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A diferença entre driblar ou fintar um cone e uma pessoa

Crédito imagem: Clube Náutico Capibaribe/Divulgação

A escola não é a Rua. Tampouco a rua é a escola. A rua é outro ambiente, com outra orientação, outro modo de fazer as coisas, e onde as relações se estabelecem de outra forma. Diferente. Nem melhor, nem pior. Aprender a controlar bem a bola em uma brincadeira de rua, não significa que fazer do mesmo jeito na escola levará ao mesmo resultado. Principalmente porque não será possível fazer do mesmo jeito. A Rua, isto é, o espaço de convivência de crianças (mas também de adolescentes e adultos em diversas situações), tem características irreprodutíveis.

Quando a prática da Rua vai para a aula na escola – por exemplo, uma brincadeira – ela é, ou deveria ser, pedagogizada. Significa que servirá a propósitos diferentes, porque a escola, ou qualquer outra instituição de ensino, tem compromissos com a sociedade fora dela mesma. Ela prepara conscientemente para uma vida em sociedade (mesmo que esse trabalho não seja bem feito); a Rua não tem essa orientação. A brincadeira de Rua esgota-se nela mesma, é jogo apenas, isto é, aquele tipo de acontecimento que não tem qualquer compromisso além dele mesmo. Isso não quer dizer que as aprendizagens da Rua não terão repercussões em diversas outras situações ao longo do tempo futuro, inclusive na escola. Porém, na Rua não há esse propósito, afinal, a Rua não é uma instituição cujos propósitos e ideologias estão declarados.

Mais especificamente no caso do Futebol, quando o ensino é institucionalizado, tal como se busca fazer principalmente nas escolas de futebol e categorias de base dos clubes, é possível ocorrer uma orientação pedagógica totalmente desvinculada da cultura da Rua, assim como é possível também adotar uma orientação pedagógica que procura reproduzir a Rua ou tê-la como referência.

É comum vermos, independente da instituição/espaço na qual se ensina o futebol às crianças e adolescentes, cones dispostos simetricamente em filas para serem fintados ou driblados. Vale ressaltar que tal prática também é notada, com frequência, no âmbito do futebol profissional com adultos. Diante destas circunstâncias, não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar a finta ou drible, não há tensão, não há diversão, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados. Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue. Quando muito, resta, para quebrar a monotonia, uma ou outra fantasia que meninos e meninas produzam, intimamente, sem que ninguém saiba disso além deles mesmos.

Julgam os inventores da tal pedagogia do cone, que isso levará os praticantes ao conhecimento e desenvolvimento de determinadas ações técnicas relacionadas ao futebol, tal qual a finta, drible, condução, entre outras.  Há método nisso, claro, mesmo que esse método não habite a consciência do inventor. Nada se faz sem método. Trata-se de um método de transmissão, pura e simples. Um professor ou treinador diz para um aluno ou atleta repetir o gesto de contornar os cones, porque, dessa maneira, o aluno/atleta repetidor aprenderá a conduzir a bola e driblar um adversário. O adversário, no caso, é o cone, e o repetidor terá que realizar um enorme esforço criativo (talvez consiga, talvez não) para imaginar que o cone é seu adversário. É esperado pelo inventor, ou mero reprodutor, da pedagogia do cone que, como resultado desses exercícios, os jogadores (repetidores), quando estiverem participando de um jogo contra um time adversário, possam aplicar o conhecimento de conduzir e fintar cones diante de pessoas de carne e osso.

Há algum sentido nisso? Com tal procedimento os meninos e meninas aprenderão o difícil gesto de fintar e driblar adversários em jogos de futebol? Sim, é impossível que nada se aprenda agindo dessa maneira. Os pés dos meninos e meninas se ajustarão ao gesto, que ficará mais refinado. Há um objetivo nisso que orientará o modo de tocar a bola, de se ajustar a ela, de mantê-la sob controle enquanto a pessoa muda de direção etc. As repetições filtrarão o gesto, eliminarão resíduos e, ao final, algum conhecimento restará. Alguns dirão que o gesto técnico estará refinado! Ainda assim, de que forma se espera que crianças e jovens se envolvam em exercícios como esse? Com alegria e prazer? Ou com tédio e impaciência diante do “interminável” tempo de espera nas filas?

Porém, é bom que se esclareça: embora ocorra alguma aprendizagem a respeito da arte de fintar, driblar ou conduzir a bola, neste caso específico, essa arte se aplica, antes de tudo, aos cones, não às pessoas. Considerando que cones são pouco semelhantes às pessoas, quando, no jogo, no lugar de cones houver adversários de carne e osso, a generalização desse conhecimento será, provavelmente, muito pequena, ou insignificante. Convenhamos que é bem diferente fintar um cone e fintar uma pessoa! Ou seja, de que adianta um(a) jogador(a) possuir uma técnica refinada para determinados gestos se este não poderá ser reproduzido no contexto do jogo?

Imaginemos agora outra situação: meninas e meninos aprendendo a fintar ou driblar pessoas. Uma professora propôs um jogo em que seus alunos serão incentivados a fintar ou driblar e conduzir uma bola durante uma prática muito divertida. Eles tentam fazer gols, mas há mais defensores que atacantes. E qualquer gol feito após uma finta vale o dobro.

Como difere esta situação da anterior, em que os praticantes (sejam eles crianças, adolescentes e até mesmo adultos que já praticam o futebol profissionalmente) tinham que conduzir a bola e fintar ou driblar cones, não é mesmo?! Os adversários não estão dispostos estaticamente em filas. O risco de perder a bola é permanente, os adversários não param de se movimentar, o tempo para agir é mínimo, a imprevisibilidade é a marca de todas as ações, a tensão é constante, mas, ainda assim cria diversão, há jogo, há alegria, há prazer. Os adversários são de carne e osso, não ficam inertes, dóceis e os gestos de quem vai fintar não podem ser previamente determinados.

Imaginemos, também, que, na mesma aula/treino, a criança viveu, não uma, mas dez ou quinze situações em que teve que enfrentar um adversário e decidiu fintá-lo. A cada vez, seus gestos, mesmo sendo semelhantes a gestos anteriores, não eram iguais. Não eram iguais, porque seus oponentes eram diferentes, a posição no espaço era diferente, as reações dos adversários eram sempre diferentes, e porque ela, a cada vez, mantinha uma relação estreita com o adversário, suas reações tornavam-se sempre diferentes. Algumas vezes ela conseguia fintar, em outras não, e tudo isso se incorporava ao seu baú de repertórios, ao seu leque de oportunidades. Em uma única aula ela acumulou em seu repertório, talvez, centenas de novos movimentos, somente em relação à finta. Claro que todos esses movimentos guardam semelhanças, pois têm em comum o gesto mais geral da finta (ou drible), mas que, na vida de ações práticas, não existe; é apenas um esquema geral que une todas as ações de fintar, pois nunca um gesto para fintar será igual a qualquer gesto anterior.

