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Quem ganhou a Copa e quem ganhou com a Copa

A Argentina ganhou a Copa do Mundo de 2022. A conquista da taça veio após um jogo épico entre Argentina e França. Conhecida a campeã da 22ª edição deste evento esportivo, é hora de refletirmos que a realização de uma Copa é um evento que transcende os gramados.

Um bom começo é pensar que tudo que envolve futebol atinge uma enormidade de pessoas e, portanto, tem um potencial único de gerar impacto positivo e transformação. Por exemplo, mais de um terço de toda a população global assistiu esta Copa do Mundo. Calcula-se que fomos mais de 3,3 bilhões de espectadores prestigiando este esporte que sempre envolveu paixões e bilhões. Ganhamos com o volume de pessoas, mas também pelo público mais diverso e mais plural dentro e fora das quatro linhas.

Trouxemos duas medalhas de bronze do Catar e não foram de jogadores, mas da arbitragem. E não foram de dois homens, mas de um homem e de uma mulher, Neusa Inês Back. Tivemos também a primeira árbitra mulher a apitar em um jogo de Copa.

Vimos mais diversidade na equipe de jornalistas, com mulheres dando show e homens dando espaço de fala. Vivemos a diversidade histórica de raça dentro das quatro linhas, mas também fora delas. Seja nas concentrações, nas coletivas e nas comemorações. Reunimos amigos e tivemos momentos de muita alegria. Vimos passagens emocionantes, como o brasileiro Richarlison dizer na coletiva: “I speak English, my friend”.

Economicamente, a competição sempre tem efeitos positivos com consumo e investimentos em infraestrutura e empregos em diversos países, especialmente na região de quem sedia. Em 2020, sendo realizada pela primeira vez em um país árabe, o mundo conheceu esta cultura e esta cultura se abriu mais para o mundo. O futebol ganha mais adeptos e investidores e até o resultado ruim da equipe do Catar foi um ganho, pois sempre digo: “futebol não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro”.

Copa do Mundo tem também impactos políticos e pode transmitir valores de paz e universalismo. Neste aspecto, esta Copa poderia ter feito muito mais com mais transparência, respeito aos direitos humanos e também ter transmitido maior abertura para questões e costumes verdadeiramente universais (cerveja nos estádios, torcedores de diferentes orientações sexuais etc). E ainda em tempo, fica em aberto a apuração das denúncias das condições de emprego durante a construção dos estádios e aplicação de todas as medidas cabíveis.

Futebol também é patrimônio cultural e a Copa do Catar homenageou heróis como Pelé, gerou recordes na venda de álbum de figurinhas e mostrou que, para continuar atraindo os mais jovens para o futebol, é preciso criatividade e competência. E daí o sucesso do talentoso jornalista e Youtuber Casimiro que bateu o recorde mundial de audiência em jogo e o recorde da maior live da história do Youtube no Brasil.

E seguimos sendo o único país que participou de todas as Copas do Mundo, com maior volume de exportação de atletas, maior número de títulos. Mas o último título veio há mais de 20 anos…

Portanto, para “voltarmos a ganhar”, termino com uma grande convocação: hora de todos os líderes entrarem em campo (políticos, técnicos, gestores, nós). Hora de usarmos todo poder de transformação do futebol para agirmos de maneira integrada e determinante não somente durante as edições Copas do Mundo, mas principalmente durante os quatro anos que separam duas Copas do Mundo.

Artigo da nossa CEO: Heloisa Rios

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O Atleta do Futuro

Créditos imagem: sferafc.com.br

Um clube que está se constituindo em uma grande potência na formação de atletas no Brasil, o Sfera F.C., realizou um Simpósio denominado A Copa do Mundo e o Atleta do Futuro, na cidade de Salto (SP), em meados de novembro de 2022. Este evento contou com profissionais de grande gabarito do próprio Sfera F.C. e de outras instituições ligadas ao futebol. Uma das reflexões buscava compreender como será o atleta do futuro. Dentre essas reflexões, eu, na posição de espectador envolvido com o tema, tive a linha de raciocínio que quero compartilhar com vocês a seguir.

O atleta do futuro e de alto rendimento não poderá fugir de um ser humano com grandes capacidades técnicas, táticas, físicas e emocionais em serviço ao jogo. O futebol da elite, competitivo como é, exigirá isso, incontestavelmente. Podemos discorrer mais tarde sobre o que significa ter grandes capacidades, técnicas, táticas, físicas e emocionais, contudo, o que me ocorreu durante o evento foi um pensamento anterior. É o contexto que os atletas do futuro estão submetidos na sua formação e como esse contexto influenciará nessas suas capacidades.

Diferentemente dos atletas do século passado, em que tinham grande parte das horas de prática deliberada em ambientes espontâneos, com grande autonomia de tomada de decisão e apropriação do jogo, os atletas nascidos neste século dependem fundamentalmente das instituições de prática sistematizada para jogarem futebol durante a infância e a adolescência. Essa premissa traz a consciência de que os atletas do futuro dependerão das instituições de hoje (e do futuro). O que é praticado pelas instituições de hoje em diante, mais do que nunca, influenciará diretamente na formação desses atletas que as frequentam, pois são nesses lugares e sob os cuidados e intervenções de seus profissionais que as crianças e adolescentes se desenvolverão para o esporte – e não só. Nessa linha, é possível afirmar, portanto, que os atletas do futuro dependem das instituições, que por suas vezes são conduzidas pelos seus profissionais. Logo, os atletas do futuro dependem dos profissionais que trabalham nessas instituições que os formam.

