Corria o ano de 2015, primeira metade da nova temporada, e eu assistia à uma entrevista de José Mourinho, então treinador do Chelsea, após uma derrota para o Liverpool, no Stamford Bridge. Mourinho passava por um momento particularmente difícil, defendendo o título inglês e o próprio emprego com menos forças do que o usual (ao menos na aparência), um cansaço inescapável aos nossos olhos e, como de costume, um relacionamento instável com a imprensa.
Na entrevista a que me refiro, lembro perfeitamente de ter tido uma espécie de epifania, que manifestou-se ali embora ameaçasse se manifestar há tempos, como se eu acordasse de uma hipnose acometia não apenas a mim, como a vários colegas treinadores ou postulantes à profissão. Quando Mourinho diz que não estava preocupado com o futuro, da maneira como disse, me admirou como não havia nenhuma verdade ali, como o corpo, ao seu modo, dizia exatamente o contrário. Ele me parecia visivelmente exausto, cansado, mas mesmo assim tentava sustentar o personagem confiante que sempre esteve ali.
Aos meus olhos, havia uma condição, em especial: Mourinho havia se humanizado.
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Na literatura sobre futebol produzida neste século, a figura de José Mourinho é absolutamente central. Foram linhas e mais linhas dedicadas a entendê-lo, a interpretar suas práticas supostamente heterodoxas – destaque aqui para a descoberta guiada, que acabou se tornando uma espécie de mantra -, sua liderança (tida como) carismática, e tudo o que fazia dele único e especial. Mourinho tornou-se, principalmente após o título da UEFA Champions League com o FC Porto, uma espécie de personagem mainstream, a referência de uma série de profissionais que queriam se dedicar à arte do treinamento.
Simultaneamente, embora não nos tenha sido tão claro, sinto ter havido um outro fenômeno fundamental: este afã de admiração fez com que nos escapasse a humanidade do treinador. A partir de um dado momento, Mourinho deixou de ser humano para ser uma marca, um ícone praticamente inabalável e, especialmente (aqui reside minha maior crítica), um modelo que, se imitado, levaria inevitavelmente ao sucesso. Vários dos nossos colegas treinadores viam em Mourinho o dono de uma espécie de cartilha, cuja cópia seria a chave não apenas para as vitórias que moram nos sonhos de quaisquer treinadores e treinadoras, como o status que as acompanham, a figura quase que mitológica e reificada em que são transformados aqueles que têm sucesso no futebol.
Este movimento de transferência (de poder) é tão forte, tão recorrente, que fere de morte o nosso lugar. Treinadores como Mourinho, especialmente em um tempo de tamanha velocidade informacional, são colocados em um patamar que soa inalcançável, inatingível a nós, meros mortais, embora nós mesmos estivéssemos de olho na fórmula mágica que o próprio Mourinho havia revelado. Nesta relação, há uma parte cujas forças são vendidas para subversão absoluta de quaisquer fraquezas, enquanto a outra parte, aquela que nos cabe, parece estar na outra ponta, cheia de supostas fraquezas e distante de tamanhas qualidades. Não é preciso avançarmos muito para percebermos não apenas o quão ilusório é este processo, mas também os efeitos devastadores causados por ele.
Nas conversas a que tenho me detido nos últimos tempos, meu ponto é outro: é evidente que precisamos de referências nos sejam salutares, como treinadores e treinadoras que somos. Ao mesmo tempo, é imprescindível que o caminho escolhido por nós seja realmente o nosso, não o de outrem. A subjetividade humana permite que floresça uma inteireza e unicidade em cada ser, e desconfio que as tentativas de fuga de si, conscientes ou não, serão sempre meias verdades, atalhos que podem ser temporariamente saciadores, mas que não se sustentam no longo prazo, são indigestos, incompletos. O caminho de treinadores e treinadoras, aos meus olhos, é o caminho de si. É preciso olhar para fora, mas é duplamente preciso olhar para dentro.
Quem me parece ter feito isso muito bem (sem quaisquer comparações aqui), é Jurgen Klopp, treinador do Liverpool. Um momento que me parece absolutamente genial no ideário do futebol contemporâneo é sua apresentação no atual, dois meses antes da saída de Mourinho do Chelsea. Quando perguntado sobre como ele se descreveria (em clara referência à auto descrição feita por Mourinho onze anos antes), Klopp deu uma das tiradas mais espirituosas dos últimos tempos: se disse o Normal One. A despeito da piada, minha impressão naquele dia foi bastante clara: Klopp humanizou-se com uma habilidade ímpar – muito embora este pareça ser um trabalho de anos – e talvez ali resida uma das suas grandes qualidades como treinador: a de ser quem se é, genuína e alegremente.
O que parece ainda maior em tempos de crepúsculo dos ídolos.
Ou de aurora de si.