Seguramente, a criança que fintava pessoas repetiu muito mais vezes o gesto de fintar, durante uma aula, que a criança que fintava cones, mas em ambas as situações, as repetições eram de caráter completamente diferentes.

 Sob nosso entendimento, é muito mais significativo o enriquecimento das coordenações que formam a habilidade de fintar (ou driblar e conduzir a bola, por exemplo) quando se trata de fintar pessoas. Sem contar que consideramos apenas o plano das coordenações motoras. Sequer discutimos (e isso deverá ser feito em outro momento), por exemplo, o plano afetivo, afinal, não é preciso ter coragem para fintar um cone, mas é preciso ter coragem para fintar uma pessoa. Um cone não dá medo, uma pessoa pode dar, e assim por diante.

Tentemos traduzir em um exemplo aquilo que vimos buscando explicitar. Imagine uma menina, criança, de apenas nove anos de idade, chamada Cinara. Cinara tinha frequentado durante seis meses uma escola de futebol. Nessa escola de futebol, seus maiores oponentes eram cones. E ela aprendeu a fintar cones. Tornou-se exímia dribladora de cones. Mas Cinara pediu para deixar a escola de futebol depois do primeiro jogo contra a equipe de outra escola de futebol, pois ela não conseguiu driblar ninguém e nem marcou gols. Deu “tudo errado” e saiu do jogo chateada. Sua mãe ouviu falar de uma escola de futebol que as crianças adoravam e matriculou Cinara nessa outra escola. Ela começou a aprender a jogar futebol de outro jeito, não havia cones, parecia mais difícil, mas a professora inventava um monte de brincadeiras de driblar e as crianças se divertiam muito. Erravam bastante e, num primeiro momento, Cinara errava muito mais do que quando driblava cones, mas também acertava bastante. Quando foram fazer o primeiro jogo contra outra equipe, Cinara conseguiu driblar várias vezes e saiu muito feliz do jogo. Até hoje ela está nessa escola de esporte.

Quando a Cinara, ou qualquer outra criança, jovem ou adulto em fase de aprendizagem, conduz a bola durante o jogo e para na frente do adversário, ela pode ter várias opções, mas tem um tempo mínimo para se colocar diante de tais opções e escolher a melhor. Isso não quer dizer que, conscientemente, colocará à sua frente todas as opções de gestos que acumulou. Trata-se de um processo quase que inteiramente inconsciente. Vamos supor que ela tenha escolhido como melhor opção fintar seu oponente. Novamente, vale ressaltar, o adversário não é um cone, é uma pessoa e tem um tamanho diferente de todos os outros adversários. Seu oponente se mexe, ele não fica parado como um cone, e isso dificulta tudo. Cinara experimenta se mover para o lado direito, o adversário faz o mesmo e a cerca, ela volta, para, movimenta-se para frente e volta, imediatamente sai pela esquerda, para, retrocede, avança pela esquerda de novo e consegue enganar seu(sua) rival. Ao contrário do que ocorria quando tinha que driblar um cone, ela fez, não um, mas dezenas de gestos diferentes. Teve êxito, mas poderia não ter tido. Mas se fracassasse, o enriquecimento de seu repertório para fintar, ainda assim, seria enorme. Cada gesto feito ficou guardado, como em um banco de dados. Nas próximas vezes em que ela tiver que enfrentar a situação de fintar, poderá recorrer a um repertório maior que nas vezes anteriores.

Na rua dribla-se ou finta-se cones? Não! Aprende-se a fintar e driblar os adversários na rua? Muito! Então, o que podemos levar pedagogicamente da rua para as escolas e clubes onde se almeja o aprendizado ou aperfeiçoamento do futebol? Esperamos ter respondido a esta pergunta no decorrer deste texto.

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Sobre as matrizes de jogos no futebol – Parte I

Dentre os temas mais tratados nos nossos debates sobre futebol nos últimos anos, certamente um dos mais importantes está nas metodologias de treinamento. Aqui mesmo, na própria Universidade do Futebol, encontramos uma série de artigos, alguns deles meus, nos quais não apenas falamos de determinadas metodologias e/ou abordagens, como também refletimos um pouco melhor sobre o impacto da transição de uma metodologia em direção a outras (processo que exige tempo e paciência).

Neste sentido, uma contribuição muito importante são as chamadas matrizes de jogos, trazidas ao debate notadamente pelo professor Alcides Scaglia. Embora não se trate de um conceito novo, é um conceito menos debatido do que poderia ser, ou mesmo desconhecido para alguns colegas. Por isso, gostaria de aproveitar o espaço de hoje para discutirmos um pouco sobre as matrizes de jogos. Por se tratar de um tema não exatamente curto, prefiro dividir o texto em duas partes: na primeira, darei uma panorama prévio, uma espécie de sustentação das matrizes. Na segunda, tratarei mais especificamente de cada uma delas.

***

Para pensarmos as matrizes de jogos, vamos dar um passo atrás e considerar uma primeira noção, também menos simples do que parece: a noção de jogo. Embora seja uma palavra óbvia para nós que trabalhamos com futebol, existem alguns detalhes sobre o jogo que estão abaixo da superfície. Por exemplo, quando pensamos em jogo, precisamos ter em mente que se trata de algo que tem regras; que tem um espaço definido; que tem um tempo próprio (que não é o tempo cronológico, é outro tempo); que é uma espécie de suspensão temporária do real – ou, se você preferir, é um outro real, uma outra camada de realidade, por isso a passagem do tempo também é diferente da que estamos acostumados na vida cotidiana. Na mesma linha, acho importante nos lembrarmos daquela passagem, classicamente apresentada pelo professor João Batista Freire (no também clássico O Jogo: entre o riso e o choro) na qual descobrimos que jogo pode ser tudo aquilo que a minha subjetividade considerar como jogo. Este é um ponto necessário, pois o jogo não é bem um fenômeno objetivo, não é um objeto em si: o jogo está numa cada de percepção, de subjetividade, de intenção (ou intencionalidade), nas relações que nós somos capazes de fazer com o jogo que jogamos. Aliás, daqui podemos pensar sobre a escolha de um dado exercício ou jogo nos nossos treinamentos: não se trata do jogo em si, mas das relações e do sentido que somos capazes de dar ao jogo propomos ou ao jogo que jogamos (como escrevi, faz pouco tempo, neste texto). Daí a importância de nos preocuparmos não apenas com o método, mas também com a didática.

