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O FUTEBOL E A PARALISIA METODOLÓGICA

Este fim de semana fui presenteado pelo meu pai com um documento histórico acerca da educação física, mais especificamente sobre o ensino e treinamento do futebol. Para quem não sabe, meu pai também é professor de educação física e não é qualquer professor. Para meu orgulho e admiração, meu pai, Lino Castellani Filho, é uma das grandes referências da Educação Física brasileira e latino-americana. Professor aposentado da Unicamp, ex presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e ex Secretário Nacional de Esportes, meu companheiro (nos tratamos carinhosamente assim), presenteou-me não com uma produção dos seus tempos de Unicamp, CBCE ou Ministério do Esporte, mas com uma das suas produções dos tempos em que trabalhava na Secretaria de Esportes e lazer do Maranhão, em 1980. Ainda que suas produções de destaque sejam do campo da história da Educação Física, das políticas públicas e educação física escolar, esta produção aborda outra temática: o Futebol!    

Vale destacar, novamente, o ano desta publicação: 1980. Eu sequer havia nascido quando o professor Lino produziu este material!

Nesse momento pode estar se perguntando… “e daí?”.

Entremos então no tema central deste texto.

Nesta produção de pouco mais de 50 páginas, o professor Lino destaca a evolução histórica, evolução tática, regras e exercícios para aprimoramento técnico de alguns fundamentos do futebol. Se compararmos com qualquer publicação sobre futebol dos tempos atuais, certamente o teor seria significativamente diferente. Entretanto, o que causou certa surpresa e suscitou em mim a vontade de trazer esse tema para nossa reflexão e debate foi o fato de grande parte das escolas de esporte (mais conhecidas como escolinhas de futebol) e clubes ainda repetirem as mesmas estratégias de ensino elencadas em 1980 pelo professor Lino. Isso mesmo… mais de 40 anos depois desta produção, apesar dos significativos avanços no âmbito da produção teórica/acadêmica, com a proposição de inúmeras novas abordagens na pedagogia do esporte e, portanto, para o ensino e treinamento do futebol, as aulas e treinos continuam praticamente idênticas, como se tivéssemos enfrentando no campo da intervenção pedagógica, no decorrer destas 4 décadas, uma síndrome que nos paralisa no tempo. Uma síndrome que faz com que permanecêssemos em 1980, reproduzindo metodologias de ensino que, ao menos no campo teórico, já foram totalmente superadas.   

Há um número considerável de professores e treinadores que, mesmo com as críticas realizadas em diferentes e mais atuais estudos situados no campo da pedagogia do esporte, ainda elaboram suas ações pedagógicas pautadas no método analítico,  sustentando suas aulas e treinos na identificação de necessidades associadas ao gesto motor, à técnica dos fundamentos (domínio, passe, drible, chute etc) sem a preocupação com tomadas de decisões exigidas durante o jogo e com as questões táticas inerentes ao próprio jogo.

E tudo bem se o professor Lino propõe aulas e treinos pautados no método analítico. Afinal, em 1980, provavelmente, essa era a teoria que representava o que havia de mais avançado àquela época. Nem tudo o que é antigo, é velho ou ultrapassado. Há muita coisa ainda que os estudos contemporâneos não deram conta de superar. Mas este não é o caso dos estudos relacionados ao ensino e aprendizagem do futebol, afinal, a área da pedagogia do esporte avançou e a produção teórica nesta área se diversificou e se qualificou muito.    

Entretanto, 43 anos depois, é possível notarmos que esses avanços teóricos ainda não se manifestam nitidamente em muitas aulas e/ou treinos de futebol, evidenciando uma grande dificuldade se fazer chegar essa produção ao conhecimento de treinadores e professores e, também, deles traduzirem em suas intervenções pedagógicas (aulas e treinos) o que está preconizado pelo conhecimento científico contemporâneo. É justamente essa dificuldade, ou resistência, que faz com que aquilo escrito há 43 anos atrás ainda carregue consigo traços de atualidade.   

Se estamos pensando no processo de ensino-aprendizagem-treinamento do futebol para crianças e jovens, seja no âmbito escolar, clubes ou escolas de esporte, a iniciação esportiva deve se dar de modo que o futebol se adapte às características e necessidades das instituições de ensino/treinamento e, principalmente, dos praticantes. Ou seja, é preciso adaptar o esporte à criança e não a criança ao esporte. É preciso, como nos diz o professor João Batista Freire, tratar as crianças como crianças e devolver o jogo a elas.  

Dessa forma, ao entendermos que o principal estímulo das crianças à prática do futebol está relacionado ao prazer que sentem quando jogam, é importante que nossos planos e estratégias de ensino sejam elaborados didaticamente respeitando suas necessidades e dando grande destaque aos jogos e brincadeiras para que vivenciem o lúdico. 

Portanto, independente do objetivo das nossas aulas/treinos, é importante que pautemos nossas atividades no caráter lúdico, pois, principalmente em estágios iniciais de prática, e se tratando de crianças e jovens, o lúdico vivenciado em jogos e brincadeiras se constitui como elemento chave no processo de ensino-aprendizagem-treinamento. Vale destacar, no entanto, que não se tratam de quaisquer jogos ou brincadeiras, mas sim jogos e brincadeiras que oportunizem situações nas quais os jogadores não fiquem excessivamente com ou sem a posse da bola, que assumam diferentes níveis de complexidade, que, seja por situações reduzidas ou por adaptações nas regras, estimulem a tomada de decisão e a resolução de conflitos/problemas que se manifestam no jogo.

Neste aspecto, há inúmeras teorias que, guardadas suas especificidades, têm mostrado sua eficácia por pautarem-se no ensino do futebol tal como ele é jogado “na realidade”. Seu caráter coletivo, criativo, imprevisível, dentre outros, se expressa nestes jogos/brincadeiras fazendo com que os jogadores compreendam e apreendam a lógica do jogo e tomem decisões críticas e contextualizadas ao jogo, tendo como referência o ensino dos meios técnicos-táticos, defensivos e ofensivos (GALATTI, PAES, 2007; SANTANA, 2005).  

Passadas quatro décadas, não podemos mais elaborar e desenvolver nossos treinos e aulas tendo como referência o conceito de fragmentação do jogo, tal como preconiza o método analítico-sintético, no qual o ensino da modalidade esportiva se dá a partir da soma das partes que compõem o jogo, ou seus fundamentos. Este método apresenta como problema e elemento central, de acordo com Gallati e Paes (2007), a execução dos fundamentos de forma isolada, com ênfase na repetição de gestos motores para o aprimoramento técnico, sem o qual, de acordo com tais autores, a prática do jogo formal fica prejudicada. Não garante, assim, dentre outras necessidades impostas no e pelo jogo, a resolução de problemas de ordem tática.

Os treinos/aulas de futebol orientadas pelo método analítico partem do pressuposto de que o atleta/aluno ainda não sabe executar determinado gesto ou ação e só irá aprende-los de modo linear, indo do simples para o complexo, a partir da demonstração, imitação e repetição. Ao centrar-se na técnica, o professor/treinador busca que seu aluno reproduza modelos (drible como o Neymar, passe a bola como o Arrascaeta, conduza a bola como Messi etc) repetindo movimentos até torná-los automáticos.

Talvez o exemplo mais clássico deste método de ensino seja posicionar os alunos/atletas em filas para driblar cones dispostos simetricamente em linha reta. Diante destas circunstâncias, como já explanado por mim e pelo professor João Batista Freire em texto publicado na Universidade do Futebol (A diferença entre driblar ou fintar um cone e uma pessoa), “não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar o drible, não há tensão, não há diversão, não há prazer, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados. Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue”.

