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ESCÂNDALO DAS APOSTAS TRAZ UMA ESPERANÇA

Há situações que ampliam o ecossistema tradicional do futebol e envolvem interesses de indivíduos.

As denúncias de corrupção e aliciamento de jogadores de futebol nas últimas semanas aceleraram uma discussão antiga. Ela nunca foi tão dramática, ruidosa e nociva. Isso a ponto de agora exigir uma solução enérgica, sob pena de, de novo, voltarmos a sucatear uma indústria com um potencial tão promissor e transformador como o futebol brasileiro.

Lembremos os analógicos anos 1980, quando tomamos conhecimento da máfia da Loteria Esportiva. Era um esquema criminoso de manipulação de resultados de jogos, revelado por um memorável esforço jornalístico. Na época, ficamos chocados e desiludidos, mas ainda tínhamos a esperança de que o escândalo se converteria em lições capazes de gerar corretivos edificantes. Parece que nada aprendemos.

Agora, o cenário é outro. A virtualização de atividades do dia a dia por meio de aplicativos e plataformas digitais tende a amplificar tudo rumo a uma disrupção que pode gerar caos. É exatamente o que está acontecendo com as apostas de futebol no Brasil, com potencial de contaminar as atividades desportivas como um todo.

Nesse terreno, as ocorrências são escandalosas. Porém, e por mais paradoxal que seja, nem tudo é catástrofe: o que está vindo à tona pode trazer reflexão profunda sobre ética, transparência, governança e a importância vital da educação dos atletas e de toda a indústria do futebol. Talvez o desafio maior seja reverter o processo e fazer do escândalo uma plataforma de inovação.

Parece fácil ganhar destaque na mídia usando nomes dos atletas aliciados, sem dar a mesma ênfase às pessoas e ao esquema amplo de quem os aliciou. O tema é complexo. Não pode ser abordado sem considerar fatores e agentes de um ecossistema que vai muito além dos atletas, clubes, federações, apostadores e sites de aposta. Há situações que ampliam o ecossistema tradicional do futebol e que envolvem interesses econômicos e políticos de indivíduos e do país.

É bom não esquecer que os sites de apostas geram recursos que contam muito para o governo, interessado, sem dúvida, nos tributos que o setor pode gerar. Mas não dá para assistir calado nem de forma passiva ao perigo de esses sites de aposta desvirtuarem o propósito do futebol e de outros esportes. Independentemente de ser a favor ou contra as apostas em jogos esportivos, elas existem e continuarão existindo. Chegou a hora de regulamentar de modo rigoroso. O mínimo é fazê-las observar as regras éticas; convertê-las ao compliance. É essencial que a Justiça possa operar soberana em meio ao ecossistema das apostas digitais ligadas ao esporte.

É legítimo destacar o possível avanço em campos como o aumento do foco na integridade e transparência por meio da própria inovação digital, cujas tecnologias como blockchain ou inteligência artificial podem assumir papel de fiscalização por meio de rastreamento de ativos e transações, como também a segurança para empresas, clubes, atletas e apostadores. Sobre a regulamentação, torna-se imprescindível uma revisão ampla do propósito e dos impactos das apostas. Além disso, devem-se garantir práticas justas e legais, incluindo todos os valores e agentes das transações financeiras.

A palavra “esperança” pode soar ingênua neste nada inocente século XXI. Mas se justifica ainda assim. Esperança porque tais escândalos podem trazer mudanças na forma como o futebol é administrado e regulamentado. Esperança em que eles tragam mais investimentos em desenvolvimento e formação. Esperança em que autoridades governamentais, investidores, dirigentes e líderes entendam que o futebol é potência de transformação econômica, social e cultural, portanto precisa evoluir. Grandes esperanças, por fim, porque é possível, sim, dirigir e canalizar tributos (por meio do Estado) e lucros (por meio da responsabilidade social da livre-iniciativa) para a inclusão de atletas e para a formação de novas lideranças no esporte.

Por fim, que este escândalo leve à compreensão de que, mesmo que apostas existam noutros esportes e de muitas outras formas, que elas sejam coadjuvantes, pois a razão de existir do futebol é e deve continuar sendo maior que um jogo de azar.

Texto por: Hamilton dos Santos, jornalista e doutor em filosofia pela USP, é diretor executivo da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é conselheira de empresas e sócia-CEO da Universidade do Futebol

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A PSIQUIATRIA ESPORTIVA EM JOGO: É CHEGADA A HORA DE SUA ENTRADA?

Acabo de ler a reportagem do icônico diretor de futebol, atualmente, do Fluminense. Angioni é um profissional muito importante para o futebol e traz contribuições relevantes. Num ambiente dominado pela desinformação, ignorância e preconceito, Angioni traz necessário olhar para a saúde mental e para psicologia. 

No entanto, preocupa-me o viés desse olhar. Um olhar, aparentemente, clínico. E o olhar clínico para as questões mentais, nesse momento, mais afasta a presença de psicólogos e psicólogas esportivas e psiquiatras nos clubes de futebol do que abre portas. E mais do que uma visão clínica, explicita-se uma abordagem medicamentosa. Diz Angioni em sua entrevista: “Futebol de clube já está na hora de ter psiquiatras, porque você vai precisar eventualmente dar remédio”. 

Tenho defendido, há anos, a presença da psicologia esportiva nos clubes. Não faltam motivos e argumentos que justifiquem sua presença nas comissões técnicas. Mas não defendo qualquer tipo de intervenção. A psicologia, assim como a psiquiatria, possui diferentes formas de olhar, e intervir, sobre determinado fenômeno. No caso da psicologia do esporte, pelo menos com base no que já há de estudos nesse campo de conhecimento, tenho notado que intervenções puramente clínicas mais afastam psicólogas desse espaço de intervenção do que as aproximam.

