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Rasgando a declaração dos direitos da criança

João Batista Freire & Rafael Castellani

Assistimos recentemente a um vídeo em que alguns pais vaiavam um garotinho de uns seis anos, aproximadamente, porque ele, brincando de ser goleiro durante um jogo entre crianças, tomou um gol. Cenas como essa, lamentavelmente, são mais frequentes do que imaginamos.   

No decorrer de nossa trajetória profissional, de décadas, como professores de Educação Física, lidando com a formação, acadêmica e cidadã, de jovens na Universidade, de crianças em escolas da educação básica e escolas de esporte, de jovens esportistas e com treinamento de alto rendimento em diversas modalidades, principalmente no futebol, cansamos de assistir cenas semelhantes às do vídeo em que o garotinho é vaiado. São cenas de humilhação e de abuso.

Crianças são frequentemente abusadas no esporte, ou porque são humilhadas, ou porque são submetidas a treinamentos exaustivos e de especialização precocemente, ou porque passam a ser responsáveis, desde muito cedo, pelo sustento da família, ou porque são agredidas verbalmente por pais, professores, técnicos, torcida.

São inúmeras as situações presenciadas por nós que denotam o quão abusiva e humilhante é, ou pode ser, a prática esportiva realizada por crianças e jovens: O que pensar quando um pai pula o alambrado e invade o campo para bater em uma criança que tinha feito uma falta no filho dele?  Por sorte esse pai foi contido a tempo por algumas pessoas com juízo, mas a violência já estava manifestada. Ou então, outro fato muito frequente, vaias e xingamentos de alguns pais contra o professor das crianças ou até contra as próprias crianças da equipe adversária.

Em 24 de setembro de 1990 o Brasil ratificou a Convenção Sobre os Direitos da Criança, que foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989. No artigo 31 dessa convenção, lê-se que “Os Estados Partes reconhecem o direito da criança ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade, bem como à livre participação na vida cultural e artística.” (O Brasil é um Estado Parte). No Artigo 32, a Convenção declara que “Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de ser protegida contra a exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja prejudicial para sua saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social.”

Em nosso país, ratificamos solenemente a convenção, mas, na prática, pouco se fez. Em 1990 criamos no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, apesar da sua importância e do avanço que significou para a proteção de crianças e adolescentes, ainda são diariamente desrespeitados, passam fome, morrem de doenças que não deveriam mais existir, recebem educação de péssima qualidade, meninos e meninas (principalmente) são violentadas dentro das próprias famílias. Tivemos avanços, sem dúvidas, mas o prejuízo ainda é gigantesco. Já não se permite mais o trabalho antes dos 16 anos (embora ele exista em alguns lugares), mas, no esporte, é diferente. No futebol, por exemplo, uma criança de 14 anos, ou menos, pode ser submetida a treinamentos quase idênticos aos que realizam atletas profissionais adultos. Para dar conta das inúmeras sessões de treinamentos e competições, perdem dias, semanas e até meses de aulas. Crianças de 14 anos deixam suas residências, seus familiares e amigos para morar em alojamentos dos clubes com a missão de representar aqueles poucos (cerca de 3%) que conseguem a profissionalização no futebol. Antes mesmo dos 14 anos, algumas crianças arcam com a responsabilidade de garantir o sustento da família e alimentam a esperança de ascensão social. Crianças que possuem o sonho de tornar-se jogador ou jogadora profissional de futebol, podem sofrer abusos (inclusive, sexuais) no ambiente nem sempre confiável e seguro do futebol. Geralmente silenciam sua dor e escondem seu sofrimento com medo de terem que interromper esse sonho ou frustrarem seus familiares. 

Um futebol que foi forjado em brincadeiras de rua, nos clubes proíbe a brincadeira, em nítido desrespeito à convenção da ONU ratificada pelo Brasil. Cada vez mais cedo ocorre a especialização esportiva. Já existe a categoria de crianças de 6 anos de idade (sub 7). Daqui a pouco sub-6, 5, 4… aonde chegaremos? Há projetos em análise que diminuem para 12 anos a idade mínima para uma criança poder alojar-se em clubes. Contratos são feitos clandestinamente com as famílias para garantir aos agentes a exclusividade dos negócios, caso a criança se torne jogadora habilidosa e tenha seu potencial reconhecido no mundo do futebol.

No futebol brasileiro, criança não pode ser criança. Aquilo que foi escrito na Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU foi rasgado e jogado no lixo. Deveria ser um caso para o Ministério Público (MP), Conselho Tutelar, Unicef, não só no futebol, mas em qualquer modalidade esportiva. Com raras exceções, sobretudo a partir de denúncias grandes/graves e de viés jornalístico, MP, Conselho Tutelar e demais instâncias responsáveis por garantir a segurança e direitos das crianças e adolescentes pouco têm conseguido fazer.               

Sem contar a estupidez dos métodos. Professores e treinadores, alimentados pelo ego e orgulho de “revelar” grandes talentos, impulsionados por alguns agentes inescrupulosos, adestram pequenas crianças para que alimentem os lucros dos gananciosos que, sem qualquer pudor, arrancam o couro dos pequenos e pequenas, sugam-lhes as entranhas em busca do ouro que elas podem representar alguns anos adiante. É preciso que tratemos as crianças como crianças. Que devolvamos o jogo a elas. Que possam voltar a brincar e se divertir com o futebol e, acima de tudo, que sejam respeitadas e tenham os seus direitos garantidos.

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MARX, QUEM DIRIA, CHEGA AO FUTEBOL. MAS SERÁ QUE TEMOS O QUE COMEMORAR?

Karl Marx é, sem dúvidas, um dos maiores e mais importantes pensadores e filósofos da era moderna! Apesar do tempo histórico de seus escritos, suas ideias, até hoje, carregam traços de contemporaneidade. Que a teoria marxista nos ajuda muito a compreender a sociedade que vivemos, sobretudo devido ao modo de produção capitalista que nos guia, não temos dúvidas.

No âmbito da área acadêmica da Educação Física brasileira, já se faz presente estudos voltados à economia política do esporte.

