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Jardine, o fracasso tricolor e os experientes rindo a toa. Mais uma vez

A tragédia anunciada do São Paulo se cumpriu. O roteiro parecia já traçado desde o final do ano passado. André Jardine efetivado, reforços caros chegando sem muito critério e uma direção de futebol totalmente perdida. Em meus textos e comentários pontuei que o roteiro do fracasso se desenhava de maneira estupidamente bem feita. Não quero me gabar. Longe disso. Não faz sentido. Mas se o sucesso deixa pistas e rastros também funciona assim o fracasso. E o São Paulo cumpriu direitinho cada passo para se dar mal.
André Jardine é mais um dos jovens treinadores que não consegue se firmar no hostil ambiente do futebol profissional. A irrecusável e tentadora proposta de um time grande caiu em seu colo, mas faltaram competências para a sustentação do trabalho. Jardine pode até ter os seus méritos em metodologia de treinamento e possuir ideias de jogo interessantes. Porém, faltaram habilidades de comunicação, de liderança e um melhor entendimento de como gerir o pouco tempo que haveria de trabalho e a enorme pressão para obter desempenho e resultados rápidos.
É claro que a situação de Jardine é apenas um sintoma que o doente São Paulo apresenta hoje. O clube está pressionado pela falta de títulos e acaba dando vários tiros no próprio pé em função de sua administração confusa e em vários setores amadora. Porém, se os jovens treinadores forem esperar o cenário ideal para triunfarem no futebol brasileiro é melhor esperarem sentados.
Ainda não há o entendimento dessa nova geração de qual é o real perfil de treinador que a nossa cultura pede. Não vejo nenhum desses jovens profissionais com uma abordagem mais direta do trabalho, principalmente com relação a gestão do grupo e a forma de conduzir os conteúdos de jogo. O comando de pessoas não permite concessões a todo momento. Independentemente da idade do técnico e do perfil do grupo de atletas em questão. Temporizar para sobreviver no cargo acaba se tornando auto-destrutivo. E dentro das quatro linhas há formas de organizar equipes, mesmo com pouco tempo de treino, para que padrões com e sem a bola que te aproximem da vitória sejam rapidamente levados a campo.
Sobre liderança, como exemplo, em algum momento surgiu um José Mourinho em Portugal, jovem de tudo, sem ter sido jogador profissional, peitando atletas, dirigentes e jornalistas que se colocassem entre o seu trabalho e os troféus que ele almejava. Ou, para ficar no futebol brasileiro mesmo, no início dos anos 90, apareceu um tal de Vanderlei Luxemburgo, que havia sido um jogador apenas mediano, usando ternos, não se submetendo a jogadores tarimbados e que conseguiu se destacar também em uma entre-safra de treinadores.
É claro que o que vai sustentar qualquer trabalho é a qualidade, o desempenho, o resultado. Porém, Mourinho, Luxemburgo e tantos outros que eu poderia citar, se impuseram com uma comunicação agressiva e eficaz e conquistaram um espaço de muito destaque no mercado muito por conta disso. Enquanto os jovens treinadores atuais não entenderem que isso conta, continuaremos tendo Felipão, Cuca, Abel Braga e tantos outros mais experientes, comandando os maiores clubes e tendo os melhores salários. Porque esses entendem o que a nossa cultura pede. Se isso vai nos fazer evoluir é outra conversa. Mas é assim que a banda toca no futebol tupiniquim. Para o bem e para o mal.
 

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Sobre as variáveis do meio-campo em losango

Marco Giampaolo, treinador da Sampdoria: uma das raras equipes que jogam em 4-3-1-2 na temporada atual. (Foto: LaPresse – Jennifer Lorenzini/ Divulgação: Minuto Settantotto)

 
Uma rápida lembrança sobre como jogava cada seleção na última Copa do Mundo da FIFA, e teremos uma informação interessante do ponto de vista estrutural: das 32 seleções, apenas uma adotou, com alguma regularidade, um 4-3-1-2. Foi o Uruguai. De alguma forma, este é um retrato interessante do locus ocupado pelo losango de meio-campo na hierarquia das ideias de treinadores mundo afora.
Neste texto, quero dedicar algumas linhas ao losango, não exatamente do ponto de vista histórico, mas mais como estrutura: vamos discutir algumas das potencialidades e limitações que fazem dele tão singular.

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A maior peculiaridade do 4-3-1-2 reside, evidentemente, na disposição de meio-campo. A primeira ideia que me ocorre é a seguinte: imagine um 4-4-2 ortodoxo, com duas linhas de quatro e uma terceira linha de dois atacantes. Essa estrutura apresenta, de modo geral, três linhas horizontais (traçadas entre as duas laterais) e quatro linhas verticais (traçadas entre as duas linhas de fundo), correto? Do ponto de vista geométrico, acho razoável dizer que se trata de uma estrutura conservadora. Não como juízo de valor, mas apenas como constatação.
Mas quando saímos dessa estrutura e pensamos em um losango, há uma primeira modificação importante: agora, ao invés de apenas uma linha horizontal no meio-campo, você haverá de convir comigo que temos três: volante + meias externos + armador(os termos são secundários), de modo que podemos traçar cinco ou seis linhas horizontais – caso os atacantes não estejam em linha. Da mesma forma, ao invés de quatro linhas verticais, talvez possamos ter até seis ou sete. Evidente que, em si, as linhas não dizem absolutamente nada. Mas quando contextualizadas, elas podem representar um ganho fundamental, especialmente no ataque: a equipe parte, desde o início, de um ataque em diversas alturas diferentes, cujas diagonais podem ser potencialmente incômodas para o adversário, partindo da grande possibilidade de que ele se defenda em linha. Ao menos de cara, é uma estrutura levemente subversiva.
Para equipes interessadas em atacar apoiado, especialmente a partir do corredor central, o losango me parece uma alternativa realmente muito interessante. São várias as possibilidades de conexões por dentro, com distâncias relativamente curtas entre os meias (o que também possibilita eventuais movimentos velozes da bola), sabendo que, de acordo com a ocupação espacial do adversário, ou o volante ou o armador da equipe em losango têm boas possibilidades de encontrarem-se livres em algum momento. Daí a importância, aliás, de que este volante tenha qualidade para jogar. Quem fez isso muito bem em um passado recente, inclusive nessa mesma estrutura, foi Leandro Paredes, recentemente contratado pelo Paris Saint Germain.
A concentração de jogadores na faixa central tem uma outra implicação importante do ponto de vista estratégico: os flancos do campo, em largura e profundidade, são setores quase que exclusivos dos laterais. Em um primeiro momento, talvez isso nos faça pensar que as exigências físicas sejam maiores. Mas, para além disso, vejo que os laterais precisam ser altamente inteligentes. Especialmente quando precisam defender.

