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A tática de enganar

“Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
 
Pensando assim, porque assim o é, acabo de refletir sobre nossa condição (minha, sua e dos outros) de seres humanos brasileiros e pesquisadores aficionados por esporte.
 
Saudoso das minhas conversas com João Freire, o grande João (grande em idéias, em observações, em soluções, em “sacadas” interessantíssimas), lembro-me das discussões sobre os “aspectos cognitivos da motricidade humana” em que ainda hoje me esforço a recordar algum detalhe qualquer que pode ter ficado perdido na memória, tamanha riqueza de idéias e informações que foram discutidas. Numa dessas falamos sobre imaginação. Pode parecer estranho ou óbvio, mas quero destacar que nós seres humanos temos a capacidade de imaginar!
 
Certamente o seu cachorrinho de estimação não tem, nem o rei das selvas ou o elefante do circo. Então poder imaginar nos faz animais diferentes. Isso nos possibilita muitas vantagens. “Desenhar” na mente uma idéia antes de construí-la é algo que nos permite projetar ferramentas, levantar prédios, construir rodas, carros, trabalhos, instituições, teses, antíteses, enfim misturar o concreto e o abstrato crescendo com isso.
 
Tecnicamente, penso que imaginar pode facilitar muitas situações pessoais. No esporte assim como no cotidiano, imaginar é preciso. Nos esportes coletivos, imaginar é fundamental. Desde a abstração de desenhos táticos até a execução em uma situação adversa, é muito importante notar o problema, imaginar a solução e depois tentar construí-la (já que imaginar e não poder ou conseguir executar não resolve os problemas).
 
Na condição de brasileiro pesquisador e observador, noto que um aspecto fundamental precisa ser acusado nas reflexões sobre os esportes coletivos com bola (futsal, futebol, vôlei, basquete, handebol, etc.). Para não causar nenhum tipo de interpretação errônea, tomarei cuidado com as palavras.
 
No dicionário, imaginar significa idear, fantasiar, inventar, representar na imaginação. Já imaginação é a faculdade de criar a partir da combinação de idéias. A combinação de idéias funciona como uma mistura de ingredientes para bolo, colocados em doses certas e preparados de maneira precisa. Quero dizer com isso, que idéias ao léu não necessariamente resultarão em uma imaginação passível de execução.
 
Vejamos outro termo que me será útil na explanação. Falo da palavra enganar. Enganar significa induzir ao erro, iludir, burlar. Em linhas gerais, quem engana (o enganador) engana para o mal (pelo próprio conceito da palavra na indução ao erro). Quando pensamos nos esportes coletivos, podemos alcançar uma forma diferente de encarar o ato de enganar. No vôlei, por exemplo, quando a bola chega até as mãos do levantador ele tem a exata missão de iludir o bloqueio da equipe adversária para que o seu atacante possa realizar uma “cortada” (um ataque) com mais facilidade. A “paradinha” das cobranças de pênalti surgiu tão somente para induzir os goleiros ao erro.
 
Lembremos que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Mas imaginação, por definição envolve criação, e certamente não haveria por que existir a palavra criar se fosse apenas para a definição dessa lei (mas deixemos essa discussão para outra oportunidade).
 
O ponto a que quero chegar é: principalmente em esportes coletivos com bola (que não são previsíveis!), enganar é uma forma de conseguir vantagens. Podemos pensar até em uma conceituação diferente para o ato de enganar, associando-o a uma imaginação que leva a iludir o adversário.
 
Grandes jogadas do futebol (a bicicleta, por exemplo) foram “inventadas” por brasileiros (ainda que haja controvérsia). E a “jornada nas estrelas” do vôlei? Pura criatividade, pura imaginação, pura ilusão aos adversários…
 
Penso que no nosso país, onde faltam oportunidades para a prática esportiva e onde talentos sobrevivem dentro de erros de preparação e falta de estrutura, algo se torna singular e nos permite ainda assim ter grandes equipes em esportes coletivos com bola. Se é mérito do jeitinho brasileiro eu não sei, mas que nossa capacidade de imaginar para iludir é algo surpreendente, nem duvido mais.
 
Obviamente que não estou aqui, eu brasileiro, querendo dizer que somos grandes enganadores. Já disse antes que o ato de enganar por definição parece algo mau, mas alertei também que transferido aos esportes (dentro do contexto que evidenciei), poderíamos alcançar um entendimento diferente para tal.
 
É claro também que Lavoisier (1743-1794), ao contextualizar a lei de que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, o fez no pensamento da conservação de energias. Visto assim, até mesmo nossa combinação de pensamentos (a imaginação) é uma decodificação (transformação) de uma série de reações e impulsos que em um estágio final a resultaram.
 
Mas mesmo pensando assim, creio que algo que também se transforma, mas que desta vez sim, se cria, nos permite evidenciar o talento de imaginar para iludir, de transformar para vencer, de criar para sobreviver… Afinal de contas, somos brasileiros.
 
Pena mesmo que no nosso bom futebol o “iludir-enganar” não se mantenha dentro das quatro linhas norteado pelos benefícios das regras ou pela imprevisibilidade do jogo. Pena que o “iludir-enganar” não seja uma forma inteligente e positiva de se traçar táticas e estratégias de um treinador e sua equipe.
 
Por fim, pena que o “iludir-enganar” extrapole as virtudes (que de obrigação básica, passaram a ser diferenciais sociais) dos homens e caminhe para fazer do jogo e do esporte um teatro de marionetes em que o desfecho é conhecido antes mesmo de o público chegar.

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br