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Como medir sucesso no futebol?

Crédito imagem – Site oficial/Premier League

O nome Valeriy Lobanovskyi pode soar pouco familiar no cenário atual, mas os fãs do futebol europeu seguem reconhecendo-o como o mentor de Shevchenko, o cientista da bola ou o ilustre treinador vice-campeão da Eurocopa em 1988 (cuja final coroou a Holanda de Rinus Michels com Ruud Gullit, Marco van Basten e Ronald Koeman). Efetivamente gravado na história do esporte, Lobanovskyi representa um dos maiores pensadores que já interpretaram o jogo, contribuindo com os primeiros registros de futebol coordenado ainda durante o período de isolamento sociocultural e econômico que o distanciara da Europa ocidental pela Cortina de Ferro, levando-o a se tornar o treinador com maior influência no regime soviético (sua trajetória, aliás, fora brilhantemente resumida por Jonathan Wilson no livro A Pirâmide Invertida). Devoto a uma abordagem metódica e científica no treinamento de suas equipes, Lobanovskyi tratava o futebol como um sistema integrado, composto por 22 elementos que se movimentavam dentro de uma área delimitada no campo de jogo e estavam sujeitos a regras enquanto buscavam seus objetivos. Ao raciocinar os padrões de comportamento de sua equipe e dos adversários, ele superava o efeito externo emocional por meio da antecipação de movimentos no jogo, estimulando a memória coletiva de seus jogadores e revelando a importância do pensamento crítico dentro e fora de campo. Seu foco prioritário, entretanto, não eram vitórias ou títulos, mas sim deixar uma marca registrada no intelecto do futebol. Um legado intangível.

Ainda que existam exemplos que tentam fugir da normalidade, o pensamento convencional que acompanha o futebol até hoje persiste em traduzir sucesso esportivo única e exclusivamente por meio de gols, vitórias, títulos, prêmios, posições em tabelas ou ranking. Superficialmente, o sucesso é medido pelo produto-final, mesmo que ele seja momentâneo.

Porém, quando paramos para nos questionar, será que os fins justificam os meios? Será que as vitórias efetivamente representam sucesso ou na verdade escondem equívocos que ocorrem nos bastidores? Será que não conquistar o produto-final se traduz em falta de resultados ou seria essa uma grave ineficiência de avaliação?

Ponderar métricas limitadas (e tangíveis em seu sentido figurado) com medidas intangíveis (e muitas vezes invisíveis ao público) pode ser uma prática benéfica ao processo de avaliação construtiva no futebol. Afinal, seja em uma competição de longo prazo ou em um torneio eliminatório, inevitavelmente apenas uma equipe pode se tornar campeã em cada uma das disputas. Enquanto um campeonato nacional de 38 rodadas não termina na sétima, tampouco na vigésima quinta rodada, uma copa eliminatória não reflete necessariamente fracasso aos participantes que não atingiram a primeira colocação. Para distintas realidades, torna-se necessário diferentes réguas.

Apoiados justamente nessa linha de raciocínio, distanciando-nos de gols, pontos e troféus, como é possível medir sucesso esportivo no futebol?

  • Fortalecendo a identidade.
    • Em treinos e competições, existe uma (tentativa de) construção gradual em torno dos princípios de jogo desenhados pela comissão técnica?
    • Nas sessões de treinamento (independente da metodologia), há consistência prática de conceitos teóricos nos exercícios, equilibrando as ideias às circunstâncias de elenco, estrutura e tempo disponíveis?
    • Dentro e fora de campo, jogadores, profissionais e dirigentes se comportam segundo os valores defendidos pela agremiação? Quando o resultado não é positivo, todos sabem perder ou pelo menos reconhecer os adversários?
  • Incentivando expectativas realistas.
    • Antes de especular vitórias, qual é a realidade do clube? Quem são os reais concorrentes no contexto atual?
    • Considerando o desempenho em anos recentes e a projeção almejada, quais seriam os objetivos viáveis em curto e longo prazo?
    • Entre os supervisores do comando técnico, há conhecimento e paciência para monitorar, apoiar e respaldar o processo durante a temporada?
Diego Simeone esclarece a relação entre expectativa e realidade no Atlético de Madrid.
  • Valorizando o capital humano.
    • O clube investe em seleção, avaliação e sucessão de profissionais? Ou há sinais de apadrinhamento, nepotismo, favorecimentos políticos?
    • Dada a complexidade no ambiente de alto rendimento, existe valorização multidisciplinar? Sobretudo nas áreas de saúde e desempenho, há autonomia e integração para aprimorar o fluxo de informações?
    • Ao visualizar a organização estrutural, fomenta-se o intercâmbio de ideias e o desenvolvimento coletivo (respeitando a hierarquia)?
  • Estruturando a conversão de talentos.
    • Como tem sido a transição e a maturação de talentos provenientes das categorias de base no aproveitamento prático com a equipe profissional?
    • Quando jogadores são vendidos, o incentivo se volta a otimizar os talentos que já haviam sido antecipados ao elenco ou prioriza-se novas transferências para reposições imediatas? 
    • Há espaço, paciência e confiança para recuperar e projetar talentos outrora desacreditados (seja pela idade, frustração no exterior, inatividade por lesão, problemas pessoais)?
  • Promovendo transparência financeira.
    • Como se encontra a saúde financeira do clube ao analisar a antecipação de receitas, acúmulo de dívidas, empréstimos, inadimplências? Até que ponto as ações têm comprometido o potencial econômico e esportivo?
    • Quais são as reais diferenças na alocação de salários, bônus, comissões? Quanto cada jogador e seus intermediários efetivamente recebem comparado aos funcionários que atuam na operação do clube?
    • Se examinados de forma imparcial, seria possível identificar conflitos de interesse, benefícios pessoais ou desvios de receita nas decisões financeiras dentro do clube? Quantos dirigentes (estatutários e executivos) sairiam intactos de uma auditoria que rastreasse o seu histórico de participação na entidade?
Atalanta: reflexo de sucesso esportivo

“A vontade de se preparar tem que ser maior do que a vontade de vencer. Vencer será consequência da boa preparação.” – Bernardinho

O excesso de perguntas talvez tenha causado algum desvio de atenção, mas elas servem para ilustrar como o sucesso esportivo, enfim, não se limita ao resultado que enxergamos de forma isolada (durante ou ao fim de uma competição). É possível definir o sucesso, e até mesmo dividi-lo em ângulos que se completem, estimulando objetivos que se ajustem à realidade contextual de cada clube.

Capturado pelo visionário e multicampeão Bernardinho em sua obra Transformando suor em ouro, a verdadeira vantagem competitiva no esporte provém do processo cíclico de desenvolvimento. Muito além do sucesso, torna-se prioritário entender a busca constante pela excelência esportiva.

Afinal, o futebol, antes de ser competitivo, é colaborativo.

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Precisamos falar sobre o interacionismo II – Mais com mais dá menos

Já falamos, em conversas anteriores, que contradições epistemológicas são inerentes ao processo de ensino, aprendizagem, treinamento – porque, também, o ser humano é feito de carne, osso e antíteses. O que não impede, pelo contrário, a necessidade de refletirmos de vez em sempre sobre como tornar coerente a relação teoria-prática. Acontece que as teorias não são imunes aos paradoxos. Tudo o que é, nem sempre parece. Falemos, pois, do humanismo pedagógico, uma das vertentes sustentadas (sustentadas?) pela teoria do conhecimento interacionista e do paradigma emergente.

Voltemos, primeiro, ao fim do Século XIX. Na Europa, a segunda revolução industrial fluía a todo vapor, a burguesia emergia e tomava conta das cidades, cada vez mais urbanas. Muito interessava a esses novos donos dos meios de produção que seus herdeiros fossem suficientemente capacitados para tocar os negócios. A escola, predominantemente aristocrata, passou, também, a ser frequentada por burgueses. A chegada de uma nova classe social, pouco habituada à polidez do meio, exigiu adaptações pragmáticas nas estruturas educacionais. Resumindo a história: não dava para continuar ensinando do mesmo modo. Havia gente nova do pedaço, era preciso renovar. 