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Talvez uma das dúvidas importante do losango esteja na organização defensiva. Qual ideia é melhor: defender-se também em losango ou defender-se em linha?
Começaria a resposta por outra pergunta: quais são as referências de marcação da equipe? Se nossas referências forem individuais ou individuais no setor, não me parece que defender-se em losango seja uma boa alternativa, talvez por um motivo muito simples: se a referência é o adversário, então a criação de qualquer forma geométrica será secundária, submetida ao movimento do adversário. Ou seja, o losango raramente existirá, de fato. Por outro lado, se nossa referência for zonal, se quisermos ocupar o espaço em função do movimento da bola, aí a conversa é distinta. Podemos manter a estrutura do losango, agora flutuando de acordo com a bola. A Sampdoria, treinada por Marco Giampaolo, é uma das raras equipes que adotam essa estrutura na atual temporada.

A compactação é tão grande que podemos ver até dois supostos losangos de meio-campo. Mas o ‘verdadeiro’ é o que está mais abaixo. Repare como a referência é zonal e como a equipe terá várias linhas de passe disponíveis assim que recuperar a posse. (Reprodução: Serie A Pass)

 
Quando os comportamentos estão consolidados, essa é uma estrutura que realmente me agrada muito. A própria Sampdoria, diga-se, é uma equipe agradabilíssima de se ver jogar. Mas defender-se em losango, mesmo com referência zonal, tem uma fragilidade importante: a estrutura de meio-campo provavelmente deixará espaços importantes nos lados, logo à frente dos laterais. Neste caso, uma alternativa razoável para quem ataca é a seguinte: levar a bola para um dos lados, direcionando toda a defesa, e então buscar uma inversão, às costas dos meias do losango, eventualmente construindo uma situação de 1 v 1 entre o extremo oposto e o lateral. A Juventus, quando recebeu a Sampdoria, em dezembro, abusou dessas inversões e o primeiro gol sai exatamente em uma delas: Cristiano Ronaldo recebe de frente para o lateral e finaliza. Veja o gol aqui, a partir dos 0:20.
Por outro lado, há também a possibilidade de atacar em losango, mas defender-se em linha. Salvo engano meu, é algo próximo do que fez, por um bom tempo, o Botafogo de Jair Ventura – para usar um exemplo nacional. Quando defendida, a equipe desfaz a estrutura em losango e recompõe-se em outra linha de quatro. É bem verdade que essa estrutura permite defender melhor os espaços em largura, diminuindo, por exemplo, as possibilidades de inversões como as que citei acima. Por outro lado, sinto uma perda importante para as equipes que se defendem em linha: as possibilidades em transição diminuem sensivelmente. Especialmente se a intenção for transitar por dentro, com apoios, as conexões em potencial serão sensivelmente menores quando se defende em linha, não apenas pela possível redução da superioridade próxima ao setor da bola (quando comparamos com um bom losango) como, especialmente, pela inexistência das diagonais, que citamos no começo do texto. Novamente, sem qualquer juízo de valor, talvez a manutenção do losango, no ataque ou na defesa, denote um olhar ligeiramente mais ofensivo por parte do treinador, enquanto a organização em linha mostre uma certa predileção pela defesa.
Faço ainda uma breve observação sobre as equipes que se defendem em losango e sobem as linhas. Defender-se em um losango alto é tarefa que exige enorme sincronia e coordenação, especialmente por parte dos dois meias abertos neste losango. São eles que, caso o adversário circule a bola até o flanco, provavelmente pressionarão os laterais adversários, de modo que o suporte de volante e meia oposto é primordial. Mais uma vez, acho o comportamento zonal mais adequado neste caso, ou então os espaços potencialmente abertos por dentro serão fatais. Ainda na pressão, as regras de ação do trequartista, o meia logo atrás dos atacantes, também são importantes: caso ele fique responsável por fazer a cobertura dos atacantes, é preciso ser um pêndulo tão eficiente quanto o volante o é quando a equipe se defende. Para este jogador, em específico, talvez não seja uma tarefa tão confortável. Caso o adversário jogue com uma linha de cinco atrás (como são Lazio e Atalanta, para ficar nos exemplos italianos), talvez o armador suba para a linha dos atacantes, de modo que cada um dos três fique responsável por um zagueiro, enquanto os dois meias e o volante (responsável pela cobertura) seguem com o comportamento zonal.

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Teríamos ainda muitos tópicos a explorar: se o losango favorece mais ataques posicionais ou funcionais, a influência das distâncias e das diagonais (ou não) dos atacantes no momento ofensivo, poderíamos refletir sobre a história do losango, passando por nomes como Johan Cruyff, Louis van Gaal, Pep Guardiola. Pretendo falar sobre tudo isso futuramente.
Por ora, acho que temos um bom debate sobre uma estrutura que me agrada muito e que, como disse no início, não apenas parece escanteada em nível internacional, como também por aqui. Talvez o losango seja um escape interessante para um futebol que, progressivamente, parece se homogeneizar.
 

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Marketing e Futebol em tempos de crise

Estamos em crise. Está tudo errado e muita coisa ainda acontece errada. Parece que não se aprende. O Brasil não aprende. A sociedade brasileira não aprende. Não basta o ocorrido em Brumadinho/MG. Não basta o incêndio no alojamento do centro de treinamento do Flamengo. Chega-se ao ponto de uma enorme confusão – evitável – em decisão da Taça Guanabara. São apenas alguns exemplos das tragédias que acontecem diariamente, sem falar daquelas que não se tem conhecimento.

Não há mais como trabalhar no improviso e no tráfico de influência, com base no “tapinha-nas-costas” e na ausência de método e mérito. No esporte do Brasil e, em especial no futebol isso há muito. Nas medíocres disputas verborrágicas, sem qualquer bom senso, que destroem e não constroem. Em um discurso intolerante e intransigente; quer seja de um lado, do outro, ou dos dois lados. Está escancarado que isso dá muito errado. Vide exemplo do último domingo no Maracanã.

Não há “marketing esportivo” que solucione toda esta bagunça a não ser o de um discurso de tolerância e agregação. De olhar o coletivo mais do que o indivíduo e seus grupos. Não apenas do seu clube, mas de todos e entre todos. Mais do que campanhas, materiais gráficos e inúmeras ideias, é preciso que isso não seja da boca pra fora. Que seja aplicado, que as atitudes sejam praticadas, vividas e partilhadas. Sobretudo valores e princípios básicos para a convivência em sociedade.

Confusão à entrada do Maracanã no Domingo (17) para a decisão da Taça Guanabara entre CR Vasco da Gama e Fluminense FC. (Foto: Agência Estado)

 

Esta coluna mais uma vez repete a máxima de que o futebol reflete o país. Longe de posições políticas, ela se cumpre, sim. As demandas da sociedade de hoje – bem estar, estabilidade, segurança, saúde e educação – não são capazes de ser atendidas mais à base de como era outrora, no improviso ou nas relações políticas. Ou seja, sequer eram/são atendidas de maneira universal. Se o país não consegue fazer isso, o futebol segue a linha.

