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A integração pelo futebol

O “Benelux” após a segunda grande guerra (1939-1945) foi o ponto de partida para a tão trabalhada e arranjada União Europeia e sua moeda única continental, o Euro, posto em circulação em 2002. Exemplo de integração que acreditamos fosse ser o caminho para o mundo todo. Em pouco mais de dois meses deste ano de 2020 já vemos o “Brexit”* (saída do Reino Unido da União Europeia) em execução. A tal onda de globalização, trans e multinacionalização dos anos 1990 e 2000 tem dado lugar a governos cada vez mais protecionistas, fechados em seus próprios interesses. Demonstrações de intolerância por todas as partes. Paulatinamente percebe-se uma – bem nítida – desintegração.
No entanto, apesar de esta incerta e turbulenta atualidade, uma simbólica resposta ao “Brexit” através da modalidade que os próprios britânicos consolidaram, o campeonato europeu de seleções de futebol, torna-se exemplo de integração. São ao todo doze estádios de doze cidades-sede, em uma dúzia de países daquele continente. Não mais todo o torneio concentrado em um ou dois países, mas por toda a Europa, de uma ponta a outra, de Bilbau a Baku; de Roma a São Petersburgo. Ironicamente, a final será disputada na capital do país que optou em não mais fazer parte da União Europeia, Londres (Reino Unido).
Há muito ainda a ser feito. Entretanto, em meio a estes tempos sombrios, a Euro 2020 é espécie de pontapé inicial do que o futebol é capaz de fazer: integrar.
E é capaz de fazer muito mais. A candidatura conjunta de Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai para a Copa do Mundo de futebol de 2030 pode estimular – por que não? – um por séculos tão sonhado processo de integração regional sul-americano. Se for resgatado na história, a atual “Liga dos Campeões da UEFA” foi concebida na esteira da euforia da integração europeia, nos anos 1950 do século XX. Na Copa América de 2020, Argentina e Colômbia assim o farão na medida do possível. A comunicação e marketing oficial do evento inclusive já trabalham a ideia de um continente integrado pelo futebol.

EURO 2020 (Foto: Reprodução/Divulgação)

 
Com tudo isso, assim como escrito em colunas anteriores, o futebol tem sido lugar para demonstrações de intolerância. No entanto, é preciso trabalhar de maneira incansável para que ele seja antes de tudo um manancial de bom senso e bons exemplos que o mundo muito precisa.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

O esporte possui um poder imenso para unir povos, além de promover a paz e o desenvolvimento.”
Ban Ki-Moon
ex-Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU)

 

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Cartas para um futebol humanizado – #01

Crianças correm atrás da bola: quantos mundos há num jogo de futebol? (Foto: Divulgação/ Reprodução:Dallas Parks Foundation)

 
Tenho comentado aqui já faz um tempo sobre a centralidade do processo de humanização do treino/jogo. Sobre isso, já escrevi algumas colunas, que vocês podem encontrar nos arquivos. Vou fazendo abordagens diferentes, mas que acabam tendo um mesmo pano comum, que são tecidas juntas (a origem da palavra complexo, cada vez mais comum no nosso vocabulário no futebol, é exatamente essa, aquilo que é tecido junto).
Também percebo que existe alguma dificuldade de perceber o que significa fazer essas coisas na prática – ou pelo menos nisso que entendemos como prática. Ao mesmo tempo, é uma ansiedade que me parece desnecessária. Vamos conversando por aqui e, nos tempos certos, encontramos as nossas formas de avançar.