O Brasil não passou imune às transformações sociais, históricas e econômicas do período. Dom Pedro II acusou o golpe (militar) e voltou à Portugal, o império virou república, imigrantes aos montes aportaram nos litorais tupiniquins – que também viu desembarcar um jogo de bola com os pés, football, chamavam uns, outros de balípodo. O processo de industrialização por aqui, engrenou, de fato, na década de 1930. Não por coincidência, à época, a nova burguesia nacional chegou às escolas e, delas, despontou um movimento renovador, denominado Escola Nova, chancelado por intelectuais da estirpe de Anísio Teixeira, Cecília Meireles e Fernando Azevedo.

O movimento da Escola Nova ou escolanovismo pretendeu tornar os processos pedagógicos mais ‘agradáveis’. Era preciso romper com o tradicional. A intransigência professoral conservadora não mais cabia ao meio educacional, afinal. Na Educação Física, atividades de caráter militar, técnicas e acríticas, deram lugar aos jogos. Muitos dos (clássicos) sofisticados estudos sobre o fenômeno jogo nem eram conhecidos, o termo estado de jogo tardaria décadas para ser cunhado, mas os escolanovistas, sagazes, notavam a capacidade de engajamento promovida pelo jogo a quem joga. Jogar é legal, portanto, joguemos. A inserção do jogo nas aulas em detrimento de práticas reacionárias foi um marco. Uma quebra de paradigma, quiçá.

O jogo, apregoado pela Educação Física escolanovista, carregou consigo a banalização do lúdico. Não havia, a rigor, intencionalidades conscientes ou tarefas representativas capazes de criarem um ambiente de jogo e aprendizagem enriquecedores. Jogar bastava para ser e fazer diferente. Tinha-se o jogo pelo jogo e nada mais. Evidentemente, tais críticas podem soar, quase um século depois, como ‘engenharias de obras prontas’ em virtude do distanciamento histórico, da própria sofisticação da área e de transformações científicas. A problematização, porém, é válida em decorrência da potente ‘herança’ deixada por essa concepção pedagógica.

Após o Golpe de Estado de 1964, a Educação Física e os métodos de treinamento tornaram a abraçar a militarização, dotada pelo tecnicismo acrítico e esportivista. Professor acima de tudo e tarefas descontextualizadas, acima de todos. Nas escolas, os processos de ensino eram análogos aos praticados no alto rendimento esportivo, desconsiderando toda e qualquer individualidade biológica dos alunos. No futebol, a figura do preparador físico ganhava força. O documentário ‘Pelé’, lançado há poucos meses no Netflix, traz, como pano de fundo, algumas das práticas que regiam os treinamentos da seleção brasileira rumo ao Mundial de 1970 – e representam bem o caráter militar da atividade física na época.

Ao fim da Ditadura Militar, a própria Educação Física entrou numa espécie de crise de identidade. Era preciso, outra vez, superar o ensino tradicional. Desde então, não são poucas os modelos pedagógicos e modelos de ensino dispostos a aderir preceitos interacionistas para romper, em definitivo, com o passado – que, no Brasil especificamente, teima em desaparecer em todos os âmbitos. O tecnicismo no ensino, sobretudo no futebol, resiste. Seu enfrentamento, contudo, tem se dado por vias não exatamente novas: ressignificado, o escolanovismo pedagógico ganhou fôlego e tem se apresentado como elixir da boa vida sob roupagens outras, mas preservando a essência de um século atrás. 

Sob a égide das ‘metodologias ativas’, a preocupação com a forma se sobrepõe ao conteúdo. Alçar o(a) jogador(a) ao protagonismo e colocá-lo(a) no centro do processo de aprendizagem, é meta irretocável, mesmo que, para isso, seja preciso não incomodá-lo(a). A armadilha foi amplificada pela ascensão dos conceitos de positividade e desempenho, trazidos por Byung Chul-Han em ‘Sociedade do Cansaço’ nas relações pedagógicas: prefere-se o dinamismo de um jogo aos insossos dribles nos cones e chutes ao alvo descontextualizados por ser mais… legal. E interessante. E divertido. E recreativo. E mais suave. Iupi.

Temos, então, uma pedagogia centrada em atender, única e exclusivamente, aos anseios externos (familiares, torcedores, dirigentes) e agradar aos(às) jogadores(as). Aulas e treinamentos devem pretender, acima de qualquer coisa, o aprazível. Frustações são proibidas, os questionamentos, tolhidos, os erros, avalizados sem qualquer interpelação, as negligências, disfarçadas pelo falso afeto. Até a dor da derrota foi sufocada. Busca-se, o tempo todo, evitar o cancelamento – o da matrícula na escolinha e o moral. O(a) professor(a)/ treinador(a), botado(a) na palma da mão, literal e metaforicamente, virou refém dos likes e estrelinhas de uma sociedade ávida pelo julgamento raso.

Não suficientemente tóxico, o cenário apresentado (que em hipótese alguma se resume ao futebol ou à Educação Física) dá margem ao aparecimento de outro tipo de ‘interacionismo’ maquiado: frustrados(as) pela positividade excessiva, professores(as)/treinador(as) contrarreagem assaltando o jogo para si. A atividade dinâmica passa a ser, então, rigidamente controlada pela modulação de comportamentos, imposições verbais, estímulos diretivos, posturas típicas do behaviorismo, base do tradicionalismo pedagógico. E, voilá, temos o neotecnicismo, apresentado na última conversa: a metodologia pode até seguir baseada em jogos e fugir de tarefas analíticas, mas acaba sufocada pela didática arcaica e heterônoma. O jogador(a) joga o jogo que o professor(a)/treinador(a) quer e permite. 

O jogo é um fenômeno potente demais para ser reduzido a instrumento romântico de coerção de prazeres. Voltado ao ensino, à vivência, à aprendizagem ou ao treinamento esportivo, não deve ser apenas legal. Adquire sentido pedagógico nas intencionalidades atreladas ao gout l’effort, expressão francesa para ‘gosto de esforço’, evocada pelo Prof. Leandro Karnal em ‘Felicidade ou Morte’. Requer empenho mais até que desempenho. Jogar pressupõe desafio e desconforto, superação e subversão.

Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, sempre aprendendo.

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A construção de programas multidisciplinares na formação – O papel da preparação física

Crédito imagem: FC Bayern Campus

Introdução

Em 2016 e 2017 participei como preparador físico de uma equipe Sub-17, com atletas de muita qualidade técnica, com grande conhecimento tático e com muitas qualidades físicas. Os atletas de geração 1999, 2000 e 2001 tiveram contato com o treino específico da modalidade com qualidade e baseados em um sistema da instituição, criado por uma equipe de profissionais envolvendo nutricionistas, médicos, fisioterapeutas, preparadores físicos, treinadores, gestores e analistas de desempenho. Curiosamente, essa geração e as mais jovens que tiveram um contato mais prolongado com a metodologia de trabalho desenvolvida até então deram frutos financeiros e desportivos para o clube.

Não menos importante, gostaria de abordar a necessidade do desenvolvimento das qualidades de força ao longo dos anos de formação e começo da transição para a profissionalização do atleta de futebol. As categorias mais jovens que contemplam até a idade dos 17 anos se caracterizam por uma grande heterogeneidade a nível maturacional, idade de treinamento e competência de movimento, características essas que reforçam a importância dos clubes contarem com comissões técnicas compostas por profissionais qualificados que saibam aproveitar as supostas janelas de treinamento e introduzir um maior contexto de “treinamento de performance atlética” para além da pedagogia e treinamento do e através do jogo.

O treinamento físico como suporte a modalidade e desenvolvimento do atleta de futebol
Em um extensa revisão recente de Clemente et al (2021), o treino através de jogos reduzidos se mostra importante para muitas valências táticas, técnicas e psicológicas, no entanto, não consegue desenvolver todas as competências necessárias para um atleta de futebol, sobretudo naquelas que estão mais relacionadas as capacidades físicas: altura de salto, velocidade linear e mudança de direção. Isso nos indica que para além de pensarmos no desenvolvimento do jogador de futebol, é preciso pensar no atleta, com treino individualizado de qualidades de força, resistência e competência de movimento.