Já que nosso tema é o futebol, vale destacar livro publicado por Wagner Matias, jovem pesquisador do grupo de pesquisa e formação socio-crítica em políticas de esporte e lazerAvante – da Faculdade de Educação Física da UnB, que aos seus 37 anos de idade sucumbiu, em 2021, à pandemia sanitária – e política – que nos atingiu de modo avassalador.

Sua Tese de Doutorado, A economia política do futebol e o “lugar” do Brasil no mercado-mundo da bola, defendida em dezembro de 2019 – no ano seguinte publicada em livro pela editora Appris sob o título Futebol de Espetáculo -, se reporta à forma espetacularizada do futebol e não do espetáculo em si ou mesmo do futebol de alto rendimento. O futebol de espetáculo é uma mercadoria especial permeada pela presença dos veículos de comunicação (sobretudo pela televisão), grandes grupos econômicos e financeiros, com um público consumidor e atletas vistos como mercadorias. Assim, o livro procura desvelar o que está sendo o futebol espetacularizado no contexto do capitalismo tardio: com alguns clubes e ligas globais cobiçados por grandes grupos econômicos, acompanhados por bilhões de pessoas em todo o planeta, produtor de força de trabalho do atleta e de espetáculos, capaz de produzir mais-valia e, também, de ser um “palco” de valorização e de fonte de criação de outros produtos.

Categorias marxistas desenvolvidas com vistas à compreensão do modus operandi do modo de produção capitalista, são acionadas com maestria pelo jovem pesquisador. Dentre elas, optamos por destacar uma, qual seja, a de mais-valia, para refletirmos sobre os jogadores de futebol. Afinal, se o esporte é produção humana, se o futebol é parte constituinte de nossa cultura e se o atleta profissional desta prática social representa um papel de destaque em nossa sociedade, entendemos pertinente tecermos considerações sobre os trabalhadores da bola e a forma ganha pela força de trabalho que traduzem.

Não fomos longe buscar o entendimento de “Mais-valia”. Recorremos – vejam só! – ao preparaenem.com. Nele, a garotada que está buscando ingresso na educação superior saberá que mais-valia é um conceito criado por Karl Marx para explicar o lucro dentro do capitalismoSegundo Marx, a mais-valia é o excedente de trabalho realizado pelo trabalhador que não é pago pelo capitalista, mas é apropriado por ele na forma de mercadoriaA mais-valia é, portanto, um processo de exploração da mão de obra assalariada que gera valor de troca para o capitalista.

Muitos pesquisadores, dentre eles os dois autores deste texto, têm se dedicado e refletir sobre o processo de coisificação e mercadorização do jogador de futebol. Como vendem sua força de trabalho, seu “pé-de-obra”? Muitos dos estudos e textos publicados corroboram a ideia de que o jogador de futebol é entendido e tratado por grande parte daqueles que compõem o contexto do futebol profissional como uma coisa, uma mercadoria e um produto que pode ser comprado, vendido, trocado e descartado tão logo perca seu valor-de-uso (outra categoria marxista).

Não à toa, referências às equipes futebolísticas como máquinas e dos seus jogadores como peças, são bastante comuns, até mesmo entre os próprios atletas. Ainda que alguns, sejam eles integrantes de comissões técnicas, dirigentes, jornalistas e acadêmicos, venham se esforçando para romper com esse olhar e, principalmente, humanizar a relação com o jogador, não nos resta dúvidas que a força do mercado, na lógica do modo de produção capitalista, é significativamente mais poderosa.

Assim, ao invés de humanizarmos as relações trabalhistas entre jogadores de futebol e os clubes esportivos, dando ao trabalhador maior autonomia e poder em relação à sua força de trabalho estamos, cada vez mais, reforçando seu atributo de mercadoria. O jogador de futebol é visto atualmente como um dos principais ativos dos clubes, afinal, são importantes fontes de receita, tanto para os clubes associativos quanto, e principalmente, para os clubes empresas e Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).

E para que esse ativo se torne ainda mais lucrativo para os clubes e agentes, os contratos passaram agora a explicitar em suas cláusulas um percentual de ganho futuro com a… mais-valia do jogador. Ou seja, se o clube que comprou os direitos federativos de um atleta, o revender para outro clube por valor superior ao pago, o clube vendedor receberá um percentual referente a este lucro obtido.

Sim, nessa história, o trabalhador da bola também leva a sua parte. E, em alguns casos, essa parte representa valor tão exorbitante que mascara a realidade da absoluta maioria de atletas, cujos rendimentos não ultrapassam os 5 salários mínimos.

Como vimos, Marx chegou ao futebol para que entendamos melhor como ele, futebol, se insere na lógica capitalista. Falta agora chegar com seu espírito revolucionário para que também o futebol transcenda essa lógica por outra de natureza humanizada.

Texto por: Rafael Castellani e Lino Castellani Filho

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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UMA SELEÇÃO DE FUTEBOL EM BUSCA DE SUA IDENTIDADE

No dia 4 de julho de 2023 a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) anunciou a contratação de Fernando Diniz e sua comissão técnica para comandar interinamente a seleção brasileira masculina principal de futebol. Escolha dupla, podemos dizer, porque também Fernando Diniz escolheu ser o técnico da seleção brasileira, considerando que ele tinha escolhas, uma vez que era, e continuou a ser, técnico do Fluminense F.C. Para nós, foi uma escolha acertada; não é segredo, para quem nos acompanha lendo nossos textos ou assistindo nossas aulas e palestras, nossa admiração pelo trabalho de Diniz. Recentemente publicamos “Quando o novo incomoda” e “O futebol como prática educativa”. Em ambos os artigos sugerimos que Fernando Diniz é um educador e representa o novo, a mudança.   

Diniz vai além da definição de esquemas táticos. Sua percepção de futebol não se limita a esquemas regidos por setas e cálculos matemáticos. Sua análise do futebol agrega ao racional uma profunda percepção emocional e social. Seus jogadores também são seus alunos e pessoas que existem fora do futebol. Sua equipe é um grupo social que tem vida própria enquanto grupo. É com essa perspectiva que o novo treinador da seleção brasileira de futebol ajudará seus jogadores e resolverem conflitos pessoais e profissionais, dentro e fora do campo. 

