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Uma questão de critério

Lá pelas oito da noite, quando não tinha futebol na TV, eu dormia um pouco – até as dez, mais ou menos. Depois me levantava e andava até a entrada da caverna, principalmente se houvesse lua, quando então Aurora me fazia companhia, na maioria das vezes, sem me dizer nada, nem eu a ela. O sono só me pegava novamente depois da meia-noite, e nunca passava da aurora, quando eu gostava de encher o salão da caverna com os odores de um café de coador.
 
Estava eu olhando para cima, uma que outra estrela caía, quando Oto entrou apressado e se dirigiu ao salão central da caverna. Curioso, fui atrás dele. O morcego chegou e pousou no teto, bem acima do poço que brota de um rio subterrâneo, no meio do salão. Ouvi quando chamou baixinho, “Arnaldo, Arnaldo”, e logo em seguida meu bagre cego emergiu sonolento. A conversa que se seguiu eu a memorizei e a reproduzo por atenção à vossa curiosidade sobre o esporte bretão.

 
“Diga-me uma coisa, Arnaldo”, perguntou o morcego, meio falando, meio chiando. “Por que aquele rapaz, o Dunga, foi escolhido pela confederação de futebol para ser o técnico da seleção, se ele nunca tinha sido técnico antes? Não é um mistério?”.
 
“Mistério não”, respondeu Arnaldo. “Critério”. Arnaldo tinha a mania, enquanto falava, de soltar bolhas pelo canto direito da boca, como se estivesse babando.
 
“Como assim, critério, se o Dunga nunca treinou ninguém antes e lhe entregam na mão o que tem de melhor no mundo?”, retrucou o quiróptero.
 
“Ora, é porque você não conhece o presidente da Confederação”, prosseguiu Arnaldo. “Além de talentoso, não dá ponto sem nó. Se ele escolheu o rapaz, é porque o moço é o melhor. Mas para você, que é meu grande amigo, posso confidenciar uma coisa, apesar de ter jurado não revelar isso a ninguém”.
 
Nesse ponto, notei que Oto assanhou-se e a curiosidade ardeu: “O que é? Conte!”.
 
“Vou lhe dizer”, avisou o bagre. “Você sabe que tenho meus contatos – na verdade, uma linha direta com o presidente. Foi dele que recebi um recado tempos atrás, pedindo-me sugestões. Ele não queria que aquela pouca vergonha da Copa de 2006 se repetisse mais. Precisava de um técnico durão e sem os vícios da profissão. Para ser mais exato, ele me disse que queria o Dunga, mas precisava justificar sua convocação. Afinal, o moço nunca tinha sido técnico. Os outros técnicos, o sindicato, a imprensa, todo mundo faria um escândalo. O presidente me perguntou se eu podia reunir alguns argumentos que justificassem a escolha. Foi quando me ocorreu estabelecer certos critérios que tornassem impossível a qualquer outro treinador bater o Dunga na escolha. Era preciso premiar o caráter voluntarioso do jovem capitão e oferecer ao nosso querido presidente a oportunidade de apagar a mancha produzida na seleção canarinho durante aquela trágica efeméride de 2006. Fiz aquilo que todo brasileiro de boa vontade deveria fazer, que é colaborar com as autoridades que se sacrificam por nós dirigindo este país. Mas, veja bem Oto, conto com sua discrição. Ninguém, mas ninguém mesmo pode saber que tem meu bigode aí”.
 
Depois que Oto jurou beijando os dedos em cruz, jurou por Deus, jurou por sua mãe mortinha, Arnaldo, babando pelos cantos da boca como nunca vi, passou a desfiar seus tão secretos critérios.
 
“O critério número 1: nunca ter perdido um título regional: nenhum dos técnicos listados cumpriu esse critério; quer seja em São Paulo, Rio, Minas ou Pernambuco, um dia falharam e viram seus times derrotados. O único que, naquela ocasião ainda não falhara fora o heróico capitão da Copa de 94”.
 
Oto quase mordeu Arnaldo, que mergulhou estrategicamente para voltar segundos depois no outro lado do poço. Espumando tal qual um morcego hidrófobo, o vampirinho ciciou no ouvido do bagre que aquilo era um escândalo; o rapaz não era técnico nem aqui nem na China. Como podia ter perdido ou não perdido títulos? Ele não os disputava!
 
“Justamente”, respondeu o bagre. “Mas isso não importa, ele preenche o critério. E mais: será técnico na China, sim”.
 
“Como assim? Minha mãe também nunca perdeu um título, e nem por isso…”, argumentou Oto.
 
“Mas ela não estava na lista do presidente”, respondeu rapidamente Arnaldo. “Ele, criteriosamente, listou todos os convocáveis: o Luxa, o Muricy, o Autuori, o Mano. Estava na cara que o ex-capitão, por seus dotes, mais cedo ou mais tarde, seria técnico, portanto, por que não antecipar o evento? E agora, pare de me interromper, para que eu desenrole os demais critérios.
 