O infográfico abaixo mostra três momentos de avaliação ao longo de uma época competitiva, com atletas de Sub-17 em métricas relacionadas a composição corporal: Massa Gorda, Massa Magra, área muscular do braço e da coxa. Apesar dessas medidas não se relacionarem diretamente as suas capacidades físicas (i.e. uma maior área muscular da coxa não necessariamente implica uma maior capacidade de salto ou maiores níveis de força) (Meyers et al 2015), esses valores demonstram a necessidade de se desenvolver os atletas em idades sensíveis, com especial atenção aos estímulos de força e orientações nutricionais para suportar o aumento das cargas de treino, das exigências competitivas e as alterações funcionais que se conseguem ao longo do processo maturacional e que irão impulsionar o atleta para a carreira profissional de alto nível.

Figura 1 Gráficos de evolução da Composição Corporal ao longo da temporada em 3 momentos de avaliação. (Idade média nos momentos > A1 [fevereiro]: 16,5 anos A2 [junho]: 16,5 anos A3 [novembro]: 16,4 anos)

Quando recorremos a literatura científica, muitos estudos corroboram a relevância do processo de treino no estímulo dos atletas, unindo o útil (estímulos ideais para melhor aproveitar o processo maturacional) ao agradável (ganhos de performance e bases físicas e fisiológicas bem estabelecidas) (Lloyd et al, 2016).

“De forma geral, jogadores jovens de futebol apresentam valores acima da média para altura, peso e massa muscular, assim como tendem a apresentar um estado mais avançado no status maturacional com o aumento da idade e envolvimento em programas de desenvolvimento de elite (Malina, 2003, 2011). Valores mais baixos a nível antropométrico e de performance funcional tendem a ser geralmente observados em jogadores de futebol que foram dispensados, abandonaram ou não foram selecionados para jogarem no próximo nível de programas de performance de elite. Comparados com aqueles que tiveram a oportunidade de serem promovidos a um nível mais alto.  (Figueiredo et al., 2009; Gil, Ruiz, Irazusta, Gil, & Irazusta, 2007). Resultados similares foram encontrados em jogadores de formação de elite que superaram a idade de formação e não tiveram contratos profissionais assinados (Le Gall, Carling, Williams,& Reilly, 2010).” (Carling et al. 2012)

Um programa de formação integral do atleta, deverá incluir aspectos que se encaixam na última fase do plano de desenvolvimento atlético de longo prazo, ou seja, educar o atleta para competir e para ser um atleta com longevidade, ou um atleta para a vida. Os nossos atletas, para além do treino específico da modalidade, recebiam 2-3 estímulos de treino de força (variando entre qualidades de força máxima, resistência de força e potência) de acordo com a caracterização do microciclo, sempre com respeito a progressão da competência de movimento, identificação de necessidades individualizadas, gestão da carga de treino (nomeadamente através do volume total) e principalmente as necessidades específicas da modalidade e as constrições do calendário competitivo. Veja na figura 2 um exemplo de construção de planificação semanal, nomeadamente no desenvolvimento das qualidades físicas.

Figura 2 Exemplo para a organização semanal (1 Jogo) dos conteúdos físicos de treinamento para atletas em formação (>U15-U20). *Sessões programas em períodos opostos ao treino de campo quando possível.

Em resumo quando consideramos programas de formação de atletas, busca-se que essa formação seja integral, não negando ao atleta a participação em treinos com diferentes orientações e diferentes direções de treinamento, não apenas com treinos específicos, mas também treinos mais generalistas integrados ao programa de treinamento de futebol, onde a preocupação passa por desenvolver e potencializar o atleta, não apenas o jogador de futebol.

Referências

Carling C, Le Gall F, Malina RM. Body size, skeletal maturity, and functional characteristics of elite academy soccer players on entry between 1992 and 2003. J Sports Sci. 2012;30(15):1683-93. doi: 10.1080/02640414.2011.637950. Epub 2012 Jan 31. PMID: 22292471.

Clemente FM, Afonso J, Sarmento H (2021) Small-sided games: An umbrella review of systematic reviews and meta-analyses. PLoS ONE 16(2): e0247067. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0247067

Meyers RW, Oliver JL, Hughes MG, Lloyd RS, Cronin JB. Influence of Age, Maturity, and Body Size on the Spatiotemporal Determinants of Maximal Sprint Speed in Boys. J Strength Cond Res. 2017 Apr;31(4):1009-1016. doi: 10.1519/JSC.0000000000001310. PMID: 26694506.

Lloyd RS, Radnor JM, De Ste Croix MB, Cronin JB, Oliver JL. Changes in Sprint and Jump Performances After Traditional, Plyometric, and Combined Resistance Training in Male Youth Pre- and Post-Peak Height Velocity. J Strength Cond Res. 2016 May;30(5):1239-47. doi: 10.1519/JSC.0000000000001216. PMID: 26422612.

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Estruturas pedagógicas informais e a formação do futebol na história

O pontapé inicial será junto ao do futebol na sua fase moderna, isto é, na segunda metade do século XIX quando suas regras foram padronizadas, permitindo a realização das primeiras competições em âmbito nacional e no primeiro momento em um âmbito legal o rompimento brusco com o rúgbi.

O futebol até a segunda metade do século XIX era “um arranjo de códigos tribais mais ou menos semelhantes preferidos pelas diferentes escolas públicas” (Giulianotti, 2002). Foi primeiro com a fundação da Football Association (FA) em 1863 e posteriormente com o rompimento institucional com o rúgbi em 1871 e a fundação da Rugby Football Union que o futebol toma uma forma reconhecível com o quê conhecemos hoje.

A partir da década de 1870 as instituições de ensino começaram a dar espaço para clubes formados também por comunidades religiosas, associações de classe média e operárias. É importante lembrar que se trata de um período em que o Império Britânico era aquele que “nunca dormia”, tão vasta era suas dimensões, com territórios em todos os cantos do planeta. Sem o poderio dos britânicos, é difícil imaginar o futebol alcançando o mundo inteiro no século XIX e se consolidando, afinal os ingleses não dominavam apenas territorialmente, mas também através da cultura. Entender isso é fundamental para perceber um papel cultural dos clubes aristocratas ingleses.

Retornando mais uma vez ao Giulianotti, ele aponta o zelo missionário de Charles W. Alcock, secretário da FA por 25 anos. Com ele, o “jogo do drible” foi introduzido por toda a Grã-Bretanha. O drible faz referência ao dribble em inglês, que faz referência mais à condução da bola do que a algum tipo de truque com a bola para superar adversários.

A ideia de jogo era que o jogador em posse da bola a conduzisse o máximo possível para frente, com o passe sendo a última alternativa. Assim também eram as regras na Inglaterra; a regra 6, precursora da lei do impedimento, até 1866 só permitia passes para os lados e para trás. Em 1866 foi introduzido o impedimento mais similar ao atual, mas com 3 jogadores ao invés de 2 para dar condição. Conduzir solitariamente, encarando os vários adversários era sinal de masculinidade, qualquer ideia relacionada à defesa e a passe era considerada subalterna e afeminada.

Nas escolas públicas, espaços de educação formal reservado às elites, eram repreendidos aqueles que raciocinavam demais. Jogar futebol era abaixar a cabeça e correr para frente.

“Um jogador de primeira classe (…) jamais perderia a bola de vista, ao mesmo tempo mantendo sua atenção dedicada a vislumbrar os espaços nas linhas inimigas, ou qualquer ponto fraco na defesa que possa dar a ele uma chance favorável de chegar ao cobiçado gol adversário.” (The Times, 1870)

Junta-se a isso às ideias de Muscular Christianity, originário da Inglaterra no mesmo século XIX e que reforçava o patriotismo, disciplina, masculinidade e beleza através do atletismo, com o objetivo de controle total do corpo dos garotos.  Acreditava-se até que a prática dos esportes impediria os jovens de “se tocarem”.

Era um jogo extremamente físico, um kick and rush puro, repleto de duelos individuais que exigiam muita força, resistência e velocidade. A valorização da vitória do indivíduo. Essa era a base da estética aristocrática do Império Britânico: o homem britânico superior. Quando um clube aristocrático derrotava um clube operário era uma forma de defender os valores da elite, e quando um time inglês derrotava algum estrangeiro em alguma excursão, era a vitória do Império, reforçando para o resto do mundo a superioridade física e de valores dos ingleses. Através do futebol tinha-se a “reprodução da estrutura das relações de força e das relações simbólicas entre as classes” (Bourdieu, 1982).