É preciso urgentemente romper com este paradigma. Ser eficiente. Ser eficaz. Agir com método e mérito. Excelência e resultados. Este é o legado que o futebol também é capaz de dar ao Brasil, para além da ideia da união das raças, a Copa de 1938 e a obra de Gilberto Freyre. Para além das conquistas dentro de campo e do papel do país no mundo.

O Brasil que queremos – justo, de paz, tolerante, eficiente e produtivo – passa obrigatoriamente pelo futebol. Portanto, é neste ponto que a gestão e o marketing devem também obrigatoriamente trabalhar. Se queremos mudar pra melhor, é preciso colaborar, dialogar, tolerar, aceitar. Ninguém será menor por ceder. Será menos por estar aberto. A vantagem tem que ser para todos. Valores e princípios difundidos, postos em prática e partilhados.

É isto também que o futebol pode deixar à sociedade. E deve ser vontade de todos que as gerações futuras tenham um país melhor do que o recebido pela atual.

 

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Jogo não é guerra

“Joguei sem saber como estava a minha família. Minha esposa e minha filha vieram ao jogo, e eu não sabia se estava tudo bem. Precisamos minimizar essas coisas para o bem do esporte”.
A declaração de Danilo Barcelos, autor do gol da vitória do Vasco por 1 a 0 sobre o Fluminense no último domingo (17), é o melhor resumo do clima que permeou o clássico decisivo da Taça Guanabara, equivalente ao primeiro turno do Estadual do Rio de Janeiro. Não havia ambiente para um jogo decisivo: o que existia entre os cariocas era um misto de tensão, medo, guerra e reações exacerbadas por uma sequência de decisões e declarações. O futebol perdeu, e isso é extremamente representativo para o atual momento do Brasil.
A celeuma em torno do clássico começou na sexta-feira (15), quando Fluminense e Vasco tiveram reunião na Ferj (Federação Estadual do Rio de Janeiro) para debater o plano de ação para a decisão. Houve um sorteio, e os cruzmaltinos ganharam o mando de campo da partida.
Com base nisso, o Vasco pediu para ficar no lado azul do Maracanã, área que sua torcida ocupou de 1950 a 2013. Desde então, como o consórcio responsável pela gestão do estádio fechou apenas com Flamengo e Fluminense, o time tricolor estabeleceu em contrato que o uso do estádio estava condicionado à primazia de usar o setor.
A diretoria do Fluminense, portanto, recorreu ao contrato de gestão do estádio e rechaçou o pedido do Vasco. No entanto, os responsáveis pelo Maracanã alegaram que a equipe das Laranjeiras tem atrasado pagamentos – e descumprido o contrato, por consequência –, e deram razão aos cruzmaltinos, com quem ainda tentam alinhavar um novo acordo.
No sábado (16), véspera da partida, o Fluminense conseguiu uma vitória na Justiça: uma determinação para que o clássico fosse realizado com portões fechados, sem que nenhuma das equipes ocupasse o setor azul. A decisão liminar motivou outra reunião entre clubes e Ferj, e o Vasco, apoiado pela Polícia Militar, assumiu o risco de pagar uma multa para fazer o clássico com portões abertos – mais de 20 mil ingressos haviam sido comercializados, afinal.
A menos de uma hora do início da partida, contudo, a Justiça ignorou a postura do Vasco e emitiu nova determinação para que os portões fossem fechados. E os torcedores que já tinham ingressos, em meio a essa guerra de liminares, se aglutinaram nas imediações do estádio.
A situação gerou revolta entre torcedores que estavam perto do Maracanã e tinham ingresso. Houve confrontos envolvendo a polícia, e cerca de 30 pessoas tiveram de ser atendidas por médicos de plantão no estádio – a maioria por efeito de gás lacrimogêneo.
Diante da confusão, o Jecrim (Juizado Especial Criminal), que havia bancado o fechamento dos portões, resolveu concordar com o parecer da Polícia Militar e permitir a entrada do público. Tudo isso sem que os torcedores do Fluminense estivessem presentes, é claro, e depois de uma parte considerável dos vascaínos ter desistido.
Todo o processo de batalha nos bastidores foi acompanhado por declarações extremamente infelizes dos presidentes dos dois clubes. Pressionados internamente, Alexandre Campello (Vasco) e Pedro Abad (Fluminense) nada fizeram para aplacar a animosidade gerada. Em vez disso, jogaram apenas mais gasolina.
“O Pedro Abad chamou a torcida para a guerra, e isso foi sanguinário”, disse André Valentim, procurador-geral do TJD-RJ (Tribunal de Justiça Desportiva do Rio de Janeiro), em entrevista ao UOL Esporte.
Também em contato com o portal, o ex-presidente do Atlético-MG e atual prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (Podemos), afirmou que “estádio é para rico”. “Pobre assiste pela televisão. Isso é discriminação? Não. Eu fui assistir ao futebol americano num estádio que não era coberto, que se estivesse chovendo eu estava molhado, num frio de 1ºC, e paguei US$ 500. Não tinha lugar para uma mosca sentar”, completou.
A lógica de gentrificação de Kalil é apoiada no conceito de que a receita de match day é um pilar importante no faturamento de uma instituição esportiva. Portanto, é melhor ter o estádio cheio de gente que pague muito para entrar e que tenha condição de consumir no interior. Funciona em grandes ligas esportivas pelo mundo, como a NBA (basquete), a NFL (futebol americano) e até as principais competições de futebol da Europa.
Kalil esquece, entretanto, de algumas características bem específicas do mercado brasileiro. O futebol, para começo de conversa: trata-se de uma seara extremamente popular em âmbito nacional, e historicamente funcionou como um ambiente para ignorar diferenças de classe que o país não conseguia reduzir.
O futebol no Brasil sempre foi um bem do povo. É isso, aliás, que justifica tanto investimento público na modalidade ao longo das últimas décadas. Atletas, clubes, federações e confederação sempre tiveram respaldo de políticas voltadas ao bem-estar social porque sempre foram parte fundamental da sociedade – e não apenas de uma parcela.
Outro ponto é que o futebol brasileiro, como produto dentro e fora de campo, não está preparado para atender o segmento premium. Não é que o pobre ou que o consumidor com menos condição tenha de receber um tratamento pior, mas essa estrutura atual, com tanta desorganização e a violência que muitas vezes decorre da própria estrutura viciada, acaba atraindo um tipo muito específico de público. E o elã desse público específico não é a vontade de consumir produtos oficiais no interior do estádio ou o desejo de curtir um bom programa cultural com família ou amigos.
Para ser um produto “de rico”, o futebol brasileiro precisa entender com quem concorre. Não adianta olhar apenas para a estrutura de jogos em outros países, mas para a realidade local: o esporte perde público para o cinema, para o teatro e para outras atrações culturais, como shows e outros eventos. O orçamento das famílias é limitado e não comporta todas as opções existentes.
O futebol também concorre com o conforto de casa e com a profusão de produtores de conteúdo – Amazon Prime, Globoplay e Netflix, apenas para citar alguns. E todos eles cobram menos do que o ingresso de uma grande partida.
Kalil tem razão apenas em um aspecto: é imprescindível que o futebol brasileiro tenha uma estratégia clara para captação de público, e esse planejamento não precisa ser “para o estádio” ou “para a TV”. Ao contrário: é fundamental que os clubes trabalhem para cativar diferentes perfis de público, com diferentes hábitos de consumo de informação.
Contudo, nada disso vai acontecer enquanto os próprios dirigentes se sabotarem. Nada disso vai acontecer enquanto o futebol brasileiro não tiver o mínimo, que é a capacidade de organizar partidas e de entender o que realmente é relevante. A maior vergonha de toda a história da decisão entre Fluminense e Vasco é saber que pessoas correram risco real apenas por causa de um setor de estádio. Se isso não é sinal de maturidade em um nível assustador, não sei o que poderia ser.
 

