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O VAR e a posição de impedimento

Por todas as suas sutilezas e a subjetividade existente em um jogo de futebol, já era de se esperar que o uso da tecnologia não tenha conseguido eliminar nem todos os erros, e muito menos as controvérsias que envolvem a arbitragem. Porém, quando o assunto é o impedimento, a expectativa até era um pouco maior, pois em teoria, a posição habilitada ou não de um atacante não deixa margem para interpretação, ele está ou não impedido. A experiência, por outro lado, tem mostrado que até nesses casos as polêmicas ainda persistem. Isso acontece porque, mesmo com a tecnologia, o processo ainda traz margens para imprecisões, fazendo com que lances milimétricos ainda estejam sujeitos a erros, como em alguns casos que temos observado desde a implementação do VAR para lances de impedimento. Para entender como se dá a aplicação da tecnologia utilizada na definição dos impedimentos nas partidas, vamos voltar algumas casas e começar pelo conceito da posição de impedimento. Um jogador se encontra em posição de impedimento quando está mais próximo da linha de fundo do que o penúltimo defensor da equipe adversária. Como na figura abaixo.

Como é possível observar, a posição ou não de impedimento de um atacante é definida de forma bastante objetiva, de acordo com a posição do 2º defensor mais próximo da linha de fundo, mas existem alguns detalhes que acabam complicando bastante essa definição mesmo com a ajuda da tecnologia disponível atualmente.

A primeira questão são as partes do corpo. Para definir a linha que habilita ou não o atacante a jogar, a parte do corpo do defensor que é levada em consideração é aquela que está mais próxima da linha de fundo e que pode ser utilizada para tocar na bola, ou seja, mãos e braços não contam, mas ombros sim. A mesma ideia serve para definir a posição, ou linha, do atacante. Ou seja, a linha, da primeira imagem, acaba sendo muitas vezes, na verdade, um plano.

Qualquer parte do corpo do atacante que possa fazer gols e que esteja tocando na zona avermelhada caracteriza sua posição de impedimento. Se já não é tão fácil compreender e identificar tal situação em uma imagem congelada, a dificuldade é muito maior com o movimento dos jogadores.

Aqui já temos uma dificuldade bastante considerável pois definir esse plano que se origina do corpo de defensor em uma situação real de jogo não é uma tarefa simples. Para isso é necessária uma tecnologia capaz de gerar essas projeções em todo o campo de jogo, a partir das imagens disponibilizadas pelas câmeras que alimentam o sistema.

Testes do sistema de projeção que seria implantado na Copa do Mundo de 2018 e, posteriormente em outras competições. Créditos: FIFA/Reprodução.

Como é possível observar na imagem acima, a definição da linha do defensor, e também do atacante, dependem de onde é posicionado o ponto de referência para a projeção – a cruz azul na figura. Nesse processo temos margem para imprecisões, já que a definição do ponto de referência é feita por um ser humano. Imagine em um lance no qual a parte do corpo do defensor, do atacante, ou dos dois, que está mais próxima da linha de fundo é o ombro, como definir onde termina o ombro e começa o braço? Dois ou três pixels para um lado ou para o outro podem determinar a posição legal ou não de um atacante?

Por outro lado, também vale destacar como o uso dessas projeções ajuda a elucidar lances nos quais a primeira impressão pode ser enganosa. No exemplo abaixo temos a reprodução de um lance utilizado para explicar o funcionamento das projeções, note como na primeira imagem a impressão que fica é a de posição de impedimento do atacante, de branco.

Porém, se observarmos o mesmo lance por outro ângulo, como na imagem a seguir, é possível perceber que o pé de um dos defensores dá condição de jogo ao atacante.

O uso da projeção permite que tais situações sejam verificadas com precisão, o que depende da escolha correta das partes do corpo do atacante e defensor que serão usadas para a análise por parte de quem opera o VAR.

Crédito: CBF/Reprodução

Complexo, não? E estamos ainda falando do lance parado! No jogo o atacante que em um instante estava impedido, no centésimo seguinte pode não estar, e vice-versa, e aí entra a decisão humana de novo para definir o momento exato no qual o lance será congelado e a posição de impedimento será verificada. A regra determina que o momento exato que deve ser usado para definir a posição de impedimento é o do primeiro “frame” – os quadros do vídeo – no qual há o contato do passador com a bola. Dependendo da escolha do “frame” as posições de defensores e atacantes podem trazer resultados distintos em relação ao veredito do impedimento.

O frame faz toda a diferença. Se a imagem escolhida na cabine do VAR é a primeira, o atacante está em posição legal, já no segundo momento a posição é de impedimento. Segundo a regra, a primeira situação é a que deve ser considerada para a definição do impedimento.

A escolha do frame também é realizada por seres humanos e dependendo do momento, do frame, utilizado para a verificação da posição de impedimento, o atacante pode estar ou não habilitado.

Atualmente, mesmo nos lances mais objetivos de impedimento, sem nem considerarmos todos aqueles nos quais entra em cena a interpretação da participação ou não no lance, as bolas rebatidas e situações similares, ainda há muita margem para imprecisão, e os lances milimétricos, ou ajustados, na linguagem da arbitragem, vão continuar a ser a origem de muita controvérsia se depender da tecnologia disponível.

Nesse sentido, é importante conhecermos os detalhes de funcionamento das tecnologias de revisão dos lances para não alimentarmos falsas teorias da conspiração e entender que a tecnologia irá evoluir simultaneamente às necessidades do jogo, que tenderá, cada vez mais a exigir precisão milimétrica e “milesimal” na avaliação das posições de impedimento.