Diniz não esconde que muito de sua educação, no futebol e fora dele, foi realizado na rua. Foi nela que aprendeu o valor da criatividade. Ser criança jogando no asfalto, nos campinhos, na terra ou na lama ensina, a uns mais, a outros menos, a criatividade que os padrões rígidos das chuteiras e rotinas de exercícios de muitas escolas e equipes de base não permitem. O novo treinador da seleção brasileira conhece profundamente a rua e seus ensinamentos e sabe perfeitamente levar para suas equipes as virtudes dessa rua e a evitar seus vícios. 

Por sua vez, ao caracterizarmos Fernando Diniz como um agente de mudança, nutrimos nossa esperança de que o futebol brasileiro volte a ser encantador, alegre e criativo.  Muito se fala, há anos, da necessidade de retomarmos em nossa seleção o estilo de jogar tipicamente brasileiro. Aquele que nos dá identidade esportiva. Aquele que nos fez sermos reconhecidos mundialmente como o “país do futebol”. Se este está entre os motivos que balizaram a contratação de Fernando Diniz, a CBF acertou em cheio! Não há no Brasil, e provavelmente no restante do mundo, melhor treinador para alavancar a retomada de nossa identidade futebolística. 

Vale lembrar que, por exemplo, em 1958 fomos campeões mundiais de futebol com jogadores que aprenderam a jogar futebol na rua. Esse é um dos motivos de vermos equipes comandadas por Diniz enchendo nossos olhos com um futebol alegre e criativo. Isso não significa que as equipes desse competente técnico vencerão sempre, pois que futebol é um jogo, e um jogo é marcado, acima de tudo, pela imprevisibilidade. Há treinadores, e não são poucos, que jogam para não perder. Colocam o medo de perder como tema orientador de seus trabalhos. O resultado é um jogo tedioso, triste e feio. Diniz, por sua vez, não recusa o risco, sabe que ele faz parte do jogo, mesmo que o preço, por vezes, seja a derrota. 

Com um futebol parecido com os jogos de bola que tantos de nós praticamos nas ruas, nos campinhos de terra, nas quadras de cimento, o Brasil foi a grande estrela do futebol mundial, de 1958 a 2002. Nunca um país teve tal domínio no esporte mais popular do planeta. Um futebol que, trazido da Europa para os clubes da elite econômica das grandes capitais brasileiras, foi reinventado pela população mais pobre do Brasil. Essa população, encantada pela nova modalidade esportiva, que podia ser jogada com qualquer coisa que rolasse no chão sob o controle dos pés, foi a inventora de um novo jogo jeito de jogar futebol, um jeito tipicamente brasileiro. De 2002 para cá, fomos “perdendo o pé”, perdendo o nosso jeito de fazer diferente no futebol e nos tornando cada vez mais parecidos com europeus. E descobrimos que os europeus são melhores europeus que nós, embora alguns ainda não consigam perceber isso. 

Entretanto, não basta querer retomar nossa identidade. Para isso precisamos ter no comando alguém plenamente identificado com isso. Em nossa opinião, Fernando Diniz é esse alguém. Diniz incentiva o drible, propõe o risco, estimula a criatividade e, quando seu jogador erra, faz com que ele tente de novo e de novo, para que a coragem de tentar supere o medo de errar. Nos times de Diniz, todos constroem, todos criam, pois que Diniz reconhece que seus jogadores não são menos inteligentes que ele. Enquanto boa parte dos treinadores preocupa-se, permanentemente, em controlar todas as variáveis do jogo, Diniz reconhece o caráter coletivo, caótico e imprevisível do futebol. Mais que procurar domesticar o jogo, ele procura lidar com sua imprevisibilidade. 

Para pessoas tão abertas ao risco e ao novo como Fernando Diniz e seu jovem auxiliar técnico Eduardo Barros, há, ainda, muito espaço para crescimento e amadurecimento. Sabemos que eles reconhecem isso e, juntos, seguirão evoluindo.

Texto por: Rafael Castellani e João Batista Freire

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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O QUE SE SABE SOBRE O FUNCIONAMENTO DE GRUPOS NO FUTEBOL?

Há mais ou menos 21 anos estudo os processos de grupo no âmbito do futebol profissional. Desde minha iniciação científica e primeiras participações em grupos de estudos relacionados ao futebol e à psicologia do esporte, preocupo-me com a importância dos processos de coesão de grupo, liderança, vínculos, papeis, comunicação, dentre outros. Trabalhos apresentados em congressos, artigos, minha dissertação de mestrado, minha tese de doutorado ou demais textos como esse, buscam refletir sobre essas temáticas. Entretanto, ainda não sei bem claramente o motivo, constato que são raros os que corroboram a necessidade de investir nessa temática. Poucos pesquisadores se debruçam sobre esse assunto. São raros os eventos científicos/acadêmicos que tenham essa temática dentre as prioritárias. São escassos os cursos que tragam os processos de grupo para dentro do seu planejamento pedagógico. São raros os clubes que se preocupam e voltem seus olhares e atenção a esses processos, de modo sério. 

Por outro lado, é cada vez mais comum notarmos na mídia esportiva reportagens ou manchetes que afirmam que determinado clube está com o “grupo rachado”. Que determinado treinador “perdeu o vestiário”. Que a manutenção de determinado treinador à frente da equipe está comprometida, pois não há mais clima para sua permanência. E o que se faz sobre isso? NADA! Troca-se o treinador ou vende/empresta/encosta determinado jogador e pronto. Bola pra frente! 

Fortunas são empenhadas para formar grandes equipes, mas quase nada se faz para compreender como se comportam os grupos e como se resolvem determinados conflitos de natureza grupal que comprometem, na maioria das vezes de modo decisivo, o rendimento da equipe e todo um planejamento traçado no início da temporada ou no início de um projeto de trabalho. 