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Sobre a fidelidade ao modelo e coragem

Foto: Lucas Merçon/Fluminense Football Club

 
Quando Miguel Cardoso (hoje no Celta de Vigo) era treinador do Rio Ave, viralizou este vídeo. Aqui, ele responde ao jornalista que o pergunta o motivo por que, apesar de estar perdendo e a poucos minutos do fim do jogo, sua equipe não fez nenhuma ligação direta para a área. Em linhas gerais, Cardoso diz o seguinte: é preciso fidelidade ao modelo. Ajustes estratégicos são necessários a todos nós, treinadores e treinadoras, mas eles seguem por arrastamento. O modelo é o guia.
Digo isso porque, neste Flamengo x Fluminense jogado ontem, passou batido este mesmo detalhe: reveja os dez minutos finais e conte quantos lançamentos à área do Flamengo foram feitos. Posso estar errado, mas senti que houve uma falta, na lateral-direita, já nos três ou dois minutos finais, em que talvez o próprio Fernando Diniz tenha imaginado um lançamento à área – mas a falta já havia sido cobrada. Curta. Fidelidade ao modelo.
Ao contrário de alguns colegas, interpretei este clássico como um jogo rico – talvez não rico na forma, mas sim no conteúdo – razão pela qual faço questão de publicar este texto. Do ponto de vista humano, o jogo mais interessante que assisti no Brasil neste ano.

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Como já dissemos algumas vezes, não é possível enxergar o jogo se nossos olhos ignoram a humanidade de quem joga. O jogo é um reflexo, pintura de um quadro que já existe nas ideias e se concretiza no campo. A primeira representação disso no jogo de ontem, está na decisão do Flamengo em não subir as linhas na primeira fase da construção ofensiva do Fluminense. Imagino que a ideia fosse atrair – sabendo da vocação tricolor – para explorar os espaços em transição. Exatamente como fez Gabriel, logo nos primeiros minutos.
Trata-se de uma escolha tática? Não. É uma escolha humana. Para além da estrutura, existe respeito. O Flamengo mostrou, através de uma escolha tática, que respeita o Fluminense como uma equipe capaz de construir por baixo, o que significa quebrar, em potencial, as linhas adversárias. É uma escolha simbólica, por uma simples razão: respeito não se impõe. Respeito se conquista. Em pouco mais de quarenta dias, o Fluminense já é capaz de fincar uma bandeira, uma identidade que o faz singular. Do ponto de vista do treino, isso é muito significativo.
Nas circunstâncias em que podia subir as linhas, o Flamengo admitia o risco de ser superado. Houve uma situação, em particular: Daniel, em algum momento do primeiro tempo, encontrou uma quebra que terminou com Luciano recebendo às costas de Diego, já na intermediária ofensiva. Essa situação foi particularmente interessante, porque já havia sido anunciada, de maneira implícita. Um dos motivos que fazem Gustavo Cuellar ser o ótimo jogador que é, é uma espécie de hiperatividade, uma busca de onipresença defensiva – que lhe permitiu, por exemplo, aquele belíssimo (e sutil) desarme sobre Yony González, no segundo tempo. Mas essa hiperatividade também o conduz a certos equívocos, como uma perseguição, também no primeiro tempo, sobre Daniel, que tenta um desmarque no seu setor e é acompanhado imediatamente. Mas este movimento abriu um espaço enorme às costas, entre as linhas, claramente percebido por Luciano, que exigiu uma rápida leitura exatamente de Diego. O portador da bola (não me recordo agora se Airton ou Digão) não conseguiu encontrar o passe. Mas a situação estava ali.

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As boas equipes não esperam pelas situações. Situações devem ser criadas ao longo do tempo. Este é um ponto importante para entender o jogo de ontem, pois havia, no geral, um contexto desconfortável para o Fluminense. Atacar contra uma equipe que não precisa da vitória e que se defende em bloco médio/baixo já não é simples, mas sinto que o 4-1-4-1 (como fez o Flamengo ontem), traz dificuldades bastante particulares. O fato de haver uma outra linha entre as linhas (o volante, no caso) induz a equipe que ataca a ficar com a bola dez ou quinze metros mais distante do gol. Se o jogador entre as linhas, que funciona como se fosse um pêndulo, for um Cuellar, torna-se realmente difícil construir por dentro, ainda que o Fluminense tenha mecanismos a partir do passe de Daniel ou das flutuações de Luciano. Quando os caminhos estão congestionados por dentro, é preciso considerar os lados.
Daí a importância da profundidade dos laterais do Fluminense no começo da construção. Que eles sobem quando Airton baixa não é uma novidade. Mas como eles sobem? Tenho a leve impressão de que, em alguma medida, a profundidade é assimétrica, uma vez que o corredor esquerdo costuma estar ocupado por Marlon (ou Mascarenhas) e Everaldo, enquanto o mesmo não ocorre no outro corredor, onde Ezequiel, embora auxiliado por Bruno Silva, tem mais liberdade – o que lhe permite profundizar a ponto de fazer o gol que fez contra a Portuguesa. Tive a impressão que Bruno Henrique, extremo pela esquerda, tinha dificuldades em conciliar a pressão que deveria fazer em Matheus Ferraz quando este conduzia a bola livremente, com os cuidados que deveria ter em relação a Ezequiel, às costas. Talvez o Fluminense pudesse (e pode) causar danos razoáveis naquele setor, especialmente se conseguir criar superioridades numéricas mais regulares.
Se o futebol é um jogo de tempo e espaço, e se há uma boa equipe cortando pela raiz o tempo e espaço necessários à outra, não surpreende que tenha havido poucas chances de gol no primeiro tempo. De cabeça, lembro-me apenas do cabeceio de Rhodolfo, defendido pelo seu xará. Escapou aos colegas que o Fluminense faz marcação mista nos escanteios, e Rhodolfo era um dos marcados individualmente. Houve um pequeno descuido, daí a liberdade para cabecear. Aliás, a título de curiosidade, é muito interessante a superioridade de Matheus Ferraz pelo alto. Ontem, foi admirável na defesa. No ataque, seus gols não são coincidência. É movimento recorrente nas bolas paradas ofensivas, que também envolve um jogador de meio-campo. Deixo aos colegas analistas que observem.