É interessante pensar desse ponto de vista, pois se analisarmos quem é a maior responsável pela formação de qualquer ser humano, podemos resumir por uma palavra: a cultura. Todos nós somos formados e preenchidos pela cultura que nos cerca, que se une à nossa autonomia enquanto ser humano e nos faz indivíduos únicos, porém com muitas semelhanças entre uns e outros. A cultura dos nossos pais, família, bairro, escola, amigos, cidade, país, ídolos, contexto histórico etc. nos penetra e se tornam nossa, sempre com o filtro chamado individualidade. Quando pensamos que crianças e adolescentes passarão por anos de suas vidas em instituições para se tornarem um atleta de alto rendimento no futuro, devemos compreender que os dois sistemas – instituição e indivíduo – são separados em termos de autonomia, cada um tem a sua própria, contudo, unidos pelo elemento mais permeável de todos, que é a cultura. Por se tratar de indivíduos ainda no começo da vida, estão muito ávidos para serem preenchidos pelo que vem de fora. Querem aprender e apreender o mundo para si. Inevitavelmente a cultura institucional será apreendida por esses jovens, em todos os seus aspectos, em termos técnico-específicos, sobre o treinamento/conhecimento sobre o jogo, mas também sobre outros aspectos como liderança, relação humana, autoconhecimento, modos de lidar com problemas, tradições, linguagens, entre outras manifestações culturais. E o que define a cultura das instituições que formarão esses atletas do futuro?

Quando tratamos de instituições tradicionais, centenárias, existem diversas manifestações intangíveis que perpassam gerações de profissionais e frequentadores daquela organização. Algumas positivas e outras negativas. Todas são difíceis de mudar. Cultura não se constrói ou se transforma por decreto. Mas é fundamental existir pessoas/profissionais que entendam como ela funciona dentro da instituição, pois é o elemento mais poderoso de influência das pessoas que ali estão, inclusive os atletas. 

Um ponto estratégico para preservar, construir ou transformar a cultura institucional está situado sobre o processo de recrutamento e seleção. Os profissionais responsáveis por esse processo precisam compreender que as culturas – e dentro delas os valores e conhecimentos gerais e específicos – que cada um dos profissionais selecionados carregarão para dentro da empresa se fundirão à cultura institucional, revigorando-a ou fragilizando-a.

O ato de selecionar os profissionais que formarão a equipe da instituição significa também selecionar quais são os conhecimentos em que os atletas do futuro estarão submetidos se desejarem se formar nela. Profissionais são guiados pelos seus conhecimentos e valores que determinam as suas ações pedagógicas e humanas. A sequência e conjunção dessas ações, coletivamente, formam a cultura na prática.

Neste texto quis evidenciar a forte ligação de alguns elementos determinantes para a formação do atleta do futuro. São eles:

  • Os atletas do futuro dependem fundamentalmente das instituições que passarão grande parte da sua formação.
  • Os atletas do futuro dependem dos profissionais que conduzirão o trabalho dessas instituições.
  • Os atletas do futuro dependem dos conhecimentos e valores que prevalecerão nas diversas ações institucionais que impactarão a sua formação, sendo que o setor de Recrutamento e Seleção tem papel estratégico nessa modulação.
  • Os atletas do futuro dependem da cultura institucional que emergir no clube, percebendo que ela é formada por todos esses elementos anteriores, além da colaboração dos próprios atletas, comunidade e caos – conjunto de elementos desorganizados que se unem aos elementos organizados em uma sopa de interações provocando, na maior parte das vezes, imprevisibilidade.
  • Dado esse passo atrás, podemos seguir, em breve, para a reflexão de como será o jogo do futuro, a sociedade do futuro, o jovem do futuro e o atleta do futuro em campo e fora dele.
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Rumo ao hexa: o recomeço passa pela transformação do futebol

Por quê o hexa não veio nesta Copa do Mundo? Depende….

Dependendo para quem você pergunta, a resposta pode ter uma razão específica. As primeiras reações têm sempre relação com o jogo: o problema foi o elenco convocado. Erro tático do time ter subido quando ganhavam de 1X0 faltando cinco minutos. Tite não ter colocado os mais experientes para baterem os primeiros pênaltis. Exaustão dos jogadores pelos calendários do futebol. O excessivo poder do treinador etc.

Quando começamos a elaborar um pouco mais, vamos ouvir: o hexa não veio devido à “exportação” prematura de nossos jovens talentos. Não veio pela falta de uma formação integral dos atletas (técnico-desportiva, sócioemocional e cidadania). Não veio pelo esgotamento do modelo brasileiro de tirar qualidade de quantidade de atletas. Falta de um modelo de gestão de todo ecossistema da indústria do futebol. Falta de liderança dentro e fora das quatro linhas. E por aí vai…

A verdade é que a resposta não é isso ou aquilo. A resposta é isto e aquilo… Sem desconsiderar o imponderável, é a soma de muitos dos fatores citados acima. A resposta exige uma visão e análise mais sistêmica da indústria do futebol. A verdade é que todos nós perdemos e a solução virá também do coletivo.

É tempo de voltarmos para casa e começarmos um grandioso ciclo estratégico que envolva todo ecossistema do Futebol. Não há mais espaço para heróis. Ninguém, nenhuma organização do futebol conseguirá levar o Brasil ao hexa sem aceleração da profissionalização, com soluções pontuais e de curto prazo. Já há muitos profissionais, muitas organizações e líderes dando exemplo e fazendo a diferença. Na jornada do hexa, todos estes precisarão ser convocados.

Só voltaremos a ser o país do futebol se incorporarmos na estratégia os quatro princípios da governança dentro e fora das quatro linhas: transparência, prestação de contas, equidade e responsabilidade social. A partir daí, das escolinhas à base dos clubes, do profissional à seleção brasileira, atrairemos os melhores atletas, os melhores gestores e os melhores líderes. Atrairemos os melhores patrocinadores, investidores e consumidores de futebol.

Precisamos juntos construir um produto futebol que seja rentável e sustentável para todos. Dos talentos da várzea aos clubes formadores, até à Seleção Brasileira. Dos fornecedores de materiais aos veículos de mídia. Precisamos, juntos, construirmos um futebol também Muito além da Bola. Um futebol que transforme nosso país econômica, social e culturalmente.

Artigo da nossa CEO: Heloisa Rios

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Até quando? A psicologia do Esporte, o futebol e o tempo de transformações.

