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Sobre a liderança real e humanizada

Mauricio Pochettino, treinador do Tottenham: ao que tudo indica, uma liderança baseada na conexão humana. (Photo by James Williamson – AMA/Getty Images | Divulgação: Tottenham Hotspurs)

 
Desde quando passei a olhar para o futebol não mais como diversão, mas como uma profissão, percebo que existe, no entorno, uma preocupação bastante recorrente e quase que obsessiva com a noção de liderança. Lembro-me de ter feito uma disciplina com o Professor João Paulo Medina, há alguns anos, quando ele permitiu que a classe escolhesse os temas de maior interesse, e fiquei surpreso com o peso que a liderança parecia exercer sobre os meus colegas. Naquela época, ainda estávamos sob efeito de toda uma literatura que, muito embora tenha nos apresentado alguns dos métodos de colegas treinadores de extremo sucesso, também contribuiu para uma razoável romantização destes mesmos colegas, além de colocá-los em pequenos rótulos (carismático, situacional, democrático…) que acabaram não apenas demarcando a eles próprios, como também a nós mesmos. Por fim, todos os caminhos nos levavam, e ainda levam, à questão primordial: como expressar (bem) a minha própria liderança?
Sobre isso, em linhas gerais, tenho duas desconfianças: a primeira é que as discussões mais sisudas sobre a liderança acompanham os contributos científicos recebidos pelo futebol em um passado recente. Neste caso, especialmente, parece haver uma contribuição importante da administração e da gestão esportiva, cujas terminologias, depois de importadas, parecem ter alimentado alguns dos pequenos rótulos de que falei acima. Mas é a outra desconfiança que mais me preocupa: me parece que a obsessão sobre a liderança reside em uma insegurança bastante razoável sobre nós mesmos, sobre as nossas capacidades, ao lado de um importante anseio por aprovação, especialmente nas novas gerações. Não por acaso, este mesmo tema aparece, de forma epidêmica, em diversas outras áreas, para muito além do futebol. Por entre capítulos de livros e entrevistas quaisquer, buscamos um lugar, um porto que mostre que a nossa liderança pode, de fato, estar segura. Buscamos afirmar a nós mesmos.
Por isso, me incomodam profundamente alguns dos olhares mais objetivos e herméticos sobre a arte de liderar. No caso brasileiro, especificamente, sinto que alimentamos um sentimento autoritário, levemente belicoso, ao mesmo em que também existe uma visão absolutamente idealizada, distante daquilo que faz da liderança não uma face de si própria, mas sim da humanidade de quem a expressa. As imagens de liderança que nos parecem familiares estão associadas com a obrigação de acerto a todo custo, de portar sempre a última palavra, de ser o centro do debate e das ideias dentro de um determinado grupo, de ser o salvador/salvadora, de estar dotado de uma espécie de olhar de sobrevoo, como diria alguém (olhar de cima para baixo, visão panorâmica). Liderar, por fim, parece ser visto como um exemplo de força, não exatamente de poder.
Aqui, façamos um adendo: vamos refletir, por um instante, sobre a distinção entre poder e força. Veja bem, a condição a priori da força é a imposição. A força não pede licença, ela sobrevive à base da imposição, precisa ser empurrada goela abaixo, física ou mentalmente. Se não, provavelmente não é força. O poder, por sua vez, parte de outra premissa: ele deve ser conquistado. Para que se tenha poder, é preciso que ele lhe seja concedido, emprestado por uma pessoa ou por um grupo. Neste raciocínio, repare bem, existe uma peculiaridade: o poder exige que quem o conquista seja forte, para enfrentar os profundos riscos da aprovação alheia. A força, por sua vez, é solitária, é a admissão última da inabilidade do sujeito que a exerce em fazer-se poderoso. A força, veja só, é o instrumento do fraco.¹
Se defendemos um olhar humanizado para o jogo, é evidente que também precisamos defender um olhar humanizado da liderança – ou então, ela irá nos sufocar. Um dos personagens que parece ter percebido isso com enorme perspicácia é o excelente Mauricio Pochettino, hoje treinador do Tottenham. Em ótima entrevista, concedida há dois anos, Pochettino faz um apontamento muito interessante, quando perguntado sobre como se lidera as novas gerações:

Você tem que tentar sentir como eles se sentem, [demonstrar] empatia.
Hoje o líder humano é o líder que triunfa. A mão de ferro é coisa do
passado. Os meninos também sentem paixão, mas você precisa ajudá-los a
descobrir paixão, inspiração. Mais do que motivá-los, você precisa cuidar deles.
Hoje tudo tende a esfriar as relações, sustentá-las pelas mensagenzinhas,
whatsapp…É difícil para as pessoas se relacionar, conversar, olhar nos olhos,
tocar…Nós que viemos de outra geração, e que estamos no meio, temos a
responsabilidade de que esta nova geração não perca o contato, a fala, a relação,
que é definitiva no futebol. A tática nada mais é do que a relação que você
tem com seu parceiro, no final é isso. Com base em como nos relacionamos,
definimos como jogamos
(tradução livre).