***

Este sistema pedagógico informal – vamos assim chamar – não era o único na Grã-Bretanha, apesar de ser o de maior predominância por uma relação de poderes entre classes. Podemos fazer uma divisão entre as regiões de predomínio de cada sistema. No sul, próximo da capital Londres e onde havia maior concentração dos poderes e de escolas públicas, o predomínio era deste sistema já visto. Ao norte, e em especial na Escócia, onde se concentravam cidades industriais e por consequência, muitos operários, marinheiros e trabalhadores livres, as realidades eram outras.

Os trabalhadores jogavam o jogo que Kant poderia chamar de desinteressado, ou seja, ao contrário dos homens da religião e aristocratas, a classe operária não se preocupava em – intencionalmente – passar conjunto de valores adiante que fugissem do âmbito do jogo. De certa forma era o jogo mais lúdico, que se preocupa com as preocupações de jogo. Em seus momentos de folga no trabalho, queria jogar e óbvio, ganhar seus jogos assim como os aristocratas também queriam ganhar, mas sem se preocuparem em propagarem valores através do jogo.

Daí surgem as primeiras táticas; não só os primeiros esboços para esquemas táticos diferentes (saindo do 1-1-2-7 para 1-2-2-6 e 1-2-3-5) mas também a preocupação em técnicas e movimentos táticos que buscassem melhorar o rendimento da equipe visando a vitória. Surgiu o jogo do passe, em contraste ao jogo do drible (ou jogo da condução), com jogadores buscando se aproximarem para fazerem um jogo associativo.

Os jogos de futebol entre os trabalhadores eram o momento do ócio. Não entenda este momento um simples “não fazer nada”, associando-o à vadiagem. O ócio é o momento do fazer nada, mas que é também fértil para reflexão e criação, ou lembrando Luiz Antônio Simas, um momento de síncope; quando há uma quebra repentina de ritmo, para então recomeçar a batucada, em outro ritmo. Muitas formas de interpretar o mundo e de se organizar (como o surgimento de sindicatos) surgiram com uma bola sendo a razão das pessoas se juntarem.

Não é de se estranhar que deste meio venha o jogo do passe e em contrapartida o jogo da condução tenha também sua origem distinta. Em ambos os casos, suas condições materiais de existência fomentavam um determinado habitus, isto é, “esquemas de percepção, apreciação, e ação adquiridos pela prática e colocados em obra no estado prático” (Bourdieu, 1972). A internalização e naturalização de símbolos implica em entendermos que a cultura é mais do que um reflexo mistificado e abstrato da realidade material, mas também instância constituinte da realidade. O habitus é, portanto, “necessidade feita virtude” (Bourdieu, 1972).

Na Escócia as regras permitiam desde muito cedo os passes sejam para onde fossem. O impedimento no início já considerava dois adversários como estamos habituados, mas somente era impedimento nos últimos 15 metros do campo de ataque. A primeira partida entre as seleções de Inglaterra e Escócia aconteceu em 1872 em Londres, os escoceses já eram familiarizados com o jogo do passe. Assim, dominaram os ingleses nos primeiros anos do confronto, com 10 vitórias e apenas 2 derrotas nos primeiros 16 jogos. Depois o profissionalismo foi tomando forma, jogadores escoceses iam jogar na Inglaterra e os ingleses foram se adaptando – ao menos parcialmente – ao jogo do passe e começou a ser dominante nos confrontos contra os escoceses. Um pouco disso é visto na série The English Game, disponível na Netflix.

Até hoje estruturas pedagógicas informais formam os mais variados jogadores, que ao mesmo tempo que preservam suas individualidades e maneiras próprias de interpretar o seu entorno, o fazem a partir de um conjunto de relações, com cultura própria. O futebol é um fenômeno que não permite a ausência de significados, às vezes eles estão explícitos e podem gerar simpatia ou repulsa, outras vezes estão em um simples passe ou drible, mas estão lá.

Bibliografia

Bourdieu, P. (1972). Esquise d’une théorie de la pratique. Genêve: Droz.

Bourdieu, P. (1982). A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.

Giulianotti, R. (2002). Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria.

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Governança corporativa -A auditoria externa

O tema abordado neste quarto artigo da série sobre Governança Corporativa no Futebol é a auditoria externa; discutiremos assuntos relacionados às funções e perfil do auditor, etapas, pontos positivos e negativos do processo.

O PAPEL DO AUDITOR EXTERNO

O auditor externo tem como seu principal papel identificar a real situação do clube, independente de balancetes e demonstrativos financeiros, e averiguar se os resultados são condizentes com a realidade.

O processo de divulgação de informações é uma garantia fundamental para assegurar a confiança dos grupos de interesse internos e externos no trabalho feito pela gestão de um clube.

Para garantir um processo adequado de auditoria externa, é necessário buscar profissionais qualificados, competentes, independentes e isentos de qualquer relação com o clube.

Cabe ao auditor portanto revisar métodos e sistemas internos de controle para buscar formas de aperfeiçoar, sugerindo melhorias, apontando falhas e otimizando o processo através de relatório.

Recomenda-se que no processo exista rotatividade periódica entre os responsáveis pela realização da auditoria para que dessa forma o processo mantenha-se isento e independente, em um ciclo seguro para todas as partes interessadas.

A auditoria interna também faz parte do processo de auditoria externa, de forma que ela se faz um instrumento importante de controle, deve ser realizada por um comitê fixo que atua de forma independente da auditoria externa, mesmo sendo recomendável a troca de informações entre ambas.

O parecer deve ser sempre elaborado e apresentado de forma clara e objetiva, contendo o escopo, tarefas executadas, ponto de vista e a responsabilidade assumida pela auditoria independente.

Via de regra, as recomendações da auditoria externa devem ser reportadas diretamente ao conselho de administração, que em sequência deverá encaminhar as recomendações aos departamentos responsáveis e conselhos do clube.

Visando assegurar a independência dos auditores nunca devem haver serviços extras prestados pela mesma empresa, como consultoria financeira ou de gestão, por exemplo, em paralelo ao trabalho de auditoria.

IMPACTO DA ESCOLHA DE AUDITORES EXTERNOS PARA PARCEIROS COMERCIAIS, INVESTIDORES E ACIONISTAS:

Os impactos na escolha de auditores externos podem ser divididos em positivos e negativos, com resultados distintos para o auditado:

IMPACTOS POSITIVOS:

-Análise dos demonstrativos: A análise é capaz de apontar possíveis falhas e indicar a melhor maneira de corrigi-las.

-Melhoria dos controles internos: Por não participar do dia a dia do auditado, o auditor é capaz de verificar de forma mais crítica

os processos, apontar falhas nos registros e através de relatórios apresentar resultados para os gestores da empresa poderem reavaliar

os métodos utilizados e buscarem o aperfeiçoamento qualificando os controles internos e prevenir erros e fraudes.

-Facilidade na obtenção de crédito: O documento assinado pelo auditor contábil legalmente habilitado induz

credibilidade para a organização junto ao mercado de capitais, pois demonstra transparência nos procedimentos. Assim, fica mais fácil

acessar fornecedores e instituições financeiras para a obtenção de empréstimos e condições favoráveis de pagamento.

-Segurança financeira: As análises sistemáticas procedidas nos dados contábeis e financeiros da empresa tendem a inibir a prática futura de atos lesivos a empresa. A auditoria confere segurança ao auditado na medida em que reduz-se os riscos de erros, evitando-se por exemplo, notificações ou autuações do fisco por falhas nos cálculos e recolhimentos dos tributos. Essa segurança garante, automaticamente, confiabilidade do mercado externo, facilitando a atenção de investidores.

-Governança Coorporativa: Administrar com números confiáveis favorece à tomada de decisões assertivas. Com informações detalhadas em mãos e com o aval de um auditor externo, os gestores da empresa conseguem entender melhor o próprio negócio, ampliar a visão e visualizar até mesmo novas oportunidades de investimentos.

Com uma boa auditoria externa periódica torna-se mais fácil o planejamento da empresa com vistas à competitividade e à sustentabilidade do negócio, favorecendo assim um ambiente de segurança para gestores e demais envolvidos ou que dependem da entidade.

IMPACTOS NEGATIVOS:

-Fraude e erro: Presente em quase todos os segmentos, fraudes e erros são os maiores impactos negativos possíveis dentro de uma auditoria externa.

A fraude pode ser caracterizada por manipulação, falsificação ou alteração de registros, apropriação indébita de ativos e diversas outras formas.