Talvez a qualidade da imagem abaixo retirada desta produção do professor Lino prejudique nosso olhar às filas para execução do passe. O tempo da publicação é significativo. Mas preocupante mesmo é pensar que tanto depois, grande parte das aulas e treinos de futebol permaneçam idênticas!  

De que forma, dispor nossos alunos e atletas em filas para fazer passes um de frente para outro garante a imprevisibilidade, aleatoriedade e o ambiente caótico inerentes ao futebol?

Vemos cada vez mais jogadores pouco criativos, preferindo o passe burocrático ao drible, perdendo a capacidade de resolver ou desequilibrar uma partida. Aqueles poucos que ainda se destacam pela sua criatividade e pela capacidade de improvisar no ambiente de jogo, à exceção de Neymar, Vini Jr. e mais alguns poucos, têm sua criatividade e capacidade de solucionar os problemas do jogo também cerceadas, tanto pelos treinos atuais, quanto pela conduta dos treinadores.

Ao estimularmos os praticantes de futebol a vivenciarem o jogo com base nos métodos de ensino apontados pelas pesquisas como mais eficazes, estaremos proporcionando a eles que compreendam a lógica do jogo e tomem suas decisões, de modo autônomo, inteligente e criativo, a partir das relações que eles estabelecem com os demais jogadores, sejam adversários ou companheiros de equipe, e também com a própria bola e o gol. 

É preciso, de uma vez por todas, rompermos essa paralisia que nos aprisionou em décadas passadas e darmos conta de fazer refletir em nossas aulas e treinos, como muitos já o fazem tão bem, o conhecimento científico contemporâneo produzido pela área da pedagogia do esporte. As perspectivas apontadas pelas pesquisas recentes são inúmeras e, apesar de distintas, partilham da mesma premissa de que colocar nossos alunos em filas intermináveis, driblar cones, realizar passes de frente para o companheiro etc, não é o melhor caminho para promover uma aprendizagem significativa, contextualizada e eficaz.

Texto por Rafael Castellani e, necessariamente, não reflete a opinião da Universidade do Futebol

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A DITADURA DA TÁTICA NO FUTEBOL

Reflexões sobre as mudanças paradigmáticas no futebol brasileiro e mundial

“Tanto jogando, como assistindo, o povo brasileiro potencialmente ainda conserva a sua paixão pelo jogo bonito, criativo, alegre e eficiente, que fez do futebol brasileiro uma marca reconhecida mundialmente. Aprendemos a gostar deste “jogo com bola, jogado com os pés”, de forma natural e espontânea. Desde a época das peladas e do “futebol de rua” que essa cultura de jogo nos envolve. Se faz necessário um esforço coletivo para resgatá-la, preservá-la e retroalimentá-la, porém com novos ingredientes que o futebol e a sociedade contemporânea exigem.”

(João Paulo Medina)

O futebol, enquanto expressivo fenômeno sociocultural e esportivo de alcance mundial, vem sofrendo diversas influências e transformações, conforme seu percurso ao longo da história.

Não é nosso objetivo, neste ensaio, fazer uma análise histórica mais aprofundada sobre as origens e a evolução desta modalidade esportiva, mas, apenas, contextualizar algumas reflexões críticas sobre o atual estágio do futebol no Brasil e no mundo. Nesta perspectiva, vamos tomar como referência histórica o período entre a realização da primeira Copa do Mundo, realizada em 1930 no Uruguai, até os tempos atuais. 

As Copas do Mundo, sendo repetidas de 4 em 4 anos (com apenas duas interrupções em 1942 e 1946 devido à Segunda Grande Guerra Mundial), costumam servir de termômetro – achemos adequado ou não – para se avaliar o estágio de desenvolvimento do futebol globalmente.

Neste período de quase 100 anos (1930-2023), pudemos constatar diferentes estágios de desenvolvimento no jogo de futebol. Mas até a década de 1950, o que se praticava era um jogo, onde a habilidade técnica individual dos jogadores era o fator decisivo, fazendo toda a diferença. Cabia ao treinador “enxergar” o potencial técnico de seus comandados e oferecer certa organização em campo aos jogadores para que pudessem expressar sua arte e obter bons resultados. 

Em seguida, em um período que podemos situar entre as décadas de 1960/70, com a evolução das ciências do esporte, iniciou-se a etapa de ênfase à preparação física, onde só as qualidades técnicas já não eram suficientes para as demandas do alto rendimento. Lembro-me, nesta época, aqui no Brasil, das críticas que sofriam os preparadores físicos (que começavam a surgir nos clubes mais estruturados), por parte de muitos que personificavam neles o retrocesso do futebol-arte, como “marca registrada” do futebol brasileiro. Com o passar do tempo, foi se conseguindo certo equilíbrio entre as exigências físico-fisiológicas dos jogadores e as suas habilidades técnicas necessárias à prática do “bom jogo”.   

Até que veio uma “terceira onda” no processo de evolução do futebol, cuja ênfase é dada à preparação físico-técnico-tática, na qual o componente tático começa a ter muito protagonismo.   

É claro, que não se pode distinguir, de forma mecânica, linear ou cartesiana, estas 3 grandes etapas. Na verdade, estes processos de mudança, ocorrem das mais diversas formas e, muitas vezes, sutilmente, com avanços e retrocessos.

O fato é que mais acentuadamente nestas últimas décadas, o jogo de futebol de alto rendimento, mudou bastante em vários sentidos. Mas vamos nos ater aqui, prioritariamente, à evolução de sua dimensão tática.  

Sem desconsiderar treinadores mais antigos, alguns excepcionais e inovadores, como Bill Shankly, Bob Paisley, Helenio Herrera, Ernst Happel, Rinus Michels, Zagalo, Johan Cruyff,entre outros, queremos destacar Arrigo Sacchi que no final dos anos 1980 e início da década de 1990, revolucionou o futebol mundial, inaugurando definitivamente uma era de predominância dos aspectos táticos no jogo de futebol que podemos afirmar que dura até nossos dias. Sacchi foi quem, com suas inovações táticas, deu grande ênfase ao jogo coletivo, colocando em outro patamar a necessidade de se ter um espírito de trabalho em equipe em seu mais alto grau de exigência até aquele momento.

Simultaneamente a ele, e depois dele, se destacaram outros grandes treinadores, desde Carlos A. Parreira, José Mourinho, Telê Santana, Luiz F. Scolari, Alex Ferguson, Van Gaal, Carlos Ancelotti, Tite, Luciano Spalletti, Lionel Scaloni, Abel Ferreira, entre muitos outros, até chegarmos nos icônicos Jürgen Klopp e Pep Guardiola.

Klopp e Guardiola se notabilizaram mais recentemente por suas inovações táticas (e não só), com resultados expressivos que, agora, segundo alguns analistas, começam a dar sinais que podem representar o encerramento de uma era, iniciada por Arrigo Sacchi. 

 A simplista e tradicional nomenclatura dos “sistemas táticos”, como o 4-2-4, o 4-3-3, o 4-2-3-1, o 4-1-4-1, o 3-5-2 etc., como interpretação das dinâmicas que ocorrem durante um jogo de futebol, parecem estar com seus dias contados.  Muitos treinadores, inclusive, já não os consideram como referência aos seus modelos de jogo. Mas não só esta nomenclatura está sendo questionada cada vez mais, como também os próprios sistemas táticos atuais em si mesmos, começam a mostrar suas fragilidades, independentemente dos números que os possam classificar ou identificar.