Texto: Rafael Castellani e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Há pelo menos 20 anos estudo a psicologia do esporte e, desde o início, em sua relação com o futebol. Quanto ao futebol, questões de natureza psicológica e social, experimentadas enquanto praticante e, principalmente, nos anos como professor e pesquisador me levaram a querer melhor entendê-lo como prática psicossocial. Com qual objetivo? Compreendê-lo e transformá-lo! 

Desculpem-me o pessimismo, mas passadas essas duas décadas de estudo, muito pouco mudou. Ou melhor… mudou. Vem mudando. Mas não o suficiente para satisfazer minha sede por sua transformação. É uma mudança à passos de tartaruga que não dá conta de acompanhar o quanto a ciência já avançou e o quanto à frente o futebol brasileiro e a intervenção em psicologia do esporte poderiam estar.   

Neste período, sobretudo no papel de pesquisador, foram inúmeras situações observadas e analisadas. No entanto, uma delas me chama a atenção desde o início de minhas pesquisas: a falta de credibilidade e importância dada à psicologia do esporte por aqueles, uma grande maioria, que compõem o “campo futebolístico”. 

É praticamente consenso entre psicólogos do esporte que atuam no âmbito da pesquisa e/ou da intervenção, que estes profissionais são como “bombeiros”, solicitados somente para “apagar incêndios”.  Basta uma derrota impactante, a perda de um título, um “apagão na equipe”, uma “amarelada” de determinado jogador, que a psicologia volta à cena no debate esportivo-midiático.

Nos últimos anos, entretanto, a importância do preparo mental tem sido valorizada também em situações de sucesso. Ótimo! Já é um importante passo para sua transformação. Passamos a falar em psicologia do esporte não mais somente quando perdemos uma partida ou uma competição. Não só quando explicitamos nossas fraquezas e sofrimentos psíquicos e estas interferem no rendimento esportivo, mas também quando vencemos por demonstrar preparo, força e equilíbrio mental, dentre outras habilidades neste contexto. Entretanto, mesmo nestes casos, raramente essa virtude é atribuída à presença ou ao trabalho eficaz de um(uma) psicólogo(a) do esporte. Pelo contrário, costumamos ouvir que “fulano é forte mentalmente”. “Ciclano é muito seguro”. “Beltrano é de grupo”. “Esse grupo é uma família”. ‘Tal jogador é inabalável. Não sente a pressão”. Como se essas habilidades fossem inatas aos seres humanos ou não dependessem da relação desses sujeitos com o meio que vivem.       

Importa ressaltar que, de alguns anos para cá, o/a profissional especialista em psicologia esportiva tem ganhado mais destaque e espaço na mídia. A grande questão é que ainda a força do discurso é mais potente que a força da ação. Até quando? 

Impossível não lembrar do fatídico 7X1 contra a Alemanha na Copa do Mundo masculina de futebol de 2014. Àquela época, tive a oportunidade de publicar um artigo no Centro Esportivo Virtual, cujo título foi “Um dia lições para o futebol brasileiro”, no qual apresento aquela dolorosa derrota como uma oportunidade de tirarmos dela algumas lições. Quando erramos ou fazemos algo que não deveríamos ter feito, costumam nos dizer: “que sirva de lição”, não é? 

Oito anos se passaram desde essa eliminação e de muitas outras situações de derrota, “inesperadas” ou não, mas é de praxe treinadores, dirigentes e comentaristas esportivos justificarem as derrotas ao despreparo mental ou, em outras palavras, ao descontrole emocional. Tal jogador “errou muitos gols, pois estava muito ansioso”. “O time abusou das faltas, pois estava muito nervoso”. “Temos um ótimo elenco, mas o treinador perdeu o vestiário”. “O time é bom, mas falta uma liderança”. “Está faltando tranquilidade na hora de finalizar”. “Fulano é bom, mas falta confiança”. “Temos muitos jogadores bons, mas o grupo não é unido”. Enfim, quantas frases além destas não ouvimos cotidianamente? Recentemente, após uma derrota de virada (em 13 minutos levou 3 gols), o treinador de um grande clube brasileiro disse: 

“Eu acho que temos que ser mais fortes psicologicamente. Quando sofre um gol, tem que estar mais ligado no jogo. Não deixar se abater, ter mais força psicológica, mental, para continuar jogo.”

Parece-nos um discurso consciente e coerente, não é? Mas até quando ficará só no discurso? De que forma ele pretende fortalecer mentalmente seus atletas para enfrentarem as adversidades do jogo e da profissão? Qual espaço e importância ele, treinador e principal liderança da equipe, dá à psicóloga esportiva que compõe a comissão técnica? Será que as lições das derrotas, e também das vitórias, nos ensinaram algo? Aparentemente, não. Ou muito pouco. 

Uma prova explícita de que não estamos aprendendo com as derrotas, fracassos e erros de planejamento é que, novamente, a seleção brasileira masculina de futebol iniciou uma Copa do Mundo sem ter realizado um trabalho consistente com uma equipe de especialistas em psicologia do esporte. 

Em reportagem de Bruno Cassucci e Rafael Zarko para o Globo Esporte.com do dia 15 de novembro de 2022, o treinador da seleção brasileira não só confirma que propositalmente não contará com profissionais da psicologia do esporte em sua comissão, como explicita, ao tentar justificar os motivos de sua decisão, um enorme desconhecimento sobre os pressupostos, objetivos e benefícios que sua equipe, seus atletas e demais integrantes da sua comissão técnica poderiam ter, caso um bom trabalho de psicologia esportiva tivesse sido realizado. 

Inúmeros clubes investem milhões em estrutura física, tecnologia, marketing, atletas de elite e uma ampla e diversa comissão técnica, mas permanecem sem reconhecer a importância da psicologia do esporte e, mais do que isso, investir de fato nessa área de atuação profissional. Nossa seleção brasileira levou ao Catar uma comissão técnica capaz de intervir com qualidade no âmbito técnico, tático, físico, e… administrativo. Ficou de fora o aspecto emocional, explicitando que o futebol brasileiro, representado pela sua entidade maior em nível nacional e a sua seleção, permanece desconhecendo ou subestimando a importância da psicologia do esporte no âmbito do futebol profissional. Até quando?