Ainda de um ponto de vista mais conceitual, não nos esqueçamos do jogo envolvido em uma dimensão de complexidade. Neste caso, vale lembrar que complexo é uma palavra vinda do latim complexus – aquilo que é tecido junto. Não por acaso, no texto em que apresenta a noção de matrizes de jogos, o professor Alcides Scaglia, junto dos amigos Riller Reverdito, Lucas Leonardo e Cristian Lizana, retoma o chamado padrão organizacional sistêmico: num jogo como o futebol, que antes de tudo é jogo, que é um jogo coletivo e, além disso, que é um jogo coletivo de invasão, tática, técnica, físico e mental, assim como ataque, defesa e transições, estão todos tecidos juntos, não se separam, são dimensões inquebrantáveis, como dizem nossos colegas portugueses. Elas podem até ser separadas de um ponto de vista didático, ou às vezes de um ponto de vista analítico – mas não se separam de um ponto de vista prático. Repare que aqui já estamos com um pé naquele debate entre metodologias mais tradicionais de ensino/treino do futebol contra as chamadas ‘novas tendências’: a partir do jogo, é possível articular formas e conteúdos de treino menos distantes do jogo formal, com exigências e problemas análogos aos do jogo formal, com um nível de intensidade físico/mental eventualmente idêntico ou até mesmo superior ao do jogo formal. Por isso, como também aprendi com o professor Alcides, vale a pena questionarmos aquele adágio que nos diz que treino é treino e jogo é jogo: se é assim, então por que treinamos? Talvez um outro caminho seja o de pensar que treino é jogo e jogo é treino, que o treino existe para se jogar e o jogo formal existe também como treino, é um treinamento muito particular, de exigências particulares e que de ensinamentos também muito particulares. Como disse outro dia o Pedrinho, comentarista do SporTV, falando alguma coisa sobre a falha do goleiro Hugo Souza contra o São Paulo, repare como nós carregamos algumas heranças que precisam, de alguma forma, ser questionadas.

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Ainda de um ponto de vista mais conceitual, chamo a atenção para as chamadas competências essenciais dos Jogos Esportivos Coletivos. É um conteúdo trazido ao debate pelo professor Julio Garganta, sendo as competências essenciais basicamente três: relação com a bola, estruturação do espaço e comunicação na ação. Quando um jogador se coloca em situação de jogo, quando põe a prova suas competências (poder fazer) e habilidades (saber fazer), basicamente espera-se uma relação amistosa com o implemento do jogo (no caso do futebol, a bola – repare aqui nisso que chamamos geralmente de técnica), uma relação amistosa com o espaço de jogo (repare nisso que chamamos de tática, especialmente se pensarmos nela como gestão do espaço/tempo de jogo, de modo individual, grupal e coletivo), assim como uma capacidade importante de comunicação, não apenas a partir da fala, mas a partir da ação, uma comunicação de corpo inteiro (e repare aqui na importância, por exemplo, da orientação corporal dentro do jogo jogado, sobre a qual escrevi recentemente).

Se para jogar bem é preciso relacionar-se bem com a bola, estruturar bem o espaço (individual/grupal/coletivamente) e comunicar-se na ação, repare que faz sentido não apenas treinar como se joga, mas também modelar as referências do jogo que se joga de acordo com a intenção, com os objetivos específicos de treinadores e comissões técnicas. Aqui, vamos pensar em dois tipos de referências: referências estruturais e referências funcionais. As referências estruturais nada mais são do que “elementos formais que compõem o jogo: companheiros, adversários, bola/implemento, espaço, alvo e regras” (SCAGLIA et.al, 2014¹). As referências funcionais, por sua vez, são orientadas pelos chamados princípios operacionais e pelas regras de ação. Mas, por ora, vamos ficar por aqui. 

Pois como escrevi no início, gostaria que tivéssemos hoje um desenho prévio, a partir do qual podemos pensar as matrizes de jogos com mais segurança. No próximo texto, partirei dos princípios operacionais e das regras de ação para falarmos mais detalhadamente das matrizes, a saber: jogos conceituais, jogos conceituais em ambiente específico, jogos específicos, jogos contextuais.

Seguimos em breve.

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¹SCAGLIA, A. J.; REVERTIDO, R. S.; LEONARDO, L.; LIZANA, C. J. R. O ensino dos jogos esportivos coletivos: as competências essenciais e a lógica do jogo em meio ao processo organizacional sistêmico. Movimento, Porto Alegre, v. 19, n. 04, p. 227-249, ago. de 2013.

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O forte do São Paulo é o aspecto mental

O São Paulo lidera o Campeonato Brasileiro de maneira justa e merecida. Citar e buscar rotulá-lo como ‘o melhor time do país’ ou aquele que joga ‘o futebol mais bonito’ é sempre algo subjetivo e passível de diferentes interpretações e pontos de vista. Porém é inegável que a equipe do técnico Fernando Diniz tem sido a mais eficaz nas ações com e sem a bola.

A melhora do São Paulo passa por questões técnicas e táticas, com certeza. Com uma dupla de ataque mais agressiva – Luciano e Brenner – todo o sistema ofensivo se comporta de maneira mais vertical e direta. E como o jogo é ‘uma coisa só’ , atacar, defender e realizar as transições está sempre conectado, essa agressividade para atacar é transferida para buscar a retomada da posse logo após a perda. Com jogadores como Vitor Bueno, Pablo e Tche Tche, que hoje são reservas, as características individuais não batiam com o comportamento coletivo buscado. Já a defesa nunca foi um problema para o São Paulo. Desde o ano passado. A quantidade alta de gols sofridos assim que o futebol foi retomado, em julho, era mais uma questão coletiva. Tanto que Arboleda e Bruno Alves já voltaram ao time titular. E a entrada de Luan, além de ter dado mais consistência, permitiu uma liberdade maior a Daniel Alves, talvez o melhor e mais completo coadjuvante que o futebol mundial produziu nos últimos trinta anos.

Mas o ponto principal dessa mudança são-paulina está fora de campo. É algo que Fernando Diniz prega como questão primordial do seu trabalho: as relações interpessoais. O aspecto mental desse grupo se fortaleceu incrivelmente com as recentes eliminações e as naturais críticas que vieram. Se por proximidade da eleição ou não, se foi o diretor Raí ou o presidente Leco quem tomou a decisão de mantê-lo, não vem ao caso nessa análise. 

É fato que há hoje uma unidade de grupo extremamente forte no Morumbi. Um elenco ‘cascudo’ em que cada um é estimulado a atuar na potencialidade máxima acaba transcendendo. Se vai ser campeão ou não é impossível saber. Porém o caminho fica facilitado quando temos esse caso, em que o todo fica maior que a soma das partes.  