*Colaborou Renata Ruel, ex árbitra de futebol do quadro de futebol da FPF e CBF, e comentarista de arbitragem.  

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Considerações táticas sobre Liverpool x West Bromwich

O futebol contemporâneo apresenta uma infinidade de fatores convergentes para a realização de jogos inteligentes, que são aqueles disputados por equipes que, ao se prepararem através de diversos recursos e métodos de treinamento, competem em alto nível de consciência e desempenho tático. Para Abel Ferreira, treinador do Palmeiras, uma equipe tem que realizar suas ações de modo consciente, interpretando as dinâmicas do jogo e executando de forma inteligente as movimentações treinadas previamente. Para o treinador palmeirense os atletas não podem jogar de modo automático ou inconsciente. Ao contrário, diante de cada situação do jogo os jogadores deverão apresentar as soluções táticas correspondentes.

Ocorre, no entanto, que o futebol é um esporte realizado em um contexto complexo repleto de imprevisibilidades. A complexidade do futebol resulta do conjunto e das interações existentes entre as ideias de jogo, a qualidade dos jogadores e suas relações com as ideias, o contexto existente e os problemas específicos do confronto entre equipes. Surge daí a necessidade de adoção de modelos de jogo, que constituem a identidade das equipes de futebol a partir da interação entre os seguintes fatores: ideias do treinador, princípios do jogo, características do clube, contexto, jogadores e treino (OLIVEIRA, 2012).

Neste texto realizamos algumas considerações táticas a respeito da partida entre Liverpool Football Clube e West Bromwich Albion Football Club, disputado no dia 27 de Dezembro de 2020, no Estádio Anfield (em Liverpool), pela 15ª rodada da Premier League (campeonato inglês) 2020/2021. O jogo terminou empatado em 1 X 1. Em situações opostas na tabela de classificação, com o Liverpool lutando pelo título e o West Bromwich buscando a saída da zona do rebaixamento para a 2ª divisão nacional, as equipes apresentaram modelos de jogo diferentes e representativos das qualidades e circunstâncias que envolvem os dois clubes.

A abordagem deste artigo é qualitativa, mas alguns dados quantitativos explicam algo sobre a partida em questão: o Liverpool trocou 787 passes, o que corresponde a 79% de posse de bola, enquanto o West Bromwich realizou 213 passes, correspondentes a 21% de posse de bola. O Liverpool chutou 17 vezes, mas apenas duas destas foram em direção à meta adversária: já o West Bromwich chutou 5 vezes, mas três destas foram na direção da meta do Liverpool (ESPN/FOX, 2020). Conclui-se, portanto, que a superioridade técnica do Liverpool não resultou em supremacia no placar da partida, o que representa uma característica específica do futebol: em outros esportes coletivos, como o basquetebol, o voleibol e a handebol, superioridades marcantes são traduzidas em placares de jogo com grandes vantagens numéricas.

A realidade tática do jogo era a anteriormente prevista pelos jornalistas esportivos e analistas do futebol inglês: o jogo ocorreria com nítida maior posse de bola do Liverpool, com realização das ações no campo de defesa do West Brom. E foi o que aconteceu: o West Bromwich passou o 1º tempo apenas se defendendo, enquanto o Liverpool atacava de modo incessante, atingindo 85% de posse de bola na primeira etapa.

Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, apresenta um modelo de jogo que não prevê necessariamente um grande percentual de manutenção da posse de bola. Para Rocha (2020), o treinador alemão objetiva um modelo intenso e agressivo, mas com espaços para a inteligência e a adaptação conforme requisitado pelas circunstâncias do jogo. O modelo de Klopp considera a posse de bola como um fator que também determina o domínio de uma equipe sobre outra, mas julga mais importantes ataques agressivos e velozes com pouca utilização de passes horizontais e de circulações de bola com baixa intensidade.

Ainda que não seja uma prioridade no modelo de Klopp, contra o West Brom a posse de bola resultou das condições específicas do jogo: a filosofia do “perde – pressiona – recupera” fez com que a posse de bola fosse rapidamente retomada pelo Liverpool em diversas e consecutivas situações. Aliás, o Liverpool apresentava preocupações ofensivas enquanto marcava a saída de bola adversária: quando o West Brom, do treinador Sam Allardyce, procurava iniciar a construção do jogo, era imediatamente pressionado pelas linhas do Liverpool, a começar do trio de atacantes composto por Salah, Firmino e Mané. A marcação em bloco alto, por pressão, resultava em rápidas recuperações de bola pelo Liverpool, que imediatamente partia em transição ofensiva aguda (vertical) buscando surpreender um West Brom que cognitivamente estava se ocupando da construção do jogo um segundo antes. Em síntese: o Liverpool tinha a bola nos pés, e quando não a possuía buscava recuperações imediatas de sua posse.

Percebe-se que o momento defensivo do Liverpool estava associado à transição ofensiva e à fase ofensiva, configurando momentos que, ainda que didaticamente separados, representam um todo dinâmico e indivisível (MOURINHO apud OLIVEIRA et al, 2006). De acordo com Oliveira (2012), os momentos do jogo são quatro: a) organização ofensiva, b) transição ataque – defesa, c) organização defensiva, d) transição defesa – ataque. Há uma interação entre estes momentos, segundo uma perspectiva ideal. Para Drubscky (2003), as fases do jogo são três: o momento ofensivo (fase de construção de jogadas), o momento defensivo (fase de recuperação da bola) e os momentos de reorganização do jogo (as transições). O todo dinâmico e indivisível transpareceu na organização tática do Liverpool, que controlou o jogo contra o West Brom via posse de bola, notadamente no terço final do campo (nas proximidades da meta adversária). Mas por que então o Liverpool não venceu ou goleou o West Bromwich?