Entendo que a psicologia clinica e a psicologia esportiva não sejam excludentes. Pelo contrário, são complementares. No entanto, são papeis a serem desempenhados por profissionais diferentes, preferencialmente em espaços diferentes (um dentro e outro fora do clube). Como já afirmei em outras oportunidades, a psicologia do esporte continuará não assumindo o espaço, importância e reconhecimento que lhe cabe se continuarmos esperando que atletas se dirijam à sala da psicóloga esportiva no clube para marcar uma consulta a fim de compreender e superar problemas de depressão, pânico, alcoolismo ou outras manifestações de sofrimento psíquico.   

Se essa premissa vale para a psicologia do esporte, campo de conhecimento já em certo nível de desenvolvimento, imaginem para a psiquiatria. A psiquiatria esportiva, especialidade da psiquiatria que, por sua vez, é uma especialidade da medicina, ainda engatinha nesse sentido. Há muito para se desenvolver no âmbito das pesquisas e, principalmente, no âmbito das intervenções com o futebol. Começar dessa forma, ou seja, medicando atletas para que eles consigam lidar com a pressão extrema que recebem cotidianamente na sua prática profissional, me parece um erro. 

Comecemos ampliando e qualificando as pesquisas nessa área. Comecemos determinando os objetivos, metodologias e estratégias de intervenção no âmbito do futebol. Comecemos ampliando e qualificando os argumentos para a sua presença nas equipes médicas do futebol profissional. Comecemos apresentando aos atletas bons motivos para que eles compreendam e acreditem que a psiquiatria tem muito a contribuir com sua saúde mental e, consequentemente, com sua atividade profissional. 

Caso contrário, tendo a acreditar que a psiquiatria esportiva começará seu jogo no futebol profissional com grandes probabilidades de perdê-lo!

Texto por: Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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PREPARAÇÃO FÍSICA NO FUTEBOL: ENTRE MITO E REALIDADE

A preparação física no futebol não existe como parte da opinião pública pensa. Nem sempre quem corre mais, salta mais e tem mais força joga melhor. Em outros esportes, a maximização dos componentes físicos resulta em vitórias e recordes. No futebol, diferentemente, busca-se equilíbrio das qualidades físicas individuais para melhorar o rendimento coletivo dos times. 

Nesse cenário, a preparação física é um saber que interage com outros saberes (fisiológicos, biomecânicos, técnicos, psicológicos, táticos, nutricionais, sociais e culturais) para formar um time competitivo. A preparação física não “causa”, isoladamente, a intensidade e a velocidade de um time. Nos treinos de futebol, a preparação física não ocupa um momento isolado do resto (a pré-temporada é uma exceção a essa regra). Em outras palavras, a intensidade do time é determinada pela preparação específica e características dos jogadores – e não só pela preparação física. Conceitual e funcionalmente, o saber físico é apenas mais um componente do plano de treino, entendido na sua totalidade.

Da maneira como é imaginado pela opinião pública, o preparador físico parece um encantador, um mágico, que aplica uma fórmula que fará o time correr mais ou menos. Quando se diz “a equipe vai reforçar a preparação física” ou “a equipe está lenta, logo mal preparada fisicamente”, incorre-se nessa ideia simplista de que o preparador, por si só, tem o dom de acelerar um time ou, por incompetência, causar sua fadiga precoce. Mas as ações motrizes do jogo, e o estudo dessas ações, mostram algo diferente. O alto rendimento – o “time que corre” – depende de fatores que ultrapassam o controle do preparador físico: fatores como a inteligência e a qualidade dos jogadores, jogadores reservas com potenciais para a titularidade, a idade-média do time, as táticas aplicadas pelo treinador, o calendário, as viagens, o gramado, a relação com a torcida, e, principalmente, o plano de treino em geral. O preparo físico decorre do nível de exigências (intensidade, volume e densidade) nos treinos com bola. Não é o treino “físico” – as corridas em volta do campo, o aquecimento etc. –, mas os treinos específicos que determinam a força de jogo.

A preparação física possui, sim, responsabilidades particulares: avalia, por exemplo, a intensidade dos esforços e o tempo de recuperação em relação aos conteúdos de treinos e jogos. Também individualiza treinos de acordo com necessidades especiais de cada jogador. Mas, repito, ela não existe isolada do trabalho de preparação total, da qualidade do elenco, da sinergia coletiva, e assim por diante. O futebol, complexo e impreciso, é jogado e vivido com emoção – mas precisa ser pensado com cautela analítica, se não quisermos procurar “causas” simplistas para problemas mais profundos. Entender o futebol não é uma questão acadêmica abstrata – mas uma precondição para a melhora do rendimento e, ali adiante, para vitórias e títulos.

Texto por: Professor Elio Carravetta

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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“PENALIDADE MÁXIMA”: UM OLHAR PEDAGÓGICO

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Nestas últimas semanas, fomos surpreendidos (sic) com a divulgação dos resultados preliminares da “operação penalidade máxima”, iniciada pelo Ministério Público de Goiás, que investiga a manipulação de jogos e resultados a fim de favorecer determinados grupos de apostadores. Trata-se, de fato, da atuação de uma organização criminosa, com alguns dos seus líderes já detidos, que alicia e corrompe atletas profissionais de futebol para garantir a ocorrência de determinados eventos esportivos, por exemplo, pênaltis, cartões e expulsões e, com isso, gerar vultuosos ganhos financeiros decorrentes de apostas realizadas nas, cada vez mais presentes, casas de apostas esportivas, grande parte delas efetuadas em plataformas digitais e aplicativos.    