Na resposta seguinte, quando responde como fazer tudo aquilo sem ser uma espécie de sargento, Pochettino é mais do que preciso:

Com espontaneidade. Não existem problemas se você, em frente a um grupo ou uma pessoa,
se comporta genuinamente. O pior que pode fazer a um jogador de futebol é esconder quem você é,
e agir de uma forma, depois de outra… Confiar em quem você é, sempre com a honestidade
à sua frente. (…) Pode ser entediante, pode mostrar sua face menos amável, pode estar perto ou longe,
mas será você. Seguir quem você é, crer na sua intuição, confiar em você mesmo
(tradução livre).

De imediato, as palavras de Pochettino me lançam para aquele conhecido aforismo de Friedrich Nietzsche: ‘torna-te quem tu és’. As leituras e os arquétipos diversos sobre liderança pouco serão válidos se não estiverem a nosso próprio serviço, se não fizerem com que saibamos não apenas sobre as coisas, mas principalmente sobre nós mesmos, por uma razão muito simples: este não apenas é o caminho da honestidade de que fala Pochettino, como também é o caminho da humanidade. E para além dos ideais doentios de sucesso, este também é o caminho do equívoco, da fraqueza, dos vícios (leia-se, contrário das virtudes), dos limites, da vulnerabilidade. Para que se tenha poder, para que se crie uma conexão profunda a ponto de que o outro nos conceda a sua confiança, também é preciso expressar o elo fraco, é preciso caminhar à noite, ainda que sutilmente, ao lado das sombras que não se vê. Se não cuidarmos disso, a vida cuidará por nós.
Ou o jogo, tanto faz.

***

¹ Citação feita sob a lembrança das notáveis aulas do Professor Mauro Cardoso Simões, na FCA Unicamp, a quem deixo uma grande saudação.
 

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Façam suas apostas…agora legais

Em Dezembro de 2018 foi sancionada lei que permite a aposta online em resultados de jogos de futebol no Brasil. Ainda falta a regulamentação. É um passo importante para esta indústria em nosso país. Não há dúvidas de que traz alguns medos e preocupações. Ao mesmo tempo, pode se tornar importante fonte de receitas para entidades de administração do esporte, clubes e federações.

O Brasil possui grande número de consumidores de eventos esportivos, quer seja pelo rádio, pela televisão ou pela internet. Empresas de apostas estrangeiras já operavam no Brasil e têm sido bem sucedidas. Agora com a legalização, podem ficar mais interessadas em atuar no mercado brasileiro. É natural, portanto, que estas operações cresçam, proporcionalmente às preocupações sobre resultados manipulados ou arranjados, a fim de beneficiar determinado apostador ou grupo de interesse.

Nesse sentido, clubes e federações deverão atuar em conjunto para evitar a todo custo este tipo de ação, para preservar a lisura dos torneios e competições, bem como afastar e punir os envolvidos em quaisquer casos, no mínimo, suspeitos. Afinal – e como vocês leitores devem estar cansados de ler – é papel das federações: difundir, preservar e proteger a sua modalidade esportiva, uma vez que a simples dúvida a respeito da credibilidade da competição esportiva é capaz de afastar o público, que tende a afastar-se do esporte, uma vez que o resultado é “pré-determinado”.

Qual seria a graça?

As apostas podem ficar cada vez mais comuns no Brasil. (Foto: MaracaNET)

 

Entretanto, a regulamentação detalhada e clara acerca dos direitos, dos deveres e das sanções entre os agentes desta indústria legalizada de apostas esportivas online, é capaz de criar um ambiente saudável para o seu desenvolvimento. Dessa maneira a proporcionar ganhos, quer seja para os sites, para os apostadores, clubes e federações. Além do volume de tráfego em seus websites, a publicidade nas camisas e no perímetro do campo pode ser grande fonte de receitas, assim como são nos escalões mais altos das principais ligas de futebol do mundo.

Portanto, estejam preparados para as suas apostas legais em breve!

