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É preciso ouvir os protagonistas do futebol! Ou não

Crédito imagem: reprodução/TV

Junho ou julho de 2020. Tínhamos, então, milhares de vítimas fatais do Covid no Brasil, quando escrevemos sobre a absurda decisão de retomar os campeonatos de futebol profissional. Mais recentemente, escrevemos sobre as lamentáveis aglomerações presenciadas na final da Copa Libertadores da América, ruas e bares lotados.

Na semana passada terminou o campeonato brasileiro de futebol. Flamengo campeão. Mas o sabor da conquista não foi o mesmo; estádios vazios, semblantes e discursos de atletas e dirigentes o confirmam. Óbvio! Como festejar um título no mesmo dia em que chegávamos a novo recorde… de mortes por Covid: 250.000 perdas.

Um campeonato que nada ajudou ao futebol. Mas ajudou ao vírus, disseminando-o. Centenas de atletas, integrantes de comissões técnicas, dirigentes, árbitros, repórteres, todos contaminados e levando o vírus para milhares de pessoas, que desenvolveram ou não a doença, mas tornaram-se transmissores em potencial. Não há como saber quantos ficaram doentes, quantos morreram, quantos guardarão sequelas.

Ontem, quatro de março de 2021, pior momento desde o início da pandemia. Mais uma meta macabra foi alcançada: 1840 mortes em 24 horas. Ouvimos o desabafo de uma pessoa do futebol, o atual treinador do América Mineiro, Lisca. Desabafo desesperado! Ele disse, e concordamos, ser um absurdo a realização da primeira fase da Copa do Brasil. Nessa fase, clubes dos mais diversos pontos do Brasil se deslocarão para outros totalmente diferentes; clubes do interior do Pará poderão jogar no interior do Rio Grande do Sul, outros do Mato Grosso poderão jogar no Rio de Janeiro, um leva e traz de vírus descontrolado. Enquanto discutimos as possibilidade de lockdowns, a CBF divulga a tabela da Copa do Brasil. Suponhamos times infectados pelo vírus, sem sintomas ainda, deslocando-se por todo o território nacional, potencializando a tragédia.

Em seguida, Renato Portaluppi, atual treinador do Grêmio, questionado sobre a opinião do colega, diz ser admirador de Lisca, mas não concordar com seu desabafo. Para Renato Gaúcho, o “futebol é o local mais seguro”, durante a pandemia.  O treinador do Grêmio afirmou que, quando os times jogam, as pessoas ficam em casa, isoladas, sem aglomerações. O futebol ofereceria segurança contra o vírus, portanto, por manter as pessoas em casa, longe do contágio.

O futebol é pedagógico, inevitavelmente, para o bem ou para o mal. E profundamente didático. Educa nos momentos em que as pessoas estão abertas, apaixonadas, disponíveis. Lisca e Renato, cada qual à sua maneira, educam um grande público, assim como outros técnicos, jogadores, dirigentes, jornalistas. O futebol tem sido uma escola de brasilidade, contribuindo para formar o que temos de melhor e o que temos de pior.

No caso do pronunciamento de Lisca, porém, Renato não entendeu a mensagem, ou fez que não entendeu. O argumento de Lisca é irretocável: o futebol não pode se tornar o transportador oficial do Covid-19. E nunca isso será tão verdadeiro quanto na primeira fase de disputas de jogos da Copa do Brasil; em nenhum outro campeonato, maior diversidade de grupos brasileiros realizarão trocas, de cultura ao vírus. Ao dizer isso, Lisca é didático, educa as pessoas para o gravíssimo problema da pandemia. O argumento de Renato Gaúcho é frágil, tosco, sem sustentação lógica ou científica: o futebol garante o isolamento social das pessoas, diz ele. E completa: durante os jogos as pessoas ficam em casa. Os fatos não confirmam Renato; durante alguns jogos, as pessoas se juntam, abertamente ou clandestinamente, em bares, restaurantes, ruas, portas de estádios, quase sempre sem qualquer dos cuidados necessários para evitar o vírus. Os jogadores, durante a Copa do Brasil, terão contato com pessoas dos mais diferentes pontos do Brasil. Antes que saibam, por exemplo, que estão contaminados pelo vírus, o terão transmitido para um número incalculável de pessoas. O argumento de Renato reforça a tese de não praticar o isolamento social.

Se Lisca e Renato são didáticos em sua, consciente ou não, prática educacional, Renato tem alcance muito maior; mais famoso, técnico de um dos mais poderosos times da América do Sul, muito mais frequente nas telas de tv, redes sociais e rádios do país. A palavra de Lisca marcará durante algum tempo, ele teve boa oportunidade. Já a palavra de Renato marcará por muito mais tempo, ele terá muito mais oportunidades de passar sua mensagem.