Neste sentido, um interessantíssimo artigo, publicado recentemente por Rory Smith, respeitado jornalista esportivo inglês e correspondente do influente jornal norte-americano, The New York Times, faz críticas aos “sistemas táticos” atuais, procurando dar luz a esta inflexão que pode desembocar em uma ruptura ou mudança de paradigma no jeito de jogar futebol, mundo afora. 

Rory afirma “A história do futebol é um processo de estímulo e resposta, de ação e reação. Uma (determinada) inovação domina por um tempo – o processo acontece cada vez mais rapidamente – antes que a concorrência a decodifique e a neutralize ou a adote.”

E continua o autor do instigante texto: “E há, agora, os primeiros vislumbres do que se pode seguir no horizonte (do futebol). Em toda a Europa, as ‘equipes de sistema’ estão começando a vacilar (geralmente, com muitos altos e baixos). O caso mais evidente é o Liverpool, de Jürgen Klopp, lutando não apenas com um cansaço físico e mental, mas também (com questões) de filosofia. Seus rivais e colegas, agora, estão inoculados para seus perigos. (…) Até o Manchester City (de Pep Guardiola, com o seu badalado “Jogo de Posição”), onde o sofrimento é sempre relativo, parece menos soberano do que antes.” Em relação ao Real Madrid, clube que tem conseguido manter bons desempenhos e resultados nos últimos tempos, ele justifica: “O Real Madrid, é claro, sempre teve esta abordagem, optando por controlar momentos específicos dos jogos, em vez do jogo em si. Mas o fez com uma vantagem significativa de possuir muitos dos melhores jogadores do mundo.”

Após essas considerações preliminares, Rory Smith afirma algo que queremos aqui destacar, por concordar amplamente com o que diz: “O futuro, ao contrário, parece pertencer às equipes e treinadores que estão dispostos a ser um pouco mais flexíveis e veem seu papel como uma plataforma na qual seus jogadores podem improvisar.” 

Na sequência, para sustentar seus argumentos, ele cita os trabalhos de Luciano Spalletti, do Napoli e de Fernando Diniz, do Fluminense, como novidades e bons exemplos de inovação no futebol. E é este o ponto que queremos destacar nestas reflexões. 

Não conheço muito o trabalho de Spalletti, a não ser a sua crença de que os jogadores “não podem ser tratados como marionetes, encorajando-os a pensar e interpretar o jogo por si mesmos.”  Mas acompanho com muita atenção, há tempos – desde seu período de Audax-SP – os movimentos e a evolução do treinador Fernando Diniz. 

Diniz, sempre questionou muito os posicionamentos tradicionais, engessados pelos sistemas táticos de jogo, quaisquer que fossem eles (mesmo os mais atuais e vencedores). Se insurge também àqueles que priorizam a tática descontextualizada, em detrimento dos relacionamentos humanos mais profundos. Dificilmente veremos o treinador do Fluminense travando um debate sobre tática ou modelo de jogo, por exemplo, sem antes contextualizar suas reflexões às situações concretas (de vida, inclusive) de seus jogadores.  Para ele, uma sociedade que exclui injustamente, que só valoriza quem vence e que simplesmente destrói jogadores (com potencial), mas que – por circunstâncias muitas vezes desconhecidas – não conseguem ser bem-sucedidos, é uma sociedade doente e que precisa ser superada.

Fernando Diniz, embora esteja atento à evolução científica no esporte, que traz inovações às metodologias de preparação dos futebolistas, não se deixa levar facilmente pelos modismos que, muitas vezes, tomam conta do ecossistema do futebol, de forma acrítica, criando-se verdadeiras “camisas de força” ou “ditaduras”, venham eles de onde vierem; das estatísticas, da fisiologia, da tática, ou de qualquer outra área específica do conhecimento.  Não se rende, enfim, às interpretações puramente especialistas (muitas vezes, vistas de forma estática, mecânica ou linear) sobre um jogo que entende ser complexo, dinâmico, caótico e imprevisível, em sua essência. Talvez, por isso, que seu “jogo aposicional”, que tanta controvérsia provoca, seja a marca indelével de seu estilo.

É fato que as equipes (todas) vão ganhar e perder no futebol de diferentes formas e circunstâncias, sejam quais forem as suas propostas, mas é fundamental que percebamos como os sistemas (posicionais ou “aposicionais”) podem ter influência no desenvolvimento dos jogadores e do futebol brasileiro e mundial.

E para finalizar com uma síntese do pensamento de Fernando Diniz, ele acredita firmemente que tudo aquilo que o jogador faz em campo é muito menos fruto de suas habilidades físico-técnicas e táticas, em si mesmas, e muito mais fruto de sua predisposição para seguir seus propósitos, ter coragem, desenvolver seu espírito de solidariedade, sua inteligência (individual e coletiva), seguindo um roteiro pré-determinado pelo treinador, porém com suficiente liberdade de movimentos e autonomia para poder improvisar e criar, mantendo aceso o genuíno prazer e alegria de jogar futebol. E não seria isso, o resgate da essência do futebol brasileiro, em tempos contemporâneos? 

João Paulo S. Medina

Fundador da Universidade do Futebol

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Não existe clube bom com gente ruim!

As empresas são feitas de pessoas e os clubes também. Clubes são feitos de pessoas que jogam o jogo dentro das quatro linhas e de pessoas que jogam o jogo fora das quatro linhas. Então, faço aqui uma afirmação: todos deveriam estar capacitados e engajados para jogar um único e grande jogo.

E por quê? Porque a bola não entra por acaso. Porque por trás de um grito de gol, da transferência de um atleta, da atração de investidores, de novos patrocínios, da paixão de torcedores, da transformação da vida de atletas e famílias, da classificação para um grande campeonato… tem pessoas. Tem pessoas que, se inspiradas por uma estratégia clara, cultura e liderança fortes e recursos adequados, fazem o sucesso ou o fracasso de um clube ao longo de sua história.

São inúmeras perspectivas e reflexões sobre pessoas, que não cabem em um único artigo. Escolho então começar a refletir sobre alguns. De que adianta um sistema completo de scouting e investimentos milionários para compra de atletas se a liderança não estiver preparada para capitalizar no melhor de cada indivíduo e em favor do bem maior que é o time? De que adianta talentos individuais sem a força do coletivo? De que adianta atletas com capacidade técnica-desportiva excepcional se não forem pessoas com outras habilidades e competências, inclusive de relacionamento? Quais os limites de um atleta competente dentro do campo sem inteligência sócio-emocional?

Se refletimos o jogo fora do campo, vale também questionar o quanto as pessoas são talentos individuais e não são estimuladas a trabalharem na direção de um objetivo maior que suas próprias áreas e responsabilidades. O quanto essas pessoas estão, ou não, nos lugares adequados dos clubes onde possam inovar e gerar os melhores resultados baseadas nos seus propósitos, interesses, habilidades e competências. O quanto cada um entende seu papel e suas contribuições e investe no seu auto-desenvolvimento.

Mas, ainda mais relevante que refletir sobre as características e responsabilidades dos indivíduos, cabe destacar que tudo começa na alta liderança. É imprescindível a existência de líderes que tenham vontade política para gerir um clube de futebol de maneira profissional, humanizada e acima de interesses individuais ou de um único grupo.

Difícil começar? A desculpa continua sendo o resultado do jogo de domingo e a falta de recursos financeiros? Lembre-se que futebol realmente não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro. Comece com visão de longo prazo e engajando os melhores. Demita aqueles que não estiverem alinhados com a transformação. Ouça as pessoas de dentro e de fora do seu clube, invista neste coletivo, pactue, engaje, comunique com todos os públicos de interesse e veja a potência de contar com pessoas jogando o mesmo jogo dentro e fora das quatro linhas.