 

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Comunicação interna

Principal novidade do mercado de técnicos de futebol no Brasil em 2019, o argentino Jorge Sampaoli precisou de pouco tempo para estremecer consideravelmente a relação com a diretoria e com parte do elenco do Santos. Em menos de um mês, o treinador já se consolidou como um exemplo preciso de como a falta de cultura de comunicação organizacional interfere nas decisões e no rendimento das equipes em âmbito nacional.
No último domingo (13), após empate por 1 a 1 em amistoso com o Corinthians, Sampaoli foi incisivo nas críticas e cobranças. Reclamou da falta de reforços – a única contratação confirmada até o momento é o atacante venezuelano Yeferson Soteldo –, citou a história do clube e apontou necessidades para adequar o grupo de atletas às características de jogo que pretende imprimir. Um exemplo disso é o goleiro: a despeito de Vanderlei ser um dos expoentes técnicos da equipe alvinegra, o comandante argentino, que reconheceu a qualidade do jogador, pediu à diretoria um nome para a posição que seja mais afeito ao uso dos pés na construção dos lances. Sampaoli sabe que Vanderlei é um dos melhores da posição no país e que é um ativo importante para o Santos, mas prefere um jogador que seja menos refinado e se ajuste melhor a seu modo de pensar.
O mesmo vale para outros reforços: segundo José Carlos Peres, presidente do Santos, o treinador fez pedidos que dificilmente se encaixarão no orçamento alvinegro e reluta em abrir mão dessas escolhas porque outros atletas teriam mais dificuldade de acerto no sistema que ele imagina implantar na Vila Belmiro. No entanto, esses anseios de Sampaoli esbarram na condição financeira desfavorável.
Além de não ter o mesmo potencial de arrecadação de outros times da elite nacional (Flamengo e Palmeiras, principalmente), o Santos encara em 2019 uma série de questões de fluxo de caixa advindas do novo modelo de distribuição de receita dos contratos de cessão de mídia. Na equipe alvinegra, como em praticamente todos os times das duas principais divisões do futebol nacional, o ano que se inicia agora é um gigantesco exercício de planejamento e uso contido do que entra em caixa.
A questão é que não foi esse o cenário que o Santos vendeu para Sampaoli. O técnico já falou que a diretoria alvinegra havia considerado ao menos oito reforços para moldar o elenco de 2019. Ainda que Peres tenha afirmado a jornalistas no domingo que duas dessas contratações estão perto de acontecer, existe aí uma diferença considerável de perspectiva.
Outro episódio que escancara o problema de comunicação na relação entre Santos e Sampaoli é que o técnico argentino incluiu Ronaldinho Gaúcho na lista de ídolos do time paulista. O ex-jogador, um dos maiores nomes do futebol brasileiro nas últimas décadas, jamais vestiu a camisa da equipe litorânea.
Em pouco tempo, a história de Sampaoli no Santos já serviu para mostrar que faltou preparação e que faltou cultura organizacional. O treinador deveria ter sido mais bem orientado sobre a história, o atual momento e as possibilidades da equipe. Esse gap entre o que ele pensa e a realidade do time só contribui para atrapalhar o ambiente e debelar o trabalho que deveria ser totalmente orientado em uma só direção.
Em grandes empresas, é comum que existam departamentos ou profissionais focados apenas na transmissão de valores, objetivos e ideais da organização para todos que fazem parte do dia a dia. Ainda que as funções não sejam diretamente relacionadas ao público ou ao consumidor final, os colaboradores são sempre os melhores comunicadores do que a companhia tem a dizer.
É fundamental, portanto, que todo colaborador saiba o que a empresa vende, a quem vende e a quem gostaria de vender. Quais são os objetivos, quais são os potenciais e quais são as debilidades da marca, por exemplo. Tudo isso demanda ações constantes e assertivas, que vão muito além de um quadro de avisos ou de um e-mail geral.
Também existe uma necessidade clara de que todos entendam por que a empresa faz o que faz. A própria existência da marca passa por uma transmissão adequada de seus valores.
Essa necessidade é ainda maior quando o funcionário foge do esquema padrão – quando vai morar fora ou precisa vender um produto novo, por exemplo. Se ele não entender a realidade e os objetivos, o processo todo acaba prejudicado.
Sampaoli é estrangeiro, e por si só carrega uma resistência (equivocada, diga-se) no futebol brasileiro. Também tem ideias claras, mas que não são de simples execução e que nem sempre transitam no caminho mais fácil. Se ele não for corretamente orientado e não tiver a real noção do que o Santos é atualmente, porém, todos esses senões serão ainda maiores.
 

