Em sua recém publicada tese “O futebol e os futebolistas do futuro: análise do currículo presente na formação de futebolistas de alto rendimento a partir de um estudo de caso”, orientada pelo professor Alcides Scaglia e aprovada na Faculdade de Educação Física da Unicamp, o pesquisador Carlos Thiengo discute o papel do currículo no processo de formação de jogadores e jogadoras em um estudo que investigou a influência da história de um clube e de uma cidade no campo de jogo.
Para isso, Thiengo, que é agora doutor em Educação Física, na área da Pedagogia do Esporte e idealizador da proposta pedagógica “Ginga, futebol com alegria”, foi até Araraquara, visitou museus, caminhou pela cidade, analisou documentos e fez uma espécie de período de residência na Ferroviária, onde conversou com gestores e treinadores, observou os treinos e estudou o currículo de formação de jogadores elaborado pelo clube.
O estudo alcançou o terceiro lugar na edição 19/20 do Prêmio Brasil de Teses e Dissertações sobre Futebol e Direitos do Torcedor, e por conta da premiação também será publicado como livro.
As descobertas contidas na tese, que propõe uma revolução no modo de entender o processo de formação de jogadoras e jogadores e o ensino do futebol, você confere nas linhas a seguir.
Universidade do Futebol – Quais foram os objetivos da pesquisa e como é trabalhar com as ciências humanas e o estudo do futebol?
Carlos Thiengo – Obrigado pela oportunidade de dialogar com vocês e pelo espaço para divulgação do estudo. Mas, antes de responder a primeira questão gostaria de fazer dois agradecimentos. Primeiro, agradecer imensamente a Ferroviária por me ter aberto as portas para realizar o estudo. Além disso, não poderia deixar de mencionar a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) pelo financiamento à pesquisa.
Nas ciências humanas a neutralidade do pesquisador não existe. Quando vamos para o campo de pesquisa, a percepção que temos do participante, do cenário, dos objetos estudados, de maneira geral, até a sua própria definição se confundem com a nossa história de vida. Eu, por exemplo, tentei ser jogador de futebol, assim como grande parte dos garotos brasileiros, e tenho uma forte relação afetiva com a modalidade, especialmente com o processo de formação de jogadores.
Então, a forma de construir o estudo não tem como estar separada da maneira como me construí como profissional e como pessoa, em um processo que envolveu a minha formação enquanto aspirante a jogador e depois como profissional trabalhando no futebol. Esse foi o caminho percorrido para que se desenvolvesse o tema da tese, que é estudar a formação do jogador e, especialmente, o currículo, buscando entender quais são as iniciativas e os pontos de partida para se formar e se estabelecer o currículo para formação de jogadores de futebol na etapa de especialização esportiva que a gente conhece como categoria de base, que é o momento onde os e as jovens se preparam para atuar no futebol profissional. Aqui no Brasil essa é a etapa na qual os garotos ingressam nos alojamentos dos clubes, o que por características legais do país ocorre aos 14 anos.
Agora, definindo de maneira mais direta, o objetivo da pesquisa foi investigar essa construção, os aspectos que circundam a estruturação, a efetivação e a operacionalização de um currículo em um clube que possui relevância nesse processo. Essa escolha se deu, voltando ao vínculo meu vínculo como pesquisador com o objeto estudado, pois minha trajetória me mostrou que existe uma secundarização nos processos na formação de jogadores. O que temos, via de regra, é a naturalização do rendimento de um jogador de futebol e quando se naturaliza o rendimento do jogador de futebol se desvaloriza o processo. Por conta dessas questões é que se buscou entender como o currículo, que é a organização do processo pedagógico, é construído e colocado em prática.
A partir desse objetivo e do entendimento do futebol como um fenômeno humano, emergem os objetivos específicos da pesquisa que são entender como os aspectos culturais interferem na construção do currículo, como a concepção sobre a origem do rendimento esportivo, do talento, interfere nesse currículo e a partir daí fizemos uma pesquisa de caráter qualitativo.
UdoF – O que é ser jogador profissional no Brasil?