Essa pergunta, dita repetidamente neste texto, do título até aqui, não é fácil de ser respondida. Mas há alguns pontos que podemos levantar para reflexão. Há muitos anos não sofríamos uma descrença tão grande pela ciência. O negacionismo sempre forte no futebol, impregnado pelo empirismo, agora atinge com força também a área da saúde pública. Tomar vacina nos fará “virar jacaré”.  Recomendou-se à população, que morria aos milhares, remédios sem eficácia comprovada. Os cortes nas verbas para desenvolvimento da ciência e tecnologia são enormes. As verbas para as Universidades Públicas, maiores responsáveis pela produção científica, foram cortadas. 

Se o negacionismo e desvalorização do conhecimento científico atingiu com forças até a ciência biomédica, imaginem as ciências humanas e sociais. No âmbito do futebol, instituição marcada por seu conservadorismo, se já não é fácil implementar um bom trabalho na área do treinamento desportivo, biomecânica, fisiologia, neurologia, análise de desempenho, dentre outras, imaginem intervenções em psicologia do esporte. E poderíamos ir além: imaginem intervenções em psicologia do esporte a partir de abordagens menos habituais do que a cognitiva-comportamental, que ainda predomina neste contexto. 

Por fim, o outro ponto que gostaria de trazer para reflexão, apesar de também me acompanhar durante essas últimas duas décadas, ainda é bastante atual e polêmico. Sei disso e espero, com esse texto, retomar esse debate. Em partes, esse espaço (físico, inclusive) que a psicologia do esporte ocupa nos clubes profissionais de futebol e a importância que lhe é atribuída, se deve também ao modo como os próprios psicólogos esportivos se colocam nesse mercado de trabalho e realizam suas intervenções. 

Via de regra, continuamos, mesmo após tantos anos, confundindo a psicologia clínica com a psicologia esportiva. O discurso do Tite na reportagem supracitada, bem como o próprio direcionamento dado pelos jornalistas à questão da busca de atletas por procedimentos psicoterapêuticos, também explicitam tal equívoco. Se o procedimento clínico pressupõe uma forma de observar e acolher determinado fenômeno psíquico individual, a intervenção em psicologia esportiva, no âmbito do futebol profissional, tem o foco na equipe, no grupo, pensando na sua operatividade e rendimento esportivo. Ainda assim, vale destacar que a psicologia possui inúmeras formas de olhar, compreender e intervir sobre um mesmo fenômeno e nem toda intervenção em psicologia é clínica. É preciso destacar também, e corroborando Rubio (2007, p.3), que “nem toda a psicologia aplicada ao esporte é psicologia do esporte”. 

É certo afirmar que grande parte dos modelos que fundamentam uma intervenção psicológica advém da psicoterapia, sobretudo da psicologia clínica, mas nem todo campo de intervenção em psicologia, como é o caso da psicologia esportiva, é clínico, pois há teorias e métodos científicos específicos. O que defendo é que no âmbito do futebol profissional esse procedimento não seja pautado “em um setting que tem o atendimento dual do consultório como referência” (RUBIO, 2007, p.3). A psicologia do esporte e a psicoterapia clínica são complementares e não excludentes, mas, ainda assim, são papéis a serem desempenhados por profissionais diferentes.     

Enquanto psicólogos do esporte continuarem sentados na “salinha” de um clube esperando um jogador “marcar uma consulta” ou vir procurá-los para abordar problemas pessoais, situações de sofrimento psíquico, depressão, alcoolismo etc, estabelecendo uma mera transposição de teorias e técnicas psicológicas clínicas a um específico campo de atuação profissional (o futebol, por exemplo), provavelmente a psicologia do esporte continuará não assumindo o espaço, importância e reconhecimento que lhe cabe.  

Significa que essas questões pessoais não são importantes? São muito importantes! E isso só nos mostra ainda mais que jogadores de futebol são seres… humanos! Não são máquinas que devem render a qualquer custo. Não são peças para serem repostas. Não são mercadorias para serem vendidas. Não são produtos que podem ser descartados. São sujeitos históricos, dotados de sentimentos, necessidades, subjetividade. São seres humanos que, como qualquer outro, também sofre psiquicamente. 

São profissionais. E como qualquer outro profissional (dentista, professor, advogada, engenheiro, médica, faxineira, dentre outros), deve ser acolhido, ouvido e respeitado. Como qualquer outra pessoa, deve exercer o direito e ser incentivada a passar por um acolhimento psicoterapêutico. Mas, o que defendo é que esse ser humano (antes de ser atleta, ele é sujeito) deve ser encaminhado para outro profissional, tal como sugere o próprio comitê de ética dos psicólogos. E nesse sentido, a presença do psicólogo esportivo nos clubes também é fundamental, pois, no ambiente do clube, ele é o profissional mais capacitado para identificar essa necessidade, fazer esse acolhimento inicial e, se preciso, encaminhar o jogador para um acompanhamento clínico psicoterapêutico.  

Compreendo também que esse “espaço clínico” que psicólogos esportivos ocupam nos clubes profissionais de futebol nem sempre é intencional. Afinal, é como “o futebol” os vê. É como se abrem as portas. É o famoso “é o que tem pra hoje”. Em um contexto no qual “até ontem” as portas sequer se abriam, entrar e ocupar uma “salinha” já pode ser visto como uma grande conquista. 

Mesmo diante deste contexto, no entanto, defendo a tese de que, o quanto antes, psicólogos do esporte devem, de fato, fazer parte da comissão técnica. Da mesma forma que há no clube de futebol um planejamento técnico, físico e tático, deve haver também um psicológico. Precisamos falar com mais seriedade e profundidade de uma periodização psicológica. Sessões de treinos com psicólogos ou psicólogas. No campo. No vestiário. Nas concentrações esportivas. Nas viagens. Precisamos lidar, preferencialmente por meio de jogos e dinâmicas, com o manejo das emoções e técnicas de operação de grupo.  