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Bom, a primeira coisa que me ocorre é a seguinte: seja no futebol de iniciação, seja na especialização ou mesmo no rendimento, acho bastante claro que estamos falando de um processo pedagógico. Se pensarmos a Pedagogia como a ciência da educação, então entendemos um pouquinho mais o sentimento de que o futebol é uma prática educativa e, ao mesmo tempo, é uma prática humana. O que significa que lidamos com educação (ou seja, temos um caminho não apenas tático, técnico, físico e etc, mas um caminho pedagógico) e que lidamos com a educação de seres humanos – o que também é bastante particular.
Me permitam me estender um pouquinho mais neste sentido, porque o fato de lidarmos com seres humanos (novamente, seja na iniciação esportiva, no processo de especialização ou com atletas de rendimento) tem algumas implicações muito particulares. Quando falamos de pessoas, estejam elas jogando futebol ou não, falamos de sujeitos que se diferenciam dos outros animais através das palavras (lembrem-se do Aristóteles, humanos são viventes dotados de palavras) e que, portanto, são capazes de atribuir sentido a tudo o que lhes acontece a partir das palavras. Da mesma forma, como profissionais do futebol, precisamos ter claro que as palavras são como flechas: elas podem tanto chegar aos alvos certos, quanto podem chegar aos alvos errados e inclusive ferir os alvos (e as pessoas) erradas. Na Grécia Antiga, por volta do século IV a.C., na transição para o período socrático da Filosofia, já era corrente considerar que as palavras podiam ser tanto remédios quanto venenos – tudo dependia do uso e da dose.
Quando penso no processo de humanização, penso bastante fortemente no peso das palavras, no significado das palavras (que é e sempre será diferente para cada um, o que significa que o que dizemos não é e não será o que o outro entenderá sobre o que dissemos – essa batalha está posta) mas, especialmente, no poder das palavras ao longo do processo de formação. Isso significa que um caminho que podemos considerar é estimular os atletas, em quaisquer níveis, a dar sentido às coisas que lhes aconteceram no processo de treino/jogo, assim como também nós, como treinadores e profissionais do futebol em geral, vamos dando sentido às coisas regularmente, com continuidade – e isso acontece exatamente pelas palavras. Porque se fizermos isso, damos um grande passo no seguinte sentido: as coisas não são como parecem, as coisas são o que fazemos delas. Ou, se você preferir: o problema não está exatamente na derrota, ou exatamente no treino, ou exatamente nas relações, ou exatamente no mundo, mas o problema está no sentido que damos à derrota, ao treino, às relações e ao mundo. O que fazemos com o que as coisas nos fazem nos diz, basicamente, quem somos e quem seremos no futuro.
Ou seja, um processo de humanização do treino/jogo é um processo que entende que lidamos com seres humanos, que sendo humanos estão em contínua formação (ou seja, não apenas podem mudar, como estão em mudança constante, ainda que nem eles ou nem nós mesmos percebamos), que sendo humanos são limitados, conseguem fazer e saber algumas coisas, mas não conseguem fazer e saber de todas as coisas (ninguém consegue). Não se pode esperar de humanos um comportamento de máquina, uma performance de máquina, uma eficiência de máquina, não apenas porque humanos não são máquinas (e não são coisas), mas também porque as máquinas, via de regra, são inteligentes para coisas muito específicas – e burras para todo o resto. Uma máquina pode processar vários terabytes de informação num tempo muito curto, mas não pode olhar os olhos nem sentir os sentidos de si mesmo ou de alguém. Máquinas, pelo menos por ora, não têm afetos, não sabem sentir, e é nisso que também reside a importância e a particularidade do humano.
Quando pensamos em modelo de jogo, em estruturas/sistemas de jogo, nesses debates posição/função, quando pensamos em blocos altos, médios e baixos, em metabolismo anaeróbio alático, anaeróbio lático e aeróbio, nas capacidades físicas, em força estática, dinâmica e em potência, quando pensamos na glicólise ou na gliconeogênese, quando pensamos no reto femoral ou no vasto lateral, quando pensamos nessas coisas todas, acho que devemos nos acostumar não a fazê-las antes de pensarmos no humano, mas depois. Todas essas coisas existem porque, antes delas, existe um ser vivo, consciente, potencialmente autônomo e livre, em movimento constante.
E talvez o processo de humanização do futebol seja, basicamente, um processo de nos entendermos como os humanos que somos. Na grandeza e nas limitações da nossa própria humanidade.
 