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol

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Queremos futuros Maradonas?

Maradona foi, entre uma imensidão de coisas que define um ser humano e jamais será possível esgotá-lo em um pequeno texto, uma figura que incomodou, contestou e que não se permitiu controlar.

Passagens como as eternizadas nos versos de Eduardo Galeano em uma de suas obras primas Futebol ao sol e à sombra, nos ajudam a ter uma noção do tamanho da dor de cabeça que o argentino foi para muitos poderosos, dentro e fora do futebol.

No Mundial de 86, Valdano, Maradona e outros jogadores protestaram porque as principais partidas eram disputadas ao meio-dia, debaixo de um sol que fritava tudo que tocava. O meio-dia do México, anoitecer da Europa, era o horário que convinha à televisão europeia”

Maradona disse coisas que mexeram em casa de marimbondos. Ele não foi o único jogador desobediente, mas foi sua voz que deu ressonância universal às perguntas mais insuportáveis: Por que o futebol não é regido pelas leis universais do trabalho? Se é normal que qualquer artista conheça os lucros do show que oferece, por que os jogadores não podem conhecer as contas secretas da opulenta multinacional do futebol?

Outro momento que ilustra essa, para alguns, assustadora imprevisibilidade do argentino é do início de sua carreira. Diego recusou uma proposta milionária, com o perdão do trocadilho, do River, e buscou ativamente um acerto com o, na época, enfraquecido Boca. Escolheu com o coração, e não com a fria lógica da maior e melhor oferta, o River naquela altura além de melhor estruturado financeiramente, era uma equipe muito mais forte.

Maradona fora do controle, indomável, imprevisível, sempre foi um risco para quem tem tudo sob seu domínio, um risco que essas pessoas não estão nem um pouco dispostas a correr. Talvez por isso os seus erros tenham tido sempre uma repercussão de proporções estratosféricas e o trabalho para ridicularizá-lo tenha sido tão incessante, é interessante para quem foi contestado por ele vê-lo caído.

Um Maradona entre os principais nomes do esporte hoje, como outros e outras que ensaiam surgir na nova cena do esporte mundial, com a repercussão que sua figura teria em um mundo hiperconectado, seria ainda mais ameaçador, e aí não fica difícil de entender que, para essas pessoas que temem as mudanças, quanto menos “Maradonas” melhor. Aqui já falamos do processo de formação de jogadores e jogadoras autônomas, independentes, ou se preferir, livres.

É desse ponto de partida, da personalidade incontrolável de Diego e o que ela representa é que seguimos para pensar sobre o futuro. O primeiro dos questionamentos que fica para quem ama e trabalha com o futebol e se queremos ou não novos “Maradonas”, como sugere o título. Queremos futuros jogadores e jogadoras obedientes ou questionadores? Queremos mudar ou manter as coisas como estão? Tendo clareza do que se quer, fica mais fácil organizar ações que fazem sentido para que se atinja esse objetivo.

O que podemos fazer no dia a dia, ao ensinar o futebol, para ajudar desenvolver as características que identificamos como essenciais? No caso de Maradona, o que o incentivou questionar as injustiças que ele via a sua volta? Alguém o ensinou? Ou será que ao menos alguém permitiu que esse espírito se desenvolvesse? Será que esse espírito questionador tem relação com o seu desempenho dentro de campo? É possível dissociar o Maradona jogador de tudo o que o tornava humano?

Do dia 25 de novembro de 2020 em diante vamos seguir construindo nosso mundo, com mais ou menos Maradonas, tudo depende de nossas escolhas e ações.

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Porque defendo e gosto tanto de Tite

A avaliação de qualquer trabalho, seja positiva ou negativa, não pode ser rasa e imediata. A cruel rapidez com que se espera resultados no futebol brasileiro vai na contramão disso, eu sei. Porém sempre busco o maior número de elementos para adjetivar jogadores, técnicos, dirigentes e etc. E – resumidamente – é pelo histórico, pela cronologia e pelos pontos fortes e fracos que classifico não só personagens, como também times, clubes e seleções.

Por todo esse conjunto da obra, Tite é o melhor técnico brasileiro. Disparado. E o segundo pelotão aparece muito distante dele. Tite é perfeito? Não, longe disso. Sei que para ele faltam algumas competências para trabalhar na primeira divisão do futebol mundial, que é o cenário europeu. Entretanto nenhum outro treinador nascido em solo nacional reúne tantas habilidades como o atual comandante da nossa seleção.

Para facilitar o entendimento, divido as competências de um técnico em duas partes: a primeira é a de campo. Conhecimentos de jogo, sistemas, táticas, metodologia de treino, intervenção durante uma partida, etc. A segunda se refere a gestão do ambiente: comunicação, liderança, relacionamentos, etc. E quando coloco Tite como o melhor que temos nessas duas esferas, gosto de salientar o esforço pessoal dele em aprimorar todas as competências necessárias para aumentar a probabilidade de sucesso.  Acompanho a carreira de Tite desde 2001, quando chegou com o Grêmio ao título da Copa do Brasil. E é nítido que há quase vinte anos atrás ele não dominava tantos princípios e subprincípios ofensivos como agora. E que a comunicação dele, um pouco professoral à época, não causava os efeitos positivos na maioria dos atletas como agora.  

O cargo de técnico da seleção tem uma exposição acima do normal. Os extremos, principalmente os negativos, aparecem muito – basta um jogo ruim ou uma convocação discutível, para aparecer uma avalanche de críticas. Mas com toda a frieza que uma análise como essa requer, ratifico: Tite é o profissional mais completo que temos. E o que é legal, ele não nasceu assim. Se esforçou para evoluir. E hoje merece estar onde está. 

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol

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Sobre o jogo de futebol como um jogo de distração

Não faz muito tempo, falamos aqui sobre algumas características do jogador inteligente. Num primeiro momento, escrevi um pouco mais diretamente sobre a capacidade de ler nas entrelinhas, e a importância disso no jogo jogado. Outro dia, usei como exemplo o gol do Jordi Alba no jogo entre Espanha x Itália, em 2012, para ilustrar meu ponto: lendo as entrelinhas, Alba viu além.

Hoje, gostaria de acrescentar uma outra característica importante do jogador inteligente, que é a capacidade de distrair. De distrair para atrair ou, até antes disso, de perceber o jogo de futebol como um jogo de distração, no qual estamos constantemente buscando distrair o adversário, sem perder de vista as nossas intenções coletivas. Deixem-me falar um pouco melhor sobre isso.

