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O treino para o futebol brasileiro

Um dia o ex-craque Pedrinho, hoje comentarista de futebol do Sportv, me perguntou:
 Se já treinamos há tempos com os mesmos tipos de treinos que os europeus, porquê não jogamos taticamente como eles?
Ainda não cheguei a conclusões que encerram verdades claras para responder a isso, mas passei a ser mais observador na montagem e aplicação das minhas tarefas e de outros profissionais que tive oportunidade de acompanhar de perto.
Como lidamos com o treino? O quê, conscientemente, acreditamos estar transferindo do treino para o jogo? O quanto valorizamos o treino enquanto ferramenta transformadora do jogo?
Em um bate-papo sobre treinamento, um amigo do futebol me disse certa vez: – você acredita muito no treino, mas não é só isso que ganha jogo! Tem muita “sacanagem” à volta do futebol que a gente precisa estar atento!
Eu esperava que ele fosse me dizer algo sobre metodologia de treino, perfil de atleta, cultura de jogo, etc., mas veio com mais essa “preciosidade”!
Desde que estou no futebol escuto que o treino deve ser praticado com alegria. O ambiente do treino deve ser descontraído, dentre outras coisas.
O esporte é sinônimo de alegria em várias circunstâncias. Mas no alto nível, sob a pressão que sofrem seus protagonistas, não se pode considerar o treino dos seus fundamentos um palco para diversões.
Um parêntese que corrobora com a nossa reflexão: Leonardo, atualmente dirigente esportivo de clubes europeus, disse certa vez:
– O jogador médio europeu é melhor treinado que o jogador médio brasileiro!
Qual seria o alcance dessa fala?
Quando o Leonardo diz “jogador médio”, não dá maiores referências sobre o que isso significa. Acredito que jogadores médios são quase a totalidade daqueles que vemos praticando o futebol profissional pelo mundo. Exclui-se os “diferenciados”, que estão em dois ou três níveis na parte superior da pirâmide e os “medíocres” que nem chegam a competir profissionalmente. Os que vemos competindo por todos os clubes do Brasil e do mundo são os “jogadores médios”.
É claro que entre os médios poderíamos distinguir níveis qualitativos diferentes, e acho até que é neste ponto que podemos encontrar a reflexão do Leonardo. O desenvolvimento do talento esportivo, assim como em outra área qualquer da performance humana, depende fundamentalmente do treino e nos parece que o jogador europeu está mais consciente e melhor adaptado a isso.
– Como os times brasileiros encaram o treinamento em suas semanas de trabalho?
Geralmente com alegria além da conta. Se, após uma sessão de treinos, perguntarmos aos jogadores brasileiros o que treinaram, poderemos nos assustar com algumas respostas. Há jogadores que não saberiam dizer o que fizeram.
Tá tudo relacionado ao nível de concentração que levam para o treino e também à cultura do que consideramos treinamento e sua importância no futebol. Costumamos ir a campo “brincar ao invés de treinar”, pois interpretamos mal o conceito de alegria no treino. Podemos ir alegres para todas as sessões de treinos da semana, pois estamos “fazendo o que gostamos”, mas precisamos estar “sérios e concentrados” para usufruir da riqueza instrutiva que cada uma delas nos traz.
Como podemos cobrar na fase adulta um nível de jogador diferente do que os que encontramos no futebol brasileiro?
As respostas a esta e outras perguntas podem estar na qualidade e/ou seriedade dos treinos que praticamos.
Isso é muito abrangente! Não me refiro a fazer um treino bonito e moderno como fazem os melhores treinadores e/ou equipes do mundo. Isso já fazemos, como bem disse o Pedrinho. Muito menos, que jogadores e equipe estejam sérios e tensos para treinar.
O quê estamos treinando? O quê os jogadores e as equipes estão absorvendo dos treinos? O quê isso tudo que treinamos tem a ver com o jogo que queremos construir? Será que os treinadores saberiam responder a essas perguntas com a consciência investigativa que precisa ter?
O treinamento para alta performance deve começar sério já nas primeiras idades de descobrimento e desenvolvimento dos talentos.
E o mais contraditório nisso tudo e que talvez venha perturbando o nosso entendimento do que seria a alegria no treino, é que na pequena idade “o talento se desenvolve brincando” e precisa “treinar brincando”, mas TREINAR brincando!!
Quer coisa mais séria que a garotada jogando uma “pelada de rua”, ou de futsal, ou num jogo de várzea?…
Alegria e ousadia é o que queremos dos nossos jogadores e jogo. Mas, se não treinarmos seriamente os fundamentos que desenvolvem o talento e o jogo nunca mais seremos alegres e ousados em nossa maneira de jogar. Principalmente neste perfil de jogo que hoje é praticado!
O futebol do passado era técnico e o moderno é tático. A mente dos nossos jogadores têm de estar presente em treinos e jogos para “a coisa funcionar”. Esse é o ponto!
Antes de um treino, após mencionar palavras do Van Gaal sobre a “importância de se treinar o cérebro e não somente as pernas dos jogadores”, perguntei a um dos meus comandados o quê o treinador holandês queria dizer com essa frase?!
– Ahm?! O quê?! Desculpe, professor! Eu não prestei atenção no que você estava falando!!!
Onde estava “a cabeça desse jogador” para iniciar uma sessão de treino, com vários itens do nosso jogo a serem desenvolvidos? E o mais sério é que se tratava de uma equipe adulta!
Este jogador e muitos outros vão aos treinos à espera que a bola comece a rolar para que possam “brincar”! Foi isso que aprenderam desde criança e está na cultura do nosso futebol. Aí, as coisas mudam no mundo e não conseguimos acompanhar, ou queremos que elas voltem a ser como antes.
É tudo muito sutil, mas importante também!
Será que devemos imputar à cultura do futebol brasileiro todas as responsabilidades dos nossos erros? Cultura se quebra e se reconstrói! É fácil? Nada nunca foi fácil, mas o homem sempre fez, quando quis!
As palavras do Leonardo batem fundo em nossas mentes e são realidade absoluta quando assistimos a qualidade do jogo que ainda jogamos: muitos erros nas tomadas de decisões táticas, na execução dos gestos técnicos e na organização do jogo.
Este é um dos temas que mais aguçam as minhas reflexões!
Não fique triste futebol brasileiro! Tem coisas boas acontecendo pra mudar isso e para melhor!
Abraço!
 