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A prova de fogo de Tiago Nunes no Corinthians

O trabalho de um técnico de futebol é muito complexo. E, ao mesmo tempo muito específico. Cada ambiente de trabalho, a cultura de cada clube, pede um tipo de liderança e um tipo específico de jogo. Cabe ao treinador, que é sempre o condutor maior do processo, ter a flexibilidade e as competências necessárias para identificar corretamente cada cenário e conseguir interferir nele de maneira eficaz.
Tiago Nunes não conseguiu ser bem-sucedido neste primeiro ‘micro-ciclo’ no Corinthians. O desafio era enorme já que o resultado teria que vir no curtíssimo prazo em função da Libertadores da América e ao mesmo tempo o contexto pedia uma ruptura com um conceito de jogo mais defensivo, sepultado com a demissão de Fábio Carille no ano passado. Todos esses ingredientes somados a pouco tempo de treino, viagem para torneio amistoso nos Estados Unidos e elenco sendo trocado, com chegadas e saídas de jogadores. Repito: cenário conturbadíssimo. E Tiago não conseguiu ser eficiente na gestão desses elementos.
Começa agora, porém, um outro momento. Com a eliminação na Libertadores, o Corinthians terá tempo para trabalhar e treinar. Neste primeiro semestre, apenas o Paulista e o início do Brasileirão para disputar. Tiago Nunes poderá, então, mostrar suas habilidades não só para criar e ajustar comportamentos táticos, mas também para gerar conexão e laços com – e entre – os atletas. É um trabalho que exige tempo para ser implementado. E tempo, o Corinthians terá de sobra…
Os próximos jogos do Campeonato Paulista serão fundamentais e até decisivos. É imprescindível que o Corinthians apresente uma melhor performance. O desafio de Tiago Nunes continua sendo dificílimo, afinal se trata de um dos maiores clubes do mundo. Só que a justificativa da falta de tempo deixará de existir…
 

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Dudamel e o imediatismo do futebol do Brasil

O treinador venezuelano Rafael Dudamel fora contratado em janeiro para assumir o Clube Atlético Mineiro. Pouco tempo depois, foi demitido. Alegam que os bons resultados não vieram, entre outras coisas. Mais uma constatação da falta de planejamento e do trabalho com base no imediatismo de boa parte da elite do futebol do Brasil.
Para que um trabalho tenha solidez e seja sustentável, é preciso tempo. Quando se fala sobre Marketing Esportivo, elemento da Gestão do Esporte, o tempo é um bem bastante precioso. É através dele que se executa um cuidadoso plano de ação, em que cada passo possui resultados a serem atingidos. Estas ações possuem como base os valores da instituição que criam uma cultura organizacional, que por sua vez dão um sentido de missão para a instituição, cujo trabalho se volta para como o clube quer ser reconhecido e estar fazendo em um breve futuro. Desta maneira, criada esta cultura organizacional, com o tempo o marketing e a comunicação do clube podem atuar com base na condução dos trabalhos dos demais departamentos.
É preciso perguntar o porquê de contratar Rafael Dudamel. Longe de questionar suas competências e qualidades. Entretanto a contratação dele precisa se adequar ao que o clube quer no futuro próximo e como o novo treinador vai colaborar com a sua cultura organizacional, no cumprimento da sua missão e com base em seus valores.

Rafael Dudamel durante trabalho com o futebol venezuelano. (Foto: Divulgação/Reprodução)

 
Dudamel durante o trabalho à frente das seleções venezuelanas carregava com ele o exemplo de um sério trabalho com vistas a colher resultados a longo prazo. Era o treinador da equipe principal e das de base. Conseguiu dar identidade e mentalidade vencedora ao futebol de seleções do seu país, já não mais reconhecida como sendo a mais fraca da América do Sul. A “Vinotinto” foi vice-campeã mundial sub-20 masculina há alguns anos e o plantel certamente será a base em busca de uma vaga para um próximo mundial FIFA. Em linhas gerais, exemplo de planejamento, visão e trabalho de longo prazo. Em outras palavras, projetos que deram resultados.
Pelos vistos não foi pensado nisso quando o contrataram, para terem-no demitido após tão pouco tempo. Consequência do imediatismo que ainda trabalha boa parte do futebol de rendimento neste país, de satisfazer a torcida e do esquema de poderes entre os dirigentes da modalidade. Em outras palavras, o querer que resultados deem origem a projetos.
Com tudo isso, é preciso romper de uma vez por todas com paradigmas do passado que envolvem o futebol de rendimento do Brasil em um ciclo vicioso. É preciso pensar e trabalhar em longo prazo não apenas para a sustentabilidade da modalidade, mas para que dê sentido de missão, propósito e vocação para a organização esportiva e que esta viva e cumpra com os seus valores.
Vencer, não apenas dentro de campo, mas fora dele também.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