Carlos Thiengo – É um desafio de proporções gigantescas. Muitas vezes não temos tanta dimensão, do que é esse esporte, em um país como o nosso no qual o futebol é a principal manifestação da cultura corporal, que tem uma tradição vencedora, sendo a nação com o maior sucesso da história. Isso cria um ambiente com uma relação afetiva muito bacana com a modalidade e que desperta um sentimento que une as pessoas, principalmente na iniciação, que é o momento que a criança é apresentada a modalidade. Entretanto, no que tange o futebol como uma profissão, tanto para os jogadores como para os demais profissionais, o cenário é extremamente desafiador em todos os sentidos. A quantidade de pessoas praticando e as características que essa profissão assume nos níveis nacionais e internacionais trazem uma competição elevadíssima para todos os seus atores. O antropólogo Roberto Da Matta diz que o futebol é uma manifestação simbólica, uma dramatização do brasileiro, essa fala dele se faz muito presente quando observamos as condições sociais e de trabalho que geralmente são oferecidos aos profissionais que atuam no futebol aqui no país, e constatamos que, as dificuldades que o brasileiro tem no trabalho esses profissionais “da bola” enfrentam até de uma forma ampliada. Em relação às condições de trabalho, quando saímos das principais competições e das principais equipes, a gente tem um cenário, que é bem documentado pelos órgãos oficiais, reportagens e outros estudos, que nos permite afirmar que ser jogador de futebol no Brasil é uma tarefa extremamente desafiadora.
Tudo isso traz consequências para a formação dos jogadores muito significativas. Esses jovens passam por esse processo em um momento da vida no qual não estão formados ainda como adultos e com essa exigência que vem se tornando cada vez mais precoce, as implicações para a vida desses jovens são bastante relevantes, até para aqueles que conseguem jogar no primeiro nível nacional e internacional. Atingir este nível significa ter as melhores experiências profissionais e, no aspecto financeiro, talvez sejam suficientes para proporcionar uma vida confortável após o encerramento da carreira, mas mesmo esses jogadores têm exigências muito significativas para própria reinserção social, pois essa atividade laboral é extremamente exigente e específica. Então, acredito que nesse ponto, é preciso muita cautela para poder um cenário de tamanha complexidade. Ser jogador de futebol no Brasil é uma das atividades mais desafiadoras que temos.
UdoF – Partindo agora mais diretamente para sua tese, você investigou a construção e a aplicação do currículo no processo de formação de jogadores. Então, começando pelo principal, o que é currículo?
Carlos Thiengo – O currículo é o processo de ações organizadas de forma pedagógica e administrativas que conduzem a uma formação pretendida. Citando Jonnaert, Ettayebi e Defise, o currículo está para a educação assim como a Constituição está para o país. O currículo é a bússola, o mapa, que vai indicar o caminho que vamos tomar. Dessa forma, ele permite uma visualização mais clara e formalizada de como será conduzida a formação dessas pessoas que estão sob nossa responsabilidade, e da respectiva instituição educacional ou esportiva. Essa é uma definição que já está muito clara na educação formal, na escola, mas ainda um pouco mais incipiente no campo esportivo.
UdoF – Qual o atual estágio da aplicação do currículo dentro futebol e no processo de formação de jogadores?
Carlos Thiengo – Ela é incipiente no Brasil. Possuir um currículo nas categorias formativas é um anseio hegemônico, mas não uma prática hegemônica. O que se vê atualmente é apenas esse desejo. Essa situação está muito ligada com o terceiro objetivo específico da pesquisa, que é a relação da concepção do talento do jogador com o currículo. Predominantemente, a concepção do jogador é ainda a inatista, onde os processos de seleção e identificação de talentos, predominam em relação aos processos de formação. Aí, se vou selecionar, tendo ainda um número suficiente de jovens para que isso ocorra, como no caso do Brasil e os milhões de jovens que buscam oportunidades no futebol, para que vou investir no processo?