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Tiago Nunes e seus dilemas corintianos

A dificuldade e a complexidade do trabalho de Tiago Nunes neste início de ano no Corinthians não são novidades. Tenho certeza que o dilema na mente dele começou ainda no ano passado, quando foi contratado. Ele foi o escolhido para substituir Fábio Carille para romper com uma ideia de jogo. Mas como fazer com que os jogadores assimilem e somatizem novos comportamentos rapidamente a ponto de darem resultados em um curtíssimo prazo?! Missão das mais desafiadoras…
Dos clubes grandes paulistas o Corinthians é o que tem a menor margem de erro. Ao passo que Palmeiras, São Paulo e Santos já estão na fase de grupos da Libertadores, a equipe de Tiago Nunes tem todo o planejamento do ano dependente dos confrontos iniciais e imprevisíveis da competição. Ilusão ainda acharmos que um Guarani do Paraguai ou um San José da Bolívia, ou o time que for em uma competição como essa, sejam presas fáceis porque não tem a “tradição” de um Corinthians. E, por mais que o departamento de inteligência do Timão seja um dos mais capacitados do país alguns ingredientes são aleatórios e da própria natureza do jogo.
Um mapa da preparação inicial do Corinthians já indicava as dificuldades atuais. Viagem desgastante para a Flórida Cup, jogadores saindo, jogadores chegando e, o principal, a necessária mudança nos conceitos com e sem a bola. Futebol não tem fórmula. Mas tem tendências. E romper com uma forma de um clube jogar demanda tempo. E é justamente tempo que Tiago Nunes não tem. O misto entre aproveitar algumas ideias já no inconsciente da equipe com algumas pitadas de ousadia com coisas novas pode ser a chave para Tiago Nunes sobreviver neste início. E falo em sobrevivência não levantando nenhuma questão de demissão. Mas sim em sobreviver nesse caos que é o futebol brasileiro da necessidade de mudar aliado, muitas vezes incoerentemente, com a necessidade resultado pra ontem.
 

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Princípios de governança para a credibilidade

Foi finalmente lançado em português do Brasil o livro “Cartão Vermelho”, de Kim Basinger, sobre o escândalo de corrupção na entidade máxima do futebol mundial, a FIFA. A operação do FBI (Escritório Federal de Investigação, sigla para Federal Bureau of Investigation) em hotel suíço, que levou à prisão vários conhecidos dirigentes completará 5 anos no próximo mês de maio.

Desde então percebe-se um movimento tímido, mas cada vez mais comum, em relação aos cuidados com princípios de governança nas entidades de prática (clubes) e de administração do esporte (federações e confederações). Apesar de serem pessoas de direito privado, trabalham com manifestações de interesse público. Afinal, o futebol é um fato social total, a modalidade representa diversos setores da sociedade. Através dos seus clubes e seleções nacionais as pessoas se identificam. Promove-se o sentido de unidade e pertencimento, estabelecem-se ritos e tradições, além de atributos intangíveis, fundamentais para o ser humano.