-Adequação de evidência: Compreende as informações utilizadas pelo autor para a chegar às conclusões em que se fundamentam a sua opinião. A quantidade necessária da evidência é afetada pela avaliação do auditor dos riscos de distorção relevante e também pela qualidade da evidência da auditoria, sejam elas físicas, documentais, analíticas ou testemunhais.

-Isenção: É ilusório considerar que um auditor chega a um processo de auditoria ISENTO de informações; as informações chegam através de diversos canais previamente mesmo que sem premeditação, através da mídia por exemplo. Além disso, no caso do Futebol, caso o auditor externo tenha ligação com o clube, seja como torcedor ou outras questões pessoais, o processo pode resultar em considerações tendenciosas, positiva ou negativamente.

-Práticas não escrituradas: As práticas esportivas no Brasil aceitam medidas que não podem ser escrituradas, por exemplo o pagamento de “mala branca”. Não existe previsão legal expressa sobre a forma registrar precisa e corretamente operações desse tipo: como registrar quem paga e quem recebe?

-Real função: Por processos de auditoria não seguirem padrões exatos, pode ser vago considerar o que é uma auditoria, a quão fundo ela deve ir e até mesmo para que se determine se trata-se de um processo simplesmente para saber “se a conta fecha” ou voltado para investigar detalhadamente veracidade dos lançamentos contábeis.

CASOS OCORRIDOS NO EXTERIOR:

O principal caso de fraude contábil ocorrido no exterior nos últimos tempos envolveu a gigante norte-americana do setor energético Enron Corporation, no ano de 2001.

A empresa atuava no setor de energia, gás natural e petróleo, tendo participações em várias entidades empresariais pelo mundo todo.

O caso abalou seriamente a credibilidade do público investidor nas informações contábeis prestadas pelas companhias e no desempenho dos auditores independentes.

As práticas desleais de contabilidade envolvendo a Enron, envolveram:

-Lucros artificialmente inflados: Os executivos da empresa usualmente escondiam despesas da demonstração de resultados e avaliavam ativos a preços artificiais para aumentar os lucros.

-Utilização de sociedades de propósito específico(SPE) para alterar valores contábeis: Diretores da Enron criaram um complexo sistema de transferência de ativos e passivos para SPEs, de forma a esconder do público investidor créditos de alto risco e passivos que levantariam suspeitas sobre sua solvabilidade, de forma que a consolidação de balanços se tornasse desenecessária.

CASOS OCORRIDOS NO BRASIL:

Um dos casos ocorridos no Brasil é o do Banco Nacional.

Por vários exercícios a instituição financeira lançou créditos em sua contabilidade de maneira fraudulenta.

O procedimento foi confirmado com a escrituração de centenas de contas-correntes negativas(que ficaram conhecidas como “contas 917”, em nome de clientes que não tinham mais relação financeira com o banco), que totalizaram bilhôes em lançamentos de operações de crédito inexistentes, gerando receitas e lucros artificiais, escondendo prejuízos.

A auditoria contratada responsável pelas demonstrações contábeis do banco foi condenada pelo Banco Central ao pagamento de multa, além da suspensão do registro profissional e processo criminal do sócio responsável pela auditoria.

CONCLUSÃO

A auditoria externa tem como objetivo principal demonstrar a correção e a integridade dos registros e informações contábeis e, assim sendo, envolve diversos players, inclusive investidores.

É dever da auditoria externa além de atestar a credibilidade, implementar ou orientar ações corretivas para minimizar erros ou prevenir falhas, servindo para fazer um trabalho a médio e longo prazo de prevenção de perdas, pela correção de procedimentos, antes que estes se tornem passivos.

O trabalho que o auditor externo, por não estar sujeito as pressões políticas dos clubes, poderá contribuir de forma importante ao realizar processos eficazes e transparentes no desempenho de sua função em relação a uma organização auditada.

Cabe ao auditor e ao processo tornarem-se instrumentos úteis, íntegros e imparciais do processo.

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A estruturação de uma pré-temporada

Crédito imagem: Ricardo Duarte/SC Internacional

Introdução

Objeto de pesadelo e ao mesmo tempo de sonho de preparadores físicos e treinadores. Reclamado por muitos, dominado por poucos. Essa é a pré-temporada! Período em que se espera construir a performance que guiará o plantel ao longo de toda a competição, com suas peculiaridades, necessidades e desafios.

A medida que o desporto profissional evolui, parece cada vez mais impossível acreditar em um período de preparação e a sua eficácia na performance a longo prazo, sobretudo nas modalidades coletivas como o futebol. Podemos buscar a periodização clássica e tradicional para nos confortar com esperanças de adaptações em 4-8 semanas, mas de fato pouco encontraremos de realidade naquilo que está presente na teoria.

A Periodização Tática ou o “Entrenamiento Estruturado”, de Frade e Seirul-lo respectivamente, ou a Football Periodisation de Verheijen parecem nos oferecer respostas ou sugestões para construirmos nossa planificação, sobretudo baseadas nas demandas específicas do jogo e nas qualidades e capacidades necessárias para o desenvolvimento integral dos jogadores, sejam eles profissionais ou em processo de formação.

A realidade para nós profissionais é uma só: Temos pouco tempo (cada vez menos), nossos calendários são congestionados desde o princípio (ao menos espera-se que sejam) e precisamos apresentar soluções, sob pena de passarmos 30 dias a preparar uma equipe para o próximo treinador.

Neste post pretendo discutir algumas questões pertinentes e que conjugam a periodização clássica com a periodização/planificação contemporánea das modalidades coletivas.

Entendendo o Período de Preparação

Ao iniciarmos a temporada, é preciso levar em consideração uma já esperada e bem conhecida quebra no rendimento e queda nos índices físicos dos jogadores (i.e. capacidades de força e metabólica, aumento da % BF) e já termos conhecimento de quantas semanas teremos até o início da competição. Nesse período é preciso que se construa uma espécie de “introdução” para o trabalho que virá pela frente, ou seja, quais serão os elementos que nos guiarão para o início da temporada e sua continuidade.

Nessa introdução, contamos com um breve delineamento da nossa equipe, estruturamos um plano macro de como pretenderemos integrar as 4 principais áreas da preparação (técnica, tática, física e psicológica) e quais serão as nossas métricas para as famosas frases como: “Estamos há 80% da performance que esperamos atingir”. Como parte da nossa responsabilidade, mas também é preciso inserir e termos de forma muito clara ao acesso de todos quais serão os principais objetivos para o nosso plantel, para os nossos atletas individualmente e para o nosso clube.

Apesar de complicado – por se tratar de uma modalidade coletiva competitiva e impaciente – é preciso tentarmos conciliar o que se encontra na literatura ou em nossos casos recentes e estabelecer “preditores de performance”. Uma boa forma de se pensar nisso é realizar uma engenharia reversa do que foi feito nas outras temporadas e os índices obtidos com esses planejamentos, obviamente levando em consideração as diferenças de contexto e individualidade dos atletas.

Após estabelecermos nossos objetivos e relacionarmos isso com todas as informações já conseguidas (onde se incluem testes de performance mais habituais utilizados na modalidade), é preciso entender ou estabelecer qual modelo de planificação de treino iremos utilizar. Aqui começamos a retirar um pouco da imprevisibilidade, com algum toque de sorte, daquilo que é a performance desportiva.

Decisões simples como “mapear” o calendário para períodos mais congestionados, estabelecer percentagens de intensidade ou volume por dia da semana nos diferentes períodos da temporada ou até mesmo construir um modelo de micro(morfo)ciclo padrão para facilitar o planejamento, podem nos ajudar não a garantir o sucesso competitivo, mas a controlar um pouco do que parece incontrolável.

“O modelo de preparação é uma sinopse de todo o plano anual de treinamento. Descreve as principais qualidades quantitativas e parâmetros utilizados na formação e o aumento percentual por parâmetro entre os planos anuais atuais e anteriores. O treinador deve vincular o modelo de preparação a toda a estrutura do plano anual e seus objetivos. Um treinador experiente poderia prever a duração e o número de treinos necessários para desenvolver as habilidades e habilidades necessárias para alcançar os objetivos.”  