Dentro de um olhar histórico, essa apropriação do currículo, não necessariamente com o uso formal da expressão currículo, pelo esporte é muito recente, mas as tentativas de sistematizar e organizar os conteúdos com o objetivo de aprimorar a formação esportiva vêm acontecendo em diversos países, tanto em se tratando de instituições esportivas, como na produção acadêmica. Nesse sentido, a obra mais acabada no que se refere a um currículo de formação esportiva é o currículo do Ajax, da Holanda. São documentos em diferentes formatos, inclusive audiovisual, que abordam os conteúdos de maneira aplicada apresentando também os seus processos. A primeira versão desse currículo é de 1995, o que ajuda a dar uma ideia de como a disseminação das discussões e a aplicação do currículo no âmbito esportivo, nos clubes de futebol, são recentes.
O futebol é uma escola para a vida ou ao menos deveria ser encarado dessa forma, especialmente pelo que você perguntou sobre o que é ser jogador de futebol e todas as características dessa carreira, essa volatilidade. O que fazer com jogadores que investiram grande parte de sua infância e juventude e que não atingem o nível do alto rendimento? A própria FIFA indica para a gente em seus documentos – Grassroot, Fútbol Juvenil e o Manual de Dirección Técnica – FIFA Coaching, que é preciso ter uma preocupação educacional, e o futebol vem se apropriando disso.
Outro ponto interessante é que, assim como nas instituições educacionais, estão presentes no currículo dos clubes as influências culturais das localidades nas quais eles se situam. Essas demandas históricas e sociais de cada contexto são totalmente identificáveis nos currículos, tanto de forma consciente, formalizadas em um documento como a gente identificou na Ferroviária, como inconsciente, quando você não tem um documento, mas aquelas demandas permeiam todo o processo de formação.
O currículo, de maneira formal e organizada ou não, está presente na concepção das pessoas que estão fazendo educação. Formar humanos futebolistas é um processo educacional.
UdoF – Como você verificou na prática, dentro do campo de jogo, a influência da história e do contexto social de Araraquara no processo de formação de jogadores da Ferroviária? Como é possível identificar esses elementos em outras agremiações, como no caso clássico do tão alardeado “DNA do Barcelona”, por exemplo?
Carlos Thiengo – Esse é um tema que tem atraído muito interesse das pessoas, é um momento no qual se procura muito esse tipo de resposta. Essa pergunta é a mais importante em relação a esse trabalho. As pessoas querem saber muito como se constrói o currículo e a gente faz isso no final da tese, mas não com os conteúdos para um clube ou uma cidade em específico. O que apresento nas implicações práticas ao final da tese são indicativos, considerando que diferentes finalidades necessitam de diferentes conteúdos educacionais. Não é possível sugerir o que tem de conteúdo, mas sim os tópicos que poderão trazer os conteúdos.
Dito isso, a pergunta me permite citar, o que eu acredito ser a parte mais legal do trabalho, que é a criação e o aperfeiçoamento de uma matriz de pesquisa qualitativa ou um desenho metodológico que permite considerar a presença do pesquisador, ajudando a trazer para a consciência aquilo que está no inconsciente.
Por exemplo, na pesquisa bibliográfica, eu precisava entender o que era a Ferroviária, esse clube, e Araraquara, qual a história dessa cidade? Para isso, fomos estudar Araraquara, a sua construção histórica, os seus aspectos sociais e políticos. Depois fui tentar entender a instituição Ferroviária, as pessoas que vieram trabalhar especialmente após a grande migração europeia ao final do século XIX, quais os postos que elas assumiram, as razões de terem migrado para determinadas regiões, e como elas ajudaram a desenvolve-las. Em Araraquara existe uma forte influência, principalmente, italiana, portuguesa e espanhola, esses migrantes chegaram na região para ser agricultores, dado que a região tem um tipo de solo, que é conhecido como “a terra roxa”, excelente para o cultivo. Esses imigrantes começaram trabalhando na produção do café e depois da laranja. Não por coincidência, é em Araraquara que está sediada uma das maiores empresas de citricultura do mundo.