Como somos professores e não advogados, não nos aprofundaremos nas questões jurídicas que envolvem essa investigação. Nesse sentido, indicamos o texto escrito pelos advogados Andrés Perez e Stephanie Perez, publicado em 15 de maio no jornal Estadão[1].  Por outro lado, como somos professores e estudiosos do futebol, buscaremos tecer um olhar pedagógico sobre esse episódio. E, nesse exercício, refletiremos a respeito de algumas questões: O que significa, para o jogo, tirarem dele aquilo que possui de mais fascinante, ou seja, sua imprevisibilidade? Que tipo de formação nossos atletas recebem? Há, de fato, empenho dos clubes em formar os atletas integralmente? O que, pedagogicamente, podemos fazer para devolver, ao jogo, sua essência?     

A imprevisibilidade é, podemos dizer assim, o grande adversário daqueles que jogam. Se fosse possível prever todas as jogadas do adversário no xadrez, o jogo seria menos assustador e, por outro lado, menos notável e admirável. Se fosse possível prever o resultado do jogo, o ganho seria certo na casa de aposta. Se fosse plausível indicar a priori os lances e movimentos dos jogadores de defesa, seria mais fácil chegar ao gol e assim por diante. Ora, se o grande adversário é a imprevisibilidade, mais que derrotar o adversário, o objetivo deve ser derrotar o imprevisível. Mas como fazer isso se o imprevisível é, também, invisível? Se o imprevisível se revelasse, o jogo morreria, se transformaria em qualquer outra coisa, menos em jogo. Poderia ser uma tarefa, um trabalho, um encargo, um negócio… De acordo com as regras do jogo, implícitas ou explícitas, isso não pode ser feito. Mas… se burlarmos as regras, sim. Se burlarmos as regras, para os que não souberem disso, o jogo continuará sendo jogo, mas para os fraudadores ele deixará de ser jogo, uma vez que se saberá de antemão os detalhes da sua realização e, quem sabe, até seu resultado final. 

Pois foi o que fez a quadrilha que oferecia a apostadores privilegiados, antecipadamente, detalhes de certas partidas. Para isso, aliciava, corrompia e combinava com alguns jogadores quais ações deveriam realizar no decorrer do jogo. A intenção não era oferecer o resultado final, mas apenas algumas ocorrências como cartões amarelos ou vermelhos, penalidades máximas etc. Para tais apostadores, a partida de futebol deixaria de ser um jogo, uma vez que foi revelado o imprevisível, que deixou de sê-lo. Para esses apostadores não interessava jogar, arriscar, mas apenas ganhar. E não se tratava de ganhar o jogo de futebol, mas o jogo do mercado financeiro. 

Ainda que os envolvidos tenham que ser responsabilizados na esfera jurídica e criminal pelos seus atos, o que pode ser feito para que o futebol (e demais jogos) não perca(m) aquilo que de mais fascinante ele tem, ou seja, a incerteza do seu resultado? Certamente, entre outras medidas, investir numa educação de boa qualidade. E, com isso, queremos dizer investir numa educação integral, crítica e emancipatória. Que nossos jovens que trilham o caminho do futebol profissional aprendam mais que técnicas e táticas para defender e atacar.

Ao apostar numa educação integral dos nossos jogadores e atletas, corroboramos a afirmação do filósofo português Manoel Sérgio de que “para saber de futebol, é preciso saber mais do que futebol”. É fundamental que nossos atletas construam uma carreira e estejam preparados para lidar com o futebol enquanto negócio; que se eduquem para viver dentro e fora do futebol, ou seja, que saibam gerir sua vida pessoal e profissional. Afinal, mais uma vez citando Manoel Sérgio, “se eu não conhecer os homens e mulheres que driblam, fintam e chutam, eu nunca compreenderei as fintas, os chutes e as fintas”. 


[1] https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/manipulacao-de-jogos-e-resultados-no-futebol-brasileiro-entenda-quais-sancoes-poderao-ser-aplicadas-aos-atletas/

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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O FUTEBOL DE ABUSOS E CONIVÊNCIAS: O CASO CUCA EM JOGO.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Não nos surpreende o apoio do elenco do Corinthians (não sabemos se todo ele ou sua grande maioria) ao técnico Cuca momentos antes de sua demissão. Não é difícil supormos que o mesmo ocorreria em outros clubes, afinal, o futebol foi gestado e criado em um ambiente machista, permissivo, reacionário. Há avanços, claro, mas ainda tímidos. Casos como o de Cuca, treinador que finalizou sua passagem pelo Corinthians após 7 dias, e dois jogos, em que jovens são abusadas por jogadores, são frequentes e tão mais frequentes quanto mais olhamos para o passado; raramente eram relatados. E, quando relatados, não sensibilizavam a sociedade, ou ao menos parte dela, como já ocorre nos dias atuais. 