Quantos clubes de futebol estão preparados para lidar com a reabilitação psicológica de atletas lesionados? Será que os clubes estão preparados para intervir psicologicamente de modo a qualificar positivamente a performance esportiva do atleta e, consequentemente, da equipe? Por exemplo, em estudo recente, Costa, Cardoso e Machado (2022) afirmam que o elevado número de tomada de decisões que um jogador tem que realizar numa partida de futebol, em circunstâncias de pressão de tempo e espaço, pode influenciar negativamente a performance do jogador. Os clubes estão atentos a isso? 

As possibilidades de intervenção e contribuição da psicologia esportiva são inúmeras! Mas, provavelmente, o maior potencial de contribuição da psicologia ao futebol se dá no campo das relações. É importante que nossos atletas saibam lidar com o medo, ansiedade, estresse, autoconfiança, autoeficácia, resiliência, agressividade, concentração/atenção, motivação e que saibam tomar decisões corretas no jogo? Sim! Sem dúvidas! É válido que reconheçamos os perfis psicológicos dos jogadores? Sim! Sem dúvidas. Mas é fundamental também que saibam operar em grupo, que se comuniquem bem, que compreendam o interjogo de atribuição e assunção de papéis dentro da equipe (principalmente o de reserva e titular ou, inconscientemente, o de emergente, sabotador e/ou bode expiatório), que tenham um “vestiário” descontraído, harmonioso e de confiança, que desenvolvam sua liderança, que delimitem seus objetivos coerentemente, que planejem suas carreiras, que equilibrem suas expectativas de êxito e de fracasso. E isso, com todo respeito àqueles que pensam diferente, não se faz numa sala sentado numa cadeira de frente para o jogador que lhe procura.

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Seleção Brasileira 2022: Grupo ou Equipe?

Nas vésperas da Copa do Mundo de 2022, “ganhei de presente” do amigo Mauro Silva, um bate papo sobre a seleção campeã de 1994.

Na memória a alegria daquela taça, mas também a forma com que eram vistos de mãos dadas no vestiário e no campo. União, admiração e respeito mútuos que fazem daqueles grandes craques amigos até hoje, depois de quase 30 anos.

Os aprendizados e esta foto deixam bem claro que eles eram uma equipe e não um simples grupo. Você sabe a diferença?

Grupo é um conjunto de indivíduos que coordenam os seus esforços, enquanto equipe é um conjunto de indivíduos que compartilham um propósito. A base de uma equipe de sucesso é a confiança e o bem comum. É o reconhecimento do valor de cada pessoa em prol deste propósito e não somente de um número restrito de heróis destacados.

E com este espírito e inspiração, o que esperarmos da nossa seleção de 2022 ? Há um clima de otimismo e esperança dentro e fora do Brasil por fatos como a permanência longa Tite que vem investindo há mais do 2.200 dias em testes e na formação de uma equipe. Apesar de destaques individuais, parece que os jogadores estão mais unidos em prol desta equipe e do propósito maior.

Nossa seleção deste ano conta com craques com experiências diversas mundo afora, com pluralidade de idade, altura, origem, passagens por Copas do Mundo e times. Destaque para um dado preocupante não só este ano, para nossa seleção, mas para o futuro do nosso futebol pois apenas 11% do elenco joga no Brasil. Não muito diferente dos últimos anos, mas preocupa a tendência de “exportarmos” estes talentos cada vez mais jovens. Assunto para outro post…

Porém futebol é jogado…. O resultado é um conjunto de fatores dentro e fora do campo, da competência técnica ao equilíbrio emocional, da liderança à fatores de gestão. E o resultado desta combinação de fatores começará a ser revelada no próximo dia 20 de novembro. Bons jogos para todos nós e que venha o Hexa!!!

Artigo da nossa CEO: Heloisa Rios

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Quem vai ganhar a Copa do Catar?

A construção histórica do rendimento e dos resultados

Costumamos dizer que o futebol é apreciado por bilhões, praticado por milhões, mas estudado por muito poucos. Analisando-se as condições sociopolítico-culturais do Catar, poderíamos questionar, por exemplo, se é valida a decisão em se realizar uma Copa do Mundo em um país que usurpa os direitos humanos e que para a construção de estádios suntuosos é capaz de colocar em risco a vida de milhares de trabalhadores, em um regime considerado, muitas vezes, como um trabalho escravo. Por outro lado e da mesma forma, entretanto, poderíamos questionar criticamente a realização de um evento desta grandiosidade em dezenas de outros países que, de diferentes maneiras, também desrespeitam os direitos humanos, sejam por ações diretas de seus governantes, sejam por condições indiretas que caracterizam flagrantes injustiças sociais.

O fato é que, este extraordinário fenômeno cultural de massas, chamado futebol, estará como nunca, em evidência nas próximas semanas. Estima-se, segundo Gianni Infantino, presidente da FIFA, que cerca de 5 bilhões de pessoas irão acompanhar pela televisão os 64 jogos de 32 seleções nacionais, entre 20 de novembro e 18 de dezembro, a serem realizados neste pequeno e rico país muçulmano do Oriente Médio, o Catar.  

A Copa do Mundo, evento esportivo realizado desde 1930 de 4 em 4 anos (com apenas duas interrupções em 1942 e 1946 devido à Segunda Grande Guerra Mundial), costuma servir de termômetro, queiramos ou não, para se avaliar o estágio de desenvolvimento do futebol globalmente.  Esta Copa não será diferente. Veremos nos próximos dias muitas projeções, previsões, análises, opiniões e palpites sobre o que poderá ocorrer no Catar em termos gerais e, em especial, em termos técnicos. Mas será somente durante a sua realização que poderemos constatar se as seleções mais tradicionais e favoritas ao título, como França, Alemanha, Inglaterra, Espanha, Brasil e Argentina, vão confirmar o peso de suas histórias e favoritismo, ou se veremos algumas seleções emergentes (ou em transição) avançando para as quartas-de-final, semifinal e final. 