São inúmeros os exemplos que poderia trazer para reflexão que tenham conflitos de natureza grupal como o cerne do problema de uma equipe. Talvez, o mais recente deles esteja relacionado à demissão do treinador Rogério Ceni da equipe do São Paulo e o que seu sucessor, Dorival Junior, em tão pouco tempo, deu conta de transformar. Trarei, então, esse caso para discutirmos e refletirmos juntos. À época dos principais acontecimentos, surgiu uma série de reportagens e inúmeros debates na televisão ou internet sobre os episódios que envolviam o treinador Rogério Ceni e os conflitos que a equipe do São Paulo vinha enfrentando quando ele ainda era o treinador. Como não faço parte do grupo, não vivo o dia-dia do clube e sequer tive a oportunidade de conversar com algum integrante da equipe, certamente qualquer coisa que eu diga sobre esse caso específico está comprometida. Me deterei, portanto, a tecer alguns comentários sobre isso tendo como referência o que é trazido pela mídia esportiva, sobretudo depoimentos de atletas que conhecem bem o contexto, “dialogando” com tudo o que venho estudando e produzindo academicamente nos últimos 20 anos. Meu interesse é mais discutir sobre os processos de grupo e menos de debater um caso ou exemplo específico.

Manchete do Globoesporte.com diz: “Ceni discute com Marcos Paulo em treino, e jogadores do São Paulo reclamam do técnico com diretoria”. Programa esportivo de opinião do portal UOL discute se “há clima para (a permanência) de Rogério Ceni”. Reportagem de Luiz Rosa ao mesmo portal trás como manchete: “atritos entre Ceni e elenco passam pelos treinos e contusões”. O portal SPFC.NET, que cobre os bastidores do clube, estampa reportagem com a seguinte manchete: “Com Ceni pressionado após novo tropeço, dirigente revela vestiário do São Paulo rachado”. Conforme jornalista que cobre o dia-dia do São Paulo, Jorge Nicola, “Rogério Ceni não tem mais clima dentro do São Paulo”.  

Sobre o Rogério Ceni e seu estilo de liderança, gostaria de tecer alguns breves comentários. Não é de hoje que é noticiado na mídia esportiva que o treinador costuma ter problemas de relacionamento com dirigentes dos clubes que representava ou com parte do grupo de atletas que comandava. À exceção do Fortaleza, onde não tenho conhecimento de notícias desta natureza, em todos os demais clubes que o Rogério Ceni passou, ele teve problemas relacionados ao modo como se relacionava com os jogadores. Cruzeiro, Flamengo e o último clube do qual foi treinador: o São Paulo. Não parece mera coincidência, concordam?  

Ceni tem uma personalidade “forte”. Diz o que pensa, não importa para quem ou quando. É uma pessoa muita trabalhadora. É estudioso. Exigente. Determinado. Vencedor. Sempre foi, ou procurou ser, protagonista nos clubes por onde passa. Tem tudo para ser um dos melhores treinadores do Brasil, não tenho dúvidas disso. Inclusive, já colhe, no seu breve currículo de treinador, vários títulos, alguns deles de muita expressão. No entanto, vejo comportamentos e atitudes dele enquanto líder, no âmbito dos processos de grupo, que precisam ser repensadas se quiser evitar problemas como esses que tem enfrentado sucessivamente nos clubes que defende. 

E isto que venho tentando problematizar neste texto não vale somente para o Rogério Ceni, mas para grande parte dos treinadores do futebol brasileiro. São reflexões, em formato de perguntas, que deixarei para cada um de nós pensarmos e buscarmos respostas. 

Pessoas importantes no processo de montagem das equipes, os treinadores sabem o que significa, do ponto de vista dos processos grupais, trabalhar com grupos de distintos tamanhos (pequenos, médios ou grandes)? Como lidar com aquele jogador que não tem espaço na equipe e, às vezes, sequer é relacionado para os jogos? Como manejar as relações dentro de grupo no qual pessoas, seres humanos (e não peças, dotados, portanto, de desejos, necessidades, subjetividades), não ocupam o papel que desejam? Como fazer com que todos caminhem em busca de um mesmo objetivo quando há privilégios não discutidos e aceitos por todos? Como estabelecer um vínculo de respeito e confiança com todos? 

Toda relação grupal passa pela confiança e boa comunicação entre seus membros. Como criar um vínculo de confiança, respeito e segurança se o treinador sequer conversa com seus atletas sobre suas decisões? Proteger o grupo é comportamento esperado de qualquer líder. Como garantir que seus jogadores se sintam protegidos e acolhidos se em situações de fracasso, derrota ou erros, são expostos publicamente?

Nenhum grupo é formado “do dia para a noite”. Para que um grupo funcione e trabalhe de modo eficaz e produtivo, ou entre em tarefa, como nos diz Pichon-Riviere (2005)[1], ele precisa de tempo para vivenciar experiências distintas e passar por algumas fases fundamentais, permitindo, por exemplo, que se consolide o sentimento de pertença, de pertinência, de tele (conceitos pichonianos), ou seja, que passe por determinados estágios de desenvolvimento e amadurecimento enquanto grupo. Como garantir isso se não é dado ao jogador condições para que ele experimente todas essas fases do processo de formação de grupo? Como garantir que um atleta recém-chegado ao clube se sinta incluído, parte, e importante para o grupo, se sequer seu processo de adaptação é respeitado?  

Por outro lado, o que imaginam que acontece no grupo, consciente e inconscientemente,  quando um atleta acaba de chegar ao clube e antes mesmo de fazer um treino é escalado como titular em uma partida? Por mais importante e reconhecido que esse atleta possa ser, será que ele passou por todos os estágios capazes de integra-lo, de fato, ao grupo? E o que acontece com o atleta que até então vinha ocupando o papel de titular e, de um dia para outro, perde seu posto, seu reconhecimento, seu status, sua importância?  

Grande parte dos questionamentos e desavenças por parte dos atletas em relação aos treinadores se dá por não concordarem com suas condutas e, principalmente, com suas escolhas. Se sentir injustiçado é um dos principais motivos para que o atleta não se dedique como pode, e deve, nos treinos e jogos e, consequentemente, não obtenha o rendimento esportivo pelo qual ele foi contratado. Estamos falando, também, de motivação. Estamos de falando de motivos (ou ausência deles). Que motivos encontrará o jogador para treinar e jogar mais, e melhor, se, na sua visão, será, ou está sendo, injustiçado pelo treinador? Como acabar ou ao menos minimizar essa percepção de injustiça sem fazer com que o atleta entenda os motivos e saiba dos argumentos para suas escolhas? 

Voltando a falar do clube trazido neste texto como exemplo, o atual treinador, Dorival Junior, tem obtido resultados expressivos e nitidamente, mesmo à distância, é possível notarmos um melhor ambiente, algo confirmado em entrevistas e, consequentemente, um melhor desempenho individual e coletivo da equipe. 