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Também senti uma euforia razoável sobre o comportamento pressionante do Fluminense em transição. Também não deveria ser novidade. Mas vamos investir algumas linhas aqui, é um tema importante.
Desde os primeiros instantes, o Fluminense buscou pressionar a construção ofensiva do Flamengo. Mas quais são as referências quando queremos introduzir um comportamento desses? Bom, vamos pensar em referências individuais, individuais por setor ou zonais. Qual das três mais se encaixa com este Fluminense? Tenho a impressão de que a ideia é zonal, mas a execução ainda não o é, plenamente. E isso não é uma crítica, mas um reflexo da profunda dificuldade inerente à tarefa de construir comportamentos coletivos (função da comissão técnica), assim como da dificuldade em executar a pressão dentro do campo, com os milhões de estímulos que jogadores devem mediar a cada instante.
Vamos pensar em uma pressão zonal. Qual é a nossa referência? É a bola. Ocupamos o espaço em função da posição da bola. Ou seja, então a pressão não é responsabilidade de um ou dois atletas. É responsabilidade da equipe inteira. De acordo com o movimento da bola, o goleiro se adianta para uma cobertura, o extremo oposto à bola fecha o corredor central, mecanismos de compensação acontecem incessantemente, de maneira sincronizada, para minimizar as possibilidades de progressão do adversário. Neste sentido, acho importante observarmos a importante margem de melhora que ainda há neste Fluminense. Por exemplo, ainda não me parece que os laterais estejam suficientemente confortáveis para subir quando o extremo à sua frente pressiona, deixando o lateral adversário livre (isso aconteceu vez ou outra ontem). Ao mesmo tempo, se essa cobertura acontece, os zagueiros também reagem, o lateral oposto idem e são esses infinitos movimentos compensatórios que fazem os comportamentos de pressão serem tão difíceis ao longo do tempo.
Houve um debate ontem sobre o quanto isso seria desgastante do ponto de vista físico, mas não é disso que se trata. O desgaste maior é mental.
Mas a mente também é treinável.

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Quando atacado, este Fluminense se defende em 4-4-2. Isso já é sabido. Mas podemos ser mais detalhistas. Quero dedicar algumas linhas ao comportamento da segunda linha defensiva e ao balanço ofensivo.
Começando pelo fim: posso estar errado (escrevo todo o texto tendo visto o jogo apenas uma vez, ao vivo), mas o comportamento de Luciano e Yony González, quando o Fluminense se organizava para se defender no próprio campo, era bem diferente do comportamento de Gabriel, quando o Flamengo se defendia. No segundo caso, não só havia menos agressão aos zagueiros (o que também era difícil, pois quando Airton baixava, havia uma situação de 3 v 1), como ficava implícita uma certa expectativa pela transição, como já falamos acima, o que deixava o próprio Gabriel um pouco mais distante das linhas defensivas, próximo do espaço que gostaria de atacar. Aliás, do ponto de vista estratégico, acho uma escolha absolutamente coerente.
Mas, no caso tricolor, não foram poucas as situações em que Luciano e Yony participavam ativamente da defesa – inclusive, quando preciso, com os dez jogadores de linha atrás da bola, no próprio campo. Quando o Fluminense modula o espaço assim, com os jogadores responsáveis pelo balanço ofensivo tão próximos da defesa, as mensagens implícitas são, no mínimo, duas: I) defender não é coisa dos defensores, apenas – defender e atacar são obrigações da equipe inteira; II) se a ideia é transitar por baixo, então quanto mais linhas de passe próximas aos potenciais locais de recuperação da bola, melhor (daí a importância da zona, que falamos acima). Ataque e defesa não existem separadamente. Ataque e defesa não se separam. Eles podem não ser visíveis ao mesmo tempo, o que não significa que não existam conjuntamente.
Sobre a segunda linha defensiva, penso o seguinte: assim como o desgaste cognitivo influencia na regularidade do bloco quando as linhas sobem, também há desgastes importantes quando a defesa precisa organizar o espaço no próprio campo. Não posso dizer se é uma característica do modelo ou se foram pequenos equívocos (como me pareceu), mas tenho a impressão de que esta linha (Everaldo – Daniel (Dodi) – Airton – Bruno Silva) será ainda melhor se conseguir ajustar-se em largura menor, especialmente quando o adversário estiver com a bola nas laterais. Ontem, vez por outra, senti que havia espaços tanto por dentro, quanto no setor oposto à bola (entre o extremo oposto e o meia). Mas, repare bem, isso é absolutamente compreensível. O modelo tem um tempo próprio. Em geral, diferente do nosso.
A primeira linha (zagueiros e laterais), por sua vez, me parece mais coordenada, especialmente em largura. Digão, aliás, fez uma leitura muito precisa ontem, em algum momento do primeiro tempo, quando percebeu uma distância importante entre as linhas e cortou um passe vertical potencialmente desastroso.

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Em um texto recente, escrevi neste mesmo espaço que o bom futebol é ato de coragem. Da noite de ontem até agora, parece que isso ficou mais claro, especialmente em razão das substituições efetuadas por Fernando Diniz. Tenho dois comentários sobre elas.
O primeiro já foi dito por alguém: a entrada de Marquinhos Calazans na ala direita também não é uma novidade (já havia sido feita contra o Vasco). A questão é: por quê ele? Dos diversos caminhos, me ocorre o seguinte: em condições normais, o Fluminense abre o campo em largura com um jogador que tende ao centro (Everaldo, destro) e outro jogador que tende ao fundo (Ezequiel, destro). Ezequiel é mais associativo, Everaldo é mais vertical. Luciano, é importante citar, flutua com liberdade, mas mais de dentro para fora do que o contrário. Quando Calazans entra na direita, o Fluminense não apenas ganha mais uma opção de drible pelo lado, como tende, agora também pela direita, ao corredor central. Dali, talvez saia uma finalização de média distância, uma tabela por dentro, talvez um cruzamento… as possibilidades são infinitas. Há riscos defensivos? Óbvio que sim. Mas o bom futebol é ato de coragem.
Sobre a entrada de Caio Henrique no lugar de Marlon, tive a impressão de que, ao contrário dos outros jogos, Caio jogou ligeiramente deslocado para a esquerda, o que não significa que foi um lateral. Quem dava largura era Everaldo. Nessa estrutura, havia portanto mais uma opção de passe interior, finalização de média distância e etc. Mas o ponto interessante é defensivo, pois causou uma certa surpresa o fato de Airton não ser deslocado para a linha de zagueiros. Mas por que deveria? Quem precisava do gol era o Fluminense, ou seja: era preciso estruturar o espaço para estar com o maior número de jogadores, o mais próximo possível do gol. Em caso de contra-ataque, como houve uma situação com Gabriel, também no segundo tempo, ainda havia superioridade numérica (Matheus Ferraz e Digão). Há riscos defensivos? Sim, talvez. Mas o bom futebol é ato de coragem.
Embora soe mágico e cause euforia, tenho alguma segurança em dizer que as duas situações não apenas são previamente planejadas, como treinadas. Comportamentos de emergência (lembrando aqui o colega Rodrigo Leitão) não são exatamente improvisados. São treinados e, aos que querem usá-los, são treináveis.