O segredo da mudança é concentrar toda a sua energia, não em lutar contra o velho, mas em construir o novo.”
Sócrates
Filósofo da Grécia antiga

 

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Demissões rápidas e burras

Trocar de treinador não é algo proibido. Todo contrato tem cláusulas que preveem a quebra por qualquer uma das partes. Até por isso, a minha questão aqui não é nem a parte legal do negócio- hoje em dia, inclusive, a maioria dos técnicos que são demitidos acaba recebendo todos os valores acordados. O que me deixa perplexo, porém, é a falta de conhecimento e paciência de dirigentes que ávidos por darem ‘respostas a torcida’ cometem barbaridades ao contratar e demitir.
Na primeira divisão do futebol brasileiro estão os melhores clubes do pais – pelo menos no momento atual. Imagina-se que por esse status eles saibam o que estão fazendo e onde querem chegar. Como explicar, então, de maneira lógica e racional que quatro dos vinte clubes da Série A do Brasileiro de 2020 já demitiram o treinador com apenas um mês de temporada? Eu não consigo compreender…
Falta entendimento processual de formação de equipe para quem está no comando diretivo. Vou repetir: não sou contra demitir técnico! Mas desde que haja minimamente uma base concreta para avaliação de que o trabalho está sendo mal feito. Para começar, dirigentes verdadeiramente preparados buscam inúmeras informações antes de contratar. Ainda mais para um cargo tão estratégico como o de treinador. Ideias de jogo, metodologia de treinamento, relação com jogadores, gestão do ambiente, tudo isso entra – ou deveria entrar – em requisitos pesquisados por um dirigente antes de assinar um contrato com um técnico. E, a não ser que haja um fato negativo muito fora da curva, não há como fazer uma avaliação real e justa de um trabalho tão complexo com apenas um mês.
No mercado corporativo há um lema que diz: demore para contratar e seja rápido para demitir. Ou seja, pesquise muito antes de contratar alguém e tenha perspicácia para avaliar rapidamente se as coisas estão fluindo e se não estiverem troque rapidamente. Trazendo esse pensamento para o futebol, temos um círculo vicioso só de rapidez tanto para contratar como para demitir. O problema é que a rapidez para demissões não se justifica por perspicácia e sim por analfabetismo de quem está com a caneta nas mãos.
 

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Sobre a abertura de um mundo mais longe do gol

Papu Gómez, da Atalanta: recuando metros, se aproximou do gol. (Foto: Reprodução/Diario AS)

 
Na última semana, logo na manhã que precedeu a enorme vitória da Atalanta sobre o Valencia, pela ida das oitavas-de-final da UEFA Champions League, começou a rodar internet afora esta entrevista do argentino Papu Gómez, um dos destaques da excelente equipe de Bérgamo. É uma leitura absolutamente indispensável, que indico desde já aos amigos e amigas.
No texto de hoje, gostaria de comentar algumas das respostas dadas por ele, uma vez que elas realmente ampliam algumas das nossas fronteiras sobre o jogo jogado. Transcrevo perguntas e respostas pontuais (sempre com traduções livres) e faço comentários logo na sequência.

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1- Gasperini diz que na Itália existe uma obsessão pela simetria na ocupação regular do campo, e que isso é bom para a ordem defensiva, mas ruim para atacar. Como se incentiva a ousadia?

  1. Ele até quer que os defensores arrisquem um passe interno, para filtrar as linhas. E, é claro, nos dá toda a liberdade no ataque. Mas isso está em mim: eu sei que tenho que arriscar. A gambeta [prefiro não traduzir] é minha coisa. E eu sei que, ao fazer isso, quebramos as linhas. Se eu tirar um cara, um mundo se abre. E mais na Itália, onde os jogos são muito táticos, todos eles balançam, com duas linhas de quatro, com oito caras defendendo. Se você não quebrar, pode ficar jogando a vida inteira, mas não quebrará nenhum esquema.