Texto por: Heloisa Rios

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O futebol e a física quântica, ou de como o Brasil pode ter sido derrotado pelo bater das asas de uma borboleta.

Texto: Valter Bracht, Mestre em Ciência do Movimento Humano e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

É bastante curioso, para dizer o mínimo, como após um determinado resultado de uma partida de futebol, milhões de analistas buscam argumentos e explicações para o sucesso ou o insucesso de determinada equipe, ou seja, buscam explicações para o resultado. Explicar o resultado significa identificar as causas que o determinaram. Na modernidade, as causas, diferentemente do pensamento mítico-religioso, são buscadas não em forças externas ao mundo concreto, ou seja, o mundo tem um funcionamento intrinsecamente lógico-racional. Assim, também o sucesso ou o insucesso num campeonato pode ser explicado buscando as causas dos mesmos. Poucos são os analistas que não partem (diga-se de passagem, na maioria das vezes de forma implícita) desses pressupostos. Um exemplo é Tostão, que tem falado em suas crônicas sobre o inexplicável e o imponderável presente no futebol, constituindo-se em exceção.

É também muito curioso ou mesmo paradoxal que sempre estejamos tentando “eliminar” a imprevisibilidade do (nosso) resultado em uma atividade cuja atração ou tensão prazerosa provém exatamente da sua imprevisibilidade. Como sabemos, essa é uma das características centrais do fenômeno do jogo. O que observamos, é um comportamento quase esquizofrênico ou ambíguo: me divirto com a tensão da imprevisibilidade do resultado, mas envido todos os esforços (racionais) para garantir um determinado resultado.

Olhando “de fora” o comportamento do torcedor de futebol é algo grotesco porque fica oscilando entre o apelo a todos os santos e divindades e ao mesmo tempo buscando causas/culpados. Aliás, ouve atentamente e julga os comentários dos “especialistas” e confere às causas identificadas por esses (e por suas próprias análises) credibilidade sem jamais, no entanto, atribuir à “forças ocultas” o resultado (apesar de, em caso de sucesso, agradecer aos “céus”). Embora possa parecer grotesco, esse comportamento também pode ser lido como uma espécie de resistência (não conscientemente assumida) à total racionalização do mundo vivido (mas esse é outro tema!).

Apesar de ambíguo, o nosso comportamento em relação à prática do futebol, ou de forma mais geral, em relação aos esportes competitivos (particularmente os de alto-rendimento) vem sofrendo cada vez mais a influência do afã racionalista moderno… mas… o acaso e o “sobrenatural” resistem!

Ao refletir sobre isso lembrei de um texto (talvez pouco conhecido ou citado) do filósofo brasileiro (falecido em 2002) Gerd Bornheim, intitulado “Racionalidade e acaso”.[1] Encontrei nele uma interessante análise do percurso da racionalidade no mundo moderno no seu afã de domar o acaso. Passo a resenhar suas reflexões.

Para o autor, já o pensamento filosófico inaugurado na Grécia antiga pretendia vencer a sujeição ao acaso, procurando estabelecer um comércio racional do homem com o seu meio-ambiente. Vale dizer, estabelecer uma relação de dominação para com a natureza. Esse passo, do acaso para a racionalidade, foi decisivo para a história do homem. O homem transforma o próprio planeta em objeto. A crítica que se fez a essa perspectiva não conseguiu prejudicar a crença na razão e seu sucesso fez surgir a ideia de que o todo da sociedade deveria ser reestruturado em conformidade com preceitos estritamente racionais. Para este pensamento a realidade é sistemática, ou seja, um composto de partes racionais.

Mas, “mil cabeças” se erguem contra a hegemonia do racional, seja pelo voluntarismo, ou pela vivência irracional, ou pelo inconsciente, ou pela história voltada ao particular, ou pela atenção ao homem enquanto singular concreto etc. No entanto, o “sistema” continuou exibindo uma impressionante força, em grande medida por causa da aliança entre o conhecimento e o poder: o sistema, que, lembremos, possui estrutura racional, tornou-se como que coextensivo à própria realidade social.

Nesse processo parece que o acaso simplesmente desaparece e não se percebe um lugar para ele. Ou sim? Mas onde? Para o autor no cerne do próprio sucesso do sistema volta a aparecer no século 20 a figura desconcertante do acaso impondo certo revés ao racionalismo, surgindo algo como uma “aurora do acaso” (p. 47). Cita a ironia de Pascal, que pergunta se a história não teria sido diferente se o “nariz de Cleópatra fosse mais curto”.

Várias foram as tentativas então de acomodar ou contemplar o acaso ainda ao pensamento racional, interpretando-o como algo que lhe escapa, ou seja, uma determinação às avessas. São explicações do acaso que não vão além de uma situação-limite da realidade de forma que “ainda” não é possível uma explicação racional.

Mas, também busca-se considerar “positivamente”, se assim podemos dizer, o acaso em algumas atividades humanas, ou, como diz o autor, tornar presente o acaso numa certa conjugação da previsibilidade com a imprevisibilidade, uma ambiguidade que está presente, por exemplo, no futebol. Vale aqui uma longa citação:

“…Um jogo é armado de maneira a garantir a máxima previsibilidade possível, sempre de olho firme nos resultados, e, em boa medida, de fato os sucessos são previsíveis. O técnico é um especialista que calcula todas as forças e os melhores efeitos. O corpo do atleta e suas resistências podem ser medidas, o tipo de talento ou aptidão de cada um deixa-se conduzir em função de estratégias calculáveis, os grupos também são organizados segundo táticas precisas, e por aí afora. Tudo se passa, portanto, como se o grau de racionalidade compatível com a organização de uma partida de futebol pudesse atingir um nível considerável – todo o afinco dos técnicos regula-se justamente por tal ideia. Essa racionalidade fortalece-se ainda mais dada a existência de regras convencionais, que devem ser obedecidas por todos. Na primeira metade do século, Brecht percebeu com muita argúcia uma certa dualidade que invade os espectadores de uma partida de boxe, o grande esporte de massa da época. O dramaturgo de Na selva das cidades chama a atenção para essa estranha espécie de contradição que determina o comportamento do espectador: de um lado, uma irracionalidade que chega à beira de um certo histerismo, e, de outro, a perfeita atenção ao cumprimento das regras do jogo, acusando a presença de um espírito crítico que não adormece jamais. Um espetáculo esportivo obedece, portanto, a diversas e exigentes formas de racionalidade. Contudo, parece que a própria vida do jogo decorre da exploração dos acasos, do imprevisível, a racionalidade tropeça em ardis que configuram precisamente as virtudes do acaso: nada mais enfadonho do que um jogo restrito a artifícios racionais.” (p. 48-9 – grifos meus)

Nos últimos anos acentuou-se no âmbito do futebol um processo que poderíamos chamar de “cientifização”, esforço destinado a “garantir um determinado resultado”, o que equivaleria a domar (ou eliminar) completamente o acaso. Para tanto, as equipes responsáveis pelo treinamento e performance dos times incluem cada vez mais profissionais de diferentes disciplinas: psicólogos, nutricionistas, fisiologistas, estatísticos etc. Aliás, as estatísticas talvez sejam a mais evidente tentativa de orientar “racionalmente” as decisões dos técnicos e também de identificar as “causas” dos resultados. Um dos primeiros comentaristas de futebol a se valer e dar ênfase às estatísticas foi o gaúcho Rui Carlos Osterman (Rádios Guaíba e Gaúcha), hoje seguido por Paulo Vinícius Coelho com sua “prancheta do PVC”. No último campeonato mundial, vimos na própria transmissão da FIFA novas estatísticas, como o tempo médio de recuperação da bola de uma equipe. Uma exceção é quando se fala e se considera o talento. Diz-se que o talento resolve onde a técnica comum e a tática não resolvem, mas quando isso não ocorre o diagnóstico é: não conseguiu mostrar o seu talento… e aí buscam-se novamente razões.