No plano da ficção, podemos dizer que os deuses do futebol apresentam razões que a própria razão desconhece. No contexto pragmático do jogo existem motivos que explicam alguns resultados inesperados ou até insólitos. O West Bromwich, sabedor de suas limitações, organizou uma defesa em bloco baixo, com linhas muito compactadas. A primeira linha apresentava cinco homens, enquanto a segunda era ocupada por quatro atletas. O atacante mais avançado da equipe “balançava” de acordo com a movimentação dessas linhas. Em outros instantes eram seis atletas na primeira linha e quatro na segunda linha. Podemos dizer que o Liverpool controlava a bola, enquanto o West Brom de certa forma controlava o espaço. As investidas agudas do Liverpool ocorreram durante toda a partida, mas esbarravam em espaços ocupados pela defesa do West Brom, que executava marcações duplas, triplicadas ou até quadruplicadas sobre o portador da bola do Liverpool.

A equipe do Liverpool também retomava a bola com pressões exercidas por até três atletas sobre o homem da bola. Nesses momentos a equipe avançava seus laterais (Alexander-Arnold e Robertson) e seus homens de meio (Henderson, Wijnaldum e Jones) diminuíam radicalmente a distância para os três atacantes. Seria momento então para o Liverpool executar com a qualidade habitual suas transições ofensivas, mas isso não aconteceu. Viradas de jogo para as extremidades opostas ocorreram algumas vezes, mas as sequências das jogadas não eram rápidas, permitindo tempo para a total basculação das linhas do West Brom. Passes para atletas entrelinhas foram inviabilizados pela compactação do West Bromwich. Outra opção contra defesas muito fechadas, os chutes de média e longa distâncias, foram pouco utilizados: o Liverpool recorreu a este recurso em dois chutes (Salah e Henderson) e em duas cobranças de faltas por Alexander-Arnold.

O Liverpool, então, buscou triangulações com toques de primeira e jogadas individuais, objetivando assim superar as linhas adversárias. Essas estratégias foram neutralizadas pelo West Brom, sobretudo pela superioridade numérica na região da bola e pelas coberturas eficientes quando seus atletas sofriam o primeiro drible de Salah e Mané. Na realidade, o Liverpool obteve sucesso em dois passes em profundidade para Mané, que recebia a bola na altura da primeira linha do West Brom: em um desses lances a passe de Matip encontrou Mané, que abriu o placar aos 13 minutos do primeiro tempo.

Para além das situações citadas, que exprimem grande parte da lógica do jogo, torna-se importante destacar os seguintes tópicos: a) o Liverpool conseguiu dominar praticamente todos os rebotes ofensivos; b) o goleiro do Liverpool, Alisson, tocou pela primeira vez na bola quando de um recuo aos 25 minutos de jogo, c) o primeiro ataque efetivo do West Bromwich ocorreu aos 32 minutos de jogo; d) nos raros casos de saída de bola, no seu campo defensivo, o Liverpool adotou o formato lavolpiano, com a abertura dos zagueiros Fabinho e Matip e a colocação do volante Henderson entre eles.

Com relação aos princípios táticos do jogo, conforme discriminados por Costa et al (2009), podemos estabelecer alguns parâmetros para a compreensão da pouca efetividade do ataque do Liverpool. Por “pouca efetividade” compreendemos o fato da equipe citada ter dominado o jogo, sobretudo no aspecto temporal, mas não ter obtido número elevado de finalizações e gols. Analisemos três princípios fundamentais do jogo ofensivo, segundo os autores supracitados: mobilidade, penetração e cobertura ofensiva. Os atletas do Liverpool buscaram a realização de coberturas ofensivas, tanto que as opções de passe sempre existiram durante o jogo, bem como a recuperação imediata de bolas perdidas. No entanto, a equipe não efetuou penetrações em função de sua mobilidade realizada em baixa velocidade (ou sem intensidade, se preferirem). O “ferrolho suíco” (leia-se retranca) armado por Sam Allardyce reduziu drasticamente os espaços de manobra para os comandados de Jürgen Klopp.

As movimentações rápidas do Liverpool no sentido de retomar a posse de bola não foram seguidas por mobilidades ideais, intensas e velozes, no plano ofensivo. Desse modo a equipe de Klopp dominou a posse de bola, mas esse fator temporal não foi convertido em ataques agudos e rápidos. O controle da bola não resultou em produção de espaços livres e suas consequentes ocupações, e algumas recuperações de bola por parte do West Brom proporcionaram perigosos contra-ataques em direção à meta defendida por Alisson: em um deles o goleiro brasileiro impediu o gol adversário, através de uma excelente saída por baixo. A outra alternativa ofensiva do West Brom seria através de bolas paradas, e foi assim que, após escanteio curto, o zagueiro Ajayi cabeceou para a redes do Liverpool, empatando a partida aos 37 minutos da segunda etapa.