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Aqui, tanto a pergunta quanto a resposta são maravilhosamente importantes. Este tema da simetria me interessa muito, e talvez vocês se lembrem que escrevi largamente sobre isso no ano passado, mais precisamente aqui. Em linhas gerais, está cada vez mais normalizada a ideia de que o bom ataque, ou melhor, o ataque ‘organizado’, só pode acontecer se for simétrico, se houver ocupações racionais do espaço e etc. São todas ideias que, a meu ver, carecem de questionamento, como propus nas colunas acima.
O ponto principal (embora não pretenda aqui) está na ideia de ordem. Como já conversamos em diversos outros momentos, é preciso ter algum cuidado ao pensarmos a ordem no jogo de futebol, porque sendo sistema aberto, as ordens no jogo estão profundamente vinculadas ao caos (dentro daquilo que o querido Alcides Scaglia chama de padrão organizacional sistêmico). Às vezes, é de fato preciso mais ‘ordem’ na defesa, mas mais ‘caos’ no ataque. Daí que não apenas seja necessário repensar o que entendemos por ordem no jogo de futebol, como também o que percebemos como ordem na vida vivida – lembrando o futebol como prática da vida.

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1- Então, qual é o esquema da Atalanta?

  1. A ideia é jogar com uma linha de cinco defesas, mas os esquemas são mentirosos. Podemos dizer que jogamos com uma linha de três zagueiros, mas, afinal, acabamos jogando com dois, mano a mano atrás. Porque o zagueiro que sai com a bola sempre acaba atacando em busca de uma superioridade numérica. Na fase defensiva, podemos dizer que defendemos com cinco, mas se um lateral-meia sobe, o outro cobre e ainda restam quatro.

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“Esquemas são mentirosos” é outra ótima frase, mas que precisa ser percebida dentro de um contexto. Recentemente, na coletiva de apresentação no Palmeiras, Vanderlei Luxemburgo disse algo muito parecido, mas que não foi muito bem interpretado (talvez intencionalmente), porque é óbvio que quando se diz que os esquemas são ‘mentirosos’ ou ‘não existem’, não está se dizendo literalmente.
O que está sendo dito é que os esquemas vão se dissolvendo ao longo do jogo, a cada instante, e que o que chamamos de 4-4-2 ou 4-3-3 ou qualquer outra coisa são, basicamente, referências posicionais que precedem a tomada de decisão, mas que dependem dos movimentos da bola, dos companheiros, dos adversários, depende do espaço, do estado humano de cada atleta, etc. Num jogo como o futebol, os esquemas não são alguma coisa, eles estão alguma coisa. Por isso, neste mesmo espaço, escrevi certa vez sobre a fluidez das estruturas táticas.

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1- Dribladores naturais como você, aqui na Europa são geralmente aventureiros individualistas. Sua tarefa é mais unir do que quebrar?

  1. A palavra que vem à mente é italiano: convolgere. Envolver! Quando você envolve toda a equipe, quando você faz todos participarem … eu sei que sou importante pelo jeito que jogo como Ilicic, que talvez drible um e então tudo se abre; mas sei que os laterais também são muito importantes aqui, que um faz o cruzamento e o outro chega ao gol na mesma jogada [nota: foi exatamente assim que saiu o primeiro gol da Atalanta contra o Valencia, no dia da publicação dessa entrevista]. Como os dois meio-campistas, um para chegar ao arremate e o outro para dar equilíbrio. Até os zagueiros chegam ao gol. Toloi, o zagueiro direito, tem quatro assistências. Porque ele chega com a bola dominada perto da área rival e procura o passe interno.

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Aqui, está muito clara uma outra noção, sobre a qual escrevi mês passado, muito próxima disso que podemos chamar de flexibilidade. Ou seja, defensores cheios de obrigações ofensivas, atacantes cheios de obrigações defensivas. As fronteiras que separavam algumas funções das outras estão se dissolvendo sempre mais, e ser um especialista, restringir-se a apenas uma função (e isso serve tanto para os jogadores quanto para os profissionais do futebol em geral) talvez não baste. Daí que seja tão importante essa ideia do envolvimento, do convolgere, da unidade da equipe nos momentos ofensivos e defensivos, além da consciência dos próprios atletas do seu papel neste processo. Para não falar de uma questão de valores, de solidariedade, alteridade, empatia e etc, especialmente importantes no processo formativo.
Papu Gómez talvez tenha sido criado como um jogador muito mais de ataque, muito mais vocacionado ao gol (como ele mesmo diz mais adiante na entrevista). Mas talvez, com o tempo, tenha descoberto que às vezes o gol fica mais perto quando nos afastamos dele.
 