O apoio dado a Cuca pelos jogadores corintianos é mostra de como as mulheres são consideradas e tratadas no ambiente futebolístico, e fora dele também. Porém, surpreendente mesmo seria o apoio dos jogadores à vítima, uma criança de 13 anos, comprovadamente violentada por um grupo de jogadores, dentre eles, Cuca, à época, atleta do Grêmio. Houve investigação e posterior condenação dos jogadores por estuprarem a menina. De lá para cá passaram-se muitos anos e, se não resultou em prisão definitiva do técnico (ele e os demais envolvidos permaneceram 30 dias presos na Suíça e retornaram ao Brasil para responder o processo em liberdade), pelo modo como isso é tratado no Brasil, e pela sua não extradição à Suíça, o caso criou a necessidade de arrependimento e desculpas públicas, algo que não ocorreu; Apesar de condenado após investigação, em processo transcorrido na Suiça em 1987, Cuca nega que tenha praticado o crime. E ao se explicar, somente se contradisse em relação ao que foi averiguado e constatado na investigação. Não estamos aqui julgando o treinador, afinal, partimos do pressuposto de que ele já foi julgado e condenado a 15 meses de prisão.  Pelas leis suíças, seu crime prescreveu após 15 anos. 

Abusos sexuais não são novidade no ambiente futebolístico. Grande parte das últimas gerações de meninos cresceu em um ambiente assim, como meninos jogadores de bola, nos campinhos de terra, nas ruas e nos campos de várzea. Sobretudo em meados do século passado, a formação dos jogadores brasileiros não ocorria em equipes de base dos clubes, mas nesses espaços lúdicos, de muita brincadeira com bola, nos quais nós, que tínhamos no jogo de bola nossa principal brincadeira, criávamos à vontade e nos tornávamos, cada vez mais, habilidosos. Era comum, nestes espaços, alguns adultos organizarem os meninos habilidosos, desde cedo, em timinhos, que jogavam nos finais de semana. Muitos desses adultos eram pedófilos. Os meninos sabiam, muitos pais e mães sabiam e a comunidade também. Mas raramente ouvíamos alguém que se incomodasse com isso. Se o futebol era um ambiente rico para a vivência do lúdico, da criatividade, da liberdade, por outro lado, era cercado por pedófilos, que viam no futebol dos meninos uma excelente oportunidade de aliciar. 

Entre tantas coisas maravilhosas que vivenciamos e aprendemos no futebol, há também, infelizmente, e para nossa revolta, essa permissividade danosa em relação aos abusos sexuais, sobre meninos e meninas. 

Muitos estudos e investigações já foram realizadas a esse respeito. Dentre eles, vale destacar a ampla e qualificada investigação do jovem e talentoso jornalista Breiller Pires, que há muitos anos investiga casos de abuso sexual no futebol, e que em 2013 publicou na revista Placar um dossiê sobre abuso sexual no futebol. Conforme constatou em sua investigação, “…muitos jogadores de futebol consagrados já foram vítimas de abuso sexual”. E quantos não consagrados também não sofreram com isso? E quantos, que sequer se profissionalizaram, sofreram abusos a fim de buscar o sonho de tornar-se jogador profissional de futebol? 

Quanto ao desrespeito às mulheres, vivemos com nossos amigos, ou familiares, uma verdadeira escola de desrespeito, opressão e violência no ambiente futebolístico. Nem todos os amigos ou famílias eram, ou ainda são, assim, mas todos viviam nesse ambiente. O que se dizia sobre as mulheres era assustador, ainda mais do que nos tempos atuais. Talvez isso nos ajude a entender o porquê de somente agora, tantos anos após a condenação e após a passagem do treinador Cuca por diversos clubes, este episódio de estupro coletivo tenha voltado aos holofotes.    

Ainda que tenhamos alguns raros exemplos de posicionamentos e movimentos de atletas para dizer não à violência contra a mulher, ao racismo, à homofobia e outros abusos que produzem tanto sofrimento aos brasileiros e brasileiras, quantos outros jogadores e ex-jogadores uniram forças e vozes aos 33 atletas que, em 2018, endossaram a campanha do Sindicato de Atletas de São Paulo contra o abuso sexual no futebol? 

Ao ser contratado pelo Corinthians, clube reconhecido historicamente como aquele que sempre esteve à frente no combate às injustiças contra as minorias, os negros, as mulheres etc., que encampou na década de 1980 o movimento da Democracia Corinthiana reconhecido, até hoje, como o maior, e mais importante, movimento político e ideológico no âmbito do futebol, novamente esse caso de estupro coletivo realizado em uma menina de 13 anos de idade veio à tona. Os “passadores de pano” de plantão, em sua maioria conservadores, reacionários, abusadores ou coniventes com esse tipo de comportamento, logo tentaram minimizar a situação. “Ahhhhh… já faz tanto tempo!”. “Ele já treinou tantas equipes e só agora acham isso ruim?”. Antes tarde do que nunca, não é? Ainda bem que o destino de Cuca foi o Corinthians. Mas não o Corinthians dos dirigentes que o contrataram e sim o Corinthians da Gaviões da Fiel. O Corinthians “das minas”. Se iniciamos nosso texto afirmando que não nos surpreende a defesa do elenco corinthiano ao treinador condenado por estupro, um deles afirmando, inclusive, ter se sensibilizado com o choro do treinador – mas aparentemente não com a dor e trauma de uma menina de 13 que, conforme afirmado no processo, tentou o suicídio -, finalizamos dizendo que também não nos surpreende a pressão da sua enorme, apaixonada, crítica e politizada torcida, bem como das atletas do futebol feminino com manifestações firmes e posicionamento contundente que, culminaram na demissão do treinador Cuca. 