Lisca e Renato demarcam com bastante nitidez uma linha que divide hoje o Brasil entre os que se posicionam a favor da vida e os que se posicionam contra ela ou demonstram indiferença. Vivemos um momento em que todos nos vemos pressionados a tomar posição em relação ao tema da vida. Vida ou morte? Vida ou falência da empresa? Vida ou lucro?

Retomando o título deste texto, é preciso ouvir os protagonistas do futebol, e eles são, em nossa opinião, os atletas e integrantes das comissões técnicas. Mas é preciso ouvi-los com certa dose de criticidade, consciência, sabedoria e empatia. Que possamos ouvir mais vozes como a do Lisca, ou do Abel Ferreira, treinador do Palmeiras. Que o futebol nos eduque para o bem!

Que vidas sejam preservadas!

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol  

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Qual o lugar da experiência na formação de treinadores e atletas?

Crédito da imagem: FC Bayern/Divulgação

Não faz muito tempo, nós começamos aqui uma série sobre o processo de articulação de filosofias de treinadores – de futebol, mas não apenas. Ali, apresentei um pouquinho do meu entendimento sobre as filosofias, porque elas devem ser pensadas no plural, ao invés do singular, e de que forma isso pode se converter em práticas mais refinadas.

No texto de hoje, gostaria de falar um pouco mais disso, mas agora tratando de um outro ponto, não apenas importante na articulação de filosofias, mas na própria formação de treinadores e de atletas de futebol: a experiência. Mais precisamente, gostaria de apresentar uma outra forma de pensar e de sentir a experiência e de que modo essa outra forma de pensar e de sentir pode ser decisiva nos nossos processos formativos.

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O termo experiência não é novo, muito pelo contrário: é uma palavra relativamente batida não apenas na literatura mais científica de formação de treinadores, mas também nas nossas práticas cotidianas. Outro dia mesmo, assistindo a um comentário do Jamie Carragher, ex-zagueiro do Liverpool e da seleção inglesa, o via dizer que grandes treinadores do futebol internacional só chegam ao mais alto nível pelo elevado grau de experiência acumulado. Não deixa de ser um pensamento com o qual todos nós simpatizamos de alguma forma: pessoas experientes teriam um grau de conhecimento que pessoas menos experientes, por sua vez, não têm.

Este sentido de experiência, a que o Carragher se refere, está muito claramente associado à uma noção mais clássica de experiência: perícia adquirida a partir da prática sistemática de uma certa atividade ao longo do tempo. O sujeito experiente, via de regra, é aquele que acumulou horas e horas e horas de prática em uma atividade bastante específica, e são as horas de prática naquela atividade que o fazem chegar aos mais altos degraus de performance. Um pianista, como repetimos naquele exemplo já batido, não se faz pianista correndo em volta do piano, mas tocando piano por milhares de horas. Na literatura científica, especialmente a partir do trabalho do sueco Anders Ericsson, é isso que se chama de prática deliberada, cujo grau de especificidade é bastante razoável. Um livro que populariza bem esse conceito é o Fora de Série, do Malcolm Gladwell – onde aparece, com exemplos famosos, a hipótese das dez mil horas de prática para se chegar à excelência.

É bem verdade que certas atividades exigem um grau de especificidade maior do que outras. Muito bem, qual seria o grau de especificidade do futebol? No bom livro Range (traduzido no Brasil como ‘Por que os generalistas vencem num mundo de especialistas’), o também jornalista David Epstein nos dá uma pista interessante: segundo ele, citando um psicólogo chamado Robin Hogarth, haveria basicamente dois tipos de ambientes: ambientes generosos e ambientes perversos. Os ambientes generosos seriam aqueles nos quais a experiência, de um ponto de vista clássico, pode ser suficiente: a prática hiperespecializada permite o reconhecimento intuitivo de um determinado número de padrões repetitivos (pense no jogo de xadrez, por exemplo). Por outro lado, nos ambientes perversos, o nível de complexidade parece tão demasiadamente elevado que a prática especializada, ao invés de facilitar, limita a aprendizagem. Segundo o próprio Epstein:

“Quando conhecemos as regras e as respostas, e elas não mudam com o tempo – xadrez, golfe, música clássica -, podemos defender a prática hiperespecializada ao estilo de gênio desde o primeiro dia. Mas esses são modelos pobres para a maioria das coisas que os humanos querem aprender.”

Quando pensamos num autor como Claude Bayer, muito importante no nosso entendimento pedagógico dos Jogos Esportivos Coletivos, e mais especificamente na noção de habilidades fechadas e habilidades abertas – sendo as abertas aquelas que florescem em ambientes de elevado grau de incerteza e complexidade – fica mais ou menos claro em que ambiente se encontra o futebol e onde nós, profissionais do futebol, devemos nos encontrar.

