Os treinos analíticos têm maioridade e presença quase que certa nas atividades de treinamento de equipes de futebol (profissionais e de categorias de formação).
Ao longo da última década e meia, a contestação a esse tipo de treino (seja ele para trabalhar um “fundamento técnico” qualquer ou uma capacidade biomotora específica), tem crescido em boa parte do mundo, especialmente onde os estudos científicos tentam avançar barreiras alicerçadas em paradigmas “tradicionais”.
Algumas pesquisas têm buscado desmistificar a idéia de que o treinamento analítico – treino descontextualizado do jogar – se correlaciona com o aperfeiçoamento das habilidades técnicas que se expressam em ambiente de jogo.
Pois bem. Hoje trago alguns dados e informações interessantes – já apresentadas em outro fórum, com o devido rigor e estrutura técnica requisitada por ele – que podem ilustrar a resposta para uma questão interessante:
Será que um grupo de jogadores com melhores aproveitamentos em testes de precisão, e de força aplicada ao passe (testes analíticos), tem também melhor aproveitamento nesse fundamento quando submetido a situação de jogo?
Tentando responder em parte, a essa pergunta, apresento um “experimento prático” interessante, realizado com jogadores de futebol sub-17. Nesse experimento, 24 jogadores foram divididos aleatoriamente (ou para os que preferem; randomicamente), através de sorteio, em três grupos de oito jogadores cada (grupos “A”, “B”, “C”). Esses grupos foram submetidos a cinco sessões de treino de futebol (que faziam parte do planejamento de treinos da equipe, ao longo do ano competitivo), com jogos em espaço reduzido e com regras adaptadas.
As atividades de treino foram programadas para que houvesse jogos entre jogadores do mesmo grupo (3 x 3 e 4 x 4), e também entre grupos (6 x 6 e 8 x 8).
Para cada um dos jogos, foi realizado um “scout” detalhado de passes certos e errados, jogador por jogador, equipe por equipe, grupo por grupo.
Nas cinco sessões de treino, foram realizados 12 jogos adaptados com objetivo de desenvolver um modelo de jogo específico.
Nessas 12 atividades, o volume total de passes variou significantemente nos jogos, mas o percentual de passes errados por grupo, não (em média 25,2% para o grupo “A”, 25,0% para o grupo “B” e 24,3% para o grupo “C”)!
Os grupos “A”, “B” e “C”, eram componentes de uma equipe que no jogo formal apresentava em média, 15% de passes errados por partida (contando aí, passes, lançamentos e cruzamentos). Nos jogos adaptados, como vimos, não mostraram diferenças significantes entre eles.
Mas é agora que vem a melhor parte da história. Os jogadores desses grupos foram submetidos a três testes analíticos (teste 1, teste 2 e teste 3) para avaliar a precisão e “força” do passe de seus jogadores.
O teste 1 dava ao jogador a possibilidade de realizar 10 passes, a partir de uma marca a 15 metros de distância de um gol com as medidas oficiais (dividido em zonas de importância), com o objetivo de acertar pelo menos uma vez cada uma delas.
O teste 2 dava ao jogador a possibilidade de realizar 10 passes, a partir de uma marca de 20 metros, com objetivo de derrubar cones, com massas diferentes, fixados no chão.
O teste 3 dava ao jogador a possibilidade de realizar 10 passes, a partir de marcas com distâncias variadas (10, 15, 20, 25 e 30 metros), com objetivo de acertar um único alvo demarcado com uma estaca fixada no campo de jogo.
Todos os testes foram realizados no campo de jogo, com jogadores devidamente trajados, respeitando as regras que norteiam o futebol.
|
GRUPO A |
GRUPO B |
GRUPO C |
TESTE 1 |
21,2% |
32,5% |
21,2% |
TESTE 2 |
26,2% |
40% |
50% |
TESTE 3 |
31,2% |
43,7% |
20% |
Conforme podemos observar na tabela de resultados (referentes a porcentagem de passes errados nos testes analíticos), e sem que necessitemos nos aprofundar nos procedimentos “estatístico-metodológicos” do “experimento” (assunto para outro fórum), o número de passes errados nas atividades analíticas não se correlacionou diretamente com o resultado observado de passes errados obtidos em contexto de jogo (para nenhum dos testes!).
Notemos que em situações de jogo, os três grupos quase não se diferenciaram ou se destacaram pela porcentagem de passes errados. Poderíamos esperar, caso houvesse correlação boa e direta entre os passes realizados com caráter analítico e os de jogo, que a diferença entre os grupos respeitasse sistematicamente a mesma variação tanto no exercício analítico, quanto no jogo.
Podemos observar que não foi isso que aconteceu, ou seja, os melhores resultados nos testes analíticos não foram necessariamente os melhores resultados em situação real de jogo, e vice-versa.
Outros resultados e procedimentos poderiam ser explorados nesse espaço também, para, apimentando mais ainda a discussão que estas informações podem gerar, mostrar que o treinamento através de exercícios analíticos melhora, tão e somente, o desempenho e resultados de avaliações, igualmente analíticas.
A melhora da “performance” de jogo deve ocorrer através de jogos. E não se trata do jogo pelo jogo. É necessário que em sua aplicação e execução, esses jogos gerem sobrecarga suficiente para provocar “respostas adaptativas” físicas, técnicas, táticas, psicológicas, de maneira integral, integrada e totalmente complexa – e isso requer profundo conhecimento a respeito do processo que orienta a aplicação seqüencial desses jogos.
Os exercícios analíticos, contudo não devem ser “aposentados”. Além das muitas décadas de “serviços prestados” (e especialmente por causa disto), têm um simbolismo com os jogadores, que não pode ser desconsiderado ou deixado de lado.
Olhar um fenômeno com os óculos da complexidade requer, acima de tudo, que os olhos estejam abertos, e as lentes, transparentes…
Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br