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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QUANDO O NOVO INCOMODA

O novo incomoda. Sempre foi assim, de Paganini a Jesus Cristo, passando por Gandhi e Einstein. Mesmo no universo cotidiano, longe da constelação dos gênios, o novo incomoda. Buscamos o igual, o comum, o conhecido que não perturba. Tudo aquilo que nos é desconhecido gera ansiedade. Ao ter que lidar com o novo, é necessário sairmos da zona de conforto que o conhecido – aquilo a que já estamos acostumados, ambientados e para o qual já adquirimos estratégias de controle e enfrentamento – nos garante. O novo incomoda, pois irá impactar toda a estrutura prévia que cada sujeito possui e, consequentemente, exigirá que esse sujeito se reorganize.  

A crítica ao futebol, feita por torcedores, dirigentes e mídia, alimenta-se do igual, do comum. Sempre que surge uma novidade, ela é vista com desconfiança. Raramente dá-se um voto de confiança ao novo, até que ele prove, de modo convincente, que é eficiente. De sua parte, a mesmice conservadora não precisa provar nada, tem o aval da crítica, geralmente, extremamente conservadora. Dá trabalho entender, adaptar-se e reorganizar-se diante do novo.

O termo “dinizismo” não surgiu para designar uma boa nova, mas para depreciar. Foi usado largamente como ironia a algo que, certamente, não daria certo, uma espécie de capricho de um jovem treinador metido a besta. Onde já se viu querer fugir ao 4-4-2, ao 4-3-3 etc.? Onde já se viu ficar “namorando” a bola em vez de ocupar, estrategicamente, os espaços do campo? Onde já se viu dizer que, antes do futebol, vem o ser humano? Onde já se viu querer ensinar os jogadores a jogar futebol, não um futebol qualquer, mas aquele parecido com o que antigamente se jogava na rua? E foi assim que “dinizismo” virou a ironia da vez, apenas aguardando o fracasso de Fernando Diniz, a fruta que apodreceria antes de amadurecer. O audacioso treinador teve que amargar as pancadas que recebeu por sua atuação no Atlético Paranaense, São Paulo, Vasco e outros, mesmo sem ter tido o tempo suficiente e reforços de bons jogadores para mostrar que conhecimento, convicção, dedicação e trabalho duro funcionam, mas precisam de tempo para se consolidar. 

E não basta que tal disposição venha somente dos dirigentes, mídia e torcedores. Os jogadores, acostumados aos mesmos treinamentos, estilos de jogo, tratamento, discursos, visões de mundo, precisam, como dizemos no futebol, “comprar a ideia” do treinador. Precisam estar dispostos e se desorganizar para se reorganizarem novamente sob outra perspectiva. É como se tivessem que, já profissionais, reaprender a jogador futebol. O goleiro passa a ter, também, papel importante nas construções das jogadas; os zagueiros não devem mais temer o controle da bola “rifando-a” para onde estiverem virados, mas sim passá-la, conduzi-la e, por que não, arriscar-se ao ataque. Todos passam a ser criadores e articuladores, não mais somente o camisa 10. O centroavante, costumeiramente estático dentro da área, transforma-se num atacante móvel, dinâmico, que não só finaliza, mas também cria, passa, marca.         

O Fluminense, com seus diretores lúcidos, apostou novamente na ideia de Diniz (a primeira passagem dele pelo Fluminense durou cerca de oito meses), deu a ele tempo e bons reforços, e ele pôde, com o apoio e disposição dos atletas, mostrar os resultados do trabalho desenvolvido por ele e sua comissão técnica. Imediatamente ganhou uma multidão de apreciadores, “dinizistas” desde criancinhas. Entretanto, vale frisar que o sucesso atual do Fluminense terá a estabilidade de qualquer jogo, ou seja, pouquíssima. Quem lida com o jogo sabe que o imprevisível é a marca mais distintiva de cada evento. Por melhor que a equipe esteja, eventualmente, sofrerá derrotas e poderá ter sequências negativas. É quando veremos se o “dinizismo” se manterá como termo apreciativo ou depreciativo. 

O jogo não é um milagre, tampouco um evento que pode ser totalmente controlado. É um fenômeno lúdico interpretado por alguns animais e, especialmente, pelos seres humanos, que encontram, sobretudo no imprevisível, a oportunidade de viver em estado de graça. Por ser tão especial, é fugidio, instável, imprevisível, efêmero. Há que se desfrutar largamente dele enquanto acontece, porque o jogo nunca promete estabilidade. Diniz não é o único treinador talentoso no futebol brasileiro, tampouco o único a propor um novo jeito de olhar, compreender e praticar o futebol; há outros que acreditam em diferentes modos de jogar. A maioria não chega ao sucesso, ao reconhecimento. São destruídos antes que possam mostrar os frutos de seu trabalho. Mas Diniz é, de fato, um grande profissional e uma pessoa extraordinária. Não há segredo no que ele faz. Fernando Diniz trabalha muito, trabalha duro e se permite ser criativo, ser diferente, ser, acima de tudo, humano.

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani

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GOVERNANÇA NO FUTEBOL: DA CONFORMIDADE À TRANSFORMAÇÃO

Governança, uma palavra que até poucos anos era “estranha” no mundo do futebol. Aos poucos, felizmente, começou a ser falada e seus princípios começam a ser adotados de maneira mais consciente e deliberada por diversos atores do nosso ecossistema. Mas, afinal, o que é governança e quais são seus princípios?

A governança é um conjunto de práticas e processos que visam garantir que uma organização seja gerenciada de forma eficiente, eficaz, ética e em conformidade com as leis e regulamentações aplicáveis. Nesse sentido, a governança corporativa geralmente se concentra em garantir que qualquer organização esteja em conformidade com as normas e regulamentos externos e internos, além de proteger os interesses dos acionistas e partes interessadas.