Foto: Reprodução/Divulgação

 

Desta maneira as pessoas cobram pelo bom tratamento, gestão e condução deste “bem público”. Querem títulos, é verdade, mas ao mesmo tempo não gostam que grupos de interesse façam dele um trampolim para a projeção pessoal, enriquecimento ilícito ou manutenção do status quo (tráfico de influência). 

Princípios de governança sugerem, em resumo, que os interesses coletivos e os da organização esportiva sejam colocados em primeiro e único lugar, em detrimento dos individuais ou dos pequenos grupos, com base em um planejamento estratégico e de acordo com a sua origem, quando estabelecidas a missão, a visão e os seus valores.

Com tudo isso, a aplicação de políticas de governança com o tempo contribuem para a transparência e capacidade de comunicação da organização esportiva, melhora o relacionamento com as partes interessadas (torcedores, investidores, comunidade) e colabora para a imagem institucional. A longo prazo essas ações serão fundamentais para a sua sustentabilidade e existência em um ambiente cada vez mais competitivo e com consumidores cada vez mais exigentes, que não querem ver as suas contribuições financeiras mensais sustentarem  estes determinados grupos de interesse. 

Em tempo: a coluna recomenda a leitura deste livro, mais o “O Delator”, de Átila Abreu.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

Sempre leio primeiro a página de esportes, que registra os triunfos das pessoas. A primeira página não me diz nada além dos fracassos do homem”.
Earl Warren, político e ex-chefe da Justiça dos Estados Unidos

 

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A mágica dos jogos iniciais

Nossa cultura pede resultados para ontem. Na maioria das vezes, os torcedores querem ganhar a qualquer custo. E é esse “a qualquer custo” que vai pouco a pouco definhando o nosso futebol. A partir do momento que o importante é o resultado, fatores como qualidade, desempenho e um jogo elaborado, ficam em segundo plano. Porque o que vale é ganhar. Não importa como…
Esse início de temporada tem escancarado falsas verdades absolutas. Eu juro que não consigo analisar o trabalho de um treinador e nem detectar o grau de evolução de um time assistindo apenas quatro ou cinco jogos. E veja, estudo tática como um leão…mas sinceramente talvez me falte a habilidade de cravar que uma equipe está fadada ou ao sucesso ou ao fracasso acompanhando alguns minutos dela, sendo que no atual momento do ano os técnicos estão completando um mês de trabalho (!) (e não de jogos)!!!
Como já apontar que Fernando Diniz não vai conseguir fazer o ataque do São Paulo funcionar em 2020? Ou que Vanderlei Luxemburgo não terá condições de fazer o elenco palmeirense aliar eficácia com solidez? Ou ainda já detonar o português Jesualdo Ferreira por não conseguir criar em um mês um jogo ‘intenso’ que Sampaoli demorou um ano para apresentar? Talvez o caso mais emblemático do futebol paulista seja o de Tiago Nunes no Corinthians: ele veio para romper com uma ideia de jogo, mas tem decisões pela Libertadores logo no início do trabalho. Mas mesmo se o Corinthians for eliminado pelo Club Guarani, do Paraguai, não acharei coerente tirar conclusões sobre o patamar da equipe.
Minha intenção não é ficar em cima do muro, pedindo tempo e paciência para você, torcedor. Quero apenas traçar uma linha de pensamento que acredita que o bom desempenho é consequência de um processo gradual de construção técnica, tática, física e mental de um time. Comportamentos com e sem a bola, relações e sinergias entre os setores da equipe e os próprios atletas dentro e fora de campo, além de uma mentalidade vencedora não brotam da noite para o dia. A cultura imediatista, do resultado pra ontem, desfavorece projetos pautados na complexidade, na visão sistêmica que dita que um todo (time) campeão vai muito além da soma de partes igualmente campeãs. Sei que o futebol é um jogo, uma competição, e que tudo deve ser feito pautado em ganhar. A minha crítica é a “como” ganhar. Para mim, importa como, sim. E desculpe minha falha, mas não consigo enxergar processo nem vitorioso e nem perdedor com apenas alguns dias de temporada.
 