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Natural e sintético

Esta coluna há um bom tempo reproduz a ideia de que a indústria do futebol faz parte da indústria do entretenimento. Manter uma equipe de rendimento é caro e demanda por recintos cada vez mais especializados a fim de potencializar o rendimento esportivo e financeiro dos clubes. No cenário brasileiro, imaginar que só a atividade do futebol será capaz de manter um moderno estádio que atende às expectativas dos colaboradores e torcedores, é ingenuidade.
É preciso buscar por mais maneiras de arrecadação de recursos. Nesse sentido os estádios modernos tornaram-se lugar ideal para a realização de grandes concertos musicais ou outros espetáculos. Haja vista a deterioração do gramado natural por conta destas outras atividades extra-esportivas do estádio, os custos com a sua manutenção aumentaram exponencialmente. Qualquer falha  deste “tapete verde” pode levar à lesão de um atleta e afetar o rendimento da equipe, ou seja, interferir nos resultados esportivos e, consequentemente, financeiros. Fora o fato de, em função da preferência dada para o estádio em receber um concerto musical, a equipe terá que atuar em outro recinto esportivo, o que também pode afetar o resultado de um jogo. Afinal, joga-se em um lugar que não é a sua “casa” de costume.
Ademais, estudos apontam que os gramados sintéticos reduzem os riscos de lesão e, à prazo, reduzem os custos de manutenção. Há ainda os que dizem que eles favorecem o andamento de uma partida, o que leva à valorização do jogo e, assim sendo, o torna mais atraente ao público. Dessa maneira o marketing e a comunicação do futebol podem trabalhar com variáveis menos incertas e uma agenda menos sujeita a mudanças, de maneira a aproveitar os bons produtos que um clube ou torneio possuem: o jogo, os atletas e as instalações esportivas.

Allianz Parque a receber a instalação de gramado artificial (Foto: Edu Garcia/R7)

 
Com tudo isso, acostumem-se ou não, vai ser cada mais mais comum a “artificialização” dos gramados de futebol destes modernos estádios do Brasil. Existem outras soluções, bastante usadas em outros países para a conservação dos gramados naturais. Mas aqui, especificamente, só o futebol não é capaz de manter os custos das operações de um estádio.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Se grama artificial fosse boa, a vaca comeria”.
Dunga, Capitão da seleção brasileira tetracampeã mundial

 

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Hegemonia flamenguista?!

O trabalho dentro e fora de campo que o Flamengo faz deve ser exaltado. Copiado. Servir de exemplo para os demais. A reestruturação administrativa e financeira feita no clube é o alicerce para as taças que estão sendo erguidas. Reconheço o processo e aplaudo os merecidos frutos. Mas levanto a questão e coloco dúvidas sobre prever uma hegemonia flamenguista no futebol brasileiro e sul-americano para os próximos anos. Além de ser impossível saber o que vai acontecer lá na frente, não podemos nos esquecer jamais que o cerne de tudo é o que acontece dentro das quatro linhas; e alí, já estamos cansados de saber, que nem sempre a lógica é o elemento mais presente.
O dinheiro que o Flamengo gera faz com que o time seja sempre forte, com bons jogadores. Porém, isso não é garantia de títulos. No atual cenário, invariavelmente vamos apontá-lo como favoritos em todos os campeonatos. Porém, insisto: isso não quer dizer que vá ganhar sempre. Uma equipe de futebol vitoriosa se constrói com vários elementos e há alguns que o dinheiro não compra. Hoje, está tudo bem com o elenco rubro negro. Entretanto, amanhã pode aparecer uma crise de relacionamento, algum jogador chave pode se machucar, a guerra nos bastidores pode descer da sala de reuniões e interferir no gramado, enfim, eu poderia trazer inúmeras situações que são corriqueiras no mundo da bola para defender a tese de que a solidez do Flamengo, sim, ajuda, mas não garante que a bola entre toda hora.
Há alguns anos vimos o Palmeiras indicar que teria uma hegemonia por aqui. Arena nova, projeto de sócios robusto, contratações bombásticas, enfim, o palmeirense se valia de vários itens, que eram reais e verdadeiros, para prever que teria uma sequência de anos vitoriosa. A temporada 2019 foi nula de troféus e vimos uma mudança brusca na gestão do clube. O próprio São Paulo na década passada, com quatro anos mágicos conquistando Libertadores, Mundial e três Brasileiros, se autoproclamou soberano e hoje vive uma seca de títulos.
Não quero nesse espaço ser ‘estraga prazer’ da maior torcida do país. Apenas me valho de alguns pontos e exemplos para não cair na tentação de cravar que o atual momento consagrado do Flamengo irá perdurar por anos e mais anos. O futebol é apaixonante porque a lógica na gestão, na administração e nas finanças é algo indispensável, mas ao mesmo tempo não garante nada. Já pensou que chato seria saber o resultado dentro de campo com base no que acontece fora dele? Os clubes mais bem administrados estarão sempre no topo. Mas para ser o primeiro deles é necessário mais do que contas em dia. E que bom que é assim!
 