Voltando ao passado e às origens da Ferroviária, de acordo com o livro Araraquara, Futebol e Política, de Luís Marcelo Inaco Filho, os filhos dos imigrantes europeus que vieram para Araraquara, especialmente os italianos tinham o hábito de praticar o futebol depois do trabalho, o que eles chamavam de “doppolavoro”. Isso contrastava com o acesso dos filhos dos fazendeiros que estudavam em colégios que possibilitavam o acesso à prática do futebol. Outro ponto sobre Araraquara é que ela é uma cidade planejada, criada para ser um dos pontos de distribuição da produção cafeeira do interior do estado para o porto de Santos. Esse grupo de ferroviários é que funda o clube em 1950, 12 de abril de 1950, pessoas que vivem, convivem, constroem e transformam a cidade.
Para conhecer todo esse contexto se deu a fase fase da pesquisa documental, na qual fui até Araraquara para visitar os museus da cidade, o museu do próprio clube, o museu dos ferroviários, o museu do município. Araraquara é uma cidade culturalmente muito rica, o MAPA, por exemplo, é o museu de arqueologia e paleontologia do município. Também realizei a etapa de observação direta extensiva que foi o questionário para os participantes da pesquisa e a observação participante que era observar os treinos das categorias de base do clube e, além disso, visitar a cidade e conversar com as pessoas. É por meio de todas essas ferramentas que fui percebendo que o que tem no documento, no currículo definido pelo clube, como os valores institucionais, que estão presentes também na forma pela qual aquele povo se constituiu como sociedade.
Acredito que a tese ajuda a apresentar de forma mais clara como a gente pode investigar a presença de todos esses fatores. Por exemplo, lá no sub-20 da Ferroviária, eles buscam no perfil do egresso, ou seja, o perfil dos jogadores que serão formados pela instituição, um jogador que tem uma alta taxa de sacrifício, isso está registrado no documento do clube. E aí, no museu da cidade no centro da cidade, no segundo andar do museu tem uma imagem do Senhor dos Passos que, coincidentemente ou não, tem um manto grená. Aquele Senhor dos Passos simboliza a paixão de cristo, que é uma história de sacrifício da religião católica, a religião predominante do povo que ajudou a constituir a cidade de Araraquara, que são os espanhóis, portugueses e italianos. E a Ferroviária tem como alguns valores a coragem e esforço, eles não negociam esforço, é a história da cidade e de quem a construiu entrando em campo. Esses imigrantes não tinham como voltar para os seus países de origem, eles vieram para ficar e a única forma deles poderem conseguirem isso era o trabalho pesado que sustentava as suas famílias. Nesse contexto, o clube nada mais é do que, a identidade da cidade.
Um outro ponto, joguei “essa bola pra cima” na tese, é que se atribui a influência da cor do clube aos vagões da EFA, que eram grenás. Porém, quando fui visitar o museu do ferroviário observei que os utensílios utilizados pelos ferroviários, pelo pessoal que trabalhava na construção das ferrovias e na manutenção dos trilhos, o local que eles tocavam com as mãos, tinham a cor grená. Então eles aos restaurarem as peças originais, os equipamentos que utilizam no trabalho diário, esses utensílios foram pintados de grená em alguns locais. Ao observar isso, o que me ocorreu foi: a pintura se deu pelo fato deles colocarem as mãos e sujarem com a cor do solo, ou eles pintavam daquela cor os instrumentos, naqueles locais específicos porque estes, com o tempo iriam assumir aquela cor. Porque pensei isso? Pois andando pela cidade, comecei a perceber que a cor da camisa da Ferroviária é também a cor do solo da cidade. A Ferroviária veio de uma transformação muito significativa quando em 2003 ela alterou o seu estatuto, passou a ser gerida de forma empresarial, ela mudou até o seu modelo de gestão, mas não negocia o grená. O grená é inegociável pois, na minha visão, o grená para eles é o que significa aquele solo, é o que significa a razão daquela cidade existir, é o símbolo da razão da existência daquela gente, é um símbolo como o Jorge Castelo afirma, é um sub-sistema cultural, que manifesta o que para eles existe de mais importante.