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Por uma outra leitura da orientação corporal

Diego Maradona: a orientação corporal pode refletir qualidades humanas – as boas e as ruins. (Foto: Reprodução/Agiuar Buenos Aires)

 
Não sei vocês, mas faz algum tempo que percebo um grande interesse, especialmente de treinadores e analistas mais jovens, sobre o tema do posicionamento corporal do atleta ao longo do jogo. De um lado, posso dizer que compartilho bastante desse interesse. Não apenas porque se trata de um elemento de fato fundamental do jogo jogado (especialmente para os mais detalhistas, dentre os quais me incluo), mas também porque, sendo um elemento do jogo jogado, trata-se de algo que pode ser cultivado no processo de treino – e poucas coisas são mais prazerosas do que o cultivo a partir do processo de treino.
Mas, por outro lado, sinto que existe uma aposta sutilmente errada. Acho que podemos deslocar um pouco melhor o debate da posição corporal. Explico: não acho que a questão esteja em puramente instruir o atleta a posicionar-se de determinada forma em determinados momentos. Afinal, talvez essa fosse uma preocupação demasiado técnica (e as preocupações demasiado técnicas podem se equivocar quando creem que existe um gesto ideal para resolver um dado problema). Não, acho que a questão é outra: aquela posição corporal, naquele momento do jogo, não reflete um problema maior? Aquela postura não reflete, de uma forma sutil, o jeito como o atleta se posiciona no mundo – e não apenas no jogo? Pois, se isso for verdade, então concordamos que o problema não se resolve do ponto de vista puramente posicional.
Vejamos.

***

Como alguns de vocês já sabem, minha defesa irrestrita está no sentido da formação humanizada do atleta e da humanização do processo de treino/jogo. Mas o que significa essa formação humanizada? Sinceramente, eu mesmo estou aprendendo com o tempo, não há referências tão claras neste sentido, mas hoje diria que a formação humanizada tem, pelo menos, duas características centrais: I) é uma formação em que as questões táticas, técnicas e físicas são posteriores aos problemas humanos (leia-se: são consequências deles) e II) é uma formação total, sistêmica, de razão e de afetos, de corpo inteiro – para o futebol e para além do futebol.
Digo isso porque se quisermos falar de posições corporais, seja na recepção de um passe, seja no fechamento de uma linha de quatro, seja em uma bola parada ou qualquer outra situação, não acho possível dissociar uma coisa da outra. Permitam-me dar um exemplo: certa vez, lembro de ter treinado um jovem que gostava de jogar como primeiro volante, mas que insistia em receber a bola dos zagueiros ou do goleiro inteiramente de costas para o campo adversário. Como vocês bem sabem, este não é o posicionamento mais adequado naquela função: é melhor posicionar-se tão lateralmente quanto possível, de modo que o atleta possa perceber, pela visão periférica, se há um adversário às suas costas ou, caso não haja, que ações ele pode tomar, desde o primeiro toque, para dar um prosseguimento adequado à jogada.
É claro que orientei o garoto algumas vezes neste sentido, mas isso também me deixou inquieto. Pense comigo: que tipo de mensagens uma dada orientação corporal dentro do jogo pode nos transmitir? Neste meu exemplo, posso interpretar o seguinte: talvez não seja apenas um jogador que recebe a bola de costas no primeiro terço, talvez seja um jogador fortemente condicionado pela bola. E aqui entra a questão que comentei anteriormente: se atacamos somente a posição corporal nos momentos do jogo, talvez estejamos de fato resolvendo um problema pontual, mas não resolvemos o cerne do problema, de modo que ele se repetirá, de outras maneiras, em outras situações do jogo. Por exemplo: numa outra situação, (como ocorreu de fato), talvez a sedimentação da memória do garoto lhe fez lembrar que, quando a bola viesse dos zagueiros, era adequado posicionar-se mais lateralmente, olhar sobre os ombros, abrir-se para o jogo (atenção aqui, voltarei neste ponto adiante). Mas num escanteio defensivo, antes da cobrança, ele estava novamente anestesiado pela bola, de modo que ainda não estava aberto ao movimento dos adversários às suas costas. Percebem como o problema, na verdade, não foi resolvido?
O que estou dizendo é que a posição corporal do atleta nos momentos do jogo não pode ser vista apenas como um problema pontual que se corrige mecanicamente, mas pode ser vista como um sintoma existencial que precisa ser interpretado – se quisermos, de fato, atingir camadas mais profundas na formação dos nossos atletas. Porque se o jogador joga de corpo inteiro, como nos diz o Professor João Batista Freire, e se corpo e mente não estão separados (ao contrário do que aprendemos pela herança cartesiana), é claro que as ações do atleta não refletem apenas formas particulares de posicionar-se no jogo, mas formas particulares de posicionar-se no mundo! Aquele mesmo exemplo, do garoto que recebe a bola de costas, também me faz crer, como escrevi acima, que talvez houvesse um certo grau de fechamento do garoto para o mundo, a diminuição do ângulo de recepção da bola em relação ao jogo, talvez denotasse um certo fechamento do ponto de vista realmente humano – e o jogo seria mais uma tela do que o filme.
E neste caso, você haverá de convir, fica evidente a importância da interdisciplinaridade e, portanto, da abertura. É preciso que estejamos, como sujeitos e como instituições, abertos às áreas correlatas, abertos ao diálogo entre as diferentes áreas. Porque, naquelas suspeitas que levantei acima, é claro que os psicólogos do clube podem nos dar informações absolutamente fundamentais. Os pedagogos e pedagogas do clube podem encontrar maneiras particulares de contribuir para que o atleta atribua sentido ao seu processo de ensino-aprendizagem. E talvez uma correção de rota, do ponto de vista humano, contribua na resolução de um desequilíbrio muscular, ou auxilie o trabalho das nutricionistas, ou então dê ao atleta novas visões do mundo e de si mesmo (por isso, aliás, acredito num papel fundamental da filosofia no processo formativo), que justamente por isso farão dele um outro atleta, a cada instante.
E pelo investimento no humano (que nunca será gasto), talvez o atleta saiba se perfilar melhor no campo – porque também vai aprendendo a se perfilar no mundo da vida.
Não há distâncias.
 