O número 2: nunca ter perdido um título nacional: nesse item, nosso jovem aspirante venceu disparado. Dos listados, vários sequer haviam disputado títulos nacionais. Nosso capitão, além de bravo, era um nunca antes derrotado.
 
O número 3: fidelidade aos clubes. Todo mundo conhece a ciranda dos técnicos. Alguns chegam a treinar dois a três times num único ano. Nenhum dos convocáveis guardou fidelidade. Lembra que o Leão abandonou o São Paulo às vésperas do Mundial? E o Luxa, o que fez no Santos? O Muricy parece fielzinho, mas não sei, não. Acho que o presidente confia nele tanto quanto no Rogério Ceni. Agora, nosso jovem capitão é outra história, tem a fidelidade do cão”.
 
“Mas assim não vale”, vociferou Oto. “Ele foi fiel apenas como jogador. Duvido que teria sido como técnico”.
 
“Cale-se”, interrompeu Arnaldo. “Cale-se ou chamo Aurora e você vai ver o que se faz com morcegos mal educados. Você não vê que pela primeira vez um presidente de confederação adota, para escolher seu técnico, critérios científicos?”. E prosseguiu sem dar mais ouvidos a Oto.
 
“O critério número 4: rigor”.
 
Oto não se conteve: “Aí o Muricy ganha de todo mundo”.
 
O bagre fez que não ouviu. “Por sua condição de capitão à frente do escrete, ele [Dunga] foi o escolhido. Na Copa de 1998 ele só não fez bater nos jogadores. Está certo que não jogou muita bola, mas foi tão bravo que chamou a atenção do presidente, que logo pensou: Esse rapaz, quando deixar o futebol, tem futuro como técnico. É de alguém assim que a gente precisa para moralizar aquela bagunça de cada um fazer o que quer. A Copa de 2006 deu razão ao presidente.
 
O número 5: não ser chamado de burro pela torcida. A voz do povo é a voz de Deus”, sentenciou Arnaldo. “Não sei se foi o Mahatma Gandi que disse isso, ou se foi alguém por aqui mesmo. O fato é que ninguém como o presidente respeita mais a voz do povo. Sempre que a galera se manifesta, ele anota os recados. O rapaz era o único, dentre os convocáveis, que não havia recebido tal veredicto das arquibancadas.
 
E, finalmente, o último e decisivo critério: não ter qualquer ligação de fundo sentimental ou monetário com clubes de futebol”.
 
“Não, assim não vale”, protestou Oto, quase em lágrimas.
 
“Olha aqui, seu vampirinho insignificante”, interrompeu Arnaldo, os bigodes em riste. “Você não conhece o president
e, por isso levanta tantas dúvidas. E, se o conhecesse, saberia que se trata de um homem respeitoso e de talento. O fato é que muitas seleções já afundaram pela promiscuidade com os interesses financeiros ou pelas seqüelas deixadas por sentimentos mal digeridos. Só, repito, só um entre as dezenas de nomes listados, atendia esse critério, portanto, o escolhido só podia ser ele”.
 
“Está bem, Arnaldo, não vamos estragar nossa amizade por causa de futebol. Só mais uma perguntinha, para terminar: Esqueça sua admiração pelo presidente; apelo ao seu sentido ético. A escolha desse jovem não ofende a profissão? Afinal, os demais convocáveis eram todos profissionais havia vários anos. A Confederação, com esse ato, não lhes passou um atestado de incompetência?”.
 
“Em hipótese alguma, Oto. Afinal, há um longo caminho a percorrer até a Copa do Mundo: muito, muito tempo para aprender”.
 
“Mas você acha mesmo, Arnaldo, que a seleção é um lugar para aprender?”.
 
“Claro que sim, meu caro amigo. Todos os lugares são bons para aprender. E, afinal, sempre teremos a oportunidade de ver em ação um jovem livre dos vícios e pecados da profissão, que todas os têm. Confie no presidente Oto. Nós, brasileiros, temos que aprender a confiar nas instituições”.
 
“Ma… mas”, gaguejou o morcego em tom esperançoso. “Você acha, Arnaldo, que teremos alguma chance em 2010 com esse rapaz à frente?”.
 
“Alguma não. Muitas! Porém, jogo é jogo, você sabe. Só o tempo dirá”.
 
Aguardei que nascesse o dia para sair um pouco da caverna e meditar sobre a conversa insólita ouvida por mim na noite anterior entre um morcego apaixonado e um bagre crédulo. Chamei Oto ao entardecer e perguntei se ele podia levar uma correspondência para o jovem João Paulo. “Hoje não dá”, respondeu o quiróptero. “Nossos informantes mandaram dizer que se aproxima uma verdadeira nuvem de mariposas suculentas. Amanhã, talvez”.
 
E, se vocês a lêem é porque a mensagem chegou. Aurora não se antecipou.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

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* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.