Em síntese, compreendemos que o Liverpool foi fiel ao seu modelo de jogo e aos princípios táticos dele derivados, mas não obteve a vitória por não ter conseguido abrir espaços em uma defesa fortemente compactada em uma zona restrita do campo. Se por um lado entendemos que uma maior velocidade nas transições ofensivas poderia ter concedido o triunfo à equipe de Jürgen Klopp, por outro podemos interpor um questionamento à alguns modelos de jogo específicos que rotulam as ideias dos treinadores: a flexibilização de tais modelos não seria recomendável em determinadas circunstâncias de jogo?

Algumas palavras de Tostão (2021), em artigo publicado pela Folha de São Paulo, lançam luzes sobre essa indagação. Para o centroavante de grandes atuações na copa do mundo de 1970, as equipes de futebol devem adotar diferentes estratégias durante um jogo de futebol, sendo em um mesmo confronto ofensivas e defensivas, ativas e reativas. Tostão (2021, p. B7) arremata:

o jogo de futebol, assim como a sociedade, deveria estimular a diversidade e evitar a radicalização. Os maiores bens do ser humano são a independência e a liberdade, respeitando o direito dos outros, sem se tornar refém de preconceitos e de conceitos técnicos e táticos.

            Sábias reflexões do ex-craque da seleção brasileira, que deixou de ser um estilista da bola para se tornar um autor de textos escritos com singular maestria.

COSTA, Israel T.; SILVA, Júlio M. G.; GRECO, Pablo J.; MESQUITA, Isabel. Princípios Táticos do Jogo de Futebol: conceitos e aplicação. Revista Motriz. Rio Claro, V. 15, N. 3. p. 657-668, 2009.

DRUBSCKY. Ricardo. O Universo Tático do Futebol: Escola Brasileira. Belo Horizonte: Editora Health, 2003.

FERREIRA, Abel Fernando Moreira. Entrevista coletiva. Disponibilizada pela ESPN/FOX em 5 de Janeiro. Buenos Aires, 2021.

OLIVEIRA,  José  G.  G.   Periodização   Tática:    Pressupostos    e    Fundamentos. Curso / Escola Brasileira de Futebol,  2012 . Disponível em: https://pt.slideshare.net/PedMenCoach/periodizao-ttica-jos-guilherme-oliveira. Acesso em 25 de Janeiro de 2021.

OLIVEIRA, Bruno; Amieiro, Nuno; Resende, Nuno; Barreto, Ricardo. Mourinho: porquê tantas vitórias. Lisboa: Gradiva, 2006.

ROCHA, André. Era Jürgen Klopp é de futebol intenso, mas também inteligente e adaptável. Artigo / UOL, 2020. Disponível  em  https://andrerocha.blogosfera.uol.com.br/2020/06/26/era-jurgen-klopp-e-de-futebol-intenso-mas-tambem-inteligente-e-adaptavel. Acesso em 18 de Janeiro de 2021.

TOSTÃO. Apertar e recuar. Artigo. São Paulo: Folha de São Paulo, 24 de Janeiro de 2021.

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Campeonato brasileiro série b 2020, a distância percorrida por cada equipe interfere no resultado?

Crédito imagem – Site oficial do Cuiabá E.C

Imagine que na Série B, todos os voos fossem fretados e diretos, e que todas as cidades teriam aeroportos para receber as equipes. Sabemos que isso não está nem próximo da realidade. Porém, como seria se assim o fosse?

Para calcular a distância entre as cidades foi utilizado o site pt.distance.to, os dados foram armazenados em um arquivo Excel e posteriormente analisados, e gerados gráficos no RStudio. As viagens seguem o calendário da competição.

Na tabela acima, temos os dados coletados, os nomes das equipes, a quantidade de pontos que fez na competição, a distância teórica e a região. Tivemos o Oeste – SP como a equipe que menos precisou se expor à viagens, e o Sampaio Corrêa – MA como a equipe que mais se deslocou para disputar os jogos.

Somadas as distâncias teóricas percorridas pelas equipes do nordeste, temos 333.812,50 km percorridos, com uma média de 55.635,41. Comparando com as equipes do sudeste, estas percorreriam no total 176.223,50 km, com uma média de 29.370,58.

Na imagem a seguir, temos uma distribuição por pontos e distância.

É possível perceber que as equipes do nordeste percorreram em teoria, maiores distâncias que as equipes de outras regiões. Quando foi realizado o teste de correlação de Pearson, o resultado foi de 0.06 positivo.

Sabe-se que o futebol é um esporte que envolve 4 esferas (tática, técnica, psicológica, preparação física) que só fazem sentido quando juntas, se uma equipe viaja bem mais que outras, ela tende a descansar menos, a ter um processo de recuperação mais lento, e estar menos preparada para os jogos seguintes.

Esse estudo é baseado em uma atividade imaginativa, sabemos que a realidade é bem diferente, equipes percorrem distâncias bem mais longas que essas, pois nem todos os voos são diretos, escalas, atrasos, viagens de ônibus, são frequentes no dia-a-dia de uma equipe profissional. E as equipes com toda certeza percorreram distância bem superiores às apresentadas.

A imagem acima apresenta a equipe campeã e vice, e a equipe que percorreu maiores distâncias na competição. Após, todo o já exposto, é necessário fazer uma reflexão sobre a logística da competição, tomemos a equipe do Sampaio Corrêa como exemplo:

A equipe fez uma partida de “ping pong”, indo e voltando de São Luís para disputar jogos no Sul. Aproveitar melhor longas viagens deveriam ser o foco da organização da competição, tornando-a menos desgastante para equipes mais distantes do centro da competição (Eixo Sul-Sudeste).