Então quando olhamos para isso pensamos o que em determinado clube pode ter que é inegociável para aquela instituição. Pegando o exemplo aí do tão falado DNA do Barcelona, o que significa o jogo de posição catalão? Que se configura diferente do jogo de posição dos holandeses, levado pela influência holandesa para Espanha. A posse de bola para o catalão tem um significado simbólico. No livro Sendas de Campeones, o jornalista Martí Perarnau [autor também da série sobre o técnico Pep Guardiola], discorre sobre isso. Sendo assim, podemos dizer que o significado simbólico que é ter a bola para o catalão, está para o Barcelona como o significado simbólico do grena tem para a Ferroviária.
O desafio da tese é explicar qual é esse significado simbólico e como ele se manifesta no currículo. O currículo é influenciado por questões geográficas, religiosas, etc, e aí ele se manifesta. Por exemplo, o jogador na Ferroviária não pode negar o esforço, e o currículo também traz que o jogador deve ter as suas qualidades técnicas, o que faz parte da cultura brasileira, de modo mais amplo. As coisas vão se misturando numa grande trilha de complexidade, e isso só foi possível de perceber pois a lente da pesquisa qualitativa, por meio de diversas técnicas, permitiu olhar os fenômenos por ângulos que talvez não sejam os mais comuns.
UdoF – E essa identidade se transforma?
Carlos Thiengo – Não tenha dúvidas, como diz o Bauman, quando a gente fala de identidade, desse ethos institucional, a alma, o espírito… o intangível sempre presente! No mundo contemporâneo no qual nós vivemos, das relações que a gente estabelece, falamos de um objeto em constante mutação. A gente tem que conseguir identificar: a identidade é aquilo que é mais profundo. Não é que é natural, mas isso vai sendo construído e reconstruído. Tem espaço, muito espaço para essa reconstrução, vão existindo outras influências, crises. A identidade não é algo estático. O que vejo é que em alguns lugares assumiram essa identidade
A gente demora um tempo de nossa vida para descobrirmos que nós somos de verdade, aceitarmos como nós somos, isso também acontece com uma instituição. Ela demora tempo para entender quem é. Às vezes as instituições, por várias influências, vão mudando, igual as pessoas. A cultura é uma constante produção e produto humano e a identidade não seria diferente. Características identitárias que são mais profundas se manifestam no jogar, mas nem tudo o que se manifesta no jogar de equipe é fruto exclusivamente desta identidade.
UdoF – Jogador de qualidade técnica? Quem não quer esse jogador? Quem vai querer uma identidade que englobe jogadores ruins?
Carlos Thiengo – Nós brasileiros ligamos a questão da técnica, geralmente a relação que os jogadores estabelecem com a bola e a um tipo de jogo específico, que foi construído culturalmente por nós. Nos esportes individuais, a técnica tem como principal característica a eficiência mecânica, gastar menos energia para cumprir uma tarefa. Por exemplo, nos últimos anos a gente viu o Usaín Bolt ter uma vantagem mecânica em relação aos outros concorrentes, ao conseguir se deslocar uma mesma distância com um número de passos menor, marcando uma reconstrução paradigmática naquele esporte. Já no futebol, e em outros esportes coletivos, a técnica corporal assume o papel eficácia, da eficácia simbólica, como nos ajuda a compreender Marcel Mauss. Para este autor a técnica é o uso do corpo, e a forma pela qual uso meu corpo é uma construção cultural, logo, o que é bom para mim, não necessariamente é bom para o outro. E aí a gente acaba fazendo juízo de valor sobre o que é melhor e o que é pior em relação à uma determinada técnica, àqueles movimentos que mais nos encantam e nos seduzem.
Então, o jogador que utilize seu corpo de forma que se aproxime ao que é considerado melhor, mas ser um bom jogador e agradar não necessariamente é igual em todos os lugares, podendo um jogador contemplar a utilização mais preponderante nas suas ações dos aspectos físicos, por exemplo, e aquilo vai ter outro significado para aquele povo e agradar também,
O futebol é um espaço de manifestação afetiva e às vezes nessa busca da mercantilização do rendimento, a gente quer uma técnica que seja universal. Isso não existe, porque essas “técnicas” são construções. Todo mundo quer o melhor jogador, que executa aquilo que emociona, igual música, você quer uma música que te emociona, que te dá prazer, podemos usar o exemplo da gastronomia também, a comida não gera apenas uma saciedade biológica, mas traz todo um entorno de satisfação com fatores que vem à reboque, e assim funciona com o futebol e o nosso gosto técnico.