Já os princípios que regem a governança são, segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC): transparência, prestação de contas, equidade e responsabilidade social. E é da combinação da definição do termo com estes princípios que vem minha provocação: será possível criarmos uma jornada de governança para o futebol brasileiro que comece pela conformidade, evolua para melhorar a performance das organizações e avance para criarmos a verdadeira transformação de todo ecossistema? Minha resposta é sim. O ponto de partida sempre será o cumprimento das normas e regulamentos internos e externos, que chamamos de conformidade ou, em inglês, “compliance”. Para o futebol, elas vêm desde a FIFA, Conmebol, CBF, Federações e governos até os documentos internos como o estatuto, as políticas e procedimentos. Mas, isso é o mínimo… quase uma licença para operar.

É preciso continuar a jornada da governança e irmos em busca de performance. Alguns exemplos são a definição clara de papéis e responsabilidades para permitir decisões mais ágeis e eficientes. O mapeamento dos riscos, definindo políticas e processos claros para redução de perdas e problemas de reputação. Além disto, quanto mais transparentes forem as organizações, maior será o nível de confiança que levará à atração de investimentos e melhores retornos.

Avançando, a governança pode também ser uma alavanca de transformação para o futebol desde a criação de comitês de inovação até os investimentos em transformação social. Nosso futebol carece de um olhar e de ações mais concretas para o humano. Afinal, somos essencialmente gente e não coisa. Somos uma indústria que atrai e engaja pessoas e famílias de todas as raças, crenças e classes sociais. E a governança pode definitivamente nos ajudar a cuidar deste potencial de transformação com o devido foco e valor.

Em resumo, é preciso começarmos a olhar a governança como um grande diferencial competitivo. É preciso incorporarmos seus princípios de forma mais estratégica e definirmos projetos com indicadores e metas que tornem todas as organizações mais atrativas, confiáveis e voltadas para um futebol verdadeiramente ético, inclusivo, sustentável e competitivo.

Texto por: Heloisa Rios | CEO Universidade do Futebol

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CONVITE PARA O CURSO DE GESTÃO NO FUTEBOL ESSENCIAL AO MERCADO!

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Essa é uma oportunidade única de se aprimorar em gestão e liderança com professores experts que atuam em grandes clubes e empresas corporativas. Dá só uma olhada nesse time (esses são apenas alguns profissionais que já confirmaram):

 

*esses são apenas 20% dos professores confirmados, teremos muitos mais profissionais de grandes clubes e empresa trazendo insights e cases reais

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Você terá uma capacitação com muito networking, aprendizados através cases de diversos clubes do Brasil, Europa e EUA, debates, relações interpessoais e interclubes e um trabalho prático de elaboração de estratégia no futebol. Além do mais, você terá diversos conteúdos online para aprofundar ainda mais seus conhecimentos de onde estiver.

O curso é o modelo de capacitação e formação de dirigentes, gestores, líderes e interessados em trabalhar no futebol,  sendo inspiração e benchmarking para todos os centros do futebol brasileiro e internacional.

Leia alguns depoimentos de ex alunos sobre a importância do programa, o networking entre os dirigentes e o pensamento do futebol paulista como um todo.

“O objetivo do curso é promover uma reflexão em termos de analisar o sistema do futebol brasileiro, não só pensar no dia a dia prático do clube, mas analisar o produto de entretenimento que é o futebol.”

Bruno Pessotti – Gestor de Projetos e Futebol, Cruzeiro E.C.

“Acredito que primeiro é a capacitação, porque dentro de um clube, às vezes, você fica fechado dentro daquela função, dentro da sua diretoria. Aqui a gente está tendo a oportunidade de ter vários depoimentos diferenciados e isso é conhecimento que vamos agregando. A troca de experiência é sensacional, o networking é muito legal, e eu acredito que, à medida que o clube vai passando, você vai conseguindo se ver em algumas posições.”

Cleudimar Prado – Diretora do Futebol Feminino de Base do São Paulo

Não perca essa chance de se capacitar e se certificar com grandes instituições e profissionais.

 

Veja alguns depoimentos:

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Esperamos você!

 

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FUTEBOL NÃO É ÔNIBUS LOTADO


		Pessoas em ônibus lotado com celular

Ao contrário do ditado popular que compara várias situações com um ônibus lotado dizendo “quem está fora quer entrar e quem está dentro quer sair”, no futebol, quem está fora quer entrar e quem está dentro quer ficar. E são várias razões para esse fenômeno. Para mim, a frase que mais explica é: “Futebol, uma indústria de paixões e milhões.”

Na maioria dos casos, o interesse em trabalhar no futebol é diferente de todas as outras indústrias onde já trabalhei. O cenário que vejo no futebol reúne desde torcedores fanáticos, que querem ajudar e influenciar nas decisões do seu clube, a pessoas que veem nesse esporte um trampolim para cargos políticos ou de visibilidade e reconhecimento na sociedade. Há ainda os profissionais que sonham com oportunidades de altos e rápidos ganhos financeiros, e até uma parcela crescente de quem gosta de desafios e vê no futebol muitas oportunidades de carreira e impacto social.

Em todos estes casos, seja você um dirigente, executivo, gestor, médico, profissional de marketing, árbitro, supervisor, psicólogo, advogado ou tantas outras profissões, é hora de investir na capacitação e no desenvolvimento, pois o futebol está em plena transformação no Brasil e no mundo.