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Sampaoli e a metodologia de treinamento

A chegada do técnico Jorge Sampaoli ao Santos é um dos grandes fatos desse início de 2019. Não só por um treinador estrangeiro começar um trabalho desde o princípio da temporada e não chegar apenas para remendar o que já vinha sendo feito, mas também pela própria figura de Sampaoli: conhecedor de futebol, meticuloso e, principalmente, trazendo ideias diferentes das que temos.
No meio do modorrento, porém necessário noticiário dessa época do ano, duas coisas me chamaram a atenção: a primeira, divulgada pelo próprio Santos, é Sampaoli pedindo para conversar com a pessoa encarregada pela manutenção do gramado do CT Rei Pelé. Se o sucesso mora nos detalhes, um piso adequado para treinamentos me parece uma ótima pedida. E a outra, que é a principal, é que já no primeiro dia de trabalho, o elenco do Santos treinou com bola.
É verdade que aquela antiga mania de submeter os atletas a intensos trabalhos físicos nos primeiros dias da pré-temporada está morrendo gradativamente. Entretanto, com raras exceções no futebol brasileiro, ainda há no inconsciente coletivo da nossa cultura, de que para “aguentar” o ano os jogadores têm que fazer uma intensa (e física) pré-temporada. Como se jogadores mais bem condicionados fisicamente fossem necessariamente entender melhor as referências e princípios de jogo, tomar decisões mais sábias e resolverem de forma mais vantajosa os problemas imprevisíveis que naturalmente vão aparecer em campo.
Ao trabalhar com bola já no primeiro dia, Sampaoli deixa claro que quer dar uma identidade o quanto antes à equipe santista. E é através de uma metodologia de treinos – que é um objeto que cada vez mais me fascina e cada vez mais busco entender e estudar – pautada em jogos (sempre com bola) que se cria padrões de respostas coletivos nos quatro momentos do jogo, ataque, defesa, transição ofensiva e transição defensiva.
Como vamos construir um modelo de jogo se nossos jogadores correm em volta do gramado? Como vamos ter soluções coletivas se no nosso treino, por exemplo, treinamos o gesto técnico, separado do tático, do mental e do próprio físico? Treinar uma finalização recebendo um passe com as mãos e sem adversário, ou tendo que driblar cones, é algo que vai acontecer no jogo valendo três pontos? Claro que não.
Não quero dizer aqui que Sampaoli inventou a roda. Vários técnicos brasileiros conhecem o que há de mais moderno em metodologia de treinamentos e aplicam no seu dia a dia. Mas quando vi o Santos treinando com bola já na reapresentação de 2 de janeiro me enchi de esperança! Estou empolgado com a novidade que reside na Baixada Santista.
 

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Sobre o porquê dos nossos treinos

Treinamento do Real Betis, de Quique Setién, logo após a vitória sobre o Deportivo La Coruña, em fevereiro último. (Foto: Portal Onda Betica)