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No domingo, o Fluminense enfrentará uma equipe que, salvo qualquer mudança, estrutura a defesa de uma forma um pouco diferente (4-4-2) e que tende a pressionar mais no início da construção. Quando em vantagem, talvez baixe o bloco. Mas como reagirá se estiver em desvantagem? São todos detalhes importantes, pois exigem alterações estratégicas. Mas isso não significa (e este é um ponto fundamental) mudanças em nível macro. É preciso fidelidade ao modelo.
Os contornos dramáticos e o gol tardio fizeram o clássico desta quinta bastante emblemático. Espectadores externos, sem forte envolvimento emocional com os clubes, provavelmente saíram do jogo se sentindo bem, como aconteceu comigo. O futebol é isso, gera sensações: às vezes ótimas, outras vezes terríveis. Se nossas equipes causam mais sentimentos inferiores ou, especialmente, se nossas equipes causam indiferença, é porque algo está errado.
Independentemente dos resultados (que vieram e que virão), o Fluminense causa boa impressão, dentre outros motivos, não apenas porque tem consigo uma identidade, mas porque, em pouco tempo, adquiriu a coragem necessária para assumi-la.
E isso também não é uma surpresa. Não deveria ser.

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O cruel mundo do futebol

Sempre falo que jogador de futebol que chega a uma equipe profissional passa, em sua trajetória, por situações que a maioria das pessoas não aguentaria. Entender o lado humano me faz ter mais cautela ao dirigir qualquer crítica: como falar que um atleta é ruim se ele passou cerca de dez anos nas divisões de base, avançando de categoria, em uma disputa mais acirrada que vestibular de medicina? O mau momento no profissional pode ser, talvez, relacionado as ideias do treinador ou a algum problema fora de campo, mas afirmar que fulano ou beltrano não tem qualidade, ainda mais quem chega a uma equipe grande, não me parece o mais correspondente a verdade.
A tragédia no CT do Flamengo colocou luz em problemas que quem acompanha o futebol mais de perto sempre soube. Porém, setores da sociedade que apenas veem os gols e acompanham os placares, não sabiam, de fato, o que um menino da base passa até virar um homem do profissional. Meu ponto aqui não é julgar o que houve no incêndio. As autoridades farão isso. Entretanto, quero destacar a força mental, a resiliência, a crença fortalecedora que todo garoto tem que ter para conseguir construir uma carreira no futebol.
Acompanhando reportagens em programas que não cobrem o dia a dia do futebol vimos garotos que saem de suas casas, com dez anos de idade, para morar em um centro de treinamento em outro estado. Em que pese alguns terem nos clubes cinco refeições diárias, ao passo que em suas casas teriam apenas duas, onde fica o carinho, o afeto e a proximidade familiar tão fundamentais para o pleno desenvolvimento humano? Por mais desestruturada que possa ser a família, de um jeito ou de outro ela resguarda esse menino estando próxima a ele.
O lamentável acidente aconteceu em clube gigante, que tem uma das melhores estruturas do país. O que dizer de clubes menores? As instalações, condições de higiene, a própria alimentação, o acompanhamento psicológico, são de qualidade? Tenho dúvidas…
Portanto, ao ver um jogador em uma equipe profissional o mínimo que posso ter por ele é respeito. Respeito pela trajetória, por passar por dificuldades que talvez eu não teria condições de enfrentar. Em algum momento todo jogador já foi o melhor da sua turma, do seu bairro, da sua escola. E em todos os momentos ele foi um touro na parte mental. Futebol profissional definitivamente não é para amadores.
 

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Sobre os descaminhos da vida