Essa indústria ficou anos “protegida” por estruturas e legislações arcaicas, como a lei do passe e a permissividade de governos que renegociavam dívidas infinitamente, privilegiando dirigentes e gestores incompetentes ou mal-intencionados. Além disso, o futebol sempre foi usado como plataforma política, o que fez com que até hoje os clubes e organizações estejam cheios de pessoas indicadas para perpetuação de poder e não, necessariamente, de pessoas com habilidades e competências para ajudar no seu crescimento rentável e sustentável.

A boa notícia é que, nos últimos anos, começamos a perceber avanços significativos em diversas áreas, que são consequência de fatores como a implantação da Lei Pelé desde 1998, do engajamento maior de outros atores do ecossistema do futebol, como os patrocinadores que passaram a exigir mais transparência e prestação de contas (Pacto pelo Esporte). Exemplos também de clubes que fizeram turnaround e clubes que desenvolvem e implementam estratégias diferenciadas com excelência e austeridade na gestão.

Soma-se a isso o aprendizado e consequências com a chegada das SAFs, as discussões sobre FairPlay financeiro, a introdução de diversas tecnologias e a adoção de mais governança e conformidade.

Porém, mesmo com tudo isto acontecendo, somente por meio de pessoas e profissionais que estejam preparados, trazendo habilidades e competências para liderar a modernização da gestão do futebol, teremos uma indústria mais ética, inclusiva, sustentável e competitiva. E, com certeza, investir em educação e formação será o grande diferencial para que elas conquistem seu lugar nesse ônibus tão disputado.

Texto por: Heloisa Rios

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O FUTEBOL E A PARALISIA METODOLÓGICA

Este fim de semana fui presenteado pelo meu pai com um documento histórico acerca da educação física, mais especificamente sobre o ensino e treinamento do futebol. Para quem não sabe, meu pai também é professor de educação física e não é qualquer professor. Para meu orgulho e admiração, meu pai, Lino Castellani Filho, é uma das grandes referências da Educação Física brasileira e latino-americana. Professor aposentado da Unicamp, ex presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e ex Secretário Nacional de Esportes, meu companheiro (nos tratamos carinhosamente assim), presenteou-me não com uma produção dos seus tempos de Unicamp, CBCE ou Ministério do Esporte, mas com uma das suas produções dos tempos em que trabalhava na Secretaria de Esportes e lazer do Maranhão, em 1980. Ainda que suas produções de destaque sejam do campo da história da Educação Física, das políticas públicas e educação física escolar, esta produção aborda outra temática: o Futebol!    

Vale destacar, novamente, o ano desta publicação: 1980. Eu sequer havia nascido quando o professor Lino produziu este material!

Nesse momento pode estar se perguntando… “e daí?”.

Entremos então no tema central deste texto.

Nesta produção de pouco mais de 50 páginas, o professor Lino destaca a evolução histórica, evolução tática, regras e exercícios para aprimoramento técnico de alguns fundamentos do futebol. Se compararmos com qualquer publicação sobre futebol dos tempos atuais, certamente o teor seria significativamente diferente. Entretanto, o que causou certa surpresa e suscitou em mim a vontade de trazer esse tema para nossa reflexão e debate foi o fato de grande parte das escolas de esporte (mais conhecidas como escolinhas de futebol) e clubes ainda repetirem as mesmas estratégias de ensino elencadas em 1980 pelo professor Lino. Isso mesmo… mais de 40 anos depois desta produção, apesar dos significativos avanços no âmbito da produção teórica/acadêmica, com a proposição de inúmeras novas abordagens na pedagogia do esporte e, portanto, para o ensino e treinamento do futebol, as aulas e treinos continuam praticamente idênticas, como se tivéssemos enfrentando no campo da intervenção pedagógica, no decorrer destas 4 décadas, uma síndrome que nos paralisa no tempo. Uma síndrome que faz com que permanecêssemos em 1980, reproduzindo metodologias de ensino que, ao menos no campo teórico, já foram totalmente superadas.   

Há um número considerável de professores e treinadores que, mesmo com as críticas realizadas em diferentes e mais atuais estudos situados no campo da pedagogia do esporte, ainda elaboram suas ações pedagógicas pautadas no método analítico,  sustentando suas aulas e treinos na identificação de necessidades associadas ao gesto motor, à técnica dos fundamentos (domínio, passe, drible, chute etc) sem a preocupação com tomadas de decisões exigidas durante o jogo e com as questões táticas inerentes ao próprio jogo.

E tudo bem se o professor Lino propõe aulas e treinos pautados no método analítico. Afinal, em 1980, provavelmente, essa era a teoria que representava o que havia de mais avançado àquela época. Nem tudo o que é antigo, é velho ou ultrapassado. Há muita coisa ainda que os estudos contemporâneos não deram conta de superar. Mas este não é o caso dos estudos relacionados ao ensino e aprendizagem do futebol, afinal, a área da pedagogia do esporte avançou e a produção teórica nesta área se diversificou e se qualificou muito.    

Entretanto, 43 anos depois, é possível notarmos que esses avanços teóricos ainda não se manifestam nitidamente em muitas aulas e/ou treinos de futebol, evidenciando uma grande dificuldade se fazer chegar essa produção ao conhecimento de treinadores e professores e, também, deles traduzirem em suas intervenções pedagógicas (aulas e treinos) o que está preconizado pelo conhecimento científico contemporâneo. É justamente essa dificuldade, ou resistência, que faz com que aquilo escrito há 43 anos atrás ainda carregue consigo traços de atualidade.   