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Querido, estadual

Outrora muito mais importantes do que são, ao longo dos anos os campeonatos estaduais têm perdido atratividade para os clubes com torcida mais numerosa em seus estados, sobretudo entre aqueles que fazem parte das séries A e B do campeonato brasileiro. A coluna não diz que perderam o charme, mas já não são tão importantes assim.
No Brasil os estaduais têm relevância haja vista que, historicamente, a modalidade teve início em um processo regional que aos poucos federalizou-se com o avanço da tecnologia de transportes e comunicações. Por isso, muitos destes campeonatos possuem mais de um século de história.
Ao passo que aumentaram os interesses comerciais, o profissionalismo e a indústria do esporte inserida na do entretenimento, a diferença na formação de planteis competitivos entre os clubes com torcida numerosa e os sem, aumentou drasticamente. Assim sendo, os estaduais foram perdendo interesse enquanto que as competições nacionais, aumentaram. Os clássicos passaram a ter um alcance muito maior ao envolverem mais pessoas e centros regionais: capitais contra capitais, estados contra estados, uma causa contra alguma outra, talvez.

S. E. Palmeiras campeão paulista de 1993 com o troféu “Palácio dos Bandeirantes”. (Foto: Reprodução/Divulgação)

 
Desta maneira os estaduais não conseguiam dar em retorno o que os nacionais passavam a conceder, ainda mais garantir vaga para competições internacionais, o que todos querem, uma vez que o retorno financeiro é maior e a projeção, mundial.
O próprio slogan da Libertadores sugere: “A Glória Eterna”.
É compreensível, portanto, o esvaziamento e fuga de alguns clubes diante das competições de cada estado. Athletico Paranaense e Flamengo, por exemplo. Sem se falar na disputa dos bastidores do rubro-negro carioca com emissora de TV pelos direitos de transmissão, imbróglio que afasta cada vez mais o interesse do público pelos estaduais que, a coluna repete: possuem seu “charme”.
Ajuda, mas este “charme” não paga as contas.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

O futebol é como o mundo deveria ser: simples, com garantias de liberdade, igualdade e espaço para o talento individual”.
Mario Vargas Llosa,
escritor peruano

 

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O processo santista com Jesualdo

O trabalho de um treinador de futebol é um processo. É uma construção. Composto por várias etapas. Alguns resultados aparecem no início disso tudo. Claro, com o dedo do treinador – nada é por acaso. Mas também muito por conta do caos que é o jogo de futebol. Algumas mudanças surtem efeito rápido e são capazes de ganhar jogos. Só que para ganhar campeonatos insisto na questão do processo. Longo, construído, trabalhado e com métodos.
O português Jesualdo Ferreira chegou agora no Santos. Tem pouquíssimo tempo não só de trabalho de campo, mas também de convivência. Sim, a convivência é parte fundamental no processo de construção de qualquer equipe, afinal, estamos falando de seres humanos e não de máquinas. Por isso é impossível, e até injusto, fazer qualquer avaliação do trabalho dele até aqui.
É claro que Jesualdo já expôs suas ideias ao grupo. Os jogadores já sabem como se comportar com e sem a bola, em fase ofensiva, defensiva, nas transições e até nas bolas paradas. Entretanto, não houve tempo hábil para que os comportamentos estejam presentes no inconsciente deles.
Nas partidas iniciais do Paulistão, já pudemos constatar nesse Santos que a saída de bola é feita sempre por três jogadores (os dois zagueiros mais um volante), os outros volantes/meias vem buscar essa bola para a construção ser mais sustentada, quem abre o campo são os laterais e não os extremos, no terço final a ideia é ter uma concentração maior no setor da bola e não guardar tanto uma posição fixa. Em fase defensiva, há um bloco médio, às vezes baixo e consequentemente o goleiro é pouco acionado para fazer coberturas. E nas bolas paradas ora o time marca por zona, ora individualmente.
Mas tudo isso é muito embrionário. Faltam ajustes, os mecanismos não estão sincronizados. Requer tempo. E, claro, a gestão do ambiente vai ser fundamental para que as coisas aconteçam dentro de campo. Lidar com a imprensa, torcida e até mesmo os dirigentes santistas será um grande desafio para o comandante português. Em muitos momentos até mais complicado do que as coisas dentro das quatro linhas. Faz parte do processo.
 