***

Durante o período de quarentena, Daniel Alves fez uma live muito interessante com Bernardinho, treinador multicampeão no voleibol brasileiro e mundial. Num certo momento, Dani Alves relembra uma história de quando Guardiola disse, literalmente, que iria ensiná-lo a jogar sem bola. O próprio Dani diz não ter entendido – como assim seria possível jogar bem sem a bola? – afinal, é com a bola que jogamos futebol! Mas, na sequência, Guardiola teria ilustrado um pouco do que entende do jogo de futebol e, especialmente, um pouco do que pode ser o jogo de futebol quando pensamos a partir da distração. Segundo o próprio Dani Alves:

“Por exemplo, uma vez o Guardiola chegou pra mim, falou assim: ‘Dani, eu vou te ensinar uma coisa: vou te ensinar a jogar sem bola’. (…) Ele falou assim: ‘a bola tem que estar no pé do Messi, do Iniesta, do Xavi, porque eles são a distração. E você ataca o espaço sempre deixado por eles.’ Então eu comecei a entender ‘cara, eu não preciso estar com a bola no pé todo o tempo… eles precisam estar com a bola no pé todo o tempo!’ (…) Então é um jogo de distração (…) a bola distrai e quem é inteligente ocupa os espaços deixados.”

Quando pensamos no jogador inteligente, talvez fique subentendido que o jogador inteligente, de alguma forma, seja um tipo de protagonista, ou pelo menos tenha a responsabilidade de ser o protagonista, mas num jogo coletivo, com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, não precisa ser necessariamente assim. O jogador inteligente pode muito bem não ser um protagonista com a bola, não porque não saiba ou não queira, mas porque entende que talvez outros atletas sejam ainda melhores com a bola do que ele, e que isso não vai limitá-lo, mas vai fazer dele ainda melhor do que é. Messi, Iniesta e Xavi – que não eram apenas eles, separados, mas as relações que faziam entre eles, juntos – decidiam muitos jogos, e justamente por isso atraiam tanta atenção dos adversários que, além de atrair, também eram capazes de distrair: abriam espaços para que os outros decidissem. Como dissemos antes, atrair para distrair.

Tenho trabalhado isso de uma forma bastante insistente com meus atletas já há algum tempo, especialmente nos jogos de manutenção da posse com restrição de toques. Vejam bem, quando fazemos um jogo de manutenção da posse – vamos supor um 6 v 6 num espaço de 40m x 30m – com um toque apenas na bola, é claro que ganhamos algum requinte de ritmo na circulação da posse, assim como refinamos a tomada de decisão, a importância do perfilamento o corpo e etc, mas também abrimos mão de algumas coisas, e uma delas é precisamente a possibilidade de distrair a partir do domínio. Num jogo de dois toques, por exemplo, fica muito mais claro o quanto a bola é uma isca, e o simples fato de dominá-la (bem) é capaz de atrair o adversário – exatamente para distrai-lo. O simples fato de retirá-lo de onde está em direção a bola pode abrir, às suas costas, o espaços de que precisamos para progredir. Domínio, atração, distração, passe.

Ao mesmo tempo, talvez o que também faça uma grande diferença para o jogador inteligente seja essa capacidade dupla, de tanto distrair para o outro, quanto de permitir, de acordo a situação do jogo, que o outro distraia para si. Nos dois casos, há uma ponte que os une: é preciso pensar no depois. Não é que a distração seja um fim nela mesma, é um meio para se chegar em algum outro lugar uma, duas, ou várias jogadas adiante. Neste sentido, a analogia com os jogadores de xadrez, que aparece logo nas primeiros linhas do livro Guardiola Confidencial – quando é relatado um encontro de Pep Guardiola com Garry Kasparov, é de fato muito verdadeira: o jogador de xadrez antevê diversos padrões do jogo, está pensando várias jogadas adiante e é capaz de fazer isso intuitivamente. É disso que também se trata o processo formativo: da capacidade de fazermos dos atletas tão atentos ao presente que são, inclusive, capazes de pensar repetidamente sobre o futuro sem distanciar-se dos problemas do instante. Não deixa de ser uma arte.

Como é uma arte todo o processo formativo – mas vamos falando sobre isso aos pouquinhos.

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O ataque do River de Marcelo Gallardo

O River Plate de Marcelo Gallardo tem se estabelecido como um dos grandes destaques do futebol sul-americano e mundial. Não apenas pelos 6 títulos internacionais nos últimos 5 anos, mas pela sua autenticidade na maneira de jogar. O que “El Muñeco” Gallardo conseguiu construir nos últimos anos se trata de uma identidade de jogo que sobrevive, se renova e se fortalece a cada temporada, algo que emociona seus adeptos e desperta o interesse e admiração daqueles que são amantes de equipes que expressam personalidade forte e altas doses de paixão pelo jogo.

Um desses amantes é ninguém menos que Pep Guardiola, que manifestou em 2019 sua admiração pelo trabalho artesanal do treinador argentino

“Precisamos ver o futebol sul-americano. Parece que existe apenas a Europa no mundo, e eu não entendo como Gallardo não é indicado entre os melhores treinadores do mundo. Não apenas por um ano, mas sim por tanto tempo” – Pep Guardiola

A partir de agora vamos iniciar uma série que irá analisar as características ofensivas do supercampeão argentino e como Gallardo organiza sua equipe no momento de disposição da bola, observando como muitos mecanismos táticos ofensivos permanecem vivos e favorecendo a interação dos jogadores durante todo esse período.

A construção do jogo

O início de jogo depende muito da conduta do adversário que geralmente optam por pressionar em bloco alto. Então, o início de jogo com bola longa se torna uma reação imediata dos millonarios onde os laterais buscam uma posição mais avançada no campo e esperam um passe longo dos centrais, caso não haja vantagem em iniciar o jogo com passes curtos. Após o passe longo dos centrais ou do goleiro o comportamento dos laterais passa ser de reduzir opções dos adversários e de ganhar a 2ª bola com encaixes individuais na região central do campo. Toda essa estrutura formada pelos laterais e médios é protegida pelos centrais que ficam responsáveis pelas coberturas e pelos duelos com os atacantes adversários que tentam aproveitar os espaços livres das costas. Veja alguns exemplos a seguir:

Imagens: Reprodução/Jonathan Silva

As imagens mostram momentos diferentes desse jogo, mas representam os comportamentos que mais se reproduzem na fase de início de jogo do River.

Na figura 2, os laterais Mercado e Vangioni buscam uma vantagem posicional sobre os atacantes da equipe colombiana como primeira opção, posicionamento padrão dos laterais de Gallardo. Na figura 3, o volante Ponzio e o lateral Vangioni se projetam para realizar os encaixes individuais na região central do campo e o lateral direito Mercado tem a função de acompanhar esse movimento para também proteger o centro do campo.