Em reportagem ao GE[2], Dorival Junior afirmou que “[…] é normal você se preocupar com o lado tático, do técnico, físico, temos que abastecer nosso elenco em todos os aspectos, mas o principal é o lado humano, e esse lado humano tem que ser valorizado sempre”. Ao reportar sua atenção ao lado humano, Dorival explicita a necessidade de darmos atenção ao que pensam e sentem os jogadores. Estamos falando de psicologia do esporte, portanto. Estamos esclarecendo que os atletas são sujeitos (e não máquinas) que possuem desejos, necessidades, subjetividades. E que isso tem que ser notado e respeitado! 

Há quem entenda que treinador não deve ficar se justificando ou argumentando sob suas escolhas e decisões… Que treinador não deve ficar preocupado com atleta insatisfeito… Que treinador deve se preocupar somente com seus titulares e jogadores mais importantes tecnicamente… Que o treinador está acima do grupo e não no centro do grupo. Há quem entenda que jogador de futebol é muito mimado e, por isso, deve trata-lo com indiferença e ausência de empatia. Há quem entenda que jogador é uma máquina, uma peça e, portanto, deve render de qualquer jeito. 

Enquanto entendimentos como esses predominarem, continuaremos a ler frequentemente nas mídias esportivas que determinado grupo está rachado. Que determinado treinador perdeu o grupo. Que não há clima para determinado treinador permanecer no clube. Continuaremos a ver trabalhos que poderiam ser duradouros e eficazes sendo interrompidos por problemas de natureza grupal. 


[1] PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[2] https://ge.globo.com/futebol/times/sao-paulo/noticia/2023/07/21/dorival-explica-como-recuperou-confianca-do-sao-paulo-e-ve-time-criando-ambicao-por-conquistas.ghtml

Texto por: Rafael Castellani

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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COPA DO MUNDO FEMININA: HORA DO MUNDO OLHAR PARA ELAS

Se você ainda não compreendeu o novo e melhor momento global do futebol de mulheres, agora é a hora. Seja como torcedor, patrocinador ou investidor, esta modalidade vem crescendo exponencialmente nos últimos anos e vive em 2023 seu melhor momento.

Comece pela expectativa de público que ultrapassou 1 bilhão na última Copa em 2019 e este ano são esperadas 2 bilhões de pessoas com jogos transmitidos para 150 países em TV aberta e streaming. Imagine a enormidade de oportunidades que isto traz para engajar meninas no esporte em todo o mundo, para negócios adjacentes e para a visibilidade de marcas.

Em pesquisa recente, o IBOPE Repucom constatou que 48% dos internautas brasileiros conectados, ou seja, quase 57 milhões de pessoas, se declararam fãs da Copa do Mundo feminina. Para uma modalidade proibida por mais de 60 anos, esses números são incríveis e mostram que ainda há muito espaço para ser conquistado.

A premiação será a maior de todos os tempos: R$ 733 milhões para as equipes participantes. Este ponto é motivo de debate quando comparado à premiação da Copa do Mundo masculina, mas, aqui e em outras discussões de remuneração, há de sermos mais pragmáticos e buscarmos a sustentabilidade. É urgente e necessário o debate e a comunicação de todos os benefícios, retornos e quão estratégico é o futebol feminino. Porém, precisa crescer de forma rentável e sustentável para continuar atraindo jogadoras, torcedores, marcas e investidores.

Tudo citado acima é importantíssimo, mas o que verdadeiramente me atrai é o poder de transformação quando o futebol feminino ganha esta visibilidade global.

Convido ao acompanhamento desta Copa, atentos à riqueza de reflexões e debates que já estão nas pautas dos jornais e nas rodas de conversa. Convido você a um olhar mais sistêmico para o que acontece dentro e fora das 4 linhas.

São milhares de exemplos que tenho aprendido nos últimos anos. Cito alguns que me encantam no futebol feminino: equidade, inclusão, direito a gravidez durante a profissão, sonho de ser mãe retomado ao pendurar as chuteiras, conversa aberta para apoio ao combate à violência doméstica nas comunidades, desenvolvimento de caráter e coletivo jovem, abertura para um basta ao assédio sexual e moral e muito mais.

E termino dizendo que, para esta grande virada e a continuidade desta jornada de sucesso, foi e serão cada vez mais necessárias mulheres líderes e o apoio do que chamo de homens de “alma feminina”.

Boa sorte, meninas!

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

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Se LIGA

Não é só sobre juntar os clubes de futebol. Não é só sobre negociar e defender os interesses dos clubes em negociações de direitos de transmissão de TV. Não é só sobre futebol brasileiro e sobre campeonatos e transmissões. Não é só sobre aumento de receitas. É muito mais que isso.

Em um cenário no qual as opções de entretenimento são abundantes, as formas de consumo estão mudadas, o poder das mídias sociais e dos influenciadores desafiam as mídias tradicionais e governança e integridade entram na pauta dos esportes, é preciso ir muito além quando se discute a necessidade, o impacto e o valor de uma Liga Nacional de Futebol.

Um bom ponto de partida para esta reflexão é lembrar que futebol não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro. Partindo da conjectura econômica, especialistas já projetam que se estivéssemos trabalhando melhor o produto futebol, nossa indústria já deveria estar faturando o dobro do que fatura hoje. Ou seja, o futebol brasileiro já deveria ter rompido a barreira dos 100 bilhões de reais de faturamento e estar alcançando algo próximo de 1,5% do PIB brasileiro que já é a importância do futebol e dos esportes em muitos países. Mais que isso, projeções feitas por estudiosos de uma Liga Nacional de Futebol, já projetam o potencial de crescimento para 3 a 5 vezes o que somos hoje.

O importante é ter consciência e construir esta jornada pois estas cifras são consequência e não ponto de partida. Mesmo que estudos, estruturações e articulações já estejam avançados e que investidores globais já estejam prontos para ajudar a impulsionar o crescimento e impactar todo o ecossistema do futebol, falta um passo essencial: o senso verdadeiro de coletividade onde clubes abram mão de discutir um percentual grande de negócio pequeno. Falta a visão de que um espetáculo não é feito de poucos clubes fortes, mas de muita disputa e da competitividade. Um espetáculo é feito do jogo e de todos as experiências vividas pelos torcedores, fãs e consumidores de futebol dentro e fora dos estádios de futebol.