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Liderança: substantivo feminino

Cerca de três meses antes da coroação do pentacampeonato mundial que o Brasil conquistara ao derrotar a Alemanha em Yokohama (lá em 2002), uma semente de pensamento crítico aos bastidores do esporte era plantada a partir da Casa Branca nos EUA.

Condoleezza Rice, uma das figuras mais emblemáticas no governo de George W. Bush (à época ainda como conselheira de segurança nacional, passando a secretária de estado no segundo termo da mesma administração) e que também atuara na linha de frente pelo fim da Guerra Fria junto a George H.W. Bush – o pai – entre 1989 e 1991 (dialogando com os soviéticos no ápice da queda do Muro de Berlin), posicionou-se como uma visionária ao anunciar um sonho ainda distante, outrora destoado como mera ilusão, mas que despertara o potencial para futuras reformas no esporte.

Seu sonho era assumir a NFL como comissária da liga. Sim, tornar-se CEO do futebol da bola oval.

As duas primeiras décadas do século XXI se desenrolaram com as guerras do Afeganistão (ainda vigente) e do Iraque sob o radar de Condoleezza Rice, cuja descendência afro-americana ganhara tons de confiança, otimismo e esperança ao testemunhar Barack (e Michelle) Obama conduzir(em) a maior potência do livre mercado ao protagonismo empático, participativo e democrático. E mesmo com recentes obstáculos, o esforço pela manutenção de oxigênio diplomático finalmente voltou a respirar novos ares, agora respaldado por Kamala Harris como símbolo de continuidade na quebra de estereótipos no alto escalão.

Ao mesmo tempo, desde o pentacampeonato, uma das maiores nações do futebol global manteve-se ativa em quatro ciclos de Copa do Mundo (ou cinco, se já validarmos 2022), acreditando que uma nova taça pudera simbolizar sua métrica de sucesso frente a opinião pública. Embora importante, a qualidade da Seleção em um torneio de curto prazo (que acontece a cada quatro anos) difere (e muito) da qualidade do esporte praticado no país. Pois enquanto um elenco nacional tem o privilégio de atrair peças de vanguarda europeia, o desenvolvimento sistêmico da modalidade ainda depende de uma estrutura doméstica com mentalidade estratégica, orientação tática e valorização operacional. Aqui, isso seria um sonho ou ilusão?

É verdade que Condoleezza Rice não assumiu (até o momento) a tão sonhada liderança executiva do esporte que atrai os maiores índices de audiência e apelo comercial no planeta, apesar de receber incentivo midiático no território. Por outro lado, ela vivenciou (em 2016) a implementação de regras exigindo que a NFL passasse a entrevistar pelo menos uma mulher para cada um de seus cargos executivos, potencializando a presença feminina com taxas que se aproximam de 35% nos escritórios da liga nos últimos anos. Evolução de longo prazo é assim mesmo, gradual quando há consistência.

Aliás, 2021 marca o primeiro Super Bowl da história com uma árbitra dirigindo a final em campo. Para quem desconhece o esporte, 40 das 50 maiores audiências do século atual na TV americana são ocupadas por jogos da NFL (com números recentes acima de 100 milhões de espectadores acompanhando a final da liga somente nos EUA – Pressão de Copa do Mundo para a arbitragem!). Enquanto Sarah Thomas rompe paradigmas no futebol americano, Jeanie Buss (proprietária e presidente do Los Angeles Lakers) e Becky Hammon (auxiliar técnica de Gregg Popovich no San Antonio Spurs) representam a mudança de mentalidade no basquete masculino, cuja liderança enaltece a competência feminina dentro e fora das quadras na NBA (que já supera uma dezena de profissionais do gênero ocupando cargos técnicos na liga).

Expandindo os exemplos no cenário esportivo masculino, podemos transitar pelo beisebol, onde Kim Ng foi recém-apontada como gerente geral do Miami Marlins na MLB (a primeira mulher na função desde a criação do posto em 1927), pelo tênis, onde Zehra Mešić foi promovida a vice-presidente de finanças da ATP (acumulando experiências com orçamento e contabilidade no circuito masculino desde 2006), e até mesmo pelo rugby, onde Raelene Castle se destaca como referência de gestão na modalidade (CEO na Austrália entre 2017 a 2020). Quanto ao futebol europeu, Susan Whelan (CEO do Leicester City), Rebecca Caplehorn (diretora de operações de futebol no Tottenham) e Marina Granovskaia (diretora executiva de futebol no Chelsea) são apenas alguns nomes que, além de consolidarem a fortaleza estratégica feminina, inspiram gerações de novas entrantes no direcionamento do futebol masculino.

E já que mencionamos as profissionais da Premier League, migramos do âmbito esportivo ao acadêmico na Inglaterra, onde um estudo avaliou a administração pública no combate ao COVID-19 (com uma amostra de 194 países no início da pandemia), apresentando padrões de desempenho superiores em nações cuja liderança era feminina. Pesquisadoras da Austrália e dos EUA também investigaram o tema, convidando à reflexão. Ao diferenciar os territórios em que chefes de estado eram mulheres (ex.: Alemanha/Angela Merkel, Nova Zelândia/Jacinda Ardern, Taiwan/Tsai Ing-Wen), prioridades relacionadas à condição humana, à saúde pública e à redução de riscos evidenciaram a eficiência feminina na gestão de crises em um sistema político, auxiliando a segurança socioeconômica além do curto prazo.

“As mulheres pertencem a todos os locais onde decisões importantes estão sendo tomadas. Elas não deveriam ser a exceção.” – Ruth Bader Ginsburg

A liderança feminina frente a um ambiente historicamente masculino é, de fato, uma realidade.