Se estamos pensando no processo de ensino-aprendizagem-treinamento do futebol para crianças e jovens, seja no âmbito escolar, clubes ou escolas de esporte, a iniciação esportiva deve se dar de modo que o futebol se adapte às características e necessidades das instituições de ensino/treinamento e, principalmente, dos praticantes. Ou seja, é preciso adaptar o esporte à criança e não a criança ao esporte. É preciso, como nos diz o professor João Batista Freire, tratar as crianças como crianças e devolver o jogo a elas.  

Dessa forma, ao entendermos que o principal estímulo das crianças à prática do futebol está relacionado ao prazer que sentem quando jogam, é importante que nossos planos e estratégias de ensino sejam elaborados didaticamente respeitando suas necessidades e dando grande destaque aos jogos e brincadeiras para que vivenciem o lúdico. 

Portanto, independente do objetivo das nossas aulas/treinos, é importante que pautemos nossas atividades no caráter lúdico, pois, principalmente em estágios iniciais de prática, e se tratando de crianças e jovens, o lúdico vivenciado em jogos e brincadeiras se constitui como elemento chave no processo de ensino-aprendizagem-treinamento. Vale destacar, no entanto, que não se tratam de quaisquer jogos ou brincadeiras, mas sim jogos e brincadeiras que oportunizem situações nas quais os jogadores não fiquem excessivamente com ou sem a posse da bola, que assumam diferentes níveis de complexidade, que, seja por situações reduzidas ou por adaptações nas regras, estimulem a tomada de decisão e a resolução de conflitos/problemas que se manifestam no jogo.

Neste aspecto, há inúmeras teorias que, guardadas suas especificidades, têm mostrado sua eficácia por pautarem-se no ensino do futebol tal como ele é jogado “na realidade”. Seu caráter coletivo, criativo, imprevisível, dentre outros, se expressa nestes jogos/brincadeiras fazendo com que os jogadores compreendam e apreendam a lógica do jogo e tomem decisões críticas e contextualizadas ao jogo, tendo como referência o ensino dos meios técnicos-táticos, defensivos e ofensivos (GALATTI, PAES, 2007; SANTANA, 2005).  

Passadas quatro décadas, não podemos mais elaborar e desenvolver nossos treinos e aulas tendo como referência o conceito de fragmentação do jogo, tal como preconiza o método analítico-sintético, no qual o ensino da modalidade esportiva se dá a partir da soma das partes que compõem o jogo, ou seus fundamentos. Este método apresenta como problema e elemento central, de acordo com Gallati e Paes (2007), a execução dos fundamentos de forma isolada, com ênfase na repetição de gestos motores para o aprimoramento técnico, sem o qual, de acordo com tais autores, a prática do jogo formal fica prejudicada. Não garante, assim, dentre outras necessidades impostas no e pelo jogo, a resolução de problemas de ordem tática.

Os treinos/aulas de futebol orientadas pelo método analítico partem do pressuposto de que o atleta/aluno ainda não sabe executar determinado gesto ou ação e só irá aprende-los de modo linear, indo do simples para o complexo, a partir da demonstração, imitação e repetição. Ao centrar-se na técnica, o professor/treinador busca que seu aluno reproduza modelos (drible como o Neymar, passe a bola como o Arrascaeta, conduza a bola como Messi etc) repetindo movimentos até torná-los automáticos.

Talvez o exemplo mais clássico deste método de ensino seja posicionar os alunos/atletas em filas para driblar cones dispostos simetricamente em linha reta. Diante destas circunstâncias, como já explanado por mim e pelo professor João Batista Freire em texto publicado na Universidade do Futebol (A diferença entre driblar ou fintar um cone e uma pessoa), “não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar o drible, não há tensão, não há diversão, não há prazer, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados. Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue”.

Talvez a qualidade da imagem abaixo retirada desta produção do professor Lino prejudique nosso olhar às filas para execução do passe. O tempo da publicação é significativo. Mas preocupante mesmo é pensar que tanto depois, grande parte das aulas e treinos de futebol permaneçam idênticas!  

De que forma, dispor nossos alunos e atletas em filas para fazer passes um de frente para outro garante a imprevisibilidade, aleatoriedade e o ambiente caótico inerentes ao futebol?

Vemos cada vez mais jogadores pouco criativos, preferindo o passe burocrático ao drible, perdendo a capacidade de resolver ou desequilibrar uma partida. Aqueles poucos que ainda se destacam pela sua criatividade e pela capacidade de improvisar no ambiente de jogo, à exceção de Neymar, Vini Jr. e mais alguns poucos, têm sua criatividade e capacidade de solucionar os problemas do jogo também cerceadas, tanto pelos treinos atuais, quanto pela conduta dos treinadores.

Ao estimularmos os praticantes de futebol a vivenciarem o jogo com base nos métodos de ensino apontados pelas pesquisas como mais eficazes, estaremos proporcionando a eles que compreendam a lógica do jogo e tomem suas decisões, de modo autônomo, inteligente e criativo, a partir das relações que eles estabelecem com os demais jogadores, sejam adversários ou companheiros de equipe, e também com a própria bola e o gol. 

É preciso, de uma vez por todas, rompermos essa paralisia que nos aprisionou em décadas passadas e darmos conta de fazer refletir em nossas aulas e treinos, como muitos já o fazem tão bem, o conhecimento científico contemporâneo produzido pela área da pedagogia do esporte. As perspectivas apontadas pelas pesquisas recentes são inúmeras e, apesar de distintas, partilham da mesma premissa de que colocar nossos alunos em filas intermináveis, driblar cones, realizar passes de frente para o companheiro etc, não é o melhor caminho para promover uma aprendizagem significativa, contextualizada e eficaz.

Texto por Rafael Castellani e, necessariamente, não reflete a opinião da Universidade do Futebol