Divulgação: Fox Sports

 
Faz algumas semanas, mas não muito tempo, que tenho cultivado o hábito de não olhar redes sociais, nem assistir televisão, nem consumir qualquer tipo de informação antes de um certo horário – por volta das dez horas da manhã. Quando faço isso, tenho a sensação de que as primeiras horas do dia são realmente minhas, investidas em mim. Tenho tido algum sucesso neste sentido. Mas na última sexta, sem perceber, liguei a TV pela manhã. Era cerca de 8h30.
Nas primeiras linhas do adorável Variações Sobre o Prazer, Rubem Alves admite uma espécie de derrota para o livro que acabara de escrever. Segundo ele, o livro venceu porque, em linhas gerais, causou muito sofrimento ao autor. Todas as tentativas de escrever com ordem e coerência, um pouquinho que fosse, eram em vão, de modo que ele, assim como também fizera o filósofo Ludwig Wittgenstein, preferiu escrever o que lhe vinha à mente, ao invés de criar uma linearidade qualquer. Escreveu o que era possível de ser escrito naquele instante.
Durante o dia, impossível não se sentir tocado. Os depoimentos das famílias, os detalhes que surgiam, a impotência… a sobriedade e o respeito de um Marcelo Barreto, que conduzia a cobertura com absoluta responsabilidade, transmitindo uma confiança inquestionável. Quando me dei conta, havia me suspendido temporariamente de mim mesmo, pois não havia outro lugar que não fosse aquele, e se nós não estivéssemos lá de alguma forma, atentos ao que se passava ali, tudo aquilo viria até nós. As coisas são assim, às vezes.
Se Wittgenstein, Rubem Alves e tantos outros têm problemas em situações aparentemente menores, não teríamos nós também? Nas tragédias, principalmente. Talvez sejam duas dificuldades principais. A primeira é que situações raras e graves exigem imensa sensibilidade. Nós sabemos o que a gente sente, mas dos outros, sabemos pouco. Este exercício de empatia, para quem deseja se aventurar a viver a vida, não sai da primeira página do manual. A segunda dificuldade é que, passados alguns dias, é muito difícil dizer o que ainda não se disse. Muito já foi dito, muito ainda será. Mas há algo importante: mesmo que as coisas, em si, sejam parecidas, elas se dizem de inúmeras maneiras.
Por que nos sentimos tão impotentes de vez em quando? Não deve haver apenas um motivo. Devem ser vários. Imagino um deles: nossa racionalidade só vai até a página três. Dali em diante, nosso livro está em branco. E então não há muito o que fazer, por mais que tenham nos treinado para racionalizar, suprimir o coração e seguir os descaminhos do pensamento. É como se houvesse uma barreira, uma parede tão alta e resistente que nenhum argumento, mesmo o mais poderoso, pudesse superá-la. Aí recorremos ao coração. Não como se fosse um recurso secundário. Na verdade, é como se fosse a alternativa original.
Lidar com as nossas criações, sejam elas quais forem, é realmente muito difícil. Elas podem se tornar maiores do que nós mesmos. Isso denota uma espécie de pequenez, com quem precisamos conviver diariamente. O problema é que nós não sabemos disso quando somos muito jovens. Um garoto de quatorze ou quinze anos, que já não é mais criança, mas também é muito jovem para a vida adulta, não tem a obrigação de saber da vida em detalhes. Não deveria ter muitas obrigações, na verdade: se um garoto ou garota nessa idade abre mão da família, dos amigos, das alegrias inerentes à descoberta da vida, é porque carrega amores muito grandes. Deve sonhar muito alto.
Mas isso é maravilhoso. O sonho, pelo menos a priori, tem uma vantagem muito grande sobre o real: ele não tem limites. Não existem barreiras nem paredes – o sonho é livre! Talvez seja por isso que nossas ideias, vez ou outra absurdas, parecem igualmente maravilhosas. Não importa que elas estejam próximas ou distantes do real, elas nos confortam. O sonho faz da vida o que ela ainda não é: às vezes o próprio sonho é tão real que nós mesmos nos confundimos. Quando se sonha, nós somos quem somos ou somos quem sonhamos ser?
Blaise Pascal, filósofo francês, tinha um aforismo interessante sobre a pequenez. Ele dizia que os humanos são caniços– finos pedaços de cana – muito frágeis, mas com uma vantagem: são caniços pensantes (pensamento, aliás, que nos permite sonhar). Depois de uma certa idade, este sentimento de pequenez, de limitação e fragilidade perante a vida, só não nos toca se não quisermos – ou se não estivermos suficientemente atentos. Mesmo quem ousamos chamar de ídolos, mesmo as referências que tivermos na arte de viver, são pessoas exuberantes na aparência, mas igualmente frágeis. O que também significa que podemos, por um ou mais erros de cálculo, julgar-nos maiores do que somos. Se quem sonha carrega grandes amores, quem se vai sonhando, ama na mesma medida.
O futebol não é um fim. O futebol não se encerra em si mesmo. Não é como um cão que persegue o próprio rabo. Para se saber de futebol, o futebol não basta. O futebol é um meio. Nós queremos, através dele, chegar a algum lugar – talvez a nós mesmos. É uma criação, um caminho dentre tantos outros possíveis, que compartilhamos com tantos colegas. Alguns estão realmente próximos, outros distantes. Mas os sonhos são os mesmos. Por isso, em momentos de enorme tristeza, nosso sentimento é inconstante: por um lado, somos muito frágeis. Por outro, somos frágeis juntos. Se um de nós nos deixa, perdemos uma parte de nós mesmos. Se vários nos deixam, o que nos resta?
Nos resta seguir.
Para chegar ao sonho, é preciso voar. É preciso saber voar. Por enquanto, temos o privilégio de voar e retornar em segurança. Um dia, nosso voo será apenas de ida. E então, para manter-se o equilíbrio, alguém voará por nós. O que não significa que teremos ido embora.
Significa, então, que aquele voo é para sempre.

***

Texto inteiramente dedicado às memórias e às famílias dos garotos Arthur Vinicius, Athila Paixão, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson Santos, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Samuel Thomas Rosa e Vitor Isaías. Além deles, também Ronaldo Quattrucci e Ricardo Boechat.

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“Copona”

Não há dúvidas de que a Copa São Paulo de Futebol Júnior é o mais importante torneio de categorias de base do futebol nacional. Neste ano de 2019 tivemos a edição número cinquenta. Ao longo destas cinco décadas, tradições foram construídas, além de tabus, lendas e ídolos. É bastante história. Muita bola rolou. Muita água caiu, afinal é no mês de janeiro, que costuma ser chuvoso no território bandeirante.

Carinhosamente chamam o certame de “Copinha”. Não pelo tamanho, mas pela faixa-etária dos futebolistas. A “Copinha” é grandiosa, não apenas quantitativa ou qualitativamente, mas pelos atletas revelados e pelos gestos observados, cada vez mais raros: quem não se lembra da generosidade do Vasco da Gama com a delegação do Carajás; do Palmeiras que pagou a passagem de volta, de avião, para os acreanos do Galvez. Do São Paulo, vice-campeão em 2018 a aplaudir os campeões do Flamengo durante a cerimônia de premiação.

Faz-me esquecer José Maria Marín a embolsar a medalha de campeão na edição de 2012.

São Paulo Futebol Clube, campeão da Copa São Paulo de Futebol Júnior em sua edição de número 50. (Foto: Eduardo Carmim/Photo Premium)

 

A “Copinha” é uma “Copona”. Reúne o Brasil, suas diversidades, causas, lutas e sonhos atrás de um esférico que, como a vida, é imprevisível. Dizem que o futebol é a síntese da vida, que está bem no começo para estes garotos que, tão cedo, aprendem a lidar com a montanha-russa que é a vida boleira. Faz a “Copinha” ser ainda mais “Copona”. E, como todo bom torneio, precisa ser bem comunicado por agregar todos estes pormenores, além de ser autêntica. Genuína. Sincera.

Por isso que gostamos da “Copinha”! E o trabalho de comunicação em torno dela, a tratá-la pelo nome popular e carinhoso a ela dado, faz o torneio ser ainda mais querido. A coletiva antes do jogo final, com os capitães, no estádio da decisão, cria expectativas, gera incertezas e ansiedade. O janeiro da pauliceia, assim como o futebol e a vida, é uma montanha-russa: o tempo vira, a calmaria pode virar tempestade; depois da tempestade pode vir a bonança. O clima influencia o jogo, esfria ou esquenta: vide o que aconteceu na final, com a tempestade no segundo tempo.

Com tudo isso, em tempos que somos influenciados por muitos campeonatos estrangeiros, a “Copinha” é um alento de que temos um excelente produto a ser trabalhado, quer seja dentro de campo, para o futuro. Quer seja fora, por tudo o que significa, carrega e agrega para o futebol do Brasil. 

Em tempo: os parabéns para os organizadores da “Copa RS” organizada em dezembro, que, ao lado da “Copinha” de janeiro, proporcionam um calendário bacana para o futebol de base do Brasil: em dezembro o torneio gaúcho; em janeiro o paulista.

Em tempo II: este é o meu texto de número 80. Obrigado a todos que passam ou passaram por aqui. Muito obrigado!