Mas além do futebol, o nosso autor também cita o exemplo de algumas ciências (física, biologia), como da psicanálise, da literatura e mais amplamente da filosofia. Embora todas sejam interessantes e importantes, destaco aqui particularmente o caso da física contemporânea.

A física clássica foi o grande modelo da ciência moderna com seu rigor e seu determinismo racionalista onde o acaso não possuía lugar. Mas, a famosa frase de Einstein, “Deus não joga dados”, com a qual se contrapunha aos colegas que falavam em “indeterminação”, talvez seja o último eco da física clássica. Para a física quântica no plano do infinitamente pequeno e do infinitamente grande o acaso passou a adquirir uma dimensão cósmica.

Por um bom tempo acompanhei as reflexões de um físico quântico que foi aluno de Werner Heisenberg (considerado um dos pais da física quântica) chamado Hans-Peter Dürr (falecido em 2014), particularmente suas palestras. Uma das mais famosas era intitulada Wir erleben mehr als wir begreifen (Nós vivenciamos mais do que apreendemos). Ele fazia um esforço de “traduzir” conceitos importantes da física quântica para nós os leigos e também discutia suas consequências para nossa cosmovisão e mesmo nossa forma de compreender e estar no mundo.

Pois bem, em suas palestras costumava usar como ilustração um pêndulo (pode ser encontrado na internet no Youtube – Hans-Peter Dürr Pendel). Ele colocava o pêndulo na posição vertical, mas invertida (o peso para cima) e buscava colocá-lo exatamente no eixo vertical. Perguntava, então, se era possível saber para qual dos lados que ele iria cair? Em princípio, se o colocássemos exatamente na vertical ele hesitaria um pouco, mas, por alguma influência ambiental ele acabaria se movendo para um dos lados. Bem, mas se incluíssemos no cálculo todos os fatores ambientais e os controlássemos (por exemplo, o vento, o calor dos corpos circundantes e todas as forças infinitamente pequenas) seria possível prever seu comportamento? Teríamos que incluir no cálculo todo o “cosmos”, já que, em última instância, o bater das asas de uma borboleta no outro lado do mundo poderia determinar para que lado o pêndulo iria cair. A conclusão do físico é a de que sistemas instáveis são extremamente sensíveis e que se considerarmos o cosmos como algo vivo, o pêndulo parece dizer em determinado momento “eu sou livre”.[2]

A diferença de performance entre duas equipes permite, dentro de determinados limites, “prever” o resultado, mas o imponderável, o acaso está sempre à espreita – vide o sucesso da “loteria esportiva”. Ora, um sistema instável, como lembra nosso físico, é extremamente sensível. Se a capacidade de performance é muito desigual isso permite certo nível de previsão para qual lado o “pêndulo” vai tender, mas… um lance fortuito pode tornar o sistema novamente muito instável; a possibilidade disso acontecer nos mantém excitados – nada mais chato do que saber o resultado de um jogo que vou assistir em vídeo-tape. Quanto mais equilibradas as performances mais imprevisível e mais susceptível ao acaso será o resultado.

Quando o Brasil sofreu um gol quase no final do jogo contra a Croácia no último mundial, decisivo para sua derrota, novamente os analistas começaram a buscar as razões ou causas daquela derrota: decisões equivocadas do técnico, dos jogadores, problemas táticos, a convocação equivocada do Daniel Alves etc. (um analista chegou a fazer uma lista: dez razões que explicam porque o Brasil foi derrotado pela Croácia). Voltando às estatísticas: nesse jogo todas as estatísticas eram favoráveis ao time brasileiro, mas parece que elas foram derrotadas pelo acaso.

Mas, se observarmos o gol da Croácia veremos que o chute do atacante vai na direção do jogador Marquinhos, resvala nele e muda sua trajetória e com isso dificulta a defesa do goleiro brasileiro. Se considerarmos essa cena, podemos dizer que temos aí um exemplo de um sistema muito instável e extremamente sensível. Basta lembrar quantos chutes endereçados ao gol durante os jogos da Copa desviaram em defensores e ao invés de adentraram ao gol saíram pela linha de fundo. O que determinou que o desvio da bola, no caso do gol croata, tivesse o destino que teve e não outro? A contingência, o acaso ou o bater de asas de uma borboleta do outro lado do mundo? Quem sabe?


[1] BORNHEIM, Gerd. Racionalidade e acaso. In: NOVAES, A. (Org.). Rede imaginária: televisão e democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

[2] Ele depois complexifica a análise ao interligar vários pêndulos que ele vai chamar de pêndulo-caos. Lembro aqui novamente de Borheim que fazendo referência a Nietzsche, diz que “o caos é como a acumulação do acaso” (p. 52)

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O futebol feminino é estratégico?

Sim. Quero responder essa pergunta com um longo e sonoro simmm…. Mas por quê?

Pelo lado das oportunidades: crescimento exponencial de novos expectadores, novos consumidores, patrocinadores, oportunidade de expansão das marcas de clubes fortes ou fortalecimento e visibilidade de clubes que não são tão expressivos no cenário nacional. Incremento de vendas de diversos setores como, por exemplo, o de artigos esportivos.

Além disso, o futebol feminino é estratégico pois significa responsabilidade social, diversidade e inclusão tanto para clubes quanto para marcas que investem na modalidade e na formação das atletas. A modalidade tem um número crescente de competições nacionais e internacionais, com um aumento explosivo de audiência e visibilidade das marcas. O futebol feminino ainda leva nossa marca Brasil para diversas competições, incluindo Olimpíada e Copa do Mundo.

Mas o futebol feminino também é estratégico pelo lado dos riscos… Explico-me. Que tal ver seu time do coração tomando uma goleada de um time rival ou de um time de “camisa menor”? Que tal essa goleada ser assistida por milhares de expectadores e, cada vez mais, sendo transmitida pela TV e principais canais de streaming? Que tal continuar deixando o time de futebol feminino treinar em “qualquer lugar” e com “qualquer suporte” e depois disputar os jogos com a camisa oficial do clube? Que tal todos os riscos de simplesmente delegar para um gestor desqualificado a responsabilidade de juntar um número de atletas sem estrutura adequada, sem apoio e sem investimento na formação técnica e humana das atletas para simplesmente cumprir os regulamentos? E, depois, como arcar com todas as consequências civis, de reputação e perdas financeiras?

Fazendo um resgate histórico, de esporte proibido para mulheres até a visão estratégica da FIFA ao regulamentar o futebol feminino por reconhecer sua importância para a continuidade do crescimento do futebol, foram muitas lutas. A modalidade foi regulamentada no mundo e também no Brasil com esta visão de inúmeras oportunidades que podem ser ilustradas, por exemplo, pelo público recorde de mais de 1 bilhão de telespectadores que assistiram à Copa do Mundo feminina da França em 2019.

Além disso, a FIFA criou, em 2018, a Estratégia Global para desenvolvimento do futebol feminino baseada em cinco pilares: desenvolver e crescer dentro e fora do campo, melhorar as competições, comunicar e comercializar, igualdade de gênero em papéis de liderança e educar e empoderar.

E você? Com tantos resultados sociais, econômicos e culturais em curso e com o crescente engajamento de diversos stakeholders para o impulsionamento da modalidade e da agenda EESG (Economic, Environment, Social and Governance), que tal assumir uma estratégia mais robusta e consistente para o futebol feminino?