Realidade que pode estimular uma nova cultura, muito além de um único clube ou de uma sexta estrela.

Imaginem o futebol brasileiro (masculino) comandado por figuras com maior orientação interpessoal no tratamento individual e no pensamento coletivo, aumentando a proatividade e conduzindo a cadeia de forma democrática, participativa e colaborativa. Qualidades identificadas na essência da liderança estratégica feminina, que certamente tendem a contribuir com a transformação necessária na gestão da modalidade no nosso país.

Um caminho pela mudança no controle das oscilações emocionais em clubes e federações, que ainda buscam provar posições de autoridade em relação aos seus pares.

Um caminho pela mudança na influência do desconhecimento técnico proliferado em conselhos deliberativos e presidenciais, especialmente nas reações impulsivas em casos de acúmulo de derrotas – quando o excesso de testosterona fecha os olhos ao racional.

E, sobretudo, um caminho pela mudança de comportamento na tomada de decisões, valorizando o torcedor – o dono real de cada clube – e fortalecendo iniciativas progressistas com incentivo à tecnologia, à ciência e ao desenvolvimento de capital humano no território brasileiro.

Confiem. Já estamos na terceira década do século XXI.

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Regionalismo na Série A do campeonato brasileiro (2010-2019), uma análise sobre a participação de equipes e contratações de treinadores.

Crédito da imagem – SC Internacional/site oficial

A tabela abaixo apresenta a quantidade de equipes que representaram suas região entre as temporadas de 2010-2019:

Somadas as participações de todas as equipes da série A no período estudado, dividindo-as por regiões, temos o Nordeste com 28 participações, Centro-Oeste com 9, Sudeste com 108 e Sul com 55. Importante notar que a região Norte não possuiu nenhum representante no período estudado, sendo a última participação em 2005, quando o campeonato brasileiro possuía 22 equipes, tendo o Paysandu Sport Club como representante.

O gráfico abaixo apresenta a evolução das participações de equipes por região na série A do campeonato brasileiro de futebol.

De acordo com o gráfico apresentado, a elite do futebol brasileiro é marcada pela predominância de equipes do sudeste e sul do país.

As tabelas abaixo apresentam os resultados encontrados das participações de equipes por região, estado e os diferentes representantes por estado.

A participação nordestina na Série A, ficou restrita à participação de 8 equipes, sendo uma de Alagoas, duas da Bahia, duas do Ceará e três de Pernambuco. Importante frisar que nenhuma equipe esteve em todas as temporadas estudadas, e que de 9 estados que compõe a região nordeste, apenas 4 foram representados na elite do futebol brasileiro.

Sobre a região Centro-Oeste, temos a participação apenas de duas equipes, ambas do estado de Goiás. Essas, não conseguiram participar de mais da metade do período estudado. E em uma região com 4 estados, apenas 1 foi representado.

Responsável pelo maior número de equipes participantes, o Sudeste possui 4 estados, e apenas um não possuiu representante na elite do futebol brasileiro, o Espirito Santo. O estado de São Paulo obteve o maior número de diferentes representantes, 8 no total, algo que destaca a força do estado para o futebol nacional. O Sudeste é a região com mais equipes que participaram de todas as temporadas estudadas, 7. Fato que demonstra a consistência dessa região no futebol brasileiro.

A região Sul, é a segunda com mais equipes participantes, diferente de todos as outras regiões, todos os estados que a compõe tiveram representantes na elite do futebol brasileiro no período estudado. Com destaque para Santa Catarina que teve 5 representantes diferentes.

            Vamos analisar agora, a quantidade de participações nessas 10 temporadas por cada estado:

Parte 2: contratação de treinadores na série A, uma análise por regiões e estados

Sobre as contratações de treinadores, os dados foram coletados em sites de notícias esportivas, posteriormente armazenados em um arquivo de Excel, no qual foram analisados. Foi buscado a região e o estado de nascimento dos treinadores contratados, para que fosse realizado uma distribuição geográfica desses dados.

1. Brasil – A soma de “todas” as regiões

A tabela abaixo apresenta todas as contratações de treinadores realizadas pelas equipes da Série A durante todos os anos estudados.

No período de 10 anos, foram realizadas 423 contratações de treinadores de futebol pelas equipes da Série A. Os treinadores do sudeste foram os mais procurados pelas equipes brasileiras no período estudado (255), seguido pela região Sul (124), Nordeste (24), treinadores estrangeiros (14), e Centro-Oeste (6). Destaque que, a região Norte nesse período não teve um treinador que o representasse na elite do futebol brasileiro. O gráfico a seguir apresenta esses valores em percentuais.

A imagem a seguir trata de uma distribuição por região e estados de nascimento dos treinadores contratados no período estudado. É importante destacar que: Estes dados se referem a quantidade de vezes que um treinador é contratado. Por exemplo: em 2019, o treinador Zé Ricardo (Sudeste – RJ), foi contratado pelo Fortaleza e pelo Internacional, nesse caso, ele conta duas vezes para o estado do RJ.

Mas, se quisermos analisar quantos treinadores estiveram na elite do futebol brasileiro nesse período de 10 anos? A Série A do futebol brasileiro contou com a participação de 152 treinadores, no qual o Sudeste permanece liderando, com 81, destaque para o estado de São Paulo que foi responsável por praticamente metade dos números do sudeste; seguido pelo Sul (42); treinadores estrangeiros e nordestinos vêm na sequência, ambos com 12 representantes; a região do Centro-Oeste vem logo atrás com 5 representantes.

