso respeitar o jogo, é preciso caminhar junto do jogo – e não tentar domesticá-lo. Não são poucos os colegas que desejam adestrar o jogo, educá-lo como se ele fosse um animal qualquer, e nesses casos costuma ser mais pesada a mão do jogo – que pode até nos dar algo hoje ou amanhã, mas que também nos cobra mais adiante.
Como ocorre na vida vivida, aliás.
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Por fim, o jogo é regulamentado. Ou seja, o jogo tem regras. São elas que nos dizem até onde podemos ir, quais são nossos limites.
Acho essa ressalva particularmente interessante porque nela mora uma característica pedagógica séria: se decidimos adotar uma metodologia baseada no jogo, precisamos ter muito cuidado com as regras dos nossos jogos. Você e eu já nos deparamos com colegas que, muitas vezes com a melhor das intenções, lotam o jogo de regras, criam inúmeras restrições para nossos jogadores, às vezes ainda pequenos, que querem apenas jogar, mas que se perdem em um mar de referências do que se pode e, especialmente, do que não se pode (ou não se deve) fazer dentro do jogo.
São essas sutilezas que agridem, em certa medida, a imaginação dos nossos jovens jogadores, para quem o jogo deve servir como estímulo e não como obrigação. Nossos pequenos e pequenas carecem de jogos que estejam vinculados a um certo modelo, a um determinado perfil de pessoa/jogador que gostaríamos de formar, mas eles não chegarão nestes lugares mais facilmente se estiverem entupidos de regras, mas sim se escolhermos as regras certas, as regras centrais, as regras mais importantes (com as devidas variações) para chegarmos juntos onde queremos. O fato de ser regulamentado não significa que um maior número de regras nos dará maior controle sobre o jogo.
Em razão da suspensão e da incerteza, inclusive.
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Por enquanto, ficamos por aqui. Mas vamos conversando mais isso em breve.
Falar do jogo é agradável e, desconfio, é cada vez mais necessário.
Nas últimas semanas foi praticamente impossível esquivar-se das notícias que envolveram o futebolista Neymar fora das quatro linhas. A coluna não tratará especificamente sobre o que aconteceu, mas buscará analisar como isso mexe com o marketing do futebol e sobretudo o do próprio profissional do futebol.
Assim como referido em colunas anteriores, a sociedade confere bastante confiança e reconhecimento a um ídolo. Em contrapartida um ídolo é referência e possui responsabilidades com a sociedade. É, para muitos, um ideal ético e estético. É pessoa pública e tudo o que faz monitorado não por poucos, mas por todos.
Ao mesmo tempo, alguns pensadores sobre marketing esportivo dizem que o ídolo completo é composto por elementos que compõem as letras da palavra “TOPSTAR”. “T”, de team, sobre possuir espírito de equipe. “O”, de off-field life, ou seja, sobre “a vida fora de campo”. “P” se refere, em inglês, aos atributos físicos do ídolo. “S” em relação ao sucesso. “T” de transferência, ou seja, uma característica do ídolo que se conecta com o fã. “A” de idade, quanto mais novo, mais ligado às crianças. Finalmente o “R” é a reputação. A partir disso, podemos fazer um exercício com vários atletas que temos como referência. Poucos são os que encaixam em todas as letras.
Assim como qualquer pessoa, o atleta profissional precisa estar atento a este tema. Afinal, as organizações esportivas – potenciais empregadoras dos seus serviços – levarão em consideração o espírito de equipe, a conduta, as condições físicas e a reputação para contratá-lo. Dificilmente apenas a confiança e reconhecimento de outrora bastarão. Afinal, talvez nem estejam preocupados em associar a marca da instituição ao atleta, mas o quanto ele pode agregar para o quadro de colaboradores, colegas em campo e os que atuam fora dele. Capaz de conturbar e perturbar o ambiente que, ruim, não é nem um pouco produtivo. Com o tempo, é natural que o valor de mercado do atleta e da instituição caiam. (Foto: Divulgação)
Portanto, ser profissional não basta ser pago para trabalhar. A palavra possui um amplo sentido, sobretudo o de fazer valer a sua vocação. A base para tê-la é a educação, quer seja formal ou aquela que vem dos nossos grupos de convívio. Infelizmente, vivemos em uma sociedade tão consumista, gananciosa e individualista que instituições bastante importantes – como a família – estão em crise e valores como o respeito e o discernimento, cada vez mais raros. Problema muito mais sério do que se pensa.
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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:
“O Barcelona não precisa do Neymar. O Barça tem gente muito boa. Para que gastar dinheiro? A não ser que ele jogue para a equipe e para o Messi.” Johann Cruyff(1947-2016), em declaração de março/2013, antes de o brasileiro ter sido transferido ao clube catalão/espanhol em agosto/2013.