Texto por: Heloisa Rios

Imagem: Sam Robles/CBF

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No futebol é assim…

“Fazer o quê? No futebol é assim…”. Ouço essa frase com uma recorrência tão incômoda como surpreendente. Ela surge, por exemplo, quando defendo a gestão sistêmica deste esporte (política, técnica e administrativa) e a essencialidade de estratégia, inovação, capacitação e governança. Nessas ocasiões, faço minhas críticas ao que se pode chamar de “modelo” vigente, teço alguns comentários, exponho sugestões de mudanças e, invariavelmente, lá vem alguém com a dita cuja: “Não dá para mudar. Não dá para fazer de outro jeito. Fazer o quê? No futebol, é assim…”

O problema é que esse tipo de observação, além de expressar um conformismo inadmissível nos dias correntes, impede o crescimento e a evolução da indústria do futebol que disputa recursos e atenção em um universo muito maior que é do entretenimento. Na verdade, a gestão do futebol no Brasil é um ser errante, e muitas vezes perdida fora do gramado. É como se, há tempos, ela tivesse cometido um pênalti, colocado a bola debaixo do braço e, simplesmente, abandonado o campo. Resolveu não aceitar a marcação do juiz e foi embora.

Infelizmente hoje, a grande maioria dos clubes brasileiros responderia que o único objetivo do clube é: “ser campeão”. Mas será que é só isso? Será que se pode resumir uma estrutura tão fabulosa a um único alvo? Além do mais, considere que cada torneio tem somente um campeão. Isso significa que todos os outros participantes da disputa estão fadados ao fracasso em uma temporada – ou mesmo, a um tipo de “sucesso” parcial ou provisório? Não parece haver grande miopia nesse tipo de abordagem, principalmente em se tratando do mundo do entretenimento cujo espaço virtual rompe de forma formidável os limites de um estádio de futebol?

Vale destacar que os últimos anos tem sido de grande evolução nesta profissionalização, mas ainda há muito a ser feito. Do que vimos como uma das barreiras para a aceleração, é a aparente contradição entre uma gestão profissional e a velha tradição dos “administradores”, sempre voluntariosos e apaixonados por seus clubes. Em muitas discussões, esses dois grupos são colocados em campos opostos da disputa, como se fossem adversários.

Ela embute a noção segundo à qual somente o velho modelo de “comando” (não se pode empregar aqui o termo “gestão”) estaria ligado à tradição e ao amor verdadeiro ao time. O olhar profissional, segundo essa perspectiva, seria uma espécie de cemitério de emoções. Ora, basta observar os gramados europeus – e tudo que os cerca, tanto em termos físicos como virtuais – para se constatar o absurdo dessa abordagem.

A realidade mostra o oposto. É a capacidade gerencial dos times globais, de diversos portes, aliada a uma visão estratégica pertinente e a uma gestão efetiva, que faz aumentar a emoção dos torcedores e a afeição que sentem por seus clubes. Não há contradição entre eficácia e emoção. O contrário, sim, é verdadeiro. Esse é o ponto em questão. No mais, é enorme erro considerarmos todos os dirigentes e estatutários com as lentes do passado. Há estatutários que são profissionais e empresários muito competentes e experientes que, com boa governança, podem fazer muito pela transformação e profissionalização do futebol brasileiro.

Portanto, nunca fale que “não dá para fazer de outro jeito; porque no futebol é assim”. Diga sempre: “No futebol, era assim…” Quer começar? Invista na capacitação de seus profissionais e crie uma estratégia que defina claramente seus diferenciais competitivos.

Texto por: Heloisa Rios

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O fim da era Tite: É possível falarmos em legado?

Texto: Rafael Castellani e Lucas Alecrim. Não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Dia 16 de janeiro de 2023, seis anos após o início de trabalho no cargo de treinador da seleção brasileira masculina de futebol, Adenor Leonardo Bachhi, ou Tite, como conhecido no mundo do futebol, finalizou seu contrato com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Neste interim, foram 81 partidas realizadas pela seleção brasileira sob seu comando, nas quais obteve 60 vitórias, 15 empates e somente 6 derrotas. Estatisticamente falando, Tite obteve no decorrer destes 6 anos, 80% (aproximadamente) de aproveitamento dos pontos disputados. 

No entanto, ainda que os números e as estatísticas nos digam muito sobre o desempenho no futebol, eles, por si só, não explicam tudo, tampouco dão conta de analisar qualitativamente esse desempenho. Se as ciências exatas nos permitem conhecer inúmeras variáveis relacionadas ao jogo e prever com determinado índice de confiabilidade determinados acontecimentos, há uma característica fortemente marcante no futebol que os números não são capazes de mensurar exatamente: sua imprevisibilidade. Foi ela, a imprevisibilidade, que “jogou por terra” o grande favoritismo que a seleção brasileira levava diante da seleção Croata nesta última Copa do Mundo e que certamente impactou na avaliação do trabalho de Tite e sua comissão técnica, bem como no legado que porventura tenham deixado à próxima comissão técnica.

Se Tite tivesse ganhado todos os jogos que disputou e perdesse uma única partida, mas que representasse a eliminação na principal competição disputada, acarretando a falha na conquista do seu principal objetivo, o hexacampeonato, seu trabalho seria avaliado como positivo ou negativo? É correto avaliarmos seu desempenho tendo como referência uma única partida? Faz sentido avaliarmos seu trabalho tendo como principal item de análise o aproveitamento dos pontos disputados? Afinal, podemos falar que Tite fez um bom trabalho? Terminado seu ciclo de seis anos como treinador da seleção brasileira, Tite, e sua comissão técnica, deixou algum legado?   

Se olharmos simplesmente para os números, certamente podemos dizer que o Tite fez um ótimo trabalho, afinal, 80% de aproveitamento em 81 partidas disputadas é uma marca expressiva. Mas, como já dissemos, não podemos olhar somente para esse número e dado. Vejamos outros então… 

Sobretudo após a eliminação da seleção brasileira na Copa do Mundo do Catar, tem sido constante na mídia esportiva brasileira, bem como nas mesas de bares, críticas aos adversários que o Brasil enfrentou na era Tite justificando, assim, o argumento de que esse aproveitamento é pouco representativo e que somente pela fragilidade dos adversários enfrentados a seleção brasileira obteve tantas vitórias. 

Nesse sentido, a fim de trazer mais elementos que nos ajudem a analisar tais argumentos, buscamos explicitar as seleções de cada continente que a seleção de Tite enfrentou avaliando seu desempenho. 

Se considerarmos que as principais seleções do futebol mundial estão no continente europeu, algo refutado por nós, mas cotidianamente repetido pela mídia esportiva, enfrentamos poucos adversários “de primeira classe”. As partidas contra seleções europeias representam somente 15% das realizadas na “era Tite”.  Ainda assim, insistem os comentaristas esportivos, que enfrentamos seleções fracas e que nosso desempenho foi ruim. No entanto, nossos dados mostram o contrário.  Dentre todas as seleções do velho continente, Tite enfrentou as seleções da Suíça (2 vezes), Sérvia (2 vezes), República Tcheca, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Croácia (2 vezes), Rússia e Áustria. 

Tá certo que não enfrentamos a forte equipe francesa, vice-campeã mundial, nem a jovem e talentosa seleção espanhola. Mas é inegável que dentre as equipes enfrentadas, está aquela que foi nosso algoz na última Copa do Mundo, a Croácia (terceira colocada), e as seleções da Inglaterra e Alemanha, bem como as seleções da Suíça e da Sérvia que, apesar de menos tradicionais, costumam ser bastante competitivas.  Nas 12 partidas disputadas contra equipes europeias durante o ciclo de Tite como treinador da seleção, foram 8 vitórias, 3 empates e somente uma derrota, 75% de aproveitamento.