 
Quando um largo apito encerra um treinamento qualquer, e quando essa sessão é particularmente satisfatória, não raro nos invade uma alegria, um contentamento não exatamente descritível. É como se soubéssemos, mesmo inconscientemente, que realizamos um dos grandes fetiches de treinadores e treinadoras, na arte deste ofício: oferecer um bom treino (na lista dos fetiches, talvez perca apenas para aquele em que a nossa equipe joga exatamente como imaginamos um dia). O treino, afinal, é a argila onde esculpimos o nosso jogo, artesanalmente, dia após dia, microciclo sobre microciclo. No treino está posto, muito antes de estar, o jogo que desejamos.
Mas talvez o hábito de planejar, aplicar e avaliar tantos treinamentos, durante tanto tempo, nos tenha furtado, ao menos em parte, nossa mente de principiante. Assim, às vezes corremos o risco de que nossos treinos se tornem uma mera banalidade, óbvio ululante. Quando isso ocorre, em uma base regular, talvez nos escape uma pergunta chave, que retomo aqui hoje: qual é a real finalidade dos nossos treinamentos? Por que treinamos?
Embora óbvia na aparência, não é uma pergunta tão simples assim. Em primeiro lugar, porque ela carrega um viés implícito: se você já esboçou uma resposta mental, logo após a minha pergunta, é porque sabe que o treino não é um fim em si mesmo. Pelo contrário, o treinamento é um meio, um caminho que nos leva rumo a um determinado fim – por isso, aliás, podemos dizer que treino é jogo e jogo é treino. Se treino fosse apenas treino, seria um fim em si, como um cão que corre em busca do próprio rabo. Mas se não é, se há uma finalidade, então que finalidade é essa?
Há quem veja o treino como uma mera obrigação, um protocolo a ser cumprido por qualquer profissional do futebol. Então, na hierarquia dos valores, este treino ocuparia um lugar secundário, servindo apenas para enfastiar a rotina e a existência de atletas e treinadores, para quem o treinamento estaria muito longe de ser uma fonte de prazer. Sendo um mero bater de ponto e levando consigo um valor muito baixo, é razoável afirmar que este treino não nos leva para nenhum lugar específico. Não há uma direção. E para quem não sabe onde vai, qualquer caminho serve.
Há ainda colegas que utilizam os treinamentos simplesmente como um meio para adornar o próprio ego. Veja bem, não há nada de intrinsecamente errado nisso. George Orwell, no ótimo Dentro da Baleia e outros ensaios, lembra que uma das motivações primeiras de qualquer escritor é o orgulho, o desejo de aparecer ao mundo e de ser reconhecido pelo próprio trabalho. Se dissermos que não há qualquer traço de vaidade na nossa atividade como treinadores, estaremos em falta com a verdade. O problema, evidentemente, é quando a vaidade se torna o fim último, ao invés de um pequeno traço comum à espécie humana.
Ótimo, pensemos então em uma resposta mais popular: em linhas gerais, nós treinamos para jogar melhor. Cada vez melhor. Imagino que parte importante dos leitores e leitoras pense algo parecido, e eu diria que este é um caminho bastante salutar. Afinal, aqui os treinamentos não são apenas protocolares e nem movidos pelo ego: são dotados de alguma direção, de um caminho (que pode ser o modelo de jogo, por exemplo) que nos mostra o que deve e, especialmente, o que não deve ser trabalhado, desde o mais simples exercício de uma dada sessão, até o macrociclo. Escolhemos uma série de conteúdos, às vezes os melhores conteúdos possíveis, e tratamos de introduzi-los, nos nossos atletas, em uma base regular.
Mas aqui, permitam-me advogar o cão: seguindo este raciocínio, até que ponto nossos treinamentos, ainda que muito bem intencionados, não caminham para se tornar um puro e simples depósito de conteúdos? Assim como um balão, que estoura quando recebe demasiado ar, será que não estamos saturando os corpos e as ideias dos nossos atletas, tratando-os como meros bancos nos quais depositamos todo o nosso saber, fazendo deles meros locatários da nossa cognição? Será que nossos atletas estão pensando por si ou nós estamos, sem perceber, pensando por eles? Será que o excesso de razão não tem sutilmente transformado nossos treinamentos em grandes despensas, nas quais estocamos nossas ideias ao custo de parte importante da humanidade dos atletas, sob a ilusão de melhoria linear do rendimento? Se tudo isso fizer sentido, então boa parte dos nossos treinamentos talvez não estejam em consonância com aquela finalidade que estabelecemos acima. Nós queremos jogar melhor, mas talvez uma reflexão mais acurada nos mostre que mesmo este objetivo pode ser limitado.
Ou seja, a pergunta segue: por que então treinamos? Como bom mineiro e admirador de filosofia, me darei o direito de não responder, mas posso esboçar um caminho. Vejamos: o treino saturado de conteúdos, embora pareça muito bom, pode não sê-lo, pois faz dos atletas meros depósitos de ideias e, além disso, espera deles que absorvam a todas elas, mesmo sabendo que não apenas é humanamente impossível – não há cérebro que suporte – como que é humanamente questionável – jogadores e jogadoras são mais do que meros depósitos.
Sabendo disso, talvez nos caiba dar um outro passo. E se o treinamento pudesse permitir aos atletas, antes de tudo, um maior conhecimento de si para que, a partir da própria investigação, lhes fosse possível jogar melhor? E se o treino pudesse fecundar a expressão contínua das mais nobres virtudes e sentimentos, de modo que elas se fizessem presentes no modelo e no próprio jogo? E se o treino pudesse, então, ser dotado de um caráter existencial, para além do técnico, tático, físico e etc e, a partir dali, fosse possível expressar ainda melhor todas as dimensões do jogar? E se nós treinássemos não apenas para jogar melhor, isso não nos sacia mais, mas para tornar-se melhor, para muito além do jogo?
Enfim, são pensamentos que me ocorrem.
E que julgo cada vez mais importantes.
 

