Mitos são histórias ou conceitos de origem não muito confiável que com o passar do tempo vão sendo retransmitidas de papo em papo até virarem verdade, mesmo que às vezes não sejam.
Como grande parte do conhecimento do futebol é disseminado através de papo em papo, nada mais natural que ele acabe ganhando um grande contorno mítico, recheado por verdades que nem sempre são lá muito verdadeiras.
Um desses mitos do futebol diz que em time que está ganhando não se mexe. Outro mito diz que dois a zero é um resultado muito mais perigoso para o time vencedor do que um a zero. E outro, ainda, diz que clubes europeus não dão a mínima para as competições intercontinentais, os tais campeonatos mundiais da Fifa.
Enquanto os dois primeiros mitos possuem um embasamento bastante questionável, o terceiro é nada mais do que pura e simples verdade. Clubes europeus não dão a mínima para campeonatos em que tenham que jogar contra clubes de outros continentes. Priorizam seus campeonatos nacionais e continentais, relegando os campeonatos intercontinentais a uma insignificância tal que só não jogam com o time reserva porque a Fifa não deixa.
Pergunte para um torcedor do Manchester United se ele por algum acaso se lembra da primeira edição do campeonato mundial de clubes promovido pela Fifa e ele provavelmente dirá que não. Você dá mais detalhes. Cita o golaço do Edmundo depois de um drible desconcertante em cima do Silvestre, zagueiro dos diabos vermelhos. Edmundo quem?
Aí você perde a paciência e fala que foi no Rio de Janeiro no comecinho do ano 2000 e que teve Real Madri e tudo mais. Fala que até o Beckham tava lá pegando um bronze em Copacabana. Ele vai se lembrar, indignado, mas a lembrança vai aparecer só porque esse campeonato foi a razão pela qual o Manchester United não pôde participar naquele ano da FA Cup, uma espécie de Copa do Brasil inglesa, que é o campeonato mais antigo do mundo.
Numa jogada política, a FA – algo como a CBF inglesa – obrigou o Manchester a levar seus jogadores para o Rio de Janeiro para agradar a Fifa e ajudar a então candidatura da Inglaterra para sediar a Copa do Mundo de 2006. Como você bem deve saber, o Manchester United não ganhou o campeonato e a Inglaterra não vai sediar a Copa ano que vem.
Interessantemente, esse episódio é visto hoje pelos ingleses como um dos maiores fracassos da história da FA, e não como um fracasso do Manchester United.
Assim como na Inglaterra ninguém se gaba de ter ganhado uma Copa Toyota, ninguém também tira sarro do outro por ter perdido.
“Nós apenas não damos bola”, explicou pra mim um fanático torcedor do Liverpool que chegou a viajar até Istambul para assistir a final da última Copa dos Campeões contra o Milan.
Para entender o porquê disso, é preciso primeiro entender aquilo que significa o futebol para Liverpool e para a Inglaterra. Liverpool é uma cidade mundialmente conhecida por causa dos Beatles e por causa dos seus clubes de futebol, Liverpool e Everton.
É uma cidade de tamanho mediano para os padrões ingleses e foi muito importante no passado por causa da sua grande capacidade portuária. Com a queda do império inglês no começo do século 20 e com o desenvolvimento de novas tecnologias e novos pólos de navegação, Liverpool sofreu uma forte crise econômica e só agora começa a dar sinais de recuperação. A cidade foi abandonada pelas indústrias e se sente abandonada pelo governo. Possui uma das maiores taxas de desemprego de todo Reino Unido e em 1998 era considerada a cidade mais desfavorecida de toda a Inglaterra.
Como o futebol sempre caiu muito bem em locais com altas taxas de desemprego, não é de se espantar que ele assuma tamanha importância. É tão importante que a cor oficial da cidade é roxo, uma mistura entre o vermelho da camisa do Liverpool e o azul da camisa do Everton.
Mas não por isso ache você que a grande rivalidade existente é entre os dois clubes da cidade. Rivalidade existe, claro, mas ela é muito menos intensa do que a rivalidade demonstrada para com clubes vizinhos, em especial o supracitado Manchester United.
Em qualquer lugar do mundo o futebol envolve fortes sentimentos de identificação e pertencimento a uma determinada sociedade. Na Inglaterra, porém, esse sentimento é muito maior.
Não só por se tratar do país que inventou o jogo, mas principalmente por ser uma ilha que até poucas décadas atrás tinha em mãos o comando do mundo.
A Inglaterra ainda é um império em decadência e, como todo bom império, está mais preocupado com seus assuntos internos do que com qualquer movimento globalizado.
Pergunte pro Bush
Para dar crédito a uma conquista é preciso valorizar o adversário. E ninguém vale mais para os ingleses do que eles mesmos. É quase impossível conseguir ingressos para assistir as partidas do campeonato nacional, a Premiership. Quase todos os ingressos são vendidos antecipadamente, e o tempo estipulado da fila de espera para conseguir comprar o pacote de ingresso pra temporada do Liverpool é de 20 anos.
Para a Liga dos Campeões da Europa, por sua vez, basta ficar algumas horinhas na fila da bilheteria do estádio que você consegue o ingresso. Se bobear, até sobra no final. É uma relação de importância perfeitamente oposta à sul-americana. Enquanto que para os ingleses o jogo mais importante é o local, para os brasileiros o mais importante é o intercontinental.
O Liverpool ignora o Campeonato Mundial de Clubes da Fifa assim como o São Paulo ignora o Campeonato Estadual da Federação Paulista. Ambos só jogam por pura obrigação. Passa o jogo, ninguém mais se lembra do que aconteceu.
O Liverpool vai aproveitar o tour pelo Japão para desenvolver alguns projetos comerciais com sua crescente torcida asiática. Vai pelo dinheiro, e só por isso.
Caso ganhe o campeonato, o Liverpool não vai colocar uma estrela dourada em seu escudo. O único ouro com que o clube se importa vai para o banco. Se bem que hoje em dia ninguém mais coloca ouro no banco. Já faz muito tempo que isso virou um mito.
Para interagir com o autor: oliver@universidadedofutebol.com.br