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Embora a experiência possa sim ser a perícia adquirida pela prática sistemática, pode ser que não seja apenas isso. Na verdade, de um ponto de vista histórico, a palavra experiência foi sendo modelada e mesmo banalizada pelo uso constante. No mestrado, buscando referências que me ajudassem a pensar o futebol de outras formas, encontrei um autor maravilhoso, chamado Jorge Larrosa, que apresenta uma outra interpretação para a experiência: ao invés de prática sistemática, a experiência seria ‘isso que me passa’. A experiência, em primeiro lugar, não seria exatamente uma consequência das escolhas do indivíduo, mas sim um acontecimento externo, alheio à nossa vontade e aos nossos saberes e, mais especificamente, um tipo de acontecimento que não pode ser produzido ou fabricado por nenhum de nós – essa, diga-se, é a diferença entre experiência e experimento. Em segundo lugar, a experiência tem uma dimensão de ida e de vinda, um certo caráter reflexivo: embora venha de fora, ela só pode se fazer em nós, enquanto sujeitos. Por fim, repare que o corpo seria uma espécie de território de passagem da experiência, daí que a experiência tenha um viés pedagógico, não exatamente pelo número de supostas experiências que se têm, mas pelo sentido que somos capazes de dar às experiências, porque elas nos deixam uma espécie de marca, de cicatriz. No mestrado, aliás, estudei exatamente a importância dessas cicatrizes nos nossos processos de articulação de filosofias de treinadores de futebol.

Reparem que são de fato duas visões muito diferentes da experiência, e que as diferenças entre elas residem num ponto muito simbólico: se, de um lado, a experiência é vista de um ponto de vista quantitativo (horas de prática) do outro ela é vista de um ponto de vista qualitativo (sentido). É simbólico porque vai no coração de vários dos temas que são tão importantes em ambientes como a própria Universidade do Futebol: para citar dois exemplos, o pensamento complexo nos mostra que não basta saber mais – é preciso saber melhor, religar os saberes (Morin). Do treinamento, sabemos que a carga não é mais apenas física, é também tático-técnica e mental, ao mesmo tempo, e que tão ou mais importante do que o volume é a intensidade: a qualidade dos estímulos, de um ponto de vista individual e coletivo.

Mas para se fazer experiência, desse outro ponto de vista, mais qualitativo, é preciso fazer uma outra inversão: se a experiência, enquanto prática sistemática, presume uma afirmação das nossas próprias vontades, dos nossos saberes e poderes, por outro lado a experiência enquanto isso que me passa só pode acontecer se estivermos abertos: o sujeito demasiadamente fechado, seguro de si, que se sente poderoso e até mais forte do que a própria vida, dificilmente será capaz de fazer experiência, porque a experiência presume exatamente o contrário – um razoável grau de modéstia (especialmente de um ponto de vista do conhecimento, saber que não se sabe de tudo) e especialmente um reconhecimento das próprias fraquezas e limitações. Se você preferir: o sujeito da experiência é, necessariamente, frágil. E de um modo que é da fraqueza que nascem as suas próprias forças.

Afirmações como a do Carragher, que citei acima, não estão de todo equivocadas: em certas atividades, é de fato preciso ter muitas horas de prática para apresentarmos um certo grau de perícia. Mas, no caso de ambientes como o do futebol, o tipo de habilidades que nos são requeridas são outras, muito mais abertas do que fechadas, o que significa que é perfeitamente possível tornar-se experiente sem um elevado número de horas de prática num determinado contexto: veja, por exemplo, o que fizeram nos últimos vinte anos sujeitos como José Mourinho, Pep Guardiola (ambos absolutamente inovadores ainda muito jovens), André Villas-Boas, Julian Nagelsmann e mesmo um sujeito como Hans-Dieter Flick – não exatamente jovem de um ponto de vista clássico, e mesmo assim supostamente inexperiente como treinador principal num gigante como o Bayern de Munique. E vejam o exímio e corajoso trabalho (o que dizer do comportamento agressivo da linha de quatro na fase defensiva?) feito por ele até agora. Embora inexperiente de um ponto de vista tradicional, quantitativo, Flick provavelmente soube dar um sentido muito refinado ao que se passou na sua vida – e talvez fosse muito ‘experiente’ como treinador principal sem sabê-lo.