Falta ainda a visão de que a distribuição mais inteligente dos direitos de transmissão da TV é apenas uma pequena parcela e se tornará ainda menos relevante quando todo ecossistema evoluir e começarmos a investir além dos jogos e a termos resultados para muito além disto, como em outras ligas como a NBA.

Desejo que indivíduos pensem e ajam no coletivo. Que disputas por poder e questões de ego sejam derrotadas em benefício de milhões de pessoas e milhares de negócios. Desejo que todo potencial de ganho econômico venha ancorado em uma governança forte, em fairplay financeiro, em visão global de promoção e comercialização dos direitos e, acima de tudo, em projetos concretos de investimentos sociais e em educação para o desenvolvimento de todos; desde atletas da base até treinadores e gestores que devem ser preparados para que voltemos a ser o país do futebol.

Se LIGA, pois há um cavalo selado passando na nossa frente. É agora, ou agora.

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

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A PSIQUIATRIA ESPORTIVA EM JOGO: É CHEGADA A HORA DE SUA ENTRADA?

Acabo de ler a reportagem do icônico diretor de futebol, atualmente, do Fluminense. Angioni é um profissional muito importante para o futebol e traz contribuições relevantes. Num ambiente dominado pela desinformação, ignorância e preconceito, Angioni traz necessário olhar para a saúde mental e para psicologia. 

No entanto, preocupa-me o viés desse olhar. Um olhar, aparentemente, clínico. E o olhar clínico para as questões mentais, nesse momento, mais afasta a presença de psicólogos e psicólogas esportivas e psiquiatras nos clubes de futebol do que abre portas. E mais do que uma visão clínica, explicita-se uma abordagem medicamentosa. Diz Angioni em sua entrevista: “Futebol de clube já está na hora de ter psiquiatras, porque você vai precisar eventualmente dar remédio”. 

Tenho defendido, há anos, a presença da psicologia esportiva nos clubes. Não faltam motivos e argumentos que justifiquem sua presença nas comissões técnicas. Mas não defendo qualquer tipo de intervenção. A psicologia, assim como a psiquiatria, possui diferentes formas de olhar, e intervir, sobre determinado fenômeno. No caso da psicologia do esporte, pelo menos com base no que já há de estudos nesse campo de conhecimento, tenho notado que intervenções puramente clínicas mais afastam psicólogas desse espaço de intervenção do que as aproximam.

Entendo que a psicologia clinica e a psicologia esportiva não sejam excludentes. Pelo contrário, são complementares. No entanto, são papeis a serem desempenhados por profissionais diferentes, preferencialmente em espaços diferentes (um dentro e outro fora do clube). Como já afirmei em outras oportunidades, a psicologia do esporte continuará não assumindo o espaço, importância e reconhecimento que lhe cabe se continuarmos esperando que atletas se dirijam à sala da psicóloga esportiva no clube para marcar uma consulta a fim de compreender e superar problemas de depressão, pânico, alcoolismo ou outras manifestações de sofrimento psíquico.   

Se essa premissa vale para a psicologia do esporte, campo de conhecimento já em certo nível de desenvolvimento, imaginem para a psiquiatria. A psiquiatria esportiva, especialidade da psiquiatria que, por sua vez, é uma especialidade da medicina, ainda engatinha nesse sentido. Há muito para se desenvolver no âmbito das pesquisas e, principalmente, no âmbito das intervenções com o futebol. Começar dessa forma, ou seja, medicando atletas para que eles consigam lidar com a pressão extrema que recebem cotidianamente na sua prática profissional, me parece um erro. 

Comecemos ampliando e qualificando as pesquisas nessa área. Comecemos determinando os objetivos, metodologias e estratégias de intervenção no âmbito do futebol. Comecemos ampliando e qualificando os argumentos para a sua presença nas equipes médicas do futebol profissional. Comecemos apresentando aos atletas bons motivos para que eles compreendam e acreditem que a psiquiatria tem muito a contribuir com sua saúde mental e, consequentemente, com sua atividade profissional. 

Caso contrário, tendo a acreditar que a psiquiatria esportiva começará seu jogo no futebol profissional com grandes probabilidades de perdê-lo!

Texto por: Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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PREPARAÇÃO FÍSICA NO FUTEBOL: ENTRE MITO E REALIDADE

A preparação física no futebol não existe como parte da opinião pública pensa. Nem sempre quem corre mais, salta mais e tem mais força joga melhor. Em outros esportes, a maximização dos componentes físicos resulta em vitórias e recordes. No futebol, diferentemente, busca-se equilíbrio das qualidades físicas individuais para melhorar o rendimento coletivo dos times. 

Nesse cenário, a preparação física é um saber que interage com outros saberes (fisiológicos, biomecânicos, técnicos, psicológicos, táticos, nutricionais, sociais e culturais) para formar um time competitivo. A preparação física não “causa”, isoladamente, a intensidade e a velocidade de um time. Nos treinos de futebol, a preparação física não ocupa um momento isolado do resto (a pré-temporada é uma exceção a essa regra). Em outras palavras, a intensidade do time é determinada pela preparação específica e características dos jogadores – e não só pela preparação física. Conceitual e funcionalmente, o saber físico é apenas mais um componente do plano de treino, entendido na sua totalidade.

Da maneira como é imaginado pela opinião pública, o preparador físico parece um encantador, um mágico, que aplica uma fórmula que fará o time correr mais ou menos. Quando se diz “a equipe vai reforçar a preparação física” ou “a equipe está lenta, logo mal preparada fisicamente”, incorre-se nessa ideia simplista de que o preparador, por si só, tem o dom de acelerar um time ou, por incompetência, causar sua fadiga precoce. Mas as ações motrizes do jogo, e o estudo dessas ações, mostram algo diferente. O alto rendimento – o “time que corre” – depende de fatores que ultrapassam o controle do preparador físico: fatores como a inteligência e a qualidade dos jogadores, jogadores reservas com potenciais para a titularidade, a idade-média do time, as táticas aplicadas pelo treinador, o calendário, as viagens, o gramado, a relação com a torcida, e, principalmente, o plano de treino em geral. O preparo físico decorre do nível de exigências (intensidade, volume e densidade) nos treinos com bola. Não é o treino “físico” – as corridas em volta do campo, o aquecimento etc. –, mas os treinos específicos que determinam a força de jogo.