Bompa e Haff

É preciso clarificar que nenhum programa ou plano de periodização e planificação é 100% exato, daí por exemplo os novos fundamentos de planificação contemporânea como o sugerido por Paco Seirul-lo, em que a planificação deve ser ativa e se estender por um máximo de 4 semanas, de forma dinâmica e retroalimentada pelas informações de rendimento, adversários ao final de semana e necessidades colocadas pelas alterações no plantel ou outros fatores.

No entanto, é inegável que independente do modelo que utilizemos é preciso ter um plano. Uma excelente maneira de se pensar não apenas a nossa pré-temporada ou o plano de treinos ao longo da semana, é estabelecermos uma linha de evolução a partir da “Lógica Orgânica dos Sistemas Energéticos” ou “Lógica Orgânica dos conteúdos de treinamento”, uma excelente sugestão por parte do autor Forteza de La Rosa, que também identificou limitações na periodização tradicional e o seu uso para modalidades coletivas (assim como Frade e Seirul-lo).

Essa lógica de prioridades parte do princípio de se construir bases de treinamento até o ponto onde é possível e seguro desenvolver as nossas capacidades ou direções condicionantes e determinantes específicas da modalidade. Essa lógica, construída numa perspectiva metabólica, sugere que as nossas bases (resistência aeróbica) ocupem um maior volume em um primeiro momento da preparação, até que se possa evoluir até a potência aeróbica, resistência e potência anaeróbica e finalmente a potência anaeróbica alática. Em uma modalidade onde o metabolismo é misto, parece ser complicado construir uma planificação que atenda a isso, mas através de microciclos estruturados é possível estabelecer prioridades ao longo das semanas e permitir uma boa “brincadeira” com os princípios de estímulo, fadiga e adaptação.

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Um fio de esperança

Crédito imagem: FIFA.Com

A busca utópica pelo atalho ao sucesso esportivo no futebol brasileiro ganhou um novo capítulo ao ser registrada como alternativa oficial no regulamento da principal competição nacional a partir de 2021. Notícia que chamou a atenção do mundo, desde os vizinhos sul-americanos (Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai), passando por EUA, Alemanha, Inglaterra, França, Espanha, Portugal e até mesmo África do Sul. Especialmente na Europa, a atual narrativa aponta que o Brasileirão poderá servir como um estudo de caso a ser replicado por outras ligas se a implementação da nova regra for bem-sucedida. Chance de acesso à credibilidade!

Tal como qualquer tema polarizador, controverso ou polêmico, o debate (comumente opinativo) em torno das trocas de treinadores costuma liderar as divergências de quem acompanha ou comunica a modalidade à opinião pública no país, seguido pelo calendário de jogos e pela arbitragem.

Desvinculado de achismos (a favor ou contra a escolha do treinador A em detrimento do treinador B no clube X), o primeiro estudo científico que configuramos sobre as mudanças de comando técnico no futebol brasileiro contextualizou o cenário nacional para investigar as causas e as consequências das decisões recorrentes (e absurdamente fora de qualquer parâmetro comparativo internacional) que imperam na Série A desde o seu primeiro ano de implementação no formato de pontos corridos (2003) até a temporada 2018. Por meio da inteligência analítica, equacionando cálculos econométricos sobre uma amostra de 6506 jogos, 264 treinadores e 594 trocas entre efetivos e interinos (paralelo a todas as não-mudanças), dissecamos as evidências nos mínimos detalhes ao identificarmos os principais critérios que norteiam a tomada de decisão dos dirigentes, bem como a ineficácia das trocas no Brasil (aliada a necessidade de valorização primordial do tempo de trabalho de um novo líder técnico junto ao seu novo grupo de comandados).

Aos interessados, é possível escolher entre a versão do estudo em português e o artigo científico original em inglês (publicado oficialmente pelo jornal Sport, Business and Management em dezembro/2020).

Atualizando os números gerais (também conhecidos como estatísticas descritivas na academia), a temporada 2019 testemunhou um total de 33 mudanças e 41 treinadores durante o Brasileirão (cuja composição inclui 13 nomes inéditos no formato de pontos corridos). Já a temporada 2020/21 (Covid) apresentou um total de 42 mudanças e 55 treinadores somente na Série A (incluindo 17 nomes inéditos no sistema).

Ou seja, o volume absoluto (contabilizando todos os efetivos e interinos) subiu para 669 mudanças em 18 temporadas. A média de trocas continua em 37 por temporada. A volatilidade no cargo durante a competição permanece crônica entre todos os 294 treinadores e todos os 43 clubes que já participaram da Série A desde 2003 até 2020/21. E o treinador de futebol segue trabalhando para tentar sobreviver pouco mais de 2 meses durante o Brasileirão ou 6 meses durante o ano (salvo exceções).

Em suma, muito se mudou, porém nada mudou. Aliás, muito se troca, mas nada muda.

Naturalmente em um país com baixo investimento em educação, a ciência, a pesquisa e o desenvolvimento enfrentam maiores desafios de aceitação e até mesmo de compreensão, pois confrontam avaliações objetivas com construções subjetivas. Em outras palavras, a evidência é apresentada ao achismo, causando um desconforto inicial devido à quebra de paradigmas ou pré-conceitos.

Aproveitando o raciocínio, vale esclarecer como funciona a autonomia do esporte quanto ao seu regime, condução e resolução.

Um jogo de futebol é conduzido por regras que tornam possível a sua prática como modalidade esportiva. Já uma competição (seja um campeonato, torneio, liga, copa) é conduzida seguindo um regulamento em comum acordo entre os clubes participantes (ou federações, confederações). Dentro desse cenário, eventuais resoluções de conflito são tratadas em tribunais de justiça desportiva, cuja instância máxima é o CAS (Tribunal Arbitral do Esporte) na Suíça.

A lei trabalhista, assim como a legislação que rege cada país, permanece soberana no estado. Com base nisso, modificações ou inovações em regulamentos esportivos devem sempre considerar ajustes que não venham a infringir a relação social entre empregado e empregador na atividade econômica.

Portanto, no caso de uma medida preventiva que tente frear as mudanças de comando técnico durante o Brasileirão, trata-se de uma regra e não de uma lei. E isso é viável e pode ser autorizado pela autonomia do esporte.

Tal regra define que os clubes pertencentes àquela competição chegaram ao comum acordo de limitar o registro de treinadores durante a vigência do campeonato. Os clubes permanecem livres para contratar e demitir o volume de treinadores que bem entenderem e quiserem ao longo do ano, porém durante o campeonato nacional (do ano sob análise) fica permitido o registro máximo de X treinadores por equipe. Igualmente aos treinadores, que permanecem livres para assinar ou romper contratos de trabalho com o clube que bem entenderem ao longo do ano, mas cientes de que não haverá registros ilimitados durante a vigência da competição nacional no ano sob análise.

A mesma essência do raciocínio se aplica à limitação no registro de jogadores, à limitação no número e tipos de profissionais autorizados a acessar o banco de reservas, à limitação do mando de campo e aos demais componentes do regulamento da competição. Isso acontece pois o esporte (neste caso o futebol) é representado por um caráter simultâneo competitivo e colaborativo. Não há jogo de futebol com uma única equipe, tampouco há campeonato com uma única equipe.

A parte mais importante do progresso é o desejo de progredir” – Sêneca

É verdade que matematicamente, contudo, a nova regra não terá condições de assegurar uma alteração do histórico até o momento, pois se os 20 clubes participantes do Brasileirão exercerem a alternativa do regulamento nas duas ocasiões autorizadas (uma troca efetiva e uma troca interna), chegaremos ao volume de 40 mudanças de comando ao fim do campeonato (sem contabilizar eventuais saídas voluntárias dos treinadores). Logo, se a média desde 2003 é de 37 trocas por temporada, a nova regra mantém o espaço aberto para replicar as alternâncias em mais um ano de Série A.

Mesmo assim, podemos enxergar a medida preventiva com otimismo, pois a nova regra exemplifica uma alternativa de curto prazo para tentar frear a oscilação dos líderes técnicos sobre o futebol que se tenta praticar nas camadas mais altas do Brasil, servindo de exemplo a divisões inferiores. Um sinal de esperança, ainda que mínimo e cheio de lacunas, mas que pode (e até deve) ser comemorado.