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Algumas das possíveis relações entre a experiência, enquanto isso que me passa, e a formação de treinadores e treinadoras estão apresentadas neste artigo, em que faço uma introdução ao tema. O curioso é que esse tipo de inquietação veio menos de curiosidades teóricas do que das minhas próprias experiências como treinador, a partir das apostas que vamos fazendo na prática. E isso, na verdade, tem um caráter duplo: ao mesmo tempo que foi me ficando visível que a experiência não era necessariamente a prática sistemática e hiperespecializada, também vai me ficando visível que pensar a experiência de uma outra forma tem repercussões fundamentais no processo de formação de atletas.

Por exemplo, um processo pedagógico que considere o saber da experiência precisa ter claro que a experiência nunca é universal – mas sempre subjetiva. Ou seja, ainda que tenhamos os mais refinados processos pedagógicos e metodológicos, não podemos perder de vista que, numa mesma situação, para dois jogadores diferentes, pode ser que nenhum dos dois faça experiência ou que, então, ambos façam experiências absolutamente diferentes. Um mesmo jogo, de 6×6+2, num espaço de 30x20m, será absolutamente diferente para cada um dos 14 jogadores envolvidos. Ter em conta esse grau de subjetividade de experiência – que não deixa de se relacionar, de alguma forma, com o princípio da individualidade biológica – e fazer dele concreto, a partir do ensino e aprendizagem de estratégias mais refinadas para se dar sentido às experiências que se faz (e vejam que aqui me atenho apenas às experiências no ambiente de treino, ainda não falamos das experiências de vida) é um problema absolutamente importante a ser solucionado no planejamento, aplicação e avaliação das nossas sessões de treino e no desenho dos nossos processos pedagógicos. Aqui também aparecem, por exemplo, as relações todo/partes, de que tanto falamos a partir das consultas do Edgar Morin.

Pensar a experiência de uma outra forma não nos fará campeões de nada de um dia para o outro. Mas provavelmente nos fará pensar melhor. E são esses movimentos, como bem sabemos, que refinam o pensamento, o sentimento e especialmente a prática do futebol – de hoje e de amanhã.

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O Flamengo manteve a escrita

Mais um Campeonato Brasileiro chegou ao fim. Esse foi bem atípico, em um ano atípico, no meio dessa triste pandemia, mas com uma semelhança desde que esse formato foi implementado no Brasil, em 2003: nenhum clube de fora da região Sudeste conseguiu ficar com o troféu. Apenas Flamengo e Fluminense do Rio de Janeiro, Cruzeiro de Minas Gerais e os quatro grandes de São Paulo – Palmeiras, Corinthians, Santos e São Paulo – foram campeões neste período que já vai completar duas décadas.

O futebol é complexo e prefiro sempre o viés sistêmico para fazer qualquer tipo de análise. Tanto para situações de dentro das quatro linhas como também para o que acontece fora de campo. Nunca é apenas um fator que explica um fenômeno essencialmente humano como é o jogo. E de bate pronto, o que mais me chama a atenção é o desgaste físico que as distâncias que um país continental carrega. Vamos pegar esse campeonato 2020 vencido em 2021 pelo Flamengo. Quais as distâncias percorridas pela equipe carioca em comparação, por exemplo, com o vice-campeão Internacional?! O Flamengo tem três adversários da mesma cidade e cinco paulistas que uma rápida ponte aérea basta. E o Inter, que só tem o Grêmio como vizinho?! Será que o tempo perdido em aeroporto e com viagens não traz um desgaste maior, decisivo e que influencia no alto rendimento?! Se estamos tratando de alto nível, em que detalhes são preponderantes no resultado final, pode estar neste fator uma das “facilidades” de quem está no eixo SP-RJ-MG. 

Porém há um fato irrefutável que traz mais um elemento para essa análise: Vasco da Gama e Botafogo tiveram exatamente as mesmas distâncias percorridas pelo Flamengo e foram rebaixados. O que explica? Simples: gestão! Seus jogadores podem estar descansados, viajando pouco, mas se a estrutura geral não for boa não vai adiantar nada. E uma gestão profissional e eficaz não envolve apenas dinheiro. Envolve organização, ideias, coesão, etc. 

Os pontos corridos deram um calendário definido e organizado para quem está nas duas primeiras divisões. Mas trouxe também uma centralização geográfica jamais vista por aqui, tirando as surpresas e revelações de times considerados ‘azarões’. E há também uma divisão muito clara em quem sabe empregar de maneira inteligente os recursos que tem. Investir em logística, fisiologia, ciências do esporte e outras coisas que não aparecem tanto pro torcedor podem dar mais resultado do que aquela contratação cara e bombástica que vai dar um efeito, muitas vezes, apenas inicial. E essa nova realidade deixa também escancarado que só uma camisa pesada e uma tradição passada não garantem nem o sucesso e nem a sobrevivência no presente.