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O que faz um bom jogador? – Parte II

Ronaldo Nazário, então na Internazionale: atribuir sentido às lesões o fizeram mais forte. (Foto: Reprodução/IG Esportes)

 
Não faz muito tempo, começamos aqui uma conversa sobre o que faz um bom jogador. Citei o exemplo do Alexander-Arnold, na semi-final do Mundial de Clubes, e como um espaço que ninguém viu só é possível com uma certa indisciplina do pensamento, por alguém que pensa e age fora das normas, fora da curva.
As duas características que citei no outro texto foram (e são) uma certa indisciplina do pensamento e uma certa negação, uma sensação de que é possível fazer mais e melhor no jogo jogado. Vocês podem ler melhor no texto.
Hoje, gostaria de dar continuidade à essa ideia, a partir de uma outra variável – e de uma rápida observação. Vejamos.

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Além das características que já citei, sinto que outra dessas coisas que faz um bom jogador, não sei se vocês concordam, é uma capacidade de atribuição de sentido. Deixem-me explicar melhor: há algumas semanas, fiz uma citação do Aristóteles que, como sabemos, nos separou dos animais exatamente pela capacidade de pensar. Só que pensar, neste caso, não significa apenas usar a razão, mas usar a razão e as palavras (animais não têm palavras) justamente para atribuirmos sentido às coisas que nos acontecem. As coisas nos acontecem na vida vivida e, com o tempo, damos a elas significados, atribuímos valores, fazemos algo com as coisas que nos fazem. Daí que a questão não esteja nas coisas em si, mas sim no que nós fazemos com elas.
Muito bem, quando penso no bom jogador (em qualquer modalidade), penso bastante naquele jogador que faz sentidos (ou seja, cria sentidos) de pelo menos duas formas diferentes: dentro do jogo e fora do jogo. Penso no jogador que não se intimida quando recebe uma bola sem espaço, que se sente motivado (e não restringido) nos maiores problemas do jogo, que procura os espaços que ninguém viu (portanto, que sabe ler nas entrelinhas), que entende o valor do fracasso, da pressão, do próprio medo, das limitações tático-técnicas que possa vir a ter, enfim… penso que tudo isso faz um bom jogador. Mas (e aqui está o pulo do gato), sinto que o bom jogador também é aquele capaz de atribuir sentido às coisas que lhe acontecem na vida vivida, fora do jogo jogado. Mais do que isso, é aquele que consegue levar o que lhe passa na vida vivida (exatamente pela superação da frustração, pelo cultivo da disciplina, pelo entendimento do tédio, pelo cuidado de si) para o jogo jogado. E isso, vejam bem, também faz parte das responsabilidades que cabem a nós, treinadores e treinadoras, que devemos sim cultivar nos nossos atletas essa capacidade de atribuir sentido às coisas que lhes acontecem, de dar sentido ao jogo que jogam (porque o jogo não tem um sentido determinado a priori), dar sentido ao jogo que são capazes de jogar (ou seja, que está por ser inventado) e, portanto, de dar sentido à vida que vivem e à vida que podem viver. Quando escrevo, como já fiz por diversas outras vezes, sobre o processo de humanização do treino/jogo, também é um pouco disso que quero dizer.