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Iniciativas de longo prazo e sem tanta pressa: um bom futuro para o futebol feminino no Brasil

Parece brincadeira, mas não é. Antes de 1979 a prática do futebol pelas mulheres no país – que se diz “do futebol” – era proibida. É muito pouco dentro de uma linha do tempo que começa nos anos 80 do século XIX com o início da sua prática no Brasil. Quase um século. Independente disso, muito foi feito para promover o futebol feminino. Muitos projetos começaram, muitos terminaram, alguns persistem.

Nesses altos e baixos, a descontinuidade foi justificada pelo baixo retorno financeiro dos projetos que tiveram como incentivo um bom resultado internacional da seleção brasileira: quer seja um bom desempenho nos Jogos Olímpicos ou em uma Copa do Mundo. Até mesmo a melhor futebolista do mundo, que é o caso de Marta, por seis vezes escolhida. A verdade é que o Brasil sempre foi um manancial de talentos, mas nunca houve algo organizado e sustentável. Por isso vemos outros países e novas forças a se destacarem no futebol feminino porque executam esses “algos” organizados e sustentáveis. É o que diz o Professor português Gustavo Pires: “são os resultados que dão origem aos projetos”.

No entanto, nos últimos anos percebem-se iniciativas sólidas e consistentes para o futebol feminino no Brasil. Além de várias organizações esportivas pelo país incentivarem a organização de equipes, surgem muitos projetos que visam as categorias de base e o crescimento global das futebolistas a considerar a formação escolar, a convivência familiar e o cotidiano da prática esportiva, ao mesmo tempo que acontecem competições organizadas que preservam o bem-estar da atleta e que visam, antes de tudo, a boa prática esportiva e não os rendimentos comerciais. A mencionar mais uma vez o Professor Gustavo Pires, uma oportunidade de os projetos darem origem aos resultados.

Estas iniciativas surgem em função de um interesse cada vez mais crescente das mulheres em praticar e consumir o futebol. A organização que não observar este aspecto corre o risco de ser muito mal vista no mercado e vários pré-conceitos podem surgir em relação a isso. Outras iniciativas são também impostas no sentindo de incentivar e potencializar a velocidade deste crescimento, uma vez que são tomadas pelas entidades de administração do esporte que, além de terem como objetivo difundir a modalidade, possuem o poder de coerção. Exemplo disso é a obrigatoriedade dos clubes da série A do futebol masculino no Brasil terem equipes femininas.

Rafaelle Souza pela seleção brasileira nos Jogos Rio 2016 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

 

Com isso, iniciativas executadas com planejamento, paciência e com foco no desenvolvimento global da atleta é excelente caminho para a organização e sustentabilidade do futebol feminino no Brasil. Algo que no futebol masculino há pouco tempo no Brasil tem sido colocado em prática.  Somado a isso, ações que potencializam uma tomada de direção por parte de clubes e federações é também bem-vinda porque também gera movimento para o desenvolvimento e crescimento da prática do futebol entre as mulheres. 

Que 2019 seja um grande ano para o futebol feminino no Brasil!

 

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Contratação cara gera título? Claro que não!

Na Inglaterra, onde temos hoje a melhor liga de futebol do mundo, há um mantra entre dirigentes, analistas e treinadores de que vai ser campeão quem errar menos nas contratações. Então, a partir disso já se pressupõe erros de avaliações nas compras e até dispensas de atletas dentro da formatação do elenco. Aqui no Brasil, principalmente nessa época em que o famigerado ‘mercado da bola’ de maneira óbvia e natural domina o noticiário, existe a falsa impressão de que quem contrata mais e principalmente gastando mais dinheiro, é quem terá mais sucesso. É a nossa velha mania cultura de individualizar um jogo que é coletivo.
As contratações do São Paulo foram boas? Claro que sim! Pablo, Hernanes e Volpi são inegavelmente grandes jogadores (não vou discutir aqui os valores envolvidos). Mas André Jardine terá o respaldo da direção? O Palmeiras contratou reforços pontuais que podem ajudar ao já qualificado elenco campeão brasileiro? Inegavelmente! Agora, será que esse mesmo elenco teria sido campeão em 2018 se não fosse a troca de Róger Machado por Felipão? O próprio Flamengo, sempre com reforços de peso, não ganha nada de importante há quanto tempo?
Não existe garantia alguma de que  jogador contratado dará bons frutos. Por mais apurada e detalhista que seja a análise de mercado, incluindo habilidades técnicas, táticas, físicas e psicológicas do atleta, o futebol é tão caótico e imprevisível dentro e fora de campo que fatores subjetivos, intangíveis e até incontroláveis poderão ter um peso decisivo no desempenho. Contexto do clube, ambiente entre jogadores, comissão e diretoria, relação da torcida de paciência / impaciência com determinada característica, sinergia e complementaridade entre posições e funções dos jogadores, enfim, são inúmeros elementos que determinam uma equipe cumprir ou não a lógica do jogo, vencendo ou não partidas e campeonatos.
O torcedor tem que pouco a pouco ir se acostumando a entender que o conceito de time é muito complexo. Nem sempre os melhores jogadores formarão os melhores conjuntos. Ideias de jogo, sinergia, trabalho de retaguarda fora de campo, como salário em dia, elenco blindado, logística e alimentação adequadas são fundamentais e fazem total diferença. Entender o clube como um todo, dentro de toda sua estrutura, é uma maneira mais fácil de antever resultados do que apenas observar lista de reforços.