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Onde está o futebol moderno? – Parte II

Franz Beckenbauer: onde termina o defensor e começa o atacante? (Foto: Reprodução/Site Oficial FC Bayern)

 
Não faz muito tempo, começamos aqui uma conversa sobre isso que se chama de ‘futebol moderno’. Na primeira parte deste texto, falamos que algo que é ‘moderno’ é geralmente próprio de um tempo (do tempo presente, no caso) e que falar de ‘futebol moderno’ pode ser, antes de tudo, falar de um jogo que se joga pelas ideias e pelas palavras. Ou seja, há determinados termos que são ‘modernos’, em substituição aos termos ‘antigos’ mas, na ponta do lápis, esses termos não necessariamente falarão de coisas ‘novas’ – podem ser apenas sinônimos.
Nesta segunda parte, gostaria de falar de uma outra característica que me parece central: vamos chamá-la de flexibilidade.

***

Outro dia, perguntei numa dessas redes sociais o que os colegas identificavam como sendo traços inconfundíveis disso que se chama ‘futebol moderno’. Do ponto de vista do campo, recebi contribuições realmente interessantes. De alguma forma, vou agrupá-las (sem tomar partido, ou seja, não significa que eu concorde com elas) nos tópicos abaixo:

  • maior participação dos goleiros na fase ofensiva;
  • um caráter mais ativo da fase defensiva, pressionando o adversário desde o começo da construção;
  • um certo aumento no ritmo do jogo jogado, tanto do ponto de vista físico quanto tático (com espaços mais curtos, maior pressão ao portador da bola e etc)
  • uma certa substituição da ideia de posição, pelas funções no campo;
  • grandes responsabilidades defensivas dos jogadores mais ofensivos e grandes responsabilidades ofensivas dos jogadores mais defensivos;

Acho que essas cinco características são mais do que suficientes por ora. Muito bem, vamos olhar para elas com mais atenção. Há algumas coisas aqui que me interessam bastante.