 

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A comunicação na tragédia

Um incêndio no centro de treinamentos utilizado pelas equipes de base do Flamengo matou dez garotos e deixou pelo menos três feridos no dia 08 de fevereiro, no Rio de Janeiro. Além disso, serviu como gatilho para escancarar erros de procedimento e de comunicação de autoridades e do próprio clube. A ferida criada pelo episódio talvez nunca seja fechada, mas poderia causar menos danos de imagem se tivesse sido conduzida de maneira diferente. A despeito de ter criado um comitê unicamente para lidar com a crise advinda da tragédia, a diretoria rubro-negra empilhou erros em seus posicionamentos públicos.
Em primeiro lugar, essa análise não contém julgamento técnico ou de responsabilidade, avaliação que compete à Justiça e aos entes adequados. Ainda que um incêndio dessa proporção jamais possa acontecer sem boas doses de negligência, é preciso fazer uma investigação minuciosa e cautelosa, desprovida de conceitos pré-concebidos. Já se sabe que o espaço não tinha alvará ou autorização para o fim a que se dedicava; já se sabe que os contêineres usados para alojar os garotos estavam longe de ser a estrutura mais segura e/ou adequada; já se sabe que havia um déficit de janelas, saídas de emergência e planos de evacuação; já se sabe que não houve treinamento e/ou preparação dos moradores para casos assim.
Também não existe aqui um julgamento sobre o comportamento do Flamengo com as vítimas e suas famílias. Desde o incêndio, a diretoria do clube tem priorizado essas ações e priorizado esforços para lidar com a dor dos que ficaram. O presidente falou pessoalmente com os parentes e participou ativamente da condução desse momento tão difícil para essas pessoas. Além da dor, muitos dos meninos já eram arrimos de famílias.
No entanto, uma instituição do tamanho do Flamengo não pode se limitar a lidar com os que foram diretamente afetados e com a investigação conduzida por entes competentes. Existe um despreparo na gestão de crise e um erro no senso de proporção que um evento assim possui.
O Flamengo não pode ser tratado como uma empresa qualquer. Trata-se de uma instituição beneficiada há anos por recursos públicos – renúncias fiscais, planos de renegociação de dívida, aportes de estatais e acesso a mecanismos de financiamento de projetos esportivos e culturais, por exemplo. Uma das principais justificativas para a destinação desses recursos é o impacto social das equipes de futebol.
Também existe no Flamengo um trabalho de socialização fundamental para a sociedade brasileira. As escolinhas e os times de base atuam em espaços que o Estado não consegue preencher, e isso intensifica sobremaneira o impacto do incêndio. Aquele local em que dez garotos morreram aglutinava os sonhos de centenas de famílias – a proporção da tragédia só não foi maior porque os treinos da tarde anterior haviam sido cancelados em função das chuvas no Rio de Janeiro.
Por tudo isso, o Flamengo tem obrigação de ser assertivo em momentos de crise. É fundamental que o clube fale, que se exponha ao contraditório e que faça isso de forma humilde, sem fugir das responsabilidades e das dores.
A comunicação do Flamengo deveria ter começado com um pronunciamento, algo que o clube só fez muitas horas depois. Deveria ter continuado com uma entrevista coletiva aberta, com acesso irrestrito a documentos e materiais relacionados ao licenciamento do espaço.
Os tropeços são especialmente relevantes porque o Flamengo é um clube que vem se organizando nos últimos anos, aprimorando processos e lidando com um passivo gerado por administrações anteriores.
O exemplo do Flamengo é apenas o mais bem acabado, mas a crítica vale para todos os times brasileiros. Quem tem um protocolo ou um comitê pronto para lidar com crises? Quem está pronto para atuar nos momentos em que a comunicação é mais necessária e precisa ir além das redes sociais?
Num momento em que o mundo está cada vez mais acostumado a posts rasteiros e rasos, o Flamengo tinha uma chance clara de mostrar que uma instituição desse tamanho pode até sentir grandes impactos, mas não pode ficar atônita e precisa saber reagir. Isso vale para qualquer revés, em campo ou fora.
A grandeza das instituições está justamente no comportamento delas em momentos chave da história. O Flamengo, infelizmente, perdeu uma grande oportunidade no episódio do incêndio. Ali morreram coisas que vão muito além dos dez garotos.
 

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Cadê a evolução, Felipão?!

Aprendo a cada dia estudando e analisando futebol que não há certo ou errado. E até o jogar bonito e o jogar feio são relativos. Vai depender do gosto. Do ponto de vista. O cumprimento da lógica pura e simples do jogo dita que você deve fazer mais gols que o seu adversário. E isso pode ser atingido de diversas maneiras.
O Palmeiras foi campeão brasileiro no ano passado com muitos méritos. O técnico Luiz Felipe Scolari foi cirúrgico e perspicaz em diversos pontos. Fora de campo trazendo paz, confiança e segurança para os atletas. E dentro das quatro linhas implementando ideias simples de jogo. Ideias de fácil assimilação. Que com muita conversa e pouco treino podem ser aplicadas. O Verdão se defendia, e ainda se defende, sempre com muitos jogadores – sempre de quatro a seis jogadores atrás da linha de bola. Dessa forma, dificilmente você vai levar contra-ataque, por exemplo. Para atacar, o padrão de comportamento é a verticalidade, o ataque direto e rápido. Está com a posse? Bola longa para o centroavante disputar a primeira bola e gerar alguma situação para os jogadores que vem de trás. E como o Palmeiras conta com jogadores de altíssimo nível como Dudu, Bruno Henrique, William (machucado) e agora Ricardo Goulart isso pode funcionar muito bem. Como já funcionou no ano passado na conquista do título nacional. E pode continuar funcionando.
O ponto, porém, é a falta de repertório da equipe. É claro que não tenho a pretensão de achar que Felipão, no auge dos seus 70 anos e já com um currículo extremamente vitorioso, vá trazer para sua equipe conceitos como terceiro-homem, viajar junto, mobilidade, amplitude e outros tantos que compõe o jogo de posição de Pep Guardiola. Ou então importar o gegenpressing de Klopp, que une pressão, pressing, temporização e outros conceitos para atacar o contra-ataque rival.
Mas acredito que esse Palmeiras pode mais. Para situações de desvantagem no placar, como contra o Corinthians no final de semana, aliada a desvantagem emocional como contra o Boca Juniors na Libertadores e Cruzeiro na Copa do Brasil, ambas no ano passado, o cruzamento na área não pode ser a única opção.
Insisto que não há certo ou errado no futebol. O Palmeiras jogar simples e objetivamente tem muito valor, sim senhor. Entretanto vejo uma equipe de futebol como algo sempre em construção. Em evolução. E se não há crescimento há queda. O mais do mesmo no futebol é perigoso porque seu adversário está crescendo e está te estudando. A estagnação no jogar é o primeiro e mais crucial passo para a queda.