Obtemos até aqui, várias informações, mas é importante saber se elas se cruzam. Será que existe alguma correlação entre a quantidade de participações de por estado e a quantidade de vezes que os treinadores são contratados? Utilizando a linguagem Python e o Jupyter Notebook, foi utilizado a correlação de Pearson, tivemos o p com resultado de 0.95.

2. Analisando região por região

A tabela abaixo apresenta os resultados de todas as contratações realizadas. A leitura da tabela é feita desta forma: “Quantidade de vezes que treinadores das regiões (ou estrangeiro) foram contratados pelas equipes do:” Os dados estão divididos em valores absolutos e valores relativos (%).

As equipes do nordeste contrataram 1 estrangeiro (1%); 6 nordestinos (8%); 50 contratações de treinadores do sudeste (66%), e 18 do sul (24%), totalizando 76 contratações.

            As equipes do Centro-Oeste, não contrataram nenhum estrangeiro; 1 nordestino (4%); 2 do Centro-Oeste (7%); 23 do Sudeste (82%); e 2 do Sul (7%); total de 28 contratações.

            Com relação às equipes do Sudeste, contrataram estrangeiros e nordestinos 10 vezes cada, ambos representando 5% do total. Realizaram 124 contratações de treinadores do próprio sudeste (63%); e 52 do Sul (27%), total de 196 contratações.

            Já as equipes do Sul, contrataram estrangeiros por 3 oportunidades (3%); nordestinos 7 vezes (6%); treinadores do Centro-Oeste por 3 vezes (2%), totalizando 123 contratações.

            Quais reflexões podemos tirar com esses números? O treinador nordestino representa 8% das contratações realizadas pelas equipes do próprio nordeste, enquanto o Sudeste contém 66% das contratações e o Sul 24%. Quando comparamos em números absolutos, equipes do Sul e Sudeste contratam mais nordestinos (7 e 10, respectivamente) que as equipes do nordeste (6). Porém, em números relativos (%), equipes do nordeste contrataram mais que as demais regiões (8% do Nordeste; 5% do Sudeste e 5% do Sul), apesar que a diferença percentual é muito pequena.

            Com relação às equipes do Centro-Oeste, esta é a que menos contratou “dos seus”, com duas contratações (7% do total). E foi a que mais contratou treinadores do sudeste, 23 (82%), nem mesmo as equipes do sudeste contrataram tanto “dos seus” quanto as equipes do Centro-Oeste.

            Sobre as equipes do Sudeste, temos a região que mais contrata estrangeiros em números absolutos e percentuais. Também é a região que mais contratou nordestinos em números absolutos. Foi a segunda região que mais contratou treinadores sulistas em números absolutos e relativos.

            As equipes do Sul contrataram treinadores de todas as regiões (exceto do Norte). Assim como todas as outras regiões, treinadores do sudeste foram maioria das contratações, porém, vale destacar que, as equipes do Sul foram as que mais contrataram sulistas em valores relativos (42%) e em valores absolutos (52), empatando com a região sudeste. Vale também destacar que elas foram as que menos contrataram treinadores do sudeste em valores relativos (47%) quando comparadas com as equipes das outras regiões.

            Terminada a pesquisa, vale refletir sobre tudo que foi exposto, equipes do Nordeste e Centro-Oeste valorizam muito pouco a mão de obra local. Os números poderiam ser ainda menores, visto que, por duas vezes equipes do nordeste colocaram treinadores para terminar o campeonato falta 1 ou 2 rodadas, visto que a equipe já não teria mais o que almejar na competição.

            Como relato pessoal, no Maranhão existe um grande problema na estruturação do futebol de base, ele simplesmente não existe. Um profissional que deseja trabalhar com futebol inicia pelas várias escolinhas que aqui temos, porém, não existe um próximo passo. Aqui temos, escolinhas e o futebol profissional. Competições de base existem, mas são montadas às pressas faltando dias da competição. Logo, não existe um processo de formação/maturação profissional de treinadores, auxiliares, analistas de desempenho, preparadores físicos… A solução já em um mercado restrito é sair em busca de emprego em outros estados, porém, qual clube de outro estado daria emprego à profissionais do futebol sem experiência ou apenas com experiência em escolinhas de futebol?

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Epistemologias nossas de cada dia I – o dom e o talento

Epistemologia. O termo, que etimologicamente remete às junções do grego episteme (que significa algo próximo à conhecimento ou entendimento) e logia (sufixo associado ao saber e a ciência) não soa lá muito convidativa, dado o caráter científico – incutida em sua própria constituição – tido como denso, teórico demais para estar atrelado à práticas hipoteticamente objetivas como, por exemplo, o futebol. Perfumaria, dizem.

Mas necessária – e cheira bem.

No frigir dos ovos, a epistemologia é a ciência do conhecimento. Propõe entender como nós, mortais seres humanos, incorporamos saberes que nos parecem úteis para lidar com o cotidiano corriqueiro, o que inclui desde aqueles mobilizados para dar um laço no cadarço de um calçado até aos que se arriscam a tentar entender a teoria da relatividade. Fundamental para compreendermos, enquanto pedagogos e pedagogas, os distintos modos que fazem fulano ou ciclana aprenderem (ou não) algum conteúdo e como modulam suas crenças, concepções e valores sobre a vida vivida – e por tabela, o futebol.