***

Em primeiro lugar, acho importante que todas essas coisas que citei acima não sejam lidas de maneira literal. Vamos olhar para as entrelinhas: por exemplo, o fato de jogadores de ataque se ocuparem de atribuições defensivas não deve ser visto como uma novidade (está longe de sê-lo) mas parece que não é disso que falamos aqui. A impressão é que, agora, o peso das atribuições defensivas para um jogador de ataque (e vice-versa) é praticamente o mesmo peso que se dá à sua capacidade de atacar, de modo que um jogador de ataque pode sim ser escalado não mais pela sua capacidade de atacar, mas de defender, percebem? Partindo deste ponto, vocês concordam comigo que estamos falando de um outro tipo de jogador e que, portanto, precisamos exatamente formar um outro tipo de jogador. Pense na formação de goleiros, por exemplo. Goleiros devem, cada vez mais, ser bons atacantes, atacantes devem ser bons defensores, a defesa vai se fazendo no ataque, o ataque vai se fazendo na defesa… a linha que separa defesa e ataque parece cada vez mais fina, assim como as linhas que separam as coisas supostamente contrárias vão se desfazendo.
Daí que uma característica realmente importante desses nossos dias é que as fronteiras dentro do jogo jogado estão se dissolvendo tão rapidamente, mas tão rapidamente, que às vezes não sabemos mais identificá-las. Isso já seria um fenômeno significativo nele mesmo, mas é mais ainda quando percebemos que a mesmíssima coisa, sem tirar nem por, ocorre na vida vivida. Não é preciso termos lido o Zygmunt Bauman para sentirmos que as fronteiras do tempo e do espaço estão reduzidas a quase zero (pela internet), que os smartphones e seus aplicativos reduziram as nossas fronteiras de comunicação e de ação, que as pessoas todas estejam tão próximas, independentemente do lugar, ao mesmo tempo em que a solidão também parece uma epidemia. Tudo o que é sólido desmancha no ar, disse o Marshall Berman, e este mundo em que vivemos e o futebol em que vivemos, não são mais sólidos, em que as coisas estão claramente separadas, mas estão de fato líquidos, em que o trabalho é fluido, as nossas atribuições são fluidas, os relacionamentos são como água, as coisas escorrem, sem que seja possível pegá-las, ou mesmo parar por um instante, e com o futebol não é diferente, as atribuições de cada jogador estão aumentando, as fases do jogo se distinguem cada vez menos, os profissionais têm que saber cada vez mais coisas (e conectá-las), temos que transitar por mais áreas, tudo passa muito rápido. E quando alguém não se adapta, nunca é problema das coisas – o problema sempre é outro.
Não sei se fica claro, mas o que quero dizer é que essa flexibilidade, da qual estou falando, é um espelho do que se passa na vida vivida, embora use uma roupa muito própria no futebol, uma roupa do todo, uma roupa de fato sistêmica. Ao jogador, não basta ter o domínio de uma determinada posição do campo mas, na verdade, é preciso saber desempenhar funções mais elaboradas, eventualmente desconfortáveis (especialmente entre a iniciação e a especialização esportiva), mas que eventualmente serão úteis à equipe e ao próprio atleta, no presente e no futuro. Aos profissionais, nos é e nos será exigida a mesma habilidade, nas mais diversas áreas, pois não basta mais saber das posições, talvez não baste ter apenas um ofício (treinador, preparador físico, analista, gestor…), mas é preciso ter algum conhecimento do processo como um todo, é preciso conversar com as diferentes áreas, é preciso ter um certo domínio do campo e do jogo que possa ter efeitos específicos, em detalhes bastante específicos, como também possa ter efeitos gerais, inclusive do ponto de vista mais geral de todos, que é o humano. As fronteiras estão de fato dissolvidas, e parece que o que nos resta, como profissionais, é desenvolver uma certa flexibilidade – ou teremos problemas.

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Mas há uma outra questão, amigas e amigos, da qual não podemos fugir. É uma questão silenciosa, mas quase que namorada disso que se chama de ‘futebol moderno’: a ideia de que o moderno é necessariamente ‘melhor’, ou ‘superior’, ou um ‘avanço’ ou um ‘progresso’ em comparação ao ‘antigo’. É como se fosse, ao mesmo tempo, uma noção bastante ingênua da história, em que ela é vista como uma grande linha, desde que, no fim da linha, exista uma espécie de paraíso (ou seja, quanto mais próximo do fim da linha, ‘melhor’). Da mesma forma, também parece haver um certo tipo de negação coletiva da história, em que fica subentendido que o que passou, o que foi, pode ter sido um grande equívoco e deva, por isso, ser descartado.
Por isso, acho preciso ter um cuidado enorme com este termo ‘moderno’. Não sei se vocês concordam, mas ele está tão banalizado que corre o risco de começar a cheirar um pouco mal, de começar a caducar e, por mais curioso que pareça, de ficar atrasado nele mesmo, porque parte exatamente deste ponto equivocado: o ‘moderno’ seria, necessariamente, uma evolução do ‘antigo’. Daí, não admira que passemos a procurar modernidade onde não existe (no 2-3-5, por exemplo, que já havia há muitíssimo tempo, sendo apenas adaptado ao momento atual, especialmente via Pep Guardiola) ou mesmo, o que é mais grave, que passemos a rotular doentiamente os profissionais do futebol como ‘antigos’ e ‘modernos’, às vezes baseados apenas nas palavras, como dissemos no último texto desta série, mas com uma crítica que não tem exatamente fins pedagógicos ou de elevação do jogo jogado, mas sim fins de extinção: tudo aquilo que não for ‘moderno’, ou tudo aquilo que não parecer ‘moderno’, ou tudo aquilo que não for de um determinado gosto, não apenas é questionado ou refletido, mas é apresentado como se devesse ser extinto.
Não sei como vocês recebem este tipo de coisa, mas a mim me parece um problema muito grave. E que também faz parte disso que se chama de futebol ‘moderno’.

***

Para terminar, permitam-me só fazer uma provocação: jogar sem posições fixas, jogar o jogo todo, saber o que fazer em cada momento do jogo e demorar-se a se especializar em apenas uma posição/função, não era exatamente o que fazíamos no futebol de rua?
Pense nisso.
Continuamos em breve.
 