Mesmo se não houver sensibilidade na implementação logo no primeiro ano, já visualizamos um passo adiante por estimular discussões que vão além do treinador (independente se ele for o sujeito A, B ou C). Apenas com o anúncio da medida já é possível testemunhar que todos os atores que participam da cadeia de valor do futebol nacional precisam colocar a mão na consciência para que o nível técnico, operacional, esportivo possa recuperar o caminho de prestígio no país.

  • Torcedores – ao cobrarem transparência dos dirigentes de seus clubes de coração; ao repensarem a pressão desproporcional que se volta ao treinador em fases desfavoráveis; ou até mesmo ao escolherem friamente por onde e como consumir conteúdo de mídia esportiva.
  • Dirigentes (estatutários e executivos) – ao atenderem de forma profissional os processos de seleção, monitoramento e transição de seus treinadores e comissões técnicas durante e entre temporadas; ao avaliarem o legado deficitário (financeiro e técnico) que pode permanecer na instituição; e também ao identificarem os pontos de melhoria com o aprendizado da nova regra.
  • Jornalistas (e demais profissionais ligados à mídia esportiva) – ao redirecionarem o holofote e a discussão aos responsáveis pela volatilidade de treinadores; ao reconhecerem que também contribuem com as decisões das trocas recorrentes por meio de estímulos verbais e audiovisuais na imprensa e em plataformas de rede social; e também ao auxiliarem na crítica construtiva pelo aprimoramento da medida preventiva de curto prazo, aliada a conscientização e reeducação de longo prazo.
  • Treinadores – ao abraçarem a oportunidade de agir com mais estratégia e cuidado nas escolhas de carreira; ao defenderem o posicionamento da classe na prática de forma coletiva, a fim de potencializar a profissão no país; e também ao evitarem saídas voluntárias durante a temporada, mesmo quando a crônica do senso comum apontar que esse seria um caminho normal e aceitável.

Vanderlei Luxemburgo no Roda Vida da TV Cultura em 1995

O futebol brasileiro ainda se apresenta como especulativo. Antes mesmo de ser imediatista ou resultadista, especula-se vitórias, títulos e campanhas com orientação a expectativas desproporcionais à realidade que traz circunstâncias muito distintas, originando frustrações desnecessárias. Mas é possível mudar essa postura.

Novas ações podem gerar novos hábitos, que por sua vez podem influenciar gradativamente um novo comportamento. E se mudarmos o comportamento, teremos uma nova cultura com progresso estruturado.

Nesse raciocínio, medidas preventivas podem combater o senso de urgência no curto prazo, aliadas a uma conscientização e reeducação em cadeia no longo prazo, ouvindo as críticas construtivas de quem se opõe ou levanta dúvidas, a fim de experimentar e vivenciar ações progressistas em um processo democrático.

Nada vai mudar drasticamente da noite para o dia, mas testemunhamos, enfim, um fio de esperança!

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Epistemologias nossas de cada dia III – (inter)agir

Crédito imagem: Site oficial/Palmeiras

‘O todo é maior do que a simples soma de suas partes’

Do inatismo e do empirismo, aquelas teorias do conhecimento que sustentam numa visão paradigmática positivista, tradicional, racional e linear, já conversamos – suas mazelas e influências no ensino, aprendizagem e treinamento do futebol, ainda no Século XXI. Falemos agora do interacionismo, a corrente epistemológica que propõe romper, sem lá muito carinho, o que estava posto e deixar guardada na gaveta as lentes de contato com o mundo que já não dão conta de nossa miopia mental e social.

 O interacionismo, seguindo o pensamento epigenético arquitetado pelo professor e epistemólogo suíço, Jean Piaget, confia que nossos saberes são constituídos não pelo dom, pelo genoma, pela quantidade de experiências ou pela racionalização técnica, mas pela qualidade das relações. Conhecimento é produto da interação. Somos, os humanos, seres essencialmente relacionais. Preciso do outro para aprender algo e o outro precisa de mim. Carecemos e dependemos uns dos outros e do meio, qualquer meio, para viver.

A não ser que seja um ou uma eremita, desconfio fortemente que você há de concordar das últimas três afirmações do parágrafo acima. Todos e todas somos interacionistas, porque nos comunicamos, agimos, nos relacionamos e ressignifcamos os ambientes que constituem nossas vidas e a nós mesmos. O que sou hoje é diferente do que fui ontem, que, por sua vez, será diferente do que serei amanhã. Óbvio, até demais. Mas raciocínio necessário para evidenciar que o interacionismo não é o futuro, mas constitui o presente e foi, ainda que sem tanta consciência, fundamental ao passado.

Ocorre que ao conceber tão bem as relações sujeito-sujeito e o sujeito-meio, mais ainda à medida em que estudiosos como Frank Capra, Thomas Kuhn e Edgar Morin jogavam luz ao paradigma emergente e contra-positivista, o interacionismo pressupõe descontrole e imprevisibilidade, termos estes que trazem calafrios às classes economicamente dominantes, que, em favor da manutenção de certos privilégios, não se furtaram em patrocinar o ranço ao que não pode ser manejado sem restrição aos ambientes educacionais e, evidentemente, ao esporte, principalmente ao de alto rendimento. Não à toa, o pensamento empirista cumpre há, no mínimo, três décadas sua função de antídoto à fuga de ordem: manipula comportamentos, cria conteúdos-padrões, estabelece relações hierarquizadas, enfatiza a técnica, a memorização e a objetividade em nome do resultado.

Ao pensarmos, todavia, o esporte e, em específico, o futebol, como manifestações regidas pelo ato de jogar, temos uma enorme e custosa contradição. O jogo, por natureza, é autotélico, imprevisível, irredutível e caótico – chancelaram estudiosos como Roger Callois e John Huizinga. Porque nos sentimos desafiados, jogamos. Por não ter certeza dos quês, comos e quandos de uma partida, nos envolvemos com o jogo. O jogo encontra sentido na não linearidade nas relações que eu, que jogo, tenho com meus colegas de equipe, com o terreno de prática, bola, adversários, arbitragem, comissão técnica, jornalistas, torcedores, dirigentes e, claro, comigo mesmo. É, portanto, representação instintiva do interacionismo. 

Ainda assim ou por isso, foi – e permanece sendo – domado pelo tecnicismo empirista. Há, no futebol, uma resistência significativamente maior à autocrítica em relação aos contextos de formação escolares, por exemplo, para a aplicação de didáticas e metodologias de treinamento, que, a partir do jogo, evoquem o interacionismo. O esporte-bretão é resistência, sim – mas trata-se de um resistir nem sempre adequado às lentes de contato da ‘moda’ no Século XXI.

Virou, o futebol, refúgio de valores tóxicos, sejam morais, éticos, sociais, educacionais e econômicos. Ali, são mantidos e reforçados a naturalização do machismo estrutural e declarado, o racismo, a objetificação humana, o desprezo com o próximo. O ópio do povo se disfarça em privada legal para excretar, sem grandes ressentimentos, ódios e frustrações internas, suavizados por discursos passionais: ‘sempre foi assim’, ‘é dinâmico’, ‘errou, sai’, ‘perdeu, troca’.

Nem surpreende, portanto, que até chefes de estado encontrem, no futebol, o eco ardiloso e necessário para que certas narrativas continuem a sustentar o discurso retrógrado de projeto de poder de natureza medieval e anti-vida. Vale tudo – e nem essa expressão escapou do complemento tóxico – para reiterar a não afeição à mudanças, a algo mambembe, míope, que não dá conta da inteireza do ser humano. Mas o que é a inteireza humana perto de três pontos suados ou o fim de um jejum de títulos incômodo? Meu time acima de tudo, resultado acima de todos.

Tal reflexão é necessária, porque o pensamento interacionista, ao derivar do paradigma emergente, é primordial na contraposição ao tradicionalismo. O que não significa que ele, o interacionismo, seja imune às limitações de dado contexto – e muito menos, que abra mão do produto final, o resultado.

Mostra, porém, que, para alcança-lo, um olhar cuidadoso – e nem sempre imediatista – aos processos faz um bem danado. Tomo emprestado a fala e o capital simbólico de quem teve, recentemente, uma importante conquista: ‘quando mais você se concentra no resultado, mais ansioso fica. Não tem sentido se preocupar se vai passar ou não numa prova: você tem que estudar para ela. Cuide do processo de aprendizagem e o resultado virá’. Recomendo, aliás, a leitura atenta de toda fala de Abel Ferreira ao excelente The Coaches Voice. Interacionismo em estado puro.