Imagens: Reprodução/Jonathan Silva

O mesmo comportamento acontece nos exemplos acima, anos depois. Aqui temos os laterais Montiel e Casco avançando para esperar o passe longo dos centrais.

Imagens: Reprodução/Jonathan Silva

Nas três imagens percebemos claramente a estrutura de contenção central posicionada para ganhar a 2ª bola. Importante ressaltar a interação dos volantes Ponzio e Enzo Pérez que têm a função de auxiliar os laterais intensificando a pressão nessa região do campo.

Na figura 9, a bola é rebatida pela equipe gremista para as costas da estrutura de contenção central e vemos Pinola se preparando para a disputa da bola e Maidana se projetando para uma possível cobertura defensiva.

Na Figura 10 o mesmo acontece, a bola é rebatida pela equipe do Flamengo e também retorna para uma região central atrás na estrutura de contenção e quem se responsabiliza da próxima disputa é o central Pinola e quem estabelece a cobertura defensiva é Martínez Quarta que também divide sua atenção com a projeção de Éverton para um espaço importante deixado pelo avanço do lateral Casco.

Esses exemplos demonstram como a equipe de Gallardo assume riscos ao avançar seus laterais para recuperar a bola em profundidade, ainda que deixem espaços nas costas dos laterais. Nessa situação a preferência é apostar nos duelos defensivos dos bons centrais para garantir a posse de bola, eliminar a chance de gol e iniciar seu ataque posicional, que será o tema da continuação de nossa série sobre o ataque do River Plate, na semana que vem!

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O sub-aproveitamento do que cada jogador tem de melhor

Todo treinador tem uma ideia de jogo preferida. Um modelo com princípios e sub-princípios ofensivos, defensivos e de transições com que tenha mais afinidade. Mas como não há uma única maneira capaz de levar equipes à vitórias, o bom técnico é aquele que consegue adaptar suas ideias ao contexto e, principalmente, aos jogadores que tem a disposição.

O olhar primeiramente para dentro é fundamental e pré-requisito para o sucesso. Não há como ter uma ideia fixa inicial , por melhor que ela seja, e querer que um grupo execute-a, sem respeitar e entender as características individuais. É infinita a riqueza que cada jogador tem a oferecer. O treinador que mais se aproxima do êxito é aquele capaz de identificar as potencialidades disponíveis e a partir disso criar sistemas e mecanismos.

E partindo do jogador para a equipe, do indivíduo para o coletivo, passamos a ter outra situação que também é riquíssima: a sinergia entre os jogadores. Para exemplificar: nenhum 1-4-4-2 é igual. Equipes podem ter a mesma estruturação no espaço de jogo, mas elas essencialmente serão diferentes por conta das características de cada jogador e o que emerge da relação entre eles. Quando vemos um time potencializando o que cada indivíduo tem de melhor parece que ao invés de onze há quartorze, quinze jogadores em campo. Por outro lado, quando há um esforço e um gasto de energia muito acima do normal a impressão que passa é que o time está com um, dois, até três jogadores a menos.

Convicção e confiança são fundamentais em qualquer profissão. E, claro, no futebol não é diferente. Contudo, vale mais acreditar e confiar no próprio trabalho, no processo a ser desenvolvido, do que em ideias pré-concebidas. Olhar para o grupo, para a cultura, para o ambiente e para o contexto é fundamental para aumentar as probabilidades de vitórias. Guardiola, Klopp, Mourinho e tantos outros profissionais de sucesso foram mudando no decorrer dos anos e dos clubes. A flexibilidade e a inteligência circunstancial são as chaves para o triunfo no futebol atual.

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O impacto das mudanças de comando técnico no futebol brasileiro – O efeito da troca de treinadores

Relembrando a reflexão inicial, quando o nosso objetivo se volta a avaliar os treinadores de futebol no Brasil, devemos sempre expandir o raciocínio e os cálculos estatísticos para examinar o contexto vigente no país. Devido ao fato do treinador representar apenas uma peça que integra um sistema dinâmico, qualquer comparação simplista de resultados não apenas desconfigura a realidade de um esporte coletivo de alto rendimento, como também prejudica o avanço da modalidade (e dos profissionais atuantes) no território nacional. Por isso, para uma tomada de decisão racional sobre o efeito dos treinadores, é fundamental mensurar critérios objetivos que possam traduzir o contexto em torno da equipe, dos seus adversários e da competição sob análise.

Dando continuidade ao estudo com as respostas da segunda pergunta (Como as trocas de comando técnico impactam o desempenho esportivo no Brasil?) por meio de uma avaliação econométrica compreensiva, nossos modelos de análise de regressão foram capazes de classificar até 67,9% dos casos corretamente. E seguindo o mesmo raciocínio da PARTE 2, reunimos abaixo os principais resultados estatísticos em um agrupamento de 3 núcleos:

A) Ritual do bode expiatório (mudanças subjetivas, sem efeitos objetivos)

B) Calendário

C) Características do treinador

Conforme adiantado na PARTE 2, devido à complexidade dos cálculos na econometria, bem como os parâmetros e testes necessários na metodologia científica, a leitura dos dados no artigo acadêmico pode parecer confusa sem um embasamento teórico. Portanto, para facilitar a compreensão na PARTE 3, ilustramos os resultados estatísticos com percentuais que traduzem um aumento ou diminuição na probabilidade de se alcançar uma vitória (3 pontos) ou ao menos um empate (1 ponto) durante o Brasileirão.

A) Ritual do bode expiatório (mudanças subjetivas, sem efeitos objetivos)

Em termos objetivos, chegamos aqui ao principal resultado do nosso estudo: 7 jogos (ou sétimo jogo, precisamente). Este é o volume de partidas oficiais (ou tempo necessário) que o treinador precisa percorrer até conseguir entregar um índice de contribuição direta (porém parcial) à melhoria de rendimento esportivo de um clube no Brasileirão.

De acordo com a principal evidência estatística extraída da nossa avaliação econométrica que investigou absolutamente todos os 264 treinadores, 594 mudanças de comando (sendo 463 trocas com treinadores efetivos e 131 trocas com interinos), 41 clubes participantes em 6506 partidas oficiais de Brasileirão durante 16 temporadas (2003 a 2018), chegamos, enfim, a comprovação científica de que o treinador de futebol no Brasil necessita permanecer no comando técnico até o seu sétimo jogo antes que ele possa aumentar (de forma parcial) a probabilidade de uma vitória (em 30,8%, precisamente) ou empate (em 40,7%) após assumir a liderança de sua nova equipe.