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Os donos do negócio

É inegável que o futebol seja capaz de gerar bastante conteúdo. Faz não apenas parte do dia a dia das pessoas, mas da história de um bairro, de uma cidade, capaz de se confundir com a de um país. Identidade, pertencimento, grandes jogos e ídolos são apenas alguns poucos temas que podem ser abordados por uma mídia especializada na modalidade.
Já é, e muito bem feita, inclusive, por inúmeros veículos de comunicação e uma imprensa independente cada vez mais ativa, com enorme poder de alcance e que conquista cada vez mais audiência. Entretanto, engatinha entre os “donos do negócio”, de quem faz a gestão do futebol: as entidades de prática esportiva (clubes) e de administração do esporte (federações e ligas).
Haja vista o poder institucional e mobilizador – em termos de história, representatividade, significado, relevância para a sociedade -, clubes e federações podem trabalhar ainda mais a geração de conteúdo através do futebol em termos de mídia e otimizar suas receitas. Não apenas com negociação de direitos de televisão, mas cientes de que são os donos de um produto ímpar na indústria do entretenimento.
Isso mesmo, entretenimento.
Entretenimento que concorre com inúmeras opções de lazer. No entanto, a resgatar o que foi escrito acima -, futebol é identidade, vínculo, pertencimento, história e cotidiano. Além disso, clubes e federações podem criar um canal de comunicação importantíssimo para a transparência, democracia e princípio de equidade na instituição, elementos fundamentais para a governança. A prazo, a reputação da organização melhora diante da opinião pública e isso é capaz de atrair cada vez mais investimentos, por exemplo, em forma de patrocínio.

Foto: Reprodução/Divulgação

 
Tudo isso é apenas uma pequena parte do que pode ser feito. Marketing e comunicação capazes de trabalhar de um modo mais eficiente e efetivo, um produto inserido em indústria cada vez mais exigente. Ademais, colaborar para a governança da organização em questão.
Portanto, a partir do momento em que fizerem ideia do tamanho do mercado em que ligas, clubes e federações fazem parte e trabalharem para aumentar as receitas, isso naturalmente levará para um ambiente mais profissional e, consequentemente mais transparente em que todas as partes interessadas possuem um papel na tomada de decisão.

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Em tempo, mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

“Não tenho nada em comum com pessoas preguiçosas que culpam os outros por sua falta de sucesso. Grandes coisas vêm do trabalho duro e perseverança. Sem desculpas”.

Kobe Bryant
(1978-2020)

 

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Hegemonia flamenguista?!

Time ganha jogo, elenco ganha campeonato. Clichê, velha máxima do futebol, mas que traz algumas verdades. E o Flamengo que já era forte em 2019 virá ainda melhor para 2020. No futebol nada é garantido. Títulos são conquistados por diversos fatores. Porém, o caminho da vitória passa por um elenco robusto. E a diretoria flamenguista tem reforçado de maneira pontual o seu já qualificado elenco.
Todos conheciam de cor e salteado os onze titulares do técnico Jorge Jesus. O time que perdeu do Liverpool na final do Mundial de Clubes tinha os preferidos e escolhidos do português. Alguns reservas entravam sempre, como Diego e Vitinho. Mas ao olhar para o elenco rubro-negro eu ainda sentia falta de algumas outras peças. Repito, para deixar claro: com o time que terminou o ano passado, o Flamengo seria favorito a tudo neste ano. Só que com as peças contratadas na janela deste ano as probabilidades de sucesso aumentam ainda mais.
Michael e Pedro Rocha vão dar opções ofensivas que o time de 2019 não tinha. Thiago Maia será muito mais útil do que foi Piris da Motta – apesar das características de ambos não serem exatamente as mesmas. Gustavo Henrique é mais jogador do que Rodolpho – vou além, é questão de tempo para o ex-zagueiro do Santos ser titular no lugar de Pablo Marí.
Detesto falar em hegemonia no futebol brasileiro, porque sei do cunho político que todo clube carrega. Basta olharmos para como o diretor Paulo Pelaipe saiu do Flamengo para notarmos que o atual campeão brasileiro não foge a regra. Alguns palmeirenses nessa mesma época do ano passado acharam que o clube teria essa tal hegemonia por aqui e deu no que deu…discordo até mesmo da linha flamenguista de vender jovens jogadores da base para repatriar veteranos…
Mas mesmo com todo esse cuidado que tenho para projetar o futuro dos clubes brasileiros  é inegável que hoje o Flamengo é a referência e o time a ser batido e seguido (no sentido de deixar lições) não só no Brasil, mas em toda a América do Sul.