Entendemos que esses confrontos poderiam ter sido mais frequentes caso os calendários entre confederações estivessem em maior sintonia, tal como acontece em decorrência do novo formato de campeonato europeu da Nations League (torneio organizado pela UEFA) que agora preenche várias datas ao decorrer do ano.

Referente ao continente das Américas (CONMEBOL e CONCACAF), Tite e seus comandados tiveram números expressivos com 40 vitórias, 10 empates e 4 derrotas, 80,1% de aproveitamento, número superior ao obtido nos enfrentamentos com equipes europeias.  Quanto às seleções da Ásia e Oceania, não há muito o que comentar, uma vez que a seleção brasileira obteve 100% de aproveitamento.

Entretanto, as equipes que mais impuseram trabalho à seleção brasileira foram as equipes africanas, vinculadas à Confederação Africana de Futebol (CAF). De todos os seis confrontos, o Brasil teve apenas 3 vitórias, 2 empates e uma derrota. Proporcionalmente falando, o pior aproveitamento de pontos que a seleção brasileira obteve na era Tite. O último confronto foi a derrota para a seleção de Camarões na Copa do Mundo de 2022.

Esperamos que após essa “viagem pelo mundo”, tenhamos possibilitado traçarmos um diagnóstico mais preciso sobre os confrontos realizados pelos seleção brasileira para entendermos e analisarmos o desempenho enquanto Tite esteve como treinador. Vale ressaltar, que das seis derrotas sofridas por Tite, metade (três delas) foram em confrontos contra a grande rival e atual campeã mundial, Argentina. No entanto, esse panorama, apesar de nos ajudar a compreender esse contexto, por si só não responde totalmente à nossa indagação sobre o desempenho da seleção brasileira neste período, afinal, para avaliarmos um trabalho, temos que ter conhecimento acerca dos objetivos traçados no início deste trabalho. Quais foram os objetivos traçados pelos dirigentes da CBF e pelo Tite com a sua comissão no início do planejamento? Se obter um bom aproveitamento dos pontos (ou partidas realizadas) disputados era um objetivo, podemos afirmar que Tite obteve sucesso. Se era fazer a seleção brasileira novamente ser temida pelos adversários, também podemos afirmar que obteve êxito, pois sempre estivemos dentre as favoritas para vencer a Copa do Mundo do Catar. Classificar para a Copa do Mundo certamente esteve entre os objetivos, mas obter pontuação recorde nas eliminatórias não sabemos. De fato, o desempenho foi excelente! Conquistar a Copa América de 2019 estava entre os objetivos prioritários ou era parte da preparação para a conquista da Copa do Mundo do Catar? Caso tornar-se campeão da Copa América era um objetivo importante, Tite obteve êxito. No entanto, se o objetivo era ser Campeão do Mundo, e conquistar o hexacampeonato mundial, ai, independente do bom desempenho geral, Tite não obteve sucesso e, portanto, seu trabalho não pode ser avaliado como positivo.  

Por fim, para pensarmos num possível legado da era Tite à seleção brasileira, temos que trazer para análise o processo de formação da equipe. De acordo com a matéria da UOL, publicada no dia 07/11/2022, Tite convocou 88 atletas para servirem à seleção brasileira. Apesar do número expressivo de jogadores convocados, o recente ex-técnico da seleção brasileira procurou dar continuidade às convocações de atletas da gestão anterior (como Alisson, Marquinhos, Thiago Silva, Casemiro, dentre outros). Foi perceptível também que atletas do ciclo olímpico foram utilizados tanto para competições oficiais, quanto para amistosos (exemplo de Gabriel Jesus, Gabriel Martinelli, Bruno Guimarães, Douglas Luiz, Bruno Guimarães, Antony, dentre outros), permitindo assim uma passagem mais ampla pela “formação de um jogador da seleção brasileira”. Será esse o caminho da nova gestão da seleção principal que almeja tanto o hexacampeonato? Esse legado precisa ser continuado pela próxima comissão? 

E para você, qual o legado Tite deixa à próxima comissão técnica que irá assumir o comando da seleção brasileira masculina de futebol? Esperamos que nosso texto o ajude nesta reflexão.

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Atleta tem de estudar!

Tudo começa com os critérios de seleção de jovens nas famosas peneiras quando, essencialmente, o foco está na busca do talento técnico desportivo.

Não adianta treinar o pé sem formar um ser humano integral. A cultura brasileira, principalmente do futebol, de tirar qualidade de quantidade de atletas, já se mostra um modelo esgotado há anos.

Tudo começa com os critérios de seleção de jovens nas famosas peneiras quando, essencialmente, o foco está na busca do talento técnico desportivo. Ou seja, outras competências técnicas, emocionais e sociais praticamente não são consideradas e sabemos que é a combinação de todas elas que pode tornar um processo sustentável de revelação, desenvolvimento, performance esportiva e, consequentemente, resultados para todos os envolvidos.

Se fosse só no processo de seleção e depois investíssemos no desenvolvimento integral do ser humano, já estaríamos em melhores condições de competir no novo cenário mundial. Mas o que vemos é também uma visão restrita e exploratória em toda jornada. Há um ciclo vicioso instalado que combina a busca de performance técnica, com uma alta carga de treinos e muitos jogos, impossibilitando tempo para se investir em formação integral destes seres humanos. Sem esta formação, os atletas e toda indústria ficam restritos e reféns dos “pés”. Precisam encontrar futuros clubes e países onde esses atletas possam dar a sorte de se adaptarem e continuarem sua trajetória.

Nesse ponto, cabem reflexões: em um mercado global e digital, como um atleta pode prosperar somente com talento técnico? Como um atleta vai ter autonomia se tem capacidades restritas? Será esse o interesse da maioria? Se esse atleta lesionar ou não performar e encerrar sua carreira de forma precoce, qual seu futuro? Cabe também perguntar: o quanto os clubes e marcas que se posicionam ESG (sigla em Inglês que representa investimentos em Meio Ambiente, Social e Governança) se interessam e têm investido significativamente em educação, desenvolvimento e inclusão no futebol?

Sigo firme convocando a indústria esportiva no Brasil para um movimento muito maior. Para uma mudança radical de visão e uma construção estratégica coletiva onde, no centro, esteja a formação e o desenvolvimento dos atletas. Uma construção estratégica onde todos os stakeholders ganhem, onde nosso país possa ser transformado e nossa sociedade possa se desenvolver a partir e através do esporte e da educação.

Basta de clubes e agentes investindo somente para achar minas de ouro. Basta de marcas investirem somente no que dá “like” e visibilidade na mídia. Só cresceremos de forma rentável e sustentável e teremos futuro se entendermos que a mudança é urgente e depende de todos.

Exemplos e inspiração não faltam. O caminho é longo, mas escrevo hoje de dentro da UCLA (University of California), onde fiz uma imersão na NBA e no basquete universitário. Tive a oportunidade de entrevistar pessoas, atletas e ver um público vindo dos quatro cantos dos Estados Unidos prestigiar esses atletas estudantes cujo espetáculo e os resultados são reais dentro e fora das 4 linhas. Difícil? Sim. Vai demorar? Vai. Mas temos de começar.

Texto por: Heloisa Rios

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Edson e Pelé: as duas faces de um Rei.