Essas sensações que eu descrevi muitos procuram, mas o caminho para atingi-las não são iguais para diferentes pessoas, grupos, países, etc. No Brasil, arroz com feijão é um prato típico, mas o tempero, suas sutilezas, variam… o que confere sabores distintos
UdoF – Então nem todo mundo quer o Messi [inserir aqui outro jogador ou jogadora de sua preferência]?
Carlos Thiengo – Sem dúvidas que todos querem o Messi ou um jogador com a capacidade similar a que ele apresenta. Mas, ele atua apenas em uma equipe. Desta forma penso que apesar de todos o quererem, a maior parte dos apreciadores do futebol conseguem ser felizes sem ter ele na equipe de sua preferência! Existe o futebol genial que ele pratica e existe o futebol genial que outros praticam, e aí está o segredo do Brasil, a grande sacada da nossa identidade, que é essa pluralidade. A gente teve jogadores igual o Messi, e jogadores com as mais diversas características que também foram encantadores. Nós, temos essa capacidade, com a nossa enorme dimensão territorial e diversidade cultural, essa pluralidade, nós temos jogadores e jogadoras, com privilégio de sermos o único país do mundo a possuir o e a melhor do mundo da história da modalidade, das mais diversas características, os elegantes, os velozes, os lentos, os fortes. Essa é uma característica identitária muito presente no Brasil. Então, a questão é que nem todo mundo, apesar de querer, precisa dele, um perfil único de jogador para fazer um futebol genial, outros fizeram de outra forma e também foram encantadores.
UdoF – Voltando para a sua tese, quais foram os resultados do estudo?
Carlos Thiengo – Em relação aos três objetivos específicos que foram propostos, de certa forma conseguimos trazer de forma bem sólida a influência desse arcabouço histórico-cultural na construção do currículo da Ferroviária.
O segundo ponto é que a gente mostra ali na tese como os aspectos estruturais interferem na operacionalização do currículo desejado ou planejado. Quando a gente ouve os profissionais, algumas dimensões do rendimento, como a técnica, a física, entre outras são apontadas como as mais importantes, prioritárias, mas quando a gente vai ver no treino, outras dimensões aparecem de forma mais destacada.
Por fim, a gente observou que a Ferroviária, especificamente, identificou a necessidade de introduzir os processos nas suas categorias e essa escolha começa a aparecer de forma mais destacada do que a seleção de jogadores. Essa mudança abarca uma das discussões centrais da tese que é sobre a concepção do talento, com a estruturação do seu currículo de formação, a Ferroviária é um exemplo de instituição que vem trazendo uma mudança paradigmática, direcionando seu olhar um pouco mais para o processo de formação e menos para a seleção, como ainda é a prática e entendimento predominante.
UdoF – Você enxerga que a Ferroviária, como instituição esportiva, vem, com esse movimento, superando a concepção do dom, de que a criança nasce “pronta para jogar”?
Carlos Thiengo – Sim. A tentativa é institucional, o que marca um avanço, como aponto na tese, é um esforço institucional. Romper paradigmas não é um fenômeno que ocorre de maneira abrupta, as concepções vão coexistindo, a ciência, por exemplo como paradigma coexiste com correntes filosóficas, religiosas, entre outras…Em alguns momentos certas ideias predominam sobre as outras, mas elas coexistem.
Apesar dos desafios que estão presentes, sou extremamente otimista com o desenvolvimento e as perspectivas futuras quanto a formação de futebolistas no pais. E, novamente reitero os meus agradecimentos às instituições que possibilitaram a realização do estudo e contribuem com o desenvolvimento do futebol, bem como a você Arthur pelo espaço concedido. Muito obrigado.
Para acessar a tese completa é só clicar aqui.