A performance esportiva é, via de regra, um fenômeno construído historicamente, tecido por um conjunto complexo de fatores internos e externos ao grupo (no caso, cada seleção) que acabam influindo no resultado das partidas e da competição, de forma geral. Portanto, conhecendo apenas parcialmente o emaranhado desta intrincada rede de relações sistêmicas, caracterizada por uma complexidade dinâmica que muda a cada instante, é possível apenas e tão somente imaginar e intuir algumas tendências. Portanto, cabe a nós acompanhar atentamente os acontecimentos e tirar nossas conclusões, quase sempre relativas, parciais e imprecisas. Isto não nos impede, contudo, de continuarmos fazendo as nossas reflexões críticas, exercitando nossas projeções, previsões, análises, e dando nossas opiniões e palpites. E, então, finalmente, no dia 18 de dezembro de 2022, poderemos testemunhar qual foi a verdadeira história construída concretamente pelas seleções. Até lá o convite é para que acompanhemos e disfrutemos cada momento desta fantástica e mágica manifestação cultural e esportiva.

Artigo do nosso fundador: Professor João Paulo S. Medina

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Clube de Futebol precisa de Estratégia?

Artigo da nossa CEO: Heloisa Rios

Sim, todas as organizações, inclusive os clubes de futebol, que buscam crescer de forma rentável e sustentável precisam de visão e direcionamento estratégico. Os clubes de futebol precisam desenvolver a cultura do “Pensar Estratégico” definindo seus diferenciais competitivos e engajando a todos os stakeholders nas escolhas e na busca de recursos (financeiros, humanos, tecnologia e processos) que levarão a esse futuro.

No entanto, no futebol tanto a estratégia quanto a execução não recebem a devida importância. A falta de investimento é muitas vezes defendida com “desculpas arcaicas”. Muitos argumentam que não é possível pois o futebol é imprevisível e inestimável. 

Destacam que as mudanças constantes de gestão dos clubes brasileiros, campeonatos que duram apenas meses, a imprevisibilidade dos resultados e das receitas e os movimentos do mercado global de negociação de jogadores, por exemplo, inviabilizam uma estratégia ou qualquer escolha de longo prazo.

A consequência de tudo isso é que a maioria ainda pauta suas gestões apenas em orçamentos de curto prazo, que servem como sobrevivência e vitrine para torcedores e patrocinadores. O investimento em orçamentos que tenham uma definição clara facilitam a busca por resultados sustentáveis e a perenidade do clube.

É preciso lembrar que as estratégias devem ser traçadas para o clube. Não pertencem aos dirigentes e executivos que por ali passam. Não há mais espaço para visões de curto prazo, quando estamos em plena transformação, rumo à profissionalização e concorrência de outras organizações que disputam os mesmos clientes no mercado do entretenimento.

Estratégia tem o papel de unir, agregar e trazer todos para os mesmos objetivos e metas. É preciso definir e investir nos diferenciais competitivos e ser diligente na execução para alcançar os resultados dentro e fora de campo.

Estratégia é arte e ciência. Estratégia começa no propósito, considera cenários internos e externos, define ambição e diretrizes estratégicas, detalha iniciativas e projetos, cria uma estrutura organizacional com engajamento, comunicação, indicadores e metas para garantir o atingimento dos resultados esperados.

Artigo da nossa CEO: Heloisa Rios

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A Copa do Mundo de futebol e uma lição não aprendida: o que significa a convocação do Daniel Alves?

Texto: Rafael Castellani e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Em 2014, duas Copas do Mundo atrás, após a pior derrota da seleção brasileira em Copas do Mundo (7×1 contra Alemanha), publiquei um texto no Centro Esportivo Virtual, cujo título foi “Um dia de lições para o futebol brasileiro”. Dentre as lições que esperava que tivéssemos aprendido, está a falta de preparo psicológico da equipe e a ausência de um psicólogo do esporte como integrante da comissão técnica, e não para fazer um trabalho pontual e limitado.  

Nossa seleção brasileira, convocada por Tite dias atrás, está de malas prontas para o Catar, mas novamente não temos na comissão uma psicóloga do esporte. Novamente, mesmo diante de todas as lições que poderíamos ter aprendido das derrotas anteriores – e das vitórias também, afinal, elas também nos trazem ensinamentos -, vamos à Copa do Mundo sem a devida intervenção de um(a) profissional da psicologia esportiva.  

O trabalho da psicologia do esporte continua sendo desacreditado, desvalorizado e não incentivado. Continua sendo marcado pelo preconceito. Por que, apesar de tantos discursos favoráveis à psicologia esportiva, esse campo de intervenção profissional permanece em segundo plano (às vezes em terceiro ou em plano algum)? Por que tanto preconceito? O que pode significar a presença de uma psicóloga do esporte na comissão técnica de uma equipe de futebol? Vários são os motivos que poderíamos trazer para análise, mas buscaremos responder essas respostas em outros textos. 

 Voltemos à Seleção Brasileira e à convocação dos atletas que nos representarão na Copa do Mundo. 

O foco deste texto não é questionar as escolhas do treinador. Mas sim o motivo apresentado pelo treinador para convocar um jogador específico. À esta altura, já deve supor sob qual jogador me refiro: o lateral direito Daniel Alves. 

Ao justificar a opção pelos seus convocados, o treinador da seleção brasileira, Tite, elenca três principais critérios: Qualidade técnica individual, aspecto físico e o aspecto mental. Qualidade individual ele tem? Sim! Vem nos mostrando essa qualidade técnica e vive um “bom momento” na atualidade? Não, afinal, sequer jogando ele vem. Nem clube para jogar ele tem. Será que a justificativa para convocação de um jogador de 39 anos é seu vigor físico? Acredito que não (mesmo o preparador físico afirmando que ele está em boas condições físicas). Afinal, não pela sua idade, mas o atleta em questão vem de uma lesão, fato que o afastou dos treinamentos por um bom tempo, e ultimamente vinha treinando com o time B do Barcelona, sem disputar partidas oficiais. Nos resta, o aspecto mental. E aqui, voltamos ao debate sobre a psicologia do esporte. 