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Por fim, reparem apenas que esse negócio de ‘faz um bom jogador’, que coloquei no título, tem um duplo sentido. E isso é proposital: podemos falar tanto daquilo que o próprio jogador faz para ser bom como daquilo que a vida faz com o jogador e o torna bom, percebem? Se você preferir, de um lado o jogador como ponto de partida, do outro como ponto de chegada. Acho importante fazer essa distinção porque vocês sabem, tanto quanto eu, que é justamente do que falamos quando falamos do processo de treino – especialmente se pensarmos na superação do tecnicismo. Quando pensamos em educação (e é disso que estamos falando aqui, educação de jogadores, nos mais diversos níveis), pensamos em uma relação, em um componente de troca, no qual deixamos algumas coisas para o mundo, mas também recebemos coisas em troca, agimos sobre o mundo na mesma medida em que ele age sobre nós. E aqui, não posso deixar de perguntar: será mesmo que o nosso peso sobre o mundo é maior do que o peso do mundo sobre nós?
É justamente por isso que devemos ser tão rigorosos (no melhor sentido) no nosso trabalho como treinadores e profissionais do futebol em geral, porque nós também ‘fazemos’, de alguma forma, o bom jogador. Ele é fruto de si mesmo, da sua história, dos seus afetos, do seu pensamento, das suas ideias e das suas ações, mas também do peso do mundo, das coisas, das pessoas, da vida vivida.
A percepção desse processo de troca, e dos sentidos que o sucedem, é absolutamente fundamental para avançarmos no sentido de debates e práticas mais refinadas.
 

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Tempos de intolerância

Infelizmente, observa-se um mundo cada vez mais intolerante. Racismo, xenofobia, questões de gênero. Tudo isso acontece semanalmente. Uns casos têm mais repercussão, outros nem tanto. No entanto, acontecem com frequência. O de domingo, dia 16 de fevereiro, na primeira liga portuguesa, com o atleta malinês do Porto, Marega, trouxe à tona novamente o tema. Em pleno século 21, quer seja na ciência e na tecnologia, o ser humano avança. Nas relações humanas, retrocede.
Alguns estudiosos dizem que tudo isso acontece por conta do aumento do fluxo migratório, do detrimento dos vínculos de trabalho formal, do anonimato que as redes sociais e do convívio que os grandes grupos conferem. Da ameaça à rotina, às instituições, aos ritos e tradições. Da perda da identidade que o “outro” pode colocar em risco.
O que se sabe é que é impossível justificar tais atitudes. Não há motivo para isso. O futebol desde o seu início foi feito por todos e é para todos. Estas situações devem ser amplamente debatidas e as soluções postas em prática. Combater e punir quaisquer atos racistas, xenófobos e que envolvam o gênero. É medíocre e inaceitável a falta de consideração com o próximo.

(Foto: Reprodução/Divulgação)

 
Todos falam em “futuro melhor” e “mundo melhor”. Mas isso não será alcançado se não houver o respeito. O futebol, pelo alcance que possui e a capacidade de formar opinião, está repleto de exemplos negativos dentro e fora de campo. Por que não tratá-lo para difundir bons valores, valores humanos – comuns a todas as religiões – de respeito e harmonia? Futebol de rendimento é competitivo e o foco está no desempenho, sim. No entanto, não a todo o custo. Para isso não é preciso se olvidar dos valores: o jogo limpo.
Portanto, é preciso pensar em como queremos o mundo para as próximas gerações. Confuso, com pessoas próximas ao seu círculo sendo vítimas de intolerância? Ou mais leve, com respeito e iguais oportunidades para todos, independente da origem? O futebol tem sido capaz de transformar tanta coisa. Pode transformar o mundo.
Em tempo: o amigo leitor pode se questionar de esta coluna nada se referir nesta semana ao Marketing Esportivo. Vamos pensar que a comunicação de um clube, uma liga e uma federação no combate à intolerância é no mínimo um começo para uma grande transformação.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Esforce-se não para ser de sucesso, mas sim para ser de valor”.
Albert Einstein