A preparação física possui, sim, responsabilidades particulares: avalia, por exemplo, a intensidade dos esforços e o tempo de recuperação em relação aos conteúdos de treinos e jogos. Também individualiza treinos de acordo com necessidades especiais de cada jogador. Mas, repito, ela não existe isolada do trabalho de preparação total, da qualidade do elenco, da sinergia coletiva, e assim por diante. O futebol, complexo e impreciso, é jogado e vivido com emoção – mas precisa ser pensado com cautela analítica, se não quisermos procurar “causas” simplistas para problemas mais profundos. Entender o futebol não é uma questão acadêmica abstrata – mas uma precondição para a melhora do rendimento e, ali adiante, para vitórias e títulos.

Texto por: Professor Elio Carravetta

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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“PENALIDADE MÁXIMA”: UM OLHAR PEDAGÓGICO

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Nestas últimas semanas, fomos surpreendidos (sic) com a divulgação dos resultados preliminares da “operação penalidade máxima”, iniciada pelo Ministério Público de Goiás, que investiga a manipulação de jogos e resultados a fim de favorecer determinados grupos de apostadores. Trata-se, de fato, da atuação de uma organização criminosa, com alguns dos seus líderes já detidos, que alicia e corrompe atletas profissionais de futebol para garantir a ocorrência de determinados eventos esportivos, por exemplo, pênaltis, cartões e expulsões e, com isso, gerar vultuosos ganhos financeiros decorrentes de apostas realizadas nas, cada vez mais presentes, casas de apostas esportivas, grande parte delas efetuadas em plataformas digitais e aplicativos.    

Como somos professores e não advogados, não nos aprofundaremos nas questões jurídicas que envolvem essa investigação. Nesse sentido, indicamos o texto escrito pelos advogados Andrés Perez e Stephanie Perez, publicado em 15 de maio no jornal Estadão[1].  Por outro lado, como somos professores e estudiosos do futebol, buscaremos tecer um olhar pedagógico sobre esse episódio. E, nesse exercício, refletiremos a respeito de algumas questões: O que significa, para o jogo, tirarem dele aquilo que possui de mais fascinante, ou seja, sua imprevisibilidade? Que tipo de formação nossos atletas recebem? Há, de fato, empenho dos clubes em formar os atletas integralmente? O que, pedagogicamente, podemos fazer para devolver, ao jogo, sua essência?     

A imprevisibilidade é, podemos dizer assim, o grande adversário daqueles que jogam. Se fosse possível prever todas as jogadas do adversário no xadrez, o jogo seria menos assustador e, por outro lado, menos notável e admirável. Se fosse possível prever o resultado do jogo, o ganho seria certo na casa de aposta. Se fosse plausível indicar a priori os lances e movimentos dos jogadores de defesa, seria mais fácil chegar ao gol e assim por diante. Ora, se o grande adversário é a imprevisibilidade, mais que derrotar o adversário, o objetivo deve ser derrotar o imprevisível. Mas como fazer isso se o imprevisível é, também, invisível? Se o imprevisível se revelasse, o jogo morreria, se transformaria em qualquer outra coisa, menos em jogo. Poderia ser uma tarefa, um trabalho, um encargo, um negócio… De acordo com as regras do jogo, implícitas ou explícitas, isso não pode ser feito. Mas… se burlarmos as regras, sim. Se burlarmos as regras, para os que não souberem disso, o jogo continuará sendo jogo, mas para os fraudadores ele deixará de ser jogo, uma vez que se saberá de antemão os detalhes da sua realização e, quem sabe, até seu resultado final. 

Pois foi o que fez a quadrilha que oferecia a apostadores privilegiados, antecipadamente, detalhes de certas partidas. Para isso, aliciava, corrompia e combinava com alguns jogadores quais ações deveriam realizar no decorrer do jogo. A intenção não era oferecer o resultado final, mas apenas algumas ocorrências como cartões amarelos ou vermelhos, penalidades máximas etc. Para tais apostadores, a partida de futebol deixaria de ser um jogo, uma vez que foi revelado o imprevisível, que deixou de sê-lo. Para esses apostadores não interessava jogar, arriscar, mas apenas ganhar. E não se tratava de ganhar o jogo de futebol, mas o jogo do mercado financeiro. 

Ainda que os envolvidos tenham que ser responsabilizados na esfera jurídica e criminal pelos seus atos, o que pode ser feito para que o futebol (e demais jogos) não perca(m) aquilo que de mais fascinante ele tem, ou seja, a incerteza do seu resultado? Certamente, entre outras medidas, investir numa educação de boa qualidade. E, com isso, queremos dizer investir numa educação integral, crítica e emancipatória. Que nossos jovens que trilham o caminho do futebol profissional aprendam mais que técnicas e táticas para defender e atacar.

Ao apostar numa educação integral dos nossos jogadores e atletas, corroboramos a afirmação do filósofo português Manoel Sérgio de que “para saber de futebol, é preciso saber mais do que futebol”. É fundamental que nossos atletas construam uma carreira e estejam preparados para lidar com o futebol enquanto negócio; que se eduquem para viver dentro e fora do futebol, ou seja, que saibam gerir sua vida pessoal e profissional. Afinal, mais uma vez citando Manoel Sérgio, “se eu não conhecer os homens e mulheres que driblam, fintam e chutam, eu nunca compreenderei as fintas, os chutes e as fintas”. 


[1] https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/manipulacao-de-jogos-e-resultados-no-futebol-brasileiro-entenda-quais-sancoes-poderao-ser-aplicadas-aos-atletas/

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani.

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O FUTEBOL DE ABUSOS E CONIVÊNCIAS: O CASO CUCA EM JOGO.