Conceber as relações entre humanos e com o próprio humano como fundamental à construção de saberes e estruturar tarefas que contemplem a essência do jogo no ensino, aprendizagem e treinamento do futebol, em detrimento do tecnicismo (e não dá técnica, como colocado na conversa anterior) são premissas básicas do pensamento interacionista. Que apesar da supracitada resistência tradicionalista, tem avançado e pautado discussões país afora, também pela promoção de espaços de debates fomentados como este entre bem-intencionados e intencionadas, no jornalismo, nos espaços acadêmicos e no próprio meio esportivo.

O futebol, afinal, (ainda) depende do humano para existir. Cuidemos bem dele. 

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Raio X da gestão do marketing nos clubes de futebol – conclusões e recomendações

Chegamos à última parte da série sobre a gestão do marketing em clubes de futebol, onde foram apresentados os resultados da pesquisa de campo realizada na tese de doutorado intitulada “Gestão do Marketing Esportivo no futebol: proposta de modelo teórico/prático para clubes profissionais brasileiros”, finalizada em maio de 2020 na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo.

Em 14 clubes que participaram da edição de 2018 da Série A1 do Campeonato Paulista foram analisados 35 itens sobre a gestão do Marketing por meio de entrevistas em profundidade com os responsáveis pela área. Dos itens analisados foi verificado que:

Foi constatada uma baixa utilização de itens ligados aos processos de execução e controle/avaliação, em muito devido aos limitados recursos e profissionais dedicados a área. A partir da análise dos clubes e da comparação com a literatura e com clubes europeus de referência no marketing os 14 clubes foram classificados em quatro níveis conforme a área de marketing:

Destaque para o fato de que dos cinco clubes classificados com um marketing bom dois disputavam divisões inferiores do Campeonato Brasileiro, de forma que o departamento de marketing era mais avançado que a parte esportiva. Já dos clubes com marketing classificado como fraco um participava de divisões elevadas do Brasileirão e outro possuía uma estrutura limitada apesar da elevada capacidade de investimento financeiro.

De uma forma geral, a pesquisa identificou que a profundidade e a qualidade da gestão do marketing nos clubes analisados não estavam relacionados à participação em competições nacionais superiores e à obtenção de resultados esportivos positivos. Os principais pontos que afetavam a gestão do marketing eram:

Diversos pontos negativos e positivos da gestão do marketing realizada pelos clubes foram identificados e analisados e deram subsídios para a elaboração de um modelo teórico/prático para a gestão do marketing nos clubes de futebol brasileiros adequado a realidade do país e adaptável a diferentes tipos de clubes. Fica evidente a necessidade de investimentos e aperfeiçoamentos para que o marketing seja devidamente gerido pelos clubes, independentemente do porte e da realidade, inclusive esportiva. Só com esses avanços é que o marketing poderá cumprir totalmente o seu papel de gerar receitas e atrair e fidelizar os torcedores/consumidores, garantindo a sustentabilidade dos clubes brasileiros.

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Governança Corporativa – Os órgãos de governança

Crédito imagem: Thais Magalhães/CBF

Neste 2º artigo da Série sobre Governança Corporativa no Futebol são abordadas questões relacionadas ao funcionamento dos principais órgãos de Governança nos clubes no Brasil. Para tanto, foram entrevistados Bernardo Accioly, que atuou como Diretor Jurídico do Clube de Regatas do Flamengo entre 2013 e 2019, e Daniel Pitta Marques, professor da CBF Academy sobre o tema e autor de tese de doutorado em administração de clubes de futebol.

Na fase inicial da entrevista, ressaltou-se a importância de que instrumentos de Governança Corporativa sejam implantados de modo a induzir melhores práticas de gestão e, como resultado, otimizar o desempenho das organizações, tanto para associações sem fins lucrativos como para sociedades empresárias. Enfatizando que a conversão para o modelo empresarial não representa a solução definitiva no que concerne ao tema em pauta, foi apontada a importância da implantação de boas práticas de Governança como forma de legitimação da atuação de dirigentes esportivos perante o torcedor, principal stakeholder dos clubes, porém comumente alijado do processo decisório.

Ressaltou-se ainda que as formas de aplicação dos instrumentos de Governança podem variar significativamente de clube para clube em função de aspectos como o modelo de propriedade, seus objetivos estratégicos e o tamanho de sua torcida. Assim, a necessidade por prestação de contas, transparência, controles internos, travas decisórias, normas estruturadas, dentre outros dispositivos de Governança, será maior ou menor conforme o tipo de organização em questão.

De forma exemplificativa, foi apresentada a diferença em relação ao preceito de “uma ação, um voto”: se para sociedades empresárias as melhores práticas apontam que o número de votos nas Assembleias Gerais seja calculado em função do número de ações do sócio, de forma proporcional portanto ao capital aportado na empresa, o mesmo não é válido para organizações no modelo associativo, nas quais não é permitida a distribuição de lucros e, portanto, não há razão para que haja diferença no peso atribuído ao voto de cada sócio.

Com relação aos órgãos de Governança presentes nos estatutos dos clubes, a pauta iniciou-se pela explanação sobre as atribuições primordiais da Assembleia Geral, sublinhando-se a importância de sua atuação para evitar a perpetuação de eventuais práticas indesejadas por parte de membros dos demais órgãos, assegurando com isso a gestão democrática da organização. Já a respeito do Conselho Deliberativo, comentou-se sobre seu papel no acompanhamento dos atos da Diretoria e a importância de que haja diversidade em relação aos grupos políticos de seus ocupantes, preferencialmente de forma proporcional aos ocupantes da Assembleia Geral.

Para acompanhamento, aconselhamento e deliberações a respeito das decisões estratégicas, faz-se necessária ainda, de acordo com o exposto na entrevista, a existência de outros órgãos de Governança, como o Conselho de Administração, que adquire também papel de guardião do sistema de Governança da organização, além do Conselho Fiscal, responsável pela aprovação das demonstrações financeiras e, idealmente, pela seleção dos auditores externos independentes e pelas atividades de compliance, entendidas como aquelas relacionadas ao cumprimento de normas e requisitos legais e estatutários.

Particularmente a respeito do Clube de Regatas do Flamengo, foram destacados dois avanços de grande relevância observados a partir de 2013 a respeito das práticas de Governança: (i) a criação da Diretoria Executiva como órgão de Governança formada por executivos remunerados a valores de mercado e por meio do qual são executadas as diretrizes definidas pelo Conselho Diretor, formado pelos Vice-Presidentes não remunerados; e (ii) as alterações estatutárias a respeito não somente da responsabilidade administrativa de Presidentes e membros eleitos dos Poderes da instituição, que passaram a partir de então a responder com o patrimônio pessoal no caso de atos lesivos aos cofres e imagem do clube, como também do planejamento e execução fiscal e orçamentária, com o objetivo de coibir práticas imorais ou ilegais de gestão.

Sobre a atuação do Conselho Diretor, que tem por objetivo definir as estratégias da organização, comentou-se sobre a quase inevitável atuação de seus membros, os Vice-Presidentes nomeados pelo Presidente eleito, em decisões executivas do dia a dia do clube, mesmo que idealmente essa participação devesse assumir apenas caráter consultivo, sem o viés temático, por área de atuação, atualmente existente. Mais além, foi apresentada a ressalva do grande número de membros e dos poucos requisitos tipicamente impostos para sócios se tornarem membros do Conselho Deliberativo, o que pode representar ameaça aos mecanismos de Governança na medida em que são estes conselheiros os responsáveis por decisões de alta relevância para a organização. Foi dada ênfase também aos riscos à boa Governança e às boas práticas administrativas advindos da participação de diretores não remunerados na gestão dos clubes, ainda que estes reúnam qualificações profissionais adequadas à função.

A parte final da entrevista foi destinada à explanação sobre os caminhos a serem percorridos pelas entidades no que concerne à Governança Corporativa, passando pela regulamentação de mercado, a cargo dos órgãos dirigentes da indústria e pela conscientização dos dirigentes esportivos a respeito da inviabilidade de um modelo de gestão formado majoritariamente por profissionais voluntários e sem dedicação de tempo integral ao clube.

Confira abaixo o áudio completo da conversa.

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