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Sobre a face afetiva do jogar

Neymar e Coutinho, parceiros desde as categorias de base: quanta história e afetos estão nesse jogar? (Divulgação: Revista Exame)

 
Em várias outras oportunidades, desde a primeira conversa que tivemos aqui, falamos sobre aquele que me parece o tema central no qual treinadores e treinadoras devem se debruçar, diligentemente: a humanidade dos atletas que jogam o jogo. Embora fácil de ser dito, é algo difícil de se materializar regularmente. O futebol não é jogado por um grupo de onze coisas espalhadas em um espaço de 105x68m, mas sim por onze pessoas, onze seres humanos que transformam, quase que de modo alquímico, suas luzes e trevas em centenas/milhares de ações, com a bola e sem ela. Assim como um mínimo equívoco, ainda que no início, altera toda uma equação, uma equipe estará seriamente ferida se seus componentes não forem vistos como os humanos que são.
Pois bem, se queremos olhar o que se passa em campo de modo humanizado, então precisamos refletir sobre o locus dos afetos, sobre a expressão afetiva nos nossos processos de treino/jogo. Para isso, vamos estabelecer dois pontos de partida: em primeiro lugar, afeto vem do latim affectio, significa relação, disposição, atração. Mas vamos entender aqui os afetos como algo próximo das emoções. Depois, repare que usaremos o termo sempre no plural, porque suas expressões são múltiplas, são um mosaico.
Há um motivo que me faz pensar especialmente sobre este assunto. Você haverá de convir que parte importante dos nossos treinadores e treinadoras estão se formando à luz de um conhecimento substancialmente científico. Ótimo, mas as ciências que alimentam mais longamente o futebol, de um ponto de vista histórico, são as ciências duras, positivas. Elas levam em consideração tudo aquilo que pode ser visto, mensurado. Ou seja: quanto mais for visto, melhor. Mas, para isso, ela nos estabelece uma condição, uma espécie de pacto: tudo aquilo que for afetado pelas emoções não é exatamente confiável. Os afetos seriam capazes de contaminar um objeto, afinal.
Com pouco esforço, temos aqui dois problemas principais. O primeiro é óbvio: suprimir os afetos significa suprimir a humanidade de jogadores, treinadores, analistas, gestores etc. O segundo é mais sutil, mas não menos importante. Suprimindo os afetos, ensaiamos uma tendência hiperracional, uma tentativa falível (ainda que honesta) de encontrar explicações inteligíveis para todos os problemas que nascem do jogo. Nossos argumentos podem até estar absolutamente equivocados, distantes daquele caleidoscópio de situações, quase que indecifrável, que culminaram em um determinado gol, mas ainda assim nós precisamos acreditar nas nossas próprias narrativas e, talvez por isso, confiemos nelas ao mesmo tempo em que nos acostumamos a silenciar qualquer afeto, o menor dos traços de emoção, intuição ou algo parecido. Ainda que limitada, trata-se de uma forma de compensação.
Para o nosso jogar, isso tem alguns significados. Nós, treinadores, se ignoramos os afetos, cortamos não apenas uma enorme parte da nossa própria humanidade, como também arrancamos aquele que talvez seja o grande combustível dos nossos jogadores e jogadoras (cujas decisões estão para muito além do córtex pré-frontal). Nossos pequenos e pequenas, ávidos depósitos de conceitos e mais conceitos de jogo, chegam à idade adulta, muitas vezes, carentes de inteligência emocional, entregues à própria sorte e ao contexto, somatizando no jogar e no próprio corpo físico os sinais que foram suprimidos até então. Nossas análises se tornam contaminadas, mas contaminadas pelo visível, dependentes da luz, sem saber como lidar com a escuridão de cada jogador e do próprio jogo (como organismo vivo). Todos nós, enquanto profissionais, somos comumente vistos como meras máquinas lineares, instrumentos da grande linha de produção da bola, e normalmente não nos é dado o direito de oscilar, de temporariamente sucumbir a nós mesmos, de voltar-se adentro para então fazer-se no mundo lá fora. O tempo dos afetos não existe. Está ocultado pelo relógio da razão.
Não se esqueça que falar dos afetos não significa, em hipótese alguma, romantizar as emoções. Estamos aqui falando de um jogo coletivo de invasão que, para vários dos leitores e leitoras, é disputado na mais profunda necessidade de vitória, sob risco de críticas (várias delas injustas) e desemprego. Mas este é o ponto: é exatamente para jogar melhor, para que o jogar seja melhor, que devemos nos entregar à influência dos afetos, não apenas da razão. Temo que Rousseau tenha se equivocado, e a natureza humana não seja exatamente boa. Por isso, lidar com os afetos também significa lidar com a raiva, com a angústia, lidar com o medo, com tudo aquilo que vive sob os tapetes da bola, mas que ressurge, assim como a sujeira que escapa aos tapetes, em cada uma das decisões tomadas dentro e fora de campo.
Em tempos de tamanha saturação, estímulos à razão não nos faltam. Mas isso não significa que devamos nos dar ao direito de tirarmos férias dos afetos. Também no futebol, é preciso que não nos escape a faculdade de sentir, é preciso recuperar a arte de saborear o jogo, pois sem ela nos tornamos meras máquinas – e as máquinas são melhores, no ofício de serem máquinas, do que o humano.
Mas o humano, por sua vez, é inegavelmente superior à máquina na arte de ser humano.
E isso, acredite, é muito mais representativo do que parece.