Ainda assim, tal como identificado nos primeiros seis jogos após assumir o cargo em seu novo clube, o efeito de contribuição do novo treinador não mostra resultados estatisticamente significativos entre o oitavo e o décimo jogo, traduzindo efeitos nulos para a realidade prática (ou seja, sem sinais positivos ou negativos para ajudar a valorizar ou renegar o treinador substituto, pois apenas o sétimo jogo ilustrou resultados de influência parcial). E apesar do primeiro jogo do treinador no novo cargo mostrar um potencial para garantir ao menos um empate (subindo a probabilidade de coleta de 1 ponto em 27,2%), a evidência científica constatada pelo nosso estudo deixa claro que as mudanças de treinadores de futebol durante o Brasileirão não carregam efeitos práticos para a melhoria de rendimento esportivo de seus respectivos clubes. Em outras palavras, um novo treinador sozinho não muda a trajetória na realidade.

É importante ressaltar que, muito embora seja possível identificar casos de novos treinadores que (hipoteticamente) coletaram pontos em todos os seis primeiros jogos, ou até mesmo ao longo das dez primeiras partidas em um novo cargo nesse mesmo período, tais situações respondem por circunstâncias específicas e individuais, reduzindo a avaliação a [1] uma amostra não representativa para a classe de treinadores atuante no Brasileirão e a [2] comparações superficiais com estatísticas básicas, que minimizam a dinâmica do futebol brasileiro.

Segundo os resultados da nossa investigação econométrica, o treinador de futebol no Brasil é alvo do ritual do bode expiatório, uma teoria estabelecida na década de 1960 pela literatura de administração e economia do esporte após a sua primeira série de avaliações criteriosas utilizando o beisebol americano como objeto de análise. Logo, a evidência da nossa investigação reforça estudos acadêmicos que identificaram o mesmo efeito após as trocas de treinadores realizadas em ligas nacionais de futebol na Argentina, Áustria, Bélgica, Colômbia, Espanha, Holanda, Inglaterra, Itália e Portugal.

B) Calendário

Ao dissecar os fatores externos que efetivamente influenciam o rendimento esportivo ao longo do campeonato brasileiro (leia-se a qualquer momento do Brasileirão, independente do treinador que esteja na função), nossos dados mostraram que as variáveis relacionadas ao calendário competitivo são condicionantes a interferir na coleta de pontos de um clube.

Inicialmente, o aspecto mais importante se destaca com a vantagem do mando de campo. Caso a equipe sob observação seja a mandante da partida, sua probabilidade de vitória sobe em até 261,8%, enquanto as chances de assegurar ao menos um empate sobem em até 263,5%. Com base nestes índices, jogar com o mando de campo representa a maior vantagem competitiva (em termos estatisticamente significativos) encontrada na liga nacional do futebol brasileiro. Sinais de maior presença de torcedores a favor da equipe no estádio, pressão sobre a arbitragem, maior familiaridade dos jogadores com o espaço físico ou campo de jogo, além de menos desgaste logístico no deslocamento ao local da partida (em comparação ao adversário visitante) podem ajudar a explicar o peso superior deste resultado. Vale ressaltar que o mando de campo pode servir para escolher outros destinos onde a partida deva acontecer na prática e, portanto, não significa que o clube mandante atue sempre em seu próprio estádio oficial.

Nossa segunda constatação ligada ao calendário diz respeito a diferença de pontos entre os clubes sob observação antes da partida. Isto é, para cada ponto a mais que a equipe apresente no momento em comparação ao seu adversário, a probabilidade de vitória aumenta em 2,3% (por ponto), enquanto as chances de garantir pelo menos um empate aumentam em 2,6% (por ponto). Este resultado traduz como as disparidades no acúmulo de pontos na tabela do campeonato tendem a distanciar ainda mais os clubes de maior potencial esportivo e econômico em comparação aos clubes que não conseguem acompanhar o mesmo ritmo competitivo ao longo da temporada (enaltecendo a diferença qualitativa entre as equipes em termos de níveis de jogadores).

Nossa terceira evidência estatisticamente significativa em torno do calendário refere-se aos clássicos locais (considerando que identificamos 504 clássicos entre os 6506 jogos sob análise). De forma resumida, toda vez que uma equipe (ou treinador) enfrenta um rival tradicional histórico da mesma cidade (ou estado em alguns casos específicos), a probabilidade de vitória é reduzida em 19,3%. Apoiados pela ausência de um efeito na incidência de empates, podemos argumentar que um clássico local no Brasileirão carrega um potencial menor para garantir a coleta de pontos frente a equipes rivais.

Por fim, também devemos valorizar a ausência de impacto sobre o rendimento esportivo por parte de outras 3 variáveis de controle presentes na nossa avaliação: [1] o fato do adversário ter trocado de treinador antes do jogo, [2] a diferença no percentual de aproveitamento entre as equipes e [3] a diferença de dias de descanso antes da partida sob observação. Embora não-significativos pelo cálculo estatístico, esses 3 elementos fortalecem indícios de como o calendário de jogos poderia ser manipulado de forma estratégica por parte dos clubes no planejamento de confrontos com maior antecedência.

C) Características do treinador

Chegando ao último agrupamento de resultados que merecem maior atenção, reunimos os prognósticos estatísticos provenientes de características específicas sobre o treinador atuante no Brasil.

Se o treinador responsável por conduzir a equipe na partida sob observação for interino, a probabilidade de coletar pontos é reduzida drasticamente, elevando o risco de derrota. Segundo os índices que encontramos, o treinador interino diminui em 41,5% a probabilidade de uma vitória e em 51,3% a probabilidade de um empate (em qualquer momento do campeonato brasileiro). Tais consequências levantam outro sinal de alerta sobre o impacto prejudicial de mudanças de líderes durante a temporada, pois a transição desde a saída de um treinador efetivo até a chegada de seu substituto tende a agravar o rendimento esportivo da equipe.

Além dos interinos, os treinadores nascidos fora do Brasil também aumentam consideravelmente o risco de derrota durante a temporada. Isto é, de acordo com os dados extraídos ao longo de 16 temporadas de pontos corridos no Brasileirão, quando o treinador responsável pelo comando da equipe é estrangeiro, a probabilidade de vitória se reduz em 42,8%, enquanto as chances de se obter no mínimo um empate são reduzidas em 48,0%. Esta evidência científica ajuda a explicar como os treinadores estrangeiros parecem necessitar de um tempo ainda superior aos brasileiros na adaptação ao contexto laboral, cultural e competitivo vigente no país. Por outro lado, também pode ser um reflexo da pequena quantidade de treinadores internacionais compondo a nossa amostra, uma vez que o nosso estudo capturou somente 13 indivíduos nascidos fora do Brasil (em 16 passagens efetivas e 1 interina), cuja participação representa menos de 2% das observações sob análise.