Tite seria mais coerente, e claro, se justificasse sua convocação pela confiança que tem no jogador. Pelo o que o jogador representa para a seleção brasileira e para o grupo. Pela sua importância no âmbito da coesão de grupo (coesão social e coesão da tarefa). Pela sua liderança. Pela capacidade que esse jogador tem em mobilizar o grupo para a tarefa. Pela sua força mental. Se eu fosse treinador e tivesse um atleta capaz de suprir todas essas necessidades, minhas e da minha equipe, sem dúvidas o convocaria! 

Mas como argumentar no sentido de justificar esses motivos, todos de ordem psicológica, sobretudo de funcionamento grupal, se nem mesmo um(a) profissional da psicologia do esporte ele fez questão de ter em sua comissão técnica? E não digo “ter por ter”. Mas confiar na importância deste trabalho para o sucesso da seleção e inclui-lo, de fato, na sua comissão técnica. Em realizar um trabalho periodizado. Planejado. Sério. Consistente.     Vamos para mais uma Copa do Mundo sem um trabalho sério com a psicologia do esporte. E, dessa vez, pelo jeito, caberá ao Daniel Alves contemplar minimamente as questões de ordem emocional e grupal. Pelo jeito, não aprendemos a lição!

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Compliance no Futebol

Texto: Felipe Soares Freire e Izabella Rosa dos Santos Vaz

Nos dias de hoje muito se delibera sobre Compliance, sobretudo em aspectos ligados ao trabalho, à governança coorporativa e à conduta empresarial, dada a importância dos programas de adequação das empresas aos padrões legais do local em que se instalam.

No tocante ao mundo do futebol, Compliance e Programas de Integridade são assuntos que historicamente não eram muito discutidos pelos clubes, mas que vêm ganhando destaque nos últimos anos muito em razão da necessidade de as empresas patrocinadoras desse esporte se verem distantes de escândalos, inclusive de corrupção, que aconteciam com alguma frequência até um passado não distante.

O Compliance pode ser entendido como o princípio da governança coorporativa, o qual almeja a promoção da cultura organizacional de ética, transparência e eficiência de gestão, a fim de que todas as ações da sociedade empresária e de todos que possuem qualquer relação jurídica com a mesma estejam em conformidade com a legislação, códigos, regulamentos internos e, principalmente, seus valores.

O Compliance caracteriza-se como conjunto de ações e procedimentos preestabelecidos no âmbito corporativo, realizado de forma independente, o qual busca identificar e classificar riscos operacionais e legais, criando mecanismos internos de prevenção, gestão, controle e reação frente aos mesmos. Os programas de compliance possuem três bases, quais sejam, detectar, prevenir e remediar.

Ao ser implementado, o Compliance se torna um organismo vivo, sendo dinâmico e adaptável, objetivando sempre a melhoria contínua da empresa/clube e, por conseguinte, a conformidade com as normas, tanto internas como externas.

No âmbito do Direito Desportivo, a implementação do Compliance no futebol brasileiro é apontada como o caminho para aumentar a credibilidade e conquistar patrocinadores, o que pode oportunizar investimentos para o clube, além de proporcionar governança séria e organizada.

As principais ferramentas do Compliance são a assessoria consultiva, a implementação de auditoria, ouvidoria e canal de denúncia, realização de treinamentos e palestras, confecção de códigos de ética e conduta, regulamento do clube e a implementação de política de punições.

E ainda, pulverizar o processo decisório dentro de um clube de futebol e garantir que múltiplos órgãos de fiscalização, controle e gestão atuem concomitantemente são maneiras de elevar a confiabilidade do mercado, garantindo, inclusive, que o clube de futebol não fique submetido à arbitrariedade de apenas um indivíduo ou de um grupo de interesses.

Certamente não existe uma receita pronta para o Compliance, notadamente nos clubes de futebol, sendo necessário um estudo profundo da realidade vivenciada pela entidade esportiva, a fim de identificar os riscos particulares, suas dores, valores e outros fatores.

Vale acrescentar que, apesar de evoluir de forma lenta no Brasil (se comparado a Europa e EUA que já possuem enraizado este modelo de gestão), algumas medidas visando maior transparência e equilíbrio financeiro na gestão dos clubes de futebol vêm sendo tomadas há alguns anos, como a criação do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (PROFUT) por meio da Lei 13.155/15.

Referida legislação surgiu da necessidade de os clubes brasileiros refinanciarem suas dívidas e possibilitar a reorganização administrativa e, por meio dela, o clube que aderir ao PROFUT terá a possibilidade de parcelar os débitos tributários e não tributários que tiverem em aberto junto à Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e no Banco Central do Brasil.

Neste sentido, a adoção do Compliance se mostra um fator essencial na condução dos clubes de futebol que tenham interesse em aderir ao PROFUT a fim de permitir a boa governança corporativa no âmbito da instituição, bem como prevenir a prática de atos ímprobos.

Outra reflexão importante é no sentido que a adoção de melhores práticas de gestão e governança possibilitará ao clube de futebol promover maior participação de sua torcida na gestão dos interesses do clube, sendo certo que quanto maior a transparência maior a participação e engajamento dos torcedores.

Nesse contexto, assim como em qualquer empresa, diversas situações em um clube de futebol podem ser geridas por meio da adoção de um sistema que busca a conformidade e a “integridade” das ações organizacionais. Como exemplo, tem-se a elaboração de matriz de risco, códigos de conduta, procedimentos de auditoria e de diversos outros instrumentos que garantam que o clube tenha uma gestão transparente, ética e responsável.

Destaca-se, assim, que não há um grupo de medidas padrão para Compliance aplicável a todas as equipes tendo em vista a diferença de estrutura entre os clubes e os riscos associados. Entretanto, dentre as possíveis medidas de Compliance que os clubes de futebol podem adotar, cita-se a criação e implementação de um código de conduta interno, padrões éticos para negociação com atletas, o treinamento de funcionários sobre as regras do clube, a instituição de um canal de denúncias, pelo qual funcionários do clube possam denunciar indícios de irregularidades e realização de auditorias periódicas.

Feitas as considerações acima, certamente não podemos deixar de mencionar e analisar a figura da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), normatizada há aproximadamente 01 ano, sendo atualmente os casos mais relevantes do Cruzeiro, Vasco e Botafogo.

