Sem risco não há jogo, dizia-me Aurora, a coruja, na madrugada que declinava, cedendo lugar ao sol, um fino traço dourado no horizonte. No céu as estrelas aproveitavam-se de um resto de noite e eu aproveitava o que poderiam ser minhas últimas madrugadas neste lugar. Sim, eu pensava deixar a caverna, e já antecipava as saudades que sentiria de Aurora, minha amiga coruja, e das auroras que consumimos em conversas sobre a vida. Saudades que terei de Oto, meu amigo e mensageiro morcego, e do bagre cego Arnaldo, aquele que nunca me viu, mas que muito bem me conheceu.
Sem risco não há jogo, ia dizendo Aurora, como no caso daquele piloto brasileiro, o Felipe Massa, que deixou o companheiro passá-lo no final da corrida. Massa descumpriu a regra das regras do jogo, acabou com o risco, contou o final do filme, e tudo perdeu a graça. As crianças, quando o jogo perde a graça, dizem que não brincam mais e vão fazer outra coisa.
De fato, comentei com Aurora, quando a gente joga alguma coisa, nunca sabe o que vai acontecer, não conhece o fim da história, e é isso que dá graça ao jogo. Se sabe o fim, não é jogo. Numa conversa de trabalho, conversa-se para se achar uma solução. Numa conversa entre amigos que se encontram num bar, não há esse compromisso, a conversa se desenrola sem que haja compromisso com um fim.
Pena que os técnicos, mais que os jogadores de futebol, não saibam disso, disse Aurora. Fazem de tudo para não correr riscos, para contar o fim da história, para tornar o jogo sem graça. O futebol é um jogo e os técnicos insistem em não reconhecer isso.
Para mim, eu disse à coruja, o melhor técnico é aquele que entende que o futebol é um jogo, aquele que sabe que o técnico é um jogador, que é impossível saber o final da história, que sabe caminhar no escuro, que sabe lidar com o risco, com o imprevisível. O melhor técnico é um jogador de dados, o que tem a habilidade de caminhar pelo labirinto de imprevisibilidades.
E o melhor jogador de futebol, prosseguiu Aurora, é aquele que tira prazer, acima de tudo, da arte de correr o risco, de jogar o jogo da bola sem saber o que vai acontecer, e gostando de não saber. No jogo, não há compromisso com o resultado, mas apenas com o ato de jogar. O grande jogador não se compromete com o resultado, porque não é possível firmar esse compromisso com o desconhecido.
Afinal, completei, o que há de mais aborrecido que, no meio de um filme de suspense, alguém ao lado contar o final?
Penso em deixar a caverna, mas reluto. Os amanheceres que amanheci aqui talvez eu não amanheça em mais lugar nenhum. Mas acho que não conseguirei resistir à sedução do desconhecido que anda a me chamar para além da caverna, uma tentação que me roi a cada aurora. Se troco o certo pelo duvidoso? Sem dúvida, pois, acima de tudo, sou um jogador.
*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.
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