Trata-se, no fim das contas, de ‘maneiras’ mais específicas de interpretarmos o mundo a partir, claro, das lentes que nos dispusemos a usar para enxerga-lo. Toda prática, afinal, detém alguma epistemologia. O ‘maneiras’, ali em cima, é mero eufemismo para caracterizar as grandes teorias que explicam essa apreensão do conhecimento – são três, mas fiquemos hoje como a mais antiga delas: o Inatismo.

Um sem número de epistemólogos e epistemológas planeta afora se debruçam a conceituar a teoria epistemológica inatista e os pressupostos histórico-filosóficos que as fundamentam. Há certo consenso entre todos e todas de que a palavra-chave do Inatismo poderia ser algo como determinado. Todo e qualquer conhecimento é estabelecido a priori, presente de origem divina, dado, dádiva, verdade absoluta, concebido à alma, enquanto lócus do intelecto, e manifestado exteriormente a partir dela. Conhecimento é sinônimo de dom e você que lute para descobrir o seu.

Quem não sonhou em ser um jogador ou uma jogadora de futebol? A pergunta, eternizada musicalmente por Samuel Rosa, é retórica, mas seu complemento pode, em algum momento da vida, flertar com o doloroso: ‘será que nasci para isso?’, como aparentemente aconteceu ao Prof. Alcides Scaglia. Como não concordar com Romário, o homem dos 1001 gols, que, na mesma frequência com que decidia jogos, não hesitava em se endeusar? Fora o escolhido por Ele para dar alegria ao povo pelo balançar das redes, portanto, não lhe coube mais nada na vida senão cumprir a ordem celestial.

Explicar a vida – que não é necessariamente vivida nesse caso – pela manifestação de dons e seu caráter determinista são ações típicas de quem veste a lente paradigmática analítica-sintética e tradicional. O dom, sob a perspectiva pré-moderna, dispõe de forte ligação com o sagrado. Não à toa, monarcas de origem ibérica (berço do sebastianismo) em séculos passados e autoridades da Igreja Católica, até hoje, sejam intitulados dessa forma. E que adquire, pelo pensamento moderno e positivista do Iluminismo, uma roupagem genética para justificar o talento nato.

O determinismo, então, materializa a busca pelo controle da alma, por meio de derivações pan-ópticas, para combater o imprevisível e o indesejável. Para tanto, não abdica da imposição de rótulos demonizantes, motriz de vários preconceitos arraigados pela sociedade ocidental, óbvio, reverberados no esporte: do futebol que não é esporte de mulher, o vôlei que não é modalidade de macho, o preto que não serve para catar no gol, nem para treinar, nem para nadar, porque ‘sempre’ foi assim, alguém quis, escreveu não sei onde. Que também é desmascarado nas fatídicas peneiras por um viés supostamente mais ‘dócil’, o da busca por talentos brutos pelo julgamento das capacidades esportivas através d’um simples olhar: a muito baixinha para jogar basquete, a alta o bastante para jogar vôlei, o da panturrilha grossa que não serve para o futebol, ao contrário daquele outro de canela fina.

Cruel, muito cruel – diria aquele narrador (para manter a tradição de referências noventistas por aqui).

Do ponto de vista pedagógico-esportivo, em qualquer contexto, o Inatismo tem consequências geralmente pouco sapientes na medida em que o(a) professor(a)/treinador(a) é o ser que detecta clinicamente quem é capaz ou não e que, no máximo, promove insights para o desabrochar dos dons. Não existem processos de ensino ou aprendizagem e as responsabilidades afetiva e formativa ficam, literalmente, ao deus dará.

O Inatismo, e sua orientação determinista, ignora por completo a Pedagogia, enquanto ciência da prática educativa e, a rigor, qualquer outro tipo de ciência. Segue impregnando a cultura esportiva no Brasil, dentre outros fatores, pela busca mística ao imponderável que rege algumas de nossas condutas – que atire a primeira pedra aquele ou aquela que nunca se utilizou de um ritual de superstição para torcer. Outro ponto passa sobre como pensam (ou não pensam) algumas lideranças políticas e esportivas por aqui. O anseio de que determinados valores e ideologias não podem ser, em hipótese alguma, questionados numa sociedade que vive de… questionamentos, são feitos pelo controle social e sua imposição de concepções, de forma até arbitrariamente autoritária, justificada por um teor inatista: eis o evocar do mito de que mitos existem.

Fosse um desses influenciadores digitais, desconfio que o Inatismo seria aquele sujeito endeusado por uns, tido como tóxico e passível de cancelamento por outros, mas que, movido pelo amor e/ou pelo ódio, teria, possivelmente, milhões de seguidores. Todos nós fomos e somos inatistas e essa afirmação não se dá apenas pela possível identificação ressoada em você que se identificou com algumas situações exemplificadas. A ciência, inclusive a voltada ao âmbito esportivo e, mais inclusive ainda, àquela ligada à subárea da Educação Física chamada Pedagogia da Esporte, tem trazido evidências claras do engajamento, digo, popularidade dessa epistemologia.

Ao Inatismo, por essas e algumas outras, não devemos conceder sua inquisição imediata – ou cairemos na armadilha da contradição – sem antes reconhecê-lo. Primeiro como decorrente de uma visão de mundo analítico-sintética, suprema e factível em determinado contexto histórico. Depois, como teoria que ainda detém enorme influência em nossas fundamentações, muito por oferecer explicações razoavelmente simples demais sobre os quês, comos e os porquês devemos aprender, crer e enxergar o universo que nos ronda, sem nos exigir algo a mais do que a resignação.

Amém.