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Não nos surpreende o apoio do elenco do Corinthians (não sabemos se todo ele ou sua grande maioria) ao técnico Cuca momentos antes de sua demissão. Não é difícil supormos que o mesmo ocorreria em outros clubes, afinal, o futebol foi gestado e criado em um ambiente machista, permissivo, reacionário. Há avanços, claro, mas ainda tímidos. Casos como o de Cuca, treinador que finalizou sua passagem pelo Corinthians após 7 dias, e dois jogos, em que jovens são abusadas por jogadores, são frequentes e tão mais frequentes quanto mais olhamos para o passado; raramente eram relatados. E, quando relatados, não sensibilizavam a sociedade, ou ao menos parte dela, como já ocorre nos dias atuais. 

O apoio dado a Cuca pelos jogadores corintianos é mostra de como as mulheres são consideradas e tratadas no ambiente futebolístico, e fora dele também. Porém, surpreendente mesmo seria o apoio dos jogadores à vítima, uma criança de 13 anos, comprovadamente violentada por um grupo de jogadores, dentre eles, Cuca, à época, atleta do Grêmio. Houve investigação e posterior condenação dos jogadores por estuprarem a menina. De lá para cá passaram-se muitos anos e, se não resultou em prisão definitiva do técnico (ele e os demais envolvidos permaneceram 30 dias presos na Suíça e retornaram ao Brasil para responder o processo em liberdade), pelo modo como isso é tratado no Brasil, e pela sua não extradição à Suíça, o caso criou a necessidade de arrependimento e desculpas públicas, algo que não ocorreu; Apesar de condenado após investigação, em processo transcorrido na Suiça em 1987, Cuca nega que tenha praticado o crime. E ao se explicar, somente se contradisse em relação ao que foi averiguado e constatado na investigação. Não estamos aqui julgando o treinador, afinal, partimos do pressuposto de que ele já foi julgado e condenado a 15 meses de prisão.  Pelas leis suíças, seu crime prescreveu após 15 anos. 

Abusos sexuais não são novidade no ambiente futebolístico. Grande parte das últimas gerações de meninos cresceu em um ambiente assim, como meninos jogadores de bola, nos campinhos de terra, nas ruas e nos campos de várzea. Sobretudo em meados do século passado, a formação dos jogadores brasileiros não ocorria em equipes de base dos clubes, mas nesses espaços lúdicos, de muita brincadeira com bola, nos quais nós, que tínhamos no jogo de bola nossa principal brincadeira, criávamos à vontade e nos tornávamos, cada vez mais, habilidosos. Era comum, nestes espaços, alguns adultos organizarem os meninos habilidosos, desde cedo, em timinhos, que jogavam nos finais de semana. Muitos desses adultos eram pedófilos. Os meninos sabiam, muitos pais e mães sabiam e a comunidade também. Mas raramente ouvíamos alguém que se incomodasse com isso. Se o futebol era um ambiente rico para a vivência do lúdico, da criatividade, da liberdade, por outro lado, era cercado por pedófilos, que viam no futebol dos meninos uma excelente oportunidade de aliciar. 

Entre tantas coisas maravilhosas que vivenciamos e aprendemos no futebol, há também, infelizmente, e para nossa revolta, essa permissividade danosa em relação aos abusos sexuais, sobre meninos e meninas. 

Muitos estudos e investigações já foram realizadas a esse respeito. Dentre eles, vale destacar a ampla e qualificada investigação do jovem e talentoso jornalista Breiller Pires, que há muitos anos investiga casos de abuso sexual no futebol, e que em 2013 publicou na revista Placar um dossiê sobre abuso sexual no futebol. Conforme constatou em sua investigação, “…muitos jogadores de futebol consagrados já foram vítimas de abuso sexual”. E quantos não consagrados também não sofreram com isso? E quantos, que sequer se profissionalizaram, sofreram abusos a fim de buscar o sonho de tornar-se jogador profissional de futebol? 

Quanto ao desrespeito às mulheres, vivemos com nossos amigos, ou familiares, uma verdadeira escola de desrespeito, opressão e violência no ambiente futebolístico. Nem todos os amigos ou famílias eram, ou ainda são, assim, mas todos viviam nesse ambiente. O que se dizia sobre as mulheres era assustador, ainda mais do que nos tempos atuais. Talvez isso nos ajude a entender o porquê de somente agora, tantos anos após a condenação e após a passagem do treinador Cuca por diversos clubes, este episódio de estupro coletivo tenha voltado aos holofotes.    

Ainda que tenhamos alguns raros exemplos de posicionamentos e movimentos de atletas para dizer não à violência contra a mulher, ao racismo, à homofobia e outros abusos que produzem tanto sofrimento aos brasileiros e brasileiras, quantos outros jogadores e ex-jogadores uniram forças e vozes aos 33 atletas que, em 2018, endossaram a campanha do Sindicato de Atletas de São Paulo contra o abuso sexual no futebol? 

Ao ser contratado pelo Corinthians, clube reconhecido historicamente como aquele que sempre esteve à frente no combate às injustiças contra as minorias, os negros, as mulheres etc., que encampou na década de 1980 o movimento da Democracia Corinthiana reconhecido, até hoje, como o maior, e mais importante, movimento político e ideológico no âmbito do futebol, novamente esse caso de estupro coletivo realizado em uma menina de 13 anos de idade veio à tona. Os “passadores de pano” de plantão, em sua maioria conservadores, reacionários, abusadores ou coniventes com esse tipo de comportamento, logo tentaram minimizar a situação. “Ahhhhh… já faz tanto tempo!”. “Ele já treinou tantas equipes e só agora acham isso ruim?”. Antes tarde do que nunca, não é? Ainda bem que o destino de Cuca foi o Corinthians. Mas não o Corinthians dos dirigentes que o contrataram e sim o Corinthians da Gaviões da Fiel. O Corinthians “das minas”. Se iniciamos nosso texto afirmando que não nos surpreende a defesa do elenco corinthiano ao treinador condenado por estupro, um deles afirmando, inclusive, ter se sensibilizado com o choro do treinador – mas aparentemente não com a dor e trauma de uma menina de 13 que, conforme afirmado no processo, tentou o suicídio -, finalizamos dizendo que também não nos surpreende a pressão da sua enorme, apaixonada, crítica e politizada torcida, bem como das atletas do futebol feminino com manifestações firmes e posicionamento contundente que, culminaram na demissão do treinador Cuca. 

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.