Enquanto planejava meu primeiro artigo de 2023, aconteceu o que não queríamos que fosse confirmada, a partida do nosso Rei Pelé…

Como milhões de pessoas ao redor do mundo, parei, lamentei, revi memórias, senti saudades e, particularmente, senti muita gratidão pelo privilégio de tê-lo conhecido pessoalmente quando ele foi novamente protagonista de uma campanha da Tetra Pak. A primeira tinha sido na Copa de 1958, na Suécia, e representou o primeiro contrato publicitário da vida do Pelé.

Já em 2003, foram poucos meses entre a concepção, gravação e lançamento da campanha com clientes. Porém, a cada encontro, eu pude experimentar a grandiosidade de suas ideias e de seus gestos. Parecia que eu estava dentro de um sonho. O craque dos craques, o gênio da camisa 10 era totalmente acessível, simpático, interessado e estava completamente comprometido em realizar o trabalho e, ao mesmo tempo, impactar a vida de todas as pessoas, seja das mais simples do set de filmagem aos presidentes das empresas clientes que foram ao lançamento.

Uma grande curiosidade é que eram “dois personagens” e um único Rei. Edson Arantes do Nascimento conversava conosco sobre assuntos triviais e se referia na terceira pessoa ao Pelé. Uma das passagens mais interessantes foi quando Edson me fez um convite: “Heloisa, você pode criticar o documentário Pelé Eterno? Pelé gostaria que o futebol gerasse impacto não só nos que entendem do jogo, mas em todas as pessoas, em nosso país e no mundo inteiro.”

Pelé reinventou o futebol. Saiu de Minas Gerais e fez do Brasil um país conhecido, respeitado e admirado globalmente. Tinha fãs no mundo inteiro. Pelé é Rei não só por ter sido único dentro do campo, mas também por ter sido um ser humano que lutou para fazer diferença no mundo, abrir oportunidades para outros jogadores e colegas, para nosso país e porque brigou pela ética e governança dos negócios do futebol .

Quando da Nasa ao Obama, do Messi ao Cristiano Ronaldo, do menor dos blogs ao New York Times todos celebram e lamentam a partida do Pelé, me pergunto o quanto temos de potencial para seguirmos seu legado e usarmos o futebol para gerar impacto dentro e fora dos campos.

Artigo da nossa CEO: Heloisa Rios

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A beleza do jogo, do futebol, e sua imprevisibilidade

Texto: Rafael Castellani e João Batista Freire não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Dezenove de dezembro, data que marcou aquela que foi, para muitos, a mais grandiosa final de Copa do Mundo de todos os tempos e, para alguns, uma das mais espetaculares partidas de futebol da história do esporte mais querido do planeta. Que belo jogo! Messi fez o milagre de conseguir que boa parte dos brasileiros torcesse para a Argentina. Algo impensável até então, diante de tamanha rivalidade com nossos “hermanos”. Torcíamos tanto que nosso desejo era para que o jogo não acabasse. Queríamos que esse jogo fosse eterno ou que todo jogo de futebol fosse assim. Mas não é sempre que os deuses visitam a Terra. Escolhem ocasiões especiais, em que podem jogar pelos pés de seus ungidos, e um deles estava em campo, defendendo a seleção Argentina.

Nem mesmo a eletrizante tensão típica de uma final de Copa do Mundo conseguiu prejudicar a beleza do espetáculo proporcionado por, ao mesmo tempo, refinados e “raçudos” jogadores argentinos, sob a batuta de Messi, e pelos moleques atrevidos da França, liderados por Mbapeé. Os argentinos foram valentes e humildes, à frente da talentosa e brilhante geração de filhos de imigrantes africanos (a maioria deles) que vestiam a camisa da seleção francesa. O futebol de rua, das quadras, da periferia, dos mais pobres, dos negros, da molecada de rua da França deu certo. Fazer frente à seleção argentina bafejada pelos deuses do futebol não é para qualquer um. Haja atrevimento! Desafiar deuses é coisa de titãs.

Um jogo que coroou mais um rei, Messi. E o futebol é tão generoso que permite vários reis ao lado de Pelé e Maradona. Como é bonito ver Messi jogar! O título, enfim, retorna à América do Sul, berço da arte do jogo de bola, do jogo forjado por pés descalços sujos de terra e lama. Mbappé sugeriu que o futebol da América do Sul é menos desenvolvido que o europeu, mas, pelo menos em parte, sua tese caiu por terra na final da Copa. Mbappé erra mais por palavras que por ações. Seu gol contra o excelente goleiro argentino foi daqueles de tirar o fôlego. Se o craque francês falasse de organização, gerenciamento, infraestrutura, tudo bem, mas se estiver falando de talento, técnica, criatividade e arte, ainda temos do lado de baixo do Equador, muito a ensinar. A fornalha donde se forja a arte de fazer futebol é mais quente deste lado do mundo que na Europa. Quanto à pedagogia, daríamos toda a razão a Mbappé se ele nos criticasse, pois que nossos meninos vão às equipes de base dos clubes e praticamente desaprendem o que aprenderam nas ruas. Nossa grande pedagogia ainda está fora das escolas e clubes de futebol. Erro persistente também entre os europeus.

Independentemente de ser este ou aquele país a praticá-lo, o futebol encanta, arregimenta multidões nos estádios ou à frente das telas de TV e computadores. A Copa do mundo masculina de futebol, realizada no Catar, um dos países que mais desrespeitam direitos humanos no mundo, deu prova desse encanto. A equipe campeã, a Argentina, começou perdendo de uma das seleções menos favoritas, a Arábia Saudita. O Brasil perdeu de duas seleções que se mostraram fracas ao longo do torneio. A Alemanha, tetra campeã mundial, não disse a que veio. A tão falada “geração de ouro” belga, também não.

Poucas vezes os profetas do futebol erraram tanto. A “zebra” correu solta pelos gramados nesta edição da Copa do Mundo. E isso devemos à imprevisibilidade. Se ela está presente em todas as ações humanas, em todos os acontecimentos da natureza, em nenhum momento está mais presente que no jogo lúdico. O lúdico é o paraíso da imprevisibilidade, é o que torna o jogo atraente. O mistério encanta, seduz, vicia, e não há jogo sem mistério. Corremos atrás do que não vemos, perseguimos o invisível e o incerto, queremos saber o fim, mas, se ele nos for contado, o jogo perde a graça. A graça do jogo está em não sabermos o que virá adiante.

A Argentina sagrou-se campeã. Mas… e se Polônia ou México tivessem empatado seus jogos contra a Argentina na fase de grupos? E se o goleiro Australiano não tivesse cometido erro inesperado nas oitavas de finais em partida contra a Argentina? E se o Brasil não tivesse tomado o gol de empate por um gravíssimo erro tático contra a Croácia? E se a bola não tivesse desviado no Marquinhos? E se Neymar tivesse batido o primeiro pênalti contra a Croácia? E se a semifinal reunisse Argentina e Brasil? E se o goleiro argentino não fizesse tão brilhante defesa no último lance da prorrogação da final? E se…? E se…?

A expressão intencionalmente repetida inúmeras vezes acima, “e se”, somente nos reforça o aspecto imprevisível do jogo. Por mais que busquemos estudar e analisar o futebol e, acima de tudo, controlar suas variáveis, estaremos sempre sujeitos à sua imprevisibilidade.

Há tantos “ses” para ocultar o imprevisível! Como gostaríamos que eles não existissem, como torcemos para que todo acaso deixe de ser acaso e reúna fatos em nosso favor! Mas se fosse assim, sequer seríamos torcedores, sequer estaríamos escrevendo estas linhas, sequer haveria graça e jogo, sequer a vida valeria a pena.