Não restam dúvidas que a criação das SAF’s injetou grande quantidade de dinheiro em um seguimento que já conta com grande circulação de valores financeiros. Referidas mudanças dos clubes de futebol podem conduzir a um ambiente propício à corrupção, principalmente na ausência de regras claras de Compliance e boa governança, o que justifica ainda mais a implementação do instituto analisado no presente artigo.

Assim, como mencionado acima, o Compliance é um organismo vivo, devendo o responsável ficar atento às mudanças de clima organizacional, às alterações legislativas e outros, a fim de identificar novos riscos e a pronta adequação do programa.

Concluindo, não restam dúvidas que a adoção de medidas para garantia da conformidade e integridade organizacional (compliance) influenciarão diretamente e de forma positiva para que os clubes (aqui incluindo todos os seus funcionários e prestadores de serviço) alcancem boas práticas e consequentemente uma gestão mais eficiente e responsável. É possível – e até provável – que as práticas de governança advindas do sistema de compliance gerem valor para os clubes, possibilitando um equilíbrio financeiro e, com o tempo, a redução das dívidas e o aumento das receitas.

* Texto de autoria de Felipe Soares Freire e Izabella Rosa dos Santos Vaz e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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As novas regras da FIFA para empréstimos de jogadores e os impactos no futebol brasileiro

Texto: Vitória Resende Vilas Boas

Em janeiro de 2022 a FIFA aprovou novo regulamento visando limitar a quantidade e a duração máxima de empréstimos entre clubes de futebol. Essas medidas entraram em vigor em julho e já estão valendo no futebol europeu. Nada obstante, foi determinado que as federações-membro da FIFA terão um prazo de três anos para se adequar as novas regras, incluindo a CBF (Confederação Brasileira de Futebol).

O objetivo com o novo regramento segundo a FIFA é de “facilitar o desenvolvimento de jovens jogadores, promover o equilíbrio competitivo e evitar o acúmulo de jogadores pelos clubes”. 

Segundo especialistas, o uso excessivo de empréstimos já estava sendo observado pela FIFA. Grupos com grande poder aquisitivo contratavam muitos jogadores com grande potencial de revenda, que muitas vezes sequer eram utilizados nos elencos e depois eram emprestados a outros times. Dessa forma, entendendo como uma movimentação inadequada no mercado das transferências e diante do caráter muitas vezes financeiro e não desportivo da prática, é que advêm a nova regulamentação.

O plano era para ter sido colocado em prática em julho de 2020, no entanto, foi inviabilizado devido a pandemia da covid-19.

As principais mudanças que já entraram em vigor no futebol internacional são: 

  • limitação de no mínimo seis meses e máximo de um ano de contrato de empréstimo; 
  • cada clube só pode ceder oito atletas por temporada, sendo que em 2023 cairá para sete e, por fim, em 2024 caíra para seis;
  • durante a temporada, um clube pode ter no máximo três jogadores emprestados de um clube específico e pode emprestar somente três para um único clube;  
  • está proibido o sub-empréstimo, isto é, um clube não pode ter um jogador emprestado e ceder para outro clube; e
  • exigência de um contrato escrito entre as partes, definindo os termos do empréstimo, a duração e os termos financeiros. 

Este regramento somente será valido para jogadores com mais de 21 anos. Aqueles com menos de 21 e jogadores formados nas categorias de base não se incluem nessas limitações.

As novas regras trarão importantes consequências no mercado e afetarão diretamente a forma como os clubes de futebol negociam. O objetivo é gerar um ambiente equilibrado e responsável para o mercado de transferências, de modo a formar jogadores com forte potencial de maneira mais sustentável, sem que ele fique pulando de clube em clube. Para além disso, as restrições impostas irão obrigar os clubes a contratarem jogadores de maneira mais criteriosa, ou seja, buscar reforços com a expectativa de aproveitá-los no elenco.

O pacote anunciado este ano e já em vigor no futebol internacional terá uma mudança gradual como se pôde ver do regramento aduzido, porém a ideia é que se torne rígido ao longo do tempo. As federações nacionais terão três anos para se adaptar a estas normas. 

No futebol internacional, o novo regramento já trouxe impactos para o futebol, já que anteriormente não existiam restrições neste sentido. Um pouco antes do início da temporada Premier League 2022/2023, o Chelsea possuía 22 jogadores emprestados e o Manchester United 15 jogadores. Outro exemplo é o clube Atalanta, que no início do ano possuía 63 jogadores emprestados. 

Com relação ao futebol brasileiro, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) já estuda como se dará a implementação gradual dessa nova disciplina referente a limitação temporal e quantitativa de empréstimo entre clubes. Os clubes brasileiros também já começaram a discutir internamente, em que pese a regra não valer na temporada de 2022. 

 Especialistas em direito desportivo estão se manifestando de maneira otimista em relação a clubes com alto poder econômico. O Clube Atlético Mineiro atualmente possui vinte e dois jogadores emprestados, dentre eles dezenove com mais de 21 anos, ou seja, em breve este número precisará cair para seis. Outro exemplo seria o Corinthians, que possui atualmente treze jogadores emprestados, dentre eles onze com mais de 21 anos. Por fim, coincidência ou não, o Palmeiras no início da temporada contava com dezenove jogadores emprestados. Atualmente, este número caiu para seis. 

Por outro lado, clubes de menor poder econômico podem se ver fortemente impactados, já que muitos se utilizam de contratos de empréstimo de curto prazo para formar seus elencos em campeonatos regionais, e muitas vezes não possuem um calendário anual de atividades.

Por enquanto existem mais perguntas do que respostas. Há também o receio de tais restrições prejudicarem os jogadores vindos da base. Após ultrapassar os vinte e um anos, o jogador da base que não demonstrar maior desempenho, provavelmente não conseguirá ser mantido nos clubes de alto poder aquisitivo.

O que se sabe até então é que os clubes precisarão se adaptar e que a solução não será simples.

* Texto de autoria de Vitória Resende Vilas Boas e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.