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Athletico agora, só há um

Quem acompanha o futebol sabe que Athletico Paranaense agora se escreve com ‘H’ entre o ’T’ e o ‘L’, e mudou-se o seu distintivo. Os Rubro-Negros do Paraná saem do lugar comum dos selos e escudos e adotam um emblema inovador, que os deixam mais distintos. Mais fácil de serem identificados e reconhecidos. Adotaram uma grafia antiga, porém única. Os diferem dos outros Atléticos. Gradativamente a sigla “PR” (de Paraná) sairá das transmissões televisivas, uma vez que o do Paraná será sempre escrito com agá.

Há quem critique tais mudanças, sob alegação de perda de identidade e desrespeito à instituição. Que a ausência das faixas rubro-negras apagam uma história quase centenária do clube. Outros especialistas se posicionam contra ao usar as mesmas argumentações quando a Juventus (a da Itália) mudou o seu emblema. “Perde-se o futebolismo”, “deixa de lado a identidade”, foram pontos mencionados. Pois bem, a ‘Vecchia Signora’ segue vecchiacom o novo símbolo. A camisa segue preto-e-branca e sua história, intocável.

Outro item daqueles que não defendem tais mudanças é o de que há coisas mais importantes para serem decididas. Na verdade elas são tão importantes quanto, na verdade. O ambiente do esporte e, neste caso em específico, o futebol, exige mudanças e inovações como estas.

Ledo engano daqueles que argumentam a ausência de identidade e ‘futebolismo’ (se é que existe esta palavra). As preferências do mercado mudam a cada período e as organizações precisam responder a estas mudanças. As do esporte não são diferentes. É um ambiente competitivo e seus players (agora sim um vocabulário bem business) têm que ser únicos. O novo emblema e a nova grafia do Athletico o torna único. Reparem que não usei a palavra ‘Paranaense’. Talvez pela nova escrita já se sugere que é o rubro-negro paranaense, não?

Ademais, essas mudanças estão longe de uma ausência de identidade. O Athletico é clube que sempre foi inovador, ou seja, a inovação é total parte da cultura, da identidade desta instituição. Seria surpreendente se uma ação como esta não partisse dele.

Arena da Baixada, estádio do Athlético. (foto: CBF)

 

Portanto, é questão de costume e o costume vem com o tempo. Como citado em outros textos, os acadêmicos em marca chamam a mudança do emblema como sendo “evolutiva” (ao mudar apenas o formato), o que faz todo sentido. Os tempos mudam e uma não-mudança da identidade visual das organizações sugere a não-evolução, que elas ainda estão no passado, sobretudo se esse passado foi caracterizado por desconfiança, falta de credibilidade e por não trazer boas lembranças. Nesse sentido, quase que todos os clubes de futebol do Brasil teriam que mudar a identidade visual.

Por agora, apenas o Athletico.