Nem a idade do treinador, tampouco a sua experiência como jogador profissional interferem diretamente no rendimento esportivo. Ou seja, com resultados não-significativos na nossa análise, estereótipos comumente desenhados pela imprensa esportiva brasileira com relação a treinadores mais jovens, mais velhos, ex-jogadores ou profissionais acadêmicos não mostraram diferenças estatisticamente significativas para contribuir ou prejudicar o rendimento durante o Brasileirão. Esta constatação ajuda a desmistificar ainda mais os argumentos subjetivos sobre um suposto perfil ideal de treinador no país, sobretudo pelo fato de 80% da nossa amostra ser composta por treinadores que foram jogadores profissionais, além da sua faixa de idade percorrer uma janela de 4 décadas (com o treinador mais novo computando 30,8 anos e o mais velho 72,5 anos – enquanto a média geral indica 50,4 anos de idade).

Os últimos resultados que enaltecem a experiência do treinador referem-se a méritos competitivos. Já que é muito comum testemunhar indicações de dirigentes defendendo suas escolhas de treinadores pelo histórico bem-sucedido do novo empregado (especialmente em torneios eliminatórios), decidimos verificar se determinadas alegações realmente se traduzem em algum efeito sobre o rendimento esportivo na prática. Contudo, nossos resultados contradizem os discursos dos anunciantes, apesar de existir uma única exceção: treinadores finalistas da Copa Libertadores tendem a aumentar (em 16,4%) a probabilidade de se coletar ao menos um ponto na partida ao longo do Brasileirão (mas não influenciam as chances de vitória). Ao examinarmos o impacto de treinadores que já haviam sido finalistas (antes de cada jogo sob análise) da Copa do Brasil e da Copa Sul-Americana, não identificamos prognósticos estatisticamente significativos que pudessem influenciar o resultado de uma partida na liga nacional. O mesmo raciocínio se mostrou válido para treinadores que já haviam sido campeões do Brasileirão até o momento do jogo (nenhuma diferença no rendimento). Tampouco notamos efeitos de influência nos resultados devido ao volume de participações do treinador em campanhas de acesso à Libertadores ou de participações em campanhas de rebaixamento (que representa a nossa variável de demérito competitivo na liga nacional). Em suma, o histórico do treinador carrega muitos benefícios intangíveis à organização, porém somente o êxito do seu passado evidentemente não garante sucesso no presente ou futuro.

Para concluir, a PARTE 4 trará uma revisão sobre as principais implicações práticas em torno dos treinadores, dirigentes e torcedores interessados no avanço do futebol brasileiro.

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Os comportamentos defensivos nas semifinais da Copa do Mundo de 2014

Em 2014, o Brasil sediou a Copa do Mundo FIFA, atraindo os olhares de diferentes culturas e civilizações para o nosso país. Porém, um dos fatores marcantes daquele mundial foi a histórica goleada sofrida pela seleção do Brasil diante da Alemanha (7-1). A referida derrota repercutiu não somente nas ruas e bares, mas também no ambiente acadêmico-científico. Perguntávamos a nós mesmos: como pode a seleção pentacampeã mundial, com tamanha tradição futebolística, sofrer uma derrota tão avassaladora?

Desejosos de compreender os motivos que fizeram o Brasil sucumbir perante a campeã Alemanha, buscamos neste artigo compreender a dinâmica tática coletiva defensiva das equipes semifinalistas e finalistas do mundial de 2014 (Alemanha, Argentina, Holanda e Brasil). Para isso, 533 jogadas defensivas realizadas nas semifinais e finais foram analisadas a partir da metodologia observacional, que contém uma matriz conceitual com variáveis relacionadas à zona de recuperação da bola, pressão defensiva, remoção de profundidade do ataque adversário, tempo gasto para recuperar a bola, número de faltas, entre outros. A campeã Alemanha foi a única seleção que apresentou maior quantidade de pressão coletiva na região da bola (pressing). Nas imagens a seguir, observa-se a preocupação dos alemães em restringirem o espaço e o tempo dos jogadores brasileiros que recebiam a bola nos espaços entrelinhas, gerando superioridade numérica no centro de jogo.

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

O controle de profundidade do ataque adversário, para explorar a lei do impedimento, também foi um comportamento tático coletivo amplamente realizado pelas equipes investigadas. Dessa forma, as seleções subiam ou desciam as suas linhas defensivas no campo de jogo para deixarem, eventualmente, os atacantes impedidos, bem como para evitar um passe em profundidade. A subida das linhas defensivas ocorreu sobretudo em três situações: I) jogadas que o atacante com a posse da bola estava marcado; II)  atacante dominava a bola de costas para a defesa; e III) atacante conduzia a bola para trás (bola coberta). Pelo outro lado, quando o atacante não estava marcado e conduzia para a frente sem oposição (bola descoberta), as linhas baixavam, conforme indica a figura a seguir:

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

Interessante observar que as equipes que estavam perdendo os seus jogos foram aquelas que mais retiraram profundidade do ataque adversário, buscando uma maior compactação intersetorial para facilitar a retomada da bola. A tendência das seleções semifinalistas em “encurtar” os espaços do portador da bola e possíveis linhas de passe contribuiu para a observação da compactação intersetorial (principalmente entre defesa e meio-campo), a criação de superioridade numérica na região da bola (lado forte/lado fraco) com uma intensa pressão neste local (pressing).

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

Observou-se, ainda, que durante o tempo regulamentar das partidas, as equipes procuraram orientar o posicionamento inicial dos defensores a partir de um bloco baixo (figuras a seguir). Porém, quando houve prorrogação, as equipes subiram os seus blocos defensivos para o meio do campo (bloco médio).

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

A partir dos resultados encontrados nesta análise, sugere-se aos treinadores de futebol a organização da fase defensiva de suas equipes pautada nas seguintes ideias: I) pressionar o homem da bola e espaços adjacentes; II) criar um permanente sistema de coberturas, garantido pela compactação intersetorial e pela retirada de profundidade do ataque adversário; III) cobrir e reforçar permanentemente o eixo central do campo, de modo a possuir superioridade numérica na região do centro de jogo; e IV) recuperar a bola o mais próximo possível da meta adversária.

Quando conjugados, estes comportamentos táticos defensivos poderão evitar o sofrimento de gols em jogos decisivos, contribuindo para a robustez defensiva das equipes brasileiras.

Para ler o artigo